Você está na página 1de 177

Sete aulas de

L.S. Vigotski
sobre os fundamentos da
Pedologia
Zoia Prestes e Elizabeth Tunes (org.)

Rio de Janeiro, 2018


© Zoia Prestes e Elizabeth Tunes (org.) /E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2017.
Todos os direitos reservados a Zoia Prestes e Elizabeth Tunes (org.) /E-papers Serviços Editoriais Ltda. É
proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos
editores.
Impresso no Brasil.

ISBN 978-85-7650-570-9

Traduzido do original russo: L. S. Vigotski. Lektsii po pedologuii. Ijevsk: Izdatelskii dom “Udmurski univer-
sitet”, 2001. p. 9-150.
Tradução: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes, Cláudia da Costa Guimarães Santana
Revisão: Zoia Prestes, Elizabeth Tunes e Lucília Ruy
A foto da capa é de L. S. Vigotski aos 4 anos de idade em Gomel (Bielorussia) gentilmente cedida por Elena
Kravtsova, neta de L. S. Vigotski.

Revisão
Rodrigo Reis

Diagramação
Michelly Batista

Esta publicação encontra-se à venda no site da


Editora E-papers
http://www.e-papers.com.br
E-papers Serviços Editoriais Ltda.
Av. das Américas, 3200, bl. 1, sala 138
Barra da Tijuca – Rio de Janeiro
CEP: 22640-102
Rio de Janeiro, Brasil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

V741s
Vigotski, L. S. (Lev Semionovich), 1896-1934
Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da pedologia / L. S. Vigotski ; organização [e tradução]
Zoia Prestes , Elizabeth Tunes ; tradução Cláudia da Costa Guimarães Santana. - 1. ed. - Rio de Janeiro : E-
Papers, 2018.
176 p. : il. ; 21 cm.

Tradução de: Lektsii po pedologuii


Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-570-9

1. Educação de crianças. 2. Psicologia educacional. 3. Educação - Filosofia. I. Tunes, Elisabeth. II. San-
tana, Cláudia da Costa Guimarães. III. Título.

18-48970 CDD: 370.1


CDU: 37(01)

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439


Sumário

5 Apresentação
7 O bom, o mau e o feio
7 Um pouco sobre a era de Stalin

10 A crítica encomendada

13 As sete aulas sobre os fundamentos da pedologia de L. S. Vigotski

15 Referências bibliográficas

17 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


17 Primeira aula. O objeto da pedologia

37 Segunda aula. A definição do método da pedologia

56 Terceira aula. O estudo da hereditariedade e do meio na pedologia

73 Quarta aula. O problema do meio na pedologia

92 Quinta aula. Leis gerais do desenvolvimento psicológico da criança

109 Sexta aula. Leis gerais do desenvolvimento físico da criança

129 Sétima aula. As leis do desenvolvimento do sistema nervoso

149 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


149 Nota inicial da edição russa

152 O problema do pensamento e da fala em Vigostki

161 Instrução e desenvolvimento mental da criança na falsa ciência de Vigotski

168 A metodologia de “investigação de Vigotski”

169 A “lei” de determinação fatalista de predestinação de crianças sob a influência da


hereditariedade e do meio em Vigotski
Apresentação

Este livro contém sete aulas proferidas por Lev Semionovitch Vigotski
ao final da vida. Elas se encontram na primeira parte (“Osnovi pedolo-
guii”, Fundamentos de Pedologia) do livro Lektsii po pedologuii (Aulas de
pedologia). A segunda parte do livro, “Problema vozrasta” (O Problema
da Idade), à exceção de três textos,1 compõe o material do tomo IV das
Obras escolhidas de L. S. Vigotski, publicadas na década de 1980 na
União Soviética.2 A primeira edição do livro foi publicada na Rússia em
1996 em homenagem ao centésimo aniversário de nascimento do autor.
O livro de 1996 (que teve uma segunda edição em 2001) com os
textos das aulas de Vigotski não é a primeira edição. Em 1934, a editora
do Segundo Instituto de Moscou (atual Universidade de Moscou) publi-
cou o mesmo material com o título Fundamentos de pedologia, com 211
páginas. No ano seguinte, a primeira parte foi publicada pela editora do
Instituto de Pedagogia de Leningrado no livro Fundamentos de pedolo-
gia, com 133 páginas e tiragem de 100 exemplares (LIFANOVA, 1996;
VIGOTSKI, 2001).3 Como é possível observar, as publicações das obras
de Vigotski, mesmo na Rússia, têm sempre uma história que precisa ser
contada antes de nos determos em seu conteúdo.
O material que trazemos ao leitor brasileiro foi traduzido com base na
edição de 2001 e é apenas a primeira parte do livro Lektsii po pedologuii.

1 “O conceito de idade pedológica”, “A fase negativa da idade de transição” e “O pensamento


do escolar”. Em 2017, este último foi publicado em português em Prestes e Estevam. “Uma aula de
L. S. Vigotski”. Em: Orso, P.; Malanchen, J. e Castanha, A. P. Pedagogia histórico-crítica, educação
e revolução. Campinas: Navegando e Armazém do Ipê, 2017. p. 207-224.
2 Cinco volumes dessa coleção foram traduzidos para o espanhol e publicados pela editora
Visor, de Madri, entre 1991 e 1997. Os seis volumes foram traduzidos para o inglês e publicados
entre 1987 e 1999 pela editora Plenum Press (o último volume teve a participação da editora
Kluwer Academic).
3 Infelizmente, não tivemos acesso a essas duas edições.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 5


São textos inéditos em português4 e que compõem a primeira parte,
denominada Fundamentos de Pedologia. Esta é a primeira tradução
para outra língua das sete aulas de Vigotski de acordo com a bibliografia
sistematizada por Vigodskaia e Lifanova (Lev Semionovitch Vigotski: jizn,
deiatelnost, chtrirri k portretu. Moscou: Academia e Smisl, 1996).
Na presente edição, além das sete aulas sobre os fundamentos da
pedologia, de Vigotski, apresentamos também a tradução da brochura
escrita por Eva Izrailevna Rudniova (1898-1988), a quem foi encomen-
dada uma crítica às ideias pedológicas do autor. Embora o título do texto
esteja traduzido como “As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia”,
a tradução literal seria “As deturpações de L. S. Vigotski na pedologia”.
A opção por modificá-lo foi intencional, dado o sentido dúbio que car-
rega. Todavia, cabe esclarecer que, em russo, esse duplo sentido também
está presente e pode ter sido intencional da parte da autora. Seguindo
esse texto, recomendamos a leitura da Resolução do Comitê Central do
Partido Comunista da Rússia – dos bolcheviques – CC do PCR(b) de
4 de julho de 1936: “Sobre as deturpações pedológicas no sistema do
Comissariado do Povo para a Instrução (Narcompros)”, publicada em
português em Prestes (2010, 2012).
Este livro é, sem sombra de dúvida, uma rica fonte para estudiosos e
pesquisadores da teoria histórico-cultural, assim como para professores e
estudantes de diversos campos do saber.
Queremos agradecer a todos os familiares de L.S. Vigotski, em espe-
cial a sua neta, Elena Kravtsova, pelo grande apoio e carinho em toda a
nossa jornada de estudos, pesquisas e traduções da obra de seu avô.
Agradecemos também a nossa amiga e companheira Ingrid Fuhr
pela leitura crítica da primeira versão do texto traduzido.
Rio de Janeiro, dezembro de 2017.
As organizadoras.

4 Apenas a quarta aula, “O problema do meio na pedologia”, foi traduzida e publicada pela
Psicologia USP (São Paulo, v. 21, n. 4, p. 681-701, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.
br).

6 Apresentação
O bom, o mau e o feio
Elizabeth Tunes5 e Zoia Prestes6

Um pouco sobre a era de Stalin


A década de 1930 ficou marcada na história da União Soviética pela con-
solidação de um regime que perseguia e matava. Segundo Volkogonov
(2004), o assassinato de Kirov, em 1o de dezembro de 1934, no Instituto
Smolni de Leningrado, foi um marco importante por sinalizar que
uma era sinistra se aproximava. A partir dessa data, o pessoal puniti-
vo da NKVD7 aumentou enormemente, rivalizando-se e acabando por
eclipsar os comitês do Partido. Sergei Mironovitch Kirov, bolchevique
e leninista histórico, era um homem simples e de respostas prontas,
considerado por todos como um líder acessível e afável. Era um dos
homens de confiança de Stalin, que o tratava como “meu amigo e ama-
do irmão” (VOLKOGONOV, 2004, p. 206). No XVII Congresso do
Partido Comunista, realizado no início de 1934, quando o culto à per-
sonalidade de Stalin já era uma realidade, foi ovacionado e aplaudido
por longo tempo. Naquele momento, o triunfo de Stalin fora ofusca-
do, principalmente se levarmos em consideração que a eleição para os
cargos mais elevados do Partido não fora muito do gosto do ditador.
Na plenária do Comitê Central, logo após o referido congresso, Kirov
foi eleito membro do Politburo e do Orgburo,8 secretário do Comitê
Central e secretário da organização do Partido em Leningrado. Conta-se
que, logo após o assassinato de Kirov, Stalin se dirigiu a Leningrado e ele
próprio interrogou o assassino, que fora preso. Todos os envolvidos no

5 Universidade de Brasília (UnB) e Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).


6 Universidade Federal Fluminense.
7 Narodni Komissariat Vnutrenikr Del – Comissariado do Povo de Assuntos Internos.
8 Politburo e Orgburo – Bureau Político e Bureau Organizador.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 7


assassinato e o próprio assassino foram fuzilados. Os chefes da NKVD de
Leningrado foram condenados a penas leves e, posteriormente, executa-
dos em 1937, o que levou Kruschiov, bem mais tarde, no XX Congresso
do Partido, a conjecturar sobre a tentativa de encobrir pistas e ocultar
testemunhas que pudessem revelar os verdadeiros mandantes do crime.
Volkogonov (2004) admite não haver informações suficientes a respeito
do caso Kirov. Contudo, conclui que as ordens não partiram de Trótski,
Zinoviev ou Kamenev, como divulgado à época, e afirma que, pelo “que
sabemos de Stalin, por certo houve um toque seu no evento. A remoção
de duas ou três camadas de testemunhas indiretas leva sua marca regis-
trada” (VOLKOGONOV, 2004, p. 209).
O assassinato de Kirov foi um excelente pretexto para a intensifi-
cação de perseguições, julgamentos sumários – quando ocorriam – e
execuções. Em vários discursos, Stalin propôs que fossem “liquidados” –
palavra pela qual tinha grande apreço – “a oposição, ou os remanescentes
das classes exploradoras, ou os kulaks, os degenerados, os agentes duplos,
os espiões e terroristas” (VOLKOGONOV, 2004, p. 212). Com esse
pretexto, a grande maioria dos delegados presentes ao XVII Congresso
foram presos, falecendo nas celas ou em campos de prisioneiros; dos 139
candidatos a membros do Comitê Central eleitos no congresso, 98 fo-
ram presos e fuzilados. Muitos foram participantes ativos da Revolução
de Outubro. “A ‘velha guarda’ leninista foi conscientemente liquidada
porque sabia demais. Stalin queria executivos devotados, funcionários de
uma geração mais nova, pessoas que não conhecessem sua vida pregressa”
(VOLKOGONOV, 2004, p. 213), abolindo a Sociedade dos Antigos
Bolcheviques e a Sociedade dos Ex-presos Políticos. É por essa razão que
Volkogonov (2004, p. 214) declara que “1934 findou com um trágico
presságio. Primeiro, o ‘Congresso dos Vitoriosos’ [início de 1934], de-
pois, a preparação para o Terror. Teria talvez, desafiando o calendário
histórico, 1937 começado em 1o de dezembro de 1934?”.
Há, pois, fundamentos para a conjectura partilhada entre estudio-
sos da vida e obra de L. S. Vigotski de que se ele não tivesse falecido de
tuberculose na madrugada de 11 de junho de 1934, seria, sem dúvida,
mais um nome na enorme lista de mortos pelas mãos de Stalin no grande
expurgo que ocorreu nos últimos anos da década de 1930, principal-
mente se levados em conta os fatos narrados a seguir.
De acordo com Volkogonov (2004), o pensamento de Stalin era
esquemático. Ele costumava “encaixotar” suas ideias, reduzindo-as a

8 O bom, o mau e o feio


formas simples e popularizando-as como pastiches. Não aceitava outra
forma de divulgar suas ideias e, quando isso acontecia, ofendia seus opo-
nentes por terem uma “abordagem não marxista”, uma “demonstração
de tendências pequeno-burguesas” ou um “escolasticismo anárquico”
(VOLKOGONOV, 2004, p. 229). Ele tinha consciência de que o ponto
mais fraco de seu intelecto era a impossibilidade de entender o que seria
a dialética. Por isso, envidou esforços no sentido de melhorar seu conhe-
cimento filosófico, convidando para seu tutor, em 1925, Jan Sten, um
filósofo bastante conhecido entre os velhos bolcheviques, recomendado
por diretores do Instituto dos Professores Vermelhos. À época, Sten era
subdiretor do Instituto Marx-Engels e, mais tarde, seria executivo do
aparato do Comitê Central, delegado em diversos congressos do Partido
e membro do Comitê Central de Controle (CCC). Como tutor filo-
sófico de Stalin, fez um programa de estudo que incluía autores como
Hegel, Kant, Feuerbach, Ficht, Schelling, Plerranov, Kautski e Bradley.
Visitava-o duas vezes por semana em seu apartamento e procurava lhe
esclarecer os conceitos hegelianos de substanciação, alienação e de iden-
tidade entre realidade e razão. Stalin se irritava com a abstração e, por ve-
zes, perdia a paciência e dirigia a seu tutor perguntas como: “O que tudo
isto tem a ver com a luta de classes?” ou “Quem emprega toda essa bo-
bagem na prática?” (VOLKOGONOV, 2004, p. 230). Pacientemente,
Sten procurava esclarecer a importância da filosofia de Hegel para a com-
preensão das ideias de Marx, mas Stalin não conseguia compreender as
noções básicas daquela filosofia. Num encontro da Academia Comunista
em outubro de 1930, foram debatidas “as diferenças no front filosófico”.
Deborin, Sten, Karev e Luppol foram considerados culpados por “subes-
timação da dialética materialista” e, ao que parece,
[…] tudo o que restou daquelas lições foi a hostilidade ao professor.
Juntamente com N. Karev, I. K. Luppol e com outros filósofos que
eram discípulos do acadêmico A. M. Deborin, Sten foi declarado um
teórico “adulador de Trotsky” e, em 1937, acabou preso e execu-
tado. A mesma sorte parecia destinada a Deborin, que fora muito
ligado a Bukharin no final dos anos 20 e que, em 1930, foi rotulado
por Stalin como “idealista militante menchevique”. No entanto, ele
foi poupado, se bem que proibido de desenvolver qualquer traba-
lho científico ou público (VOLKOGONOV, 2004, p. 230, grifos
nossos).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 9


Em dezembro de 1930, apenas dois meses depois, Stalin fez um
discurso no Instituto de Professores Vermelhos, dirigido por Abraam
Moiseievitch Deborin. Esse discurso ilustra muito bem os modos ver-
bais de Stalin e a maneira como ofendia seus oponentes sem examinar
o mérito de suas ideias, apenas desqualificando-os de maneira vil. Esse
pronunciamento se encontra na ata da reunião:
Temos que virar de pernas para o ar e revolver o monte de estrume
que se acumulou na filosofia e nas ciências sociais. Tudo o que foi
escrito pelo grupo de Deborin precisa ser destruído. Sten e Karev
podem ir às favas. Sten jacta-se bastante, mas é apenas um pupilo de
Karev. Sten é um rematado preguiçoso. Só o que sabe fazer é falar.
Karev tem uma cabeça enorme e pavoneia-se por aí como uma be-
xiga inflada. Na minha opinião, Deborin é caso perdido, mas deve
permanecer como editor do periódico [Sob a insígnia do marxismo]
para que tenhamos alguém para derrotar. O conselho editorial ficará
com dois fronts, mas teremos a maioria (apud VOLKOGONOV,
2004, p. 231).

Como se sabe, Vigotski era próximo de Deborin (ver PRESTES,


2010, 2012) e certamente tinha conhecimento de toda a perseguição
que se desencadearia dali em diante e de que também seria alvo. Em
uma carta endereçada9 ao diretor do Instituto de Pedagogia Guertsen
de Leningrado, Vigotski relatou que fora informado de que seus pontos
de vista teóricos haviam sido qualificados pela Comissão de Depuração
da Psicologia do Instituto de Moscou como idealistas, burgueses e an-
timarxistas. Ele argumentou que essa conclusão a respeito de sua teoria
era infundada, que sequer fora ouvido e que seu trabalho, ao contrário,
combatera veementemente certas teorias burguesas e idealistas. Porém,
como se viu posteriormente, ele passou para o rol de personas non gratas
na União Soviética: sofreu uma crítica “encomendada” e suas obras fo-
ram classificadas como “proibidas”.

A crítica encomendada
A crítica às ideias de L. S. Vigotski sobre a pedologia foi encomenda-
da a Eva Izrailevna Rudniova (1898-1988). Segundo informações a que

9 Provavelmente escrita entre 1932 e 1933.

10 O bom, o mau e o feio


tivemos acesso, ela se formou pela Faculdade de História e Filologia dos
Cursos Superiores para Mulheres na cidade de Odessa e era professora de
história, com mais de cem trabalhos científicos publicados.
Embora seja referido, no original, como “crítica” às deturpações de
Vigotski na pedologia, o texto de Rudniova se apresenta muito mais
como um amontoado de ofensas pessoais e acusações ao autor do que
como um exame apropriado do mérito de suas ideias e contribuições
teóricas para a ciência da criança. Quando aparentemente se propõe à
análise crítica de formulações do autor, demonstra fragilidade de com-
preensão de seus conceitos e muito pouca familiaridade com sua obra,
haja vista a inclusão de Pensamento e fala – considerada a obra-mestra de
Vigotski – como um de seus estudos de pedologia, o que demonstra má
intenção ou total incompreensão da grandeza e genialidade das ideias ali
desenvolvidas e sua incomensurável amplitude, que vai muito além da
ciência da criança, adentrando diversas áreas do conhecimento e tocando
até mesmo em questões de ordem filosófica. Seja por intenção ou incom-
preensão, o fato é que esse deslize já demonstra fragilidade argumen-
tativa. O leitor crítico poderá, contudo, verificar por si mesmo outros
exemplos da falta de potência argumentativa após examinar com atenção
as sete aulas de pedologia aqui apresentadas. Nos breves comentários que
se seguem, vamos nos ater a aspectos formais do texto de Rudniova que
nos chamaram atenção pela abundância e pobreza de estilo.
Já no início, a autora do texto encomendado destaca o fato de
Vigotski ser um dos pilares da pedologia. Por que ele era um dos pilares
dessa ciência? Quem o considerava assim? O sujeito gramatical da frase
não está determinado. Ela também o via desse modo? Ao que parece,
pela frase da autora, as ideias dele tiveram grande repercussão à época.
Restaria saber o porquê. Isso, contudo, não é informado. É bem verda-
de que a palavra “pilares” aparece entre aspas, denotando possivelmente
uma ironia da autora-crítica. É apenas o começo; seu texto é repleto de
ironias desse tipo, uma ironia corriqueira, intelectualmente pobre com
finalidades puramente retóricas que visam criar impressões no leitor e
não fazê-lo refletir. A ironia se caracteriza pelo emprego de uma palavra
com sentido oposto ao que ela denota; por isso, seu uso requer inte-
ligência. As aspas parecem o recurso de quem não encontrou – talvez
porque não tenha procurado – a melhor palavra. Além dessas ironias
pobres, há uma abundância de adjetivações a respeito de Vigotski e de
sua obra, recurso que também empobrece o estilo. Diríamos que é um

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 11


texto nada substantivo. Sem nos preocuparmos com a precisão, tivemos
a curiosidade de listar qualificações de que lançou mão. A quantidade
é surpreendente: antimarxista; antileninista; reacionário; burguês; visão
tola; visão falsa; ideia cientificamente falsa; tem expressões esquerdistas;
cego; eclético; absurdo; ideias nocivas; idealista/idealista subjetivo; ma-
terialista vulgar; tem ponto de vista grosseiro e vulgar; reducionista; me-
canicista; metodologicamente/pedagogicamente equivocado; ignorante
em relação aos estudos de Marx e Lenin; teoricamente equivocado; con-
trarrevolucionário; formalista; contraditório; teoria artificial e inventada;
anticientífico; dogmático; esquerdista; arquiesquerdista; alimentador de
preconceitos antileninistas; arquirreacionário teórico com inspiração fas-
cista; inescrupuloso; incorreto; mentiroso; intelectualmente desonesto;
teoricamente falso; fatalista; “teoria” estapafúrdia; seguidor de cientistas/
psicólogos burgueses; desvalorizador das grandes conquistas da Grande
Revolução Socialista de Outubro no campo da cultura; seguidor de es-
cravos fiéis das classes dos exploradores; causador de enorme mal para a
escola; defensor de ideias radicalmente contraditórias às indicações dos
camaradas Stalin, Kirov e Jdanov; divulgador acrítico da metodologia
burguesa e de psicólogos fascistas; defensor da predestinação fatalista
das crianças em função dos fatores hereditários; influenciado por autores
obscurantistas; “psicologizador” do meio; defensor da ideia de meio imu-
tável e da ideia de superioridade das classes dominantes e retardo dos ex-
plorados; defensor da lei biogenética do desenvolvimento; representante
da falsa ciência pedológica; ignorante em relação ao papel do homem na
transformação do meio; defensor da “teoria” espontaneísta menchevista/
da “teoria” de direita e oportunista de autofluxo; defensor da “teoria”
antileninista de morte gradual da escola.
Algumas qualificações certamente nos escaparam. Contudo, vamos
parar aqui. O que se listou é mais do que suficiente para se constatar
que é um texto escrito bem à moda de Stalin: uma verborreia repleta de
ofensas e acusações pessoais. Há inúmeras incoerências lógicas, contra-
dições e distorções das ideias de Vigotski. Vê-se que o rigor, próprio de
um texto acadêmico, está completamente ausente. Não, definitivamente
não é um texto acadêmico. Custa-nos acreditar também que foi escrito
por uma acadêmica com mais de cem publicações científicas. Qualquer
funcionário burocrático do Kremlin com formação de nível colegial e
muita ambição para subir na carreira conseguiria escrever um texto com
tão pouco quilate – se é que há algum – para agradar o chefe supremo.

12 O bom, o mau e o feio


Será que foi, de fato, escrito por Rudniova? Ou será que ela foi volun-
tariamente obrigada a assinar o texto elaborado pelo tal funcionário bu-
rocrático? Essas conjecturas são perfeitamente justificáveis e autorizadas
pela biografia de Stalin.

As sete aulas sobre os fundamentos


da pedologia de L. S. Vigotski
Os manuscritos que deram origem ao livro de L. S. Vigotski perma-
neceram guardados por mais de 60 anos nos arquivos da família de
Serapion Alekseevitch Korotaiev, que, entre 1929 e 1936, foi aluno do
Departamento de Pedologia do Instituto A. I. Guertsen de Leningrado,
onde trabalhava Vigotski, seu orientador. Korotaiev, jovem e ini-
ciante professor da Escola Técnica de Aperfeiçoamento Nekrassov de
Leningrado, recebeu das mãos de seu mestre os textos que estavam da-
tilografados “em folhas amarelas e cinzas” (VIGOTSKI, 2001, p. 5). O
professor queria ajudar seu aluno.
É sabido que muitos textos de Vigotski foram redigidos e publicados
com base em estenografias de aulas e/ou palestras proferidas (LURIA,
2001). Muitas vezes, sequer foram revisados por ele, e vários foram
publicados apenas após sua morte. Os textos do presente livro são um
exemplo disso.
Após a morte de Vigotski, o professor C. Z. Katsenboguen assumiu,
em 1934, a orientação da dissertação Desenvolvimento do pensamento
do escolar no processo de resolução de problemas matemáticos, de Serapion
Alekseevitch Korotaiev, finalizada em 1936. Porém, mais uma tragédia
ocorreu. Às vésperas de 1937, C. Z. Katsenboguen foi declarado inimigo
do povo e reprimido. Korotaiev, por sua vez, não encontrou local para
trabalhar e ficou sem o diploma. Ao tentar recuperar o documento em
1952, soube que não havia sequer registros do trabalho acadêmico que
elaborara e defendera.
É possível perceber uma coerência lógica no desenvolvimento do
conteúdo exposto por L. S. Vigotski em todas as aulas, que, nos manus-
critos, estavam apenas numeradas – os títulos, vale ressaltar, foram dados
pela equipe de redatores da edição russa, não pelo autor. A decisão foi
tomada em nome da comodidade do leitor e, como se afirma na intro-
dução à edição russa, “não foi uma tarefa difícil, já que, no início de cada

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 13


aula, ele anunciava e definia com precisão os objetivos de sua exposição”
(VIGOTSKI, 2001, p. 6).
As aulas têm um caráter coloquial, como se fossem conversas entre
ele e seus estudantes. Cada aula tem, no início, a enunciação de seus
objetivos, antecedida, da segunda em diante, de uma síntese do que foi
tratado na aula anterior, procurando-se mostrar como o raciocínio se
segue. No decorrer de cada aula, são apresentados muitos exemplos e
contraexemplos extraídos tanto do cotidiano quanto, principalmente,
de estudos de outros pesquisadores. Esses exemplos são minuciosamente
examinados e dissecados e, em geral, seguidos de alguns trechos com afir-
mações teórico-metodológicas e enunciação de algumas questões-chave,
como se ele supusesse as interrogações e dúvidas que poderiam passar
pela mente de seus alunos ou os estivesse instigando a questionar.
Há uma didática especial que preside o ordenamento de cada aula
e sobre a qual há dois pontos que nos parecem merecer comentário,
ainda que breve. Antes, contudo, cabe esclarecer que não se trata de
uma didática embrutecedora, que visa facilitar a memorização estan-
que das definições de cada conceito apresentado. Muito ao contrário,
cada conceito é definido examinando-se suas articulações lógicas com
outros já apresentados e abrindo-se a questão que permite relacioná-lo
aos que estão por vir. Essa estratégia é bastante coerente com as ideias
que expõe, especialmente, no sexto capítulo do livro Pensamiento y ha-
bla, “Estudio del desarrollo de los conceptos científicos em la infância”
(VIGOTSKI, 2007): o conhecimento científico se organiza como um
sistema de relações lógicas de coordenação, subordinação e supraorde-
nação de conceitos. Esse aspecto parece ser incorporado à sua didática
especial e tudo indica que o que ele pretende com suas aulas é que os es-
tudantes apreendam o modo como os conceitos da ciência pedológica se
organizam e não simplesmente memorizem a definição de cada conceito.
Sua intenção parece, coerentemente, que eles compreendam a estrutura,
a organização dos conceitos da ciência pedológica que propõe. Esse é o
primeiro ponto. O segundo diz respeito ao porquê de esses conceitos se
inter-relacionarem de um determinado modo. Novamente, aqui há con-
vergência com suas ideias a respeito da relação teoria e método (ver, espe-
cialmente, VIGOTSKI, 1997). Para ele, teoria e método mantêm entre
si uma profunda relação. Conforme diz logo no início da segunda aula,

14 O bom, o mau e o feio


[…] uma vez que cada ciência tem seu objeto de estudo específi-
co, logo, para o estudo de qualquer um, é necessário um método
específico. O método é um caminho, um procedimento. Por ser
um procedimento, consequentemente, depende do objetivo para o
qual a ciência orienta-se num determinado campo. Se cada ciência
tem suas atribuições e objetivos específicos, então, é claro que ela-
bora também seus métodos de estudos específicos, seus caminhos
de investigação. Assim, pode-se dizer que, da mesma forma que não
existe ciência sem seu objeto, também não existe ciência sem seu
método. O caráter deste é sempre definido pelo caráter do objeto da
ciência (p. 37, grifos nossos).

Assim, subjaz à sua didática especial a intenção de que seus estudan-


tes apreendam a ideia de que não há um método único que define o que
é científico – bem ao gosto da visão ocidental contemporânea de ciência
–, mas que há tantos métodos quantos forem os objetos de estudo da ci-
ência, isto é, que, na ciência, a teoria, com seus fundamentos filosóficos,
é definidora do método de estudo. Por isso, em cada uma de suas aulas,
ele intercala, regularmente, afirmações teóricas com questões de método
daquela ciência particular.
A pedologia – ciência do desenvolvimento da criança – serviu de
fonte para os estudos no campo da pedagogia e da psicologia que esta-
vam germinando na União Soviética após a revolução socialista de 1917.
Assim como inúmeros cientistas soviéticos na década de 1920 e nos anos
iniciais da década de 1930, L. S. Vigotski aprofundou os estudos da
pedologia que, junto com outros estudos, fundamentaram sua concep-
ção de desenvolvimento humano. Infelizmente, pelas razões históricas e
sociais brevemente apresentadas, a pedologia defendida por Vigotski, a
pedologia científica, não floresceu como poderia, e muitas outras con-
tribuições foram impedidas por sua morte prematura e pela censura e
proibição impostas a sua obra ao longo de 20 anos.

Referências bibliográficas
LURIA, A. R. Etapi proidennogo puti. Moscou: Izdatelstvo Moskovskogo Universiteta,
2001. p. 25-46.
PRESTES, Z. R. Quando não é quase a mesma coisa – análise de traduções de L. S.
Vigotski no Brasil. Tese (doutorado). Brasília: Universidade de Brasília, 2010.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 15


______. Quando não é quase a mesma coisa – traduções de Lev Semionovitch Vigotski no
Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.
VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Problemas teóricos e metodológicos de la Psicologia.
Trad. José Maria Bravo. Madri: Visor Dis, 1997.
______. Pensamiento y habla. Trad. Alejandro Arielf González. Buenos Aire: Colihue,
2007.
VOLKOGONOV, D. Stalin: triunfo e tragédia. v. 1. Trad. Joubert de Oliveira Brízida.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

16 O bom, o mau e o feio


Fundamentos
da Pedologa de
L.S. Vigotski

Primeira aula. O objeto da pedologia10


Hoje, vamos iniciar o curso de pedologia. Nosso curso é propedêutico.
Portanto, deve nos apresentar os principais conceitos dessa disciplina e
a metodologia de investigação da criança, assim como, na clínica, um
curso propedêutico se inicia pela apresentação dos principais conceitos
que abrangem a disciplina e pela metodologia de investigação clínica.
Depois deste curso, deve vir o de pedologia específica ou o das idades,
que deve apresentar a vocês, de forma sistemática, os principais períodos
do desenvolvimento infantil.
Hoje, nossa aula introdutória será dedicada ao esclarecimento de
duas questões: a do objeto e a do método da nossa ciência, ou seja, o que
a pedologia estuda e como faz isso. Essas são as duas principais questões
que devem ser apresentadas hoje, logo no início do nosso curso.
Antes de tudo, permitam-me iniciar pela primeira questão. O que a
pedologia estuda? Após conhecermos esse objeto de estudo e suas espe-
cificidades, então, naturalmente, poderemos chegar à segunda questão.
Como esse objeto deve ser estudado e qual é a especificidade do método
da pedologia em comparação com os métodos de outras ciências?
Na tradução literal para a língua russa, pedologia significa “ciência
da criança”. Mas como acontece frequentemente, a tradução literal de
10 Os trechos em negrito são do original russo e por isso foram mantidos. As notas de rodapé
estão diferenciadas por: nota da edição russa (N. da E. R.); nota da tradução (N. da T.); nota da
edição brasileira (N. da E. B.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 17


uma denominação da ciência ainda não expressa suficientemente e de
forma precisa o que, desse objeto, é estudado. Podem-se estudar doenças
infantis, patologias das idades infantis, o que, em certo sentido, também
será ciência da criança. Na pedagogia, pode-se estudar a educação da
criança, o que, até certo grau, é ciência da criança. Pode-se estudar a psi-
cologia da criança e isso também será, em certo grau, ciência da criança.
Por isso, desde o início, é preciso estabelecer exatamente o que da criança
é o objeto do estudo pedológico. Portanto, seria mais preciso dizer que a
pedologia é a ciência do desenvolvimento da criança. O desenvolvimen-
to da criança é o objeto direto e imediato da nossa ciência.
Ainda assim, essa definição permanece muito incompleta, porque
no mesmo instante surge uma questão. Está bem. A pedologia é a ci-
ência do desenvolvimento da criança. Mas o que é desenvolvimento da
criança? Sem essa explicação, nunca compreenderemos qual é o objeto
da pedologia. Por isso, para a definição desse objeto, permitam-me, vou
me deter em algumas especificidades fundamentais e leis básicas mais
gerais do desenvolvimento infantil. Se assimilarmos essas leis, saberemos
generalizá-las e dizer o que é desenvolvimento infantil. Então, saberemos
também como abordar e estudar a questão do método da pedologia.
A primeira e principal lei que caracteriza o desenvolvimento infantil
– diferentemente de uma série de outros processos – é que ele possui uma
organização muito complexa no tempo. Como qualquer outro processo,
ele é histórico, ou seja, transcorre no tempo; tem início, tem etapas tem-
porais determinadas do seu desenvolvimento e tem fim. Contudo, não
está organizado no tempo de forma que – se é possível dizer assim – o
seu ritmo coincida com o ritmo do tempo; não está organizado de forma
que, em cada intervalo de tempo cronológico, a criança percorra um de-
terminado trecho em seu desenvolvimento. Digamos assim: passou um
ano e a criança avançou um tanto no desenvolvimento; no ano seguinte,
outro tanto etc., ou seja, o ritmo do desenvolvimento, a sequência das
etapas que a criança percorre, os prazos que são necessários para que ela
passe cada etapa não coincidem com o ritmo do tempo, não coincidem
com a contagem cronológica do tempo. Isso pode ser esclarecido com a
ajuda de dois exemplos.
Primeiramente, do ponto de vista da astronomia, do tempo crono-
lógico, um mês é sempre igual a outro, um ano é sempre igual a outro.
Entretanto, do ponto de vista do desenvolvimento, o valor de cada mês,

18 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


de cada ano é medido pelo lugar que esse mês ocupa no ciclo do desen-
volvimento. Por exemplo, vocês sabem que, provavelmente, durante os
primeiros meses de vida, a criança se desenvolve de modo muito inten-
so e, em particular, crescem intensamente seu peso e tamanho. Assim,
levando-se em conta o crescimento, o peso, o aumento da massa corporal
e o comprimento, cada mês é uma etapa muito importante. Durante
alguns meses, a criança dobra o seu peso inicial. Em seguida, se nos deti-
vermos, digamos, na idade escolar, veremos que, durante alguns anos, a
criança não só não dobra o peso com o qual ingressou nessa idade, como
também esse aumento é muito insignificante, expressando-se em alguns
porcentos, enquanto no bebê, durante o mesmo período de tempo, ele
é igual a 100%.
Agora, imaginem que digam a vocês que uma criança teve um atraso
de três ou seis meses em seu desenvolvimento. Isso é muito ou pouco?
Se for no primeiro ano de vida, isso é muito, mas se ela estiver em seu
13º ano de vida, isso não acarretará nada de muito sério. Do ponto de
vista da astronomia, cada mês é igual a outro; contudo, isso perde seu
significado no desenvolvimento. O valor de cada mês depende do ciclo
de desenvolvimento em que está contido e do lugar que ocupa. Dizer
que uma criança de dois anos está com um atraso de um ano em seu
desenvolvimento mental significa que é muito e que ela se diferencia
consideravelmente de uma criança real de dois anos. Dizer, contudo,
que um adolescente de 15 anos tem idade mental de 14, ou seja, que está
atrasado também um ano, provavelmente evidencia um atraso extrema-
mente insignificante.
Novamente, do ponto de vista do desenvolvimento, o valor de cada
intervalo de tempo se define não pela dimensão desse intervalo – um
ano ou cinco anos ou um mês –, mas pelo lugar dele no ciclo de desen-
volvimento da criança. Isso está relacionado ao fato de que o tempo e o
conteúdo do desenvolvimento mudam nos diferentes anos de vida e de
desenvolvimento da criança.
O segundo exemplo esclarecerá isso um pouco mais para vocês.
Vocês terão de lidar com ele desde o início na metodologia de inves-
tigação pedológica de crianças. Imaginem que encontrem crianças que
nasceram no mesmo dia e na mesma hora. Isso significa que elas são
coetâneas. Agora, imaginem que as estejamos investigando três anos de-
pois. Pergunta-se: todas essas crianças, que nasceram no mesmo dia e na

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 19


mesma hora e viveram em condições mais ou menos semelhantes, estarão
em um mesmo nível de desenvolvimento? Pela certidão de nascimento,11
elas são coetâneas em relação ao dia e à hora e vocês estão investigando
o seu desenvolvimento. Verifica-se, então, que o desenvolvimento dessas
crianças, que nasceram no mesmo dia e na mesma hora, não transcorre
igualmente, passo a passo, como, por exemplo, os relógios em que damos
corda na mesma hora e que começam a marcar o tempo juntos, minuto
a minuto, coincidindo com outros relógios. Além disso, se observarmos
algumas delas, comparando-as com seus colegas coetâneos, veremos que,
no seu desenvolvimento, muitas estarão adiantadas, outras, atrasadas e
outras, ainda, se encontrarão no meio. Isso significa que, se observarmos
crianças coetâneas, nascidas no mesmo dia e hora, à medida que se de-
senvolvem, apesar de estarem no mesmo período astronômico, com igual
quantidade de anos, meses e dias, conforme a certidão de nascimento, na
verdade, encontram-se em diferentes níveis de desenvolvimento.
Vamos a um exemplo simples. Como vocês sabem, as crianças co-
meçam a falar de modo minimamente compreensível por volta dos dois
anos. Vamos analisar algumas crianças que nasceram no mesmo dia e
na mesma hora e ver o que acontece aos dois anos. Um indicador do
seu modo de falar, aos dois anos, é o surgimento das primeiras orações.
A criança não fala apenas palavras isoladas, mas emprega, pela primeira
vez, uma frase composta. Verifica-se, então, que uma de nossas crian-
ças coetâneas empregou a primeira frase composta com um ano e oito
meses; outra, aos dois anos; e uma terceira, aos dois anos e dois meses.
Vocês estão vendo que cada criança atingiu o mesmo nível de desenvol-
vimento, um pouco antes, no período esperado ou ainda um pouco mais
tarde. Assim, há a necessidade de determinar a idade pedológica, ou
seja, o nível de desenvolvimento que a criança realmente atingiu e não
a sua idade segundo a certidão de nascimento. Por exemplo, conforme a
certidão, podemos dizer que todas as crianças têm dois anos? Sim. Pela
certidão todas as crianças têm dois anos. Mas a idade pedológica, ou seja,
a idade da fala de uma delas é de dois anos e quatro meses; a da outra, de
dois anos; e a da terceira, de um ano e 10 meses. O que significa a idade
da fala? Significa o nível real de desenvolvimento que elas atingiram.

11 É comum Vigotski referir-se à “idade do passaporte”. Na Rússia, o passaporte é o documento


de identidade. Existe o passaporte interno, para o território russo, e o estrangeiro, que serve para
as viagens ao exterior. O autor está se referindo, obviamente, ao passaporte interno e à idade das
crianças, que, no Brasil, aparece na certidão de nascimento.

20 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Sobre a terceira, podemos dizer que, embora, pela certidão de nascimen-
to, seja uma criança de dois anos, pelo nível do desenvolvimento da fala,
ela é uma criança de um ano e 10 meses. A idade pedológica de sua fala
está atrasada em dois meses em relação à da certidão. Sobre a segunda
criança, posso dizer que a idade da certidão e a pedológica coincidem.
A respeito da primeira criança, posso dizer que a idade pedológica se
antecipou à da certidão em quatro meses. Consequentemente, sempre
que tomamos um grande grupo de crianças, verifica-se que parte delas
adiantou-se no desenvolvimento, enquanto outra parte ficou para trás
em comparação com a idade da certidão. Saber determinar a idade pedo-
lógica da criança, ou seja, o nível de desenvolvimento em que se encontra
é um dos principais procedimentos com os quais a pedologia opera. Ela
opera com a idade pedológica da criança e o grau de divergência, para
mais ou para menos, entre essa idade e a da certidão.
Surgem, aqui, duas questões que precisam ser esclarecidas. Vocês po-
dem me perguntar: primeiramente, como eu sei que, aos dois anos, a
criança tem que pronunciar a primeira frase? Como eu sei disso? Parto
da premissa de que qualquer criança deve pronunciar a primeira frase
aos dois anos. Por isso, digo que ela se antecipou. Ela tem um ano e oito
meses conforme a certidão de nascimento e, pela fala, tem dois anos. De
que maneira eu comparo? Para isso, tenho a resposta que vou apresentar
detalhadamente no seminário. É exatamente a pedologia que determi-
na a divergência entre a idade da certidão e a pedológica com os assim
denominados padrões ou grandezas-padrão. A grandeza-padrão é uma
grandeza constante, aceita como indicador para – pelo desvio em relação
a ela – julgar o grau de divergência do curso do desenvolvimento espe-
rado em relação ao curso do desenvolvimento real e ao modo como este
transcorreu. Digamos que a grandeza-padrão de temperatura do nosso
corpo seja 37°C e o desvio para mais ou para menos [represente]12 o grau
de aumento ou queda da temperatura.
Como se obtêm esses padrões pedológicos? Eles são obtidos por
meio da investigação estatística de um grande número de crianças.
Estudamos uma grande quantidade de crianças, digamos 100, com here-
ditariedade saudável, sem doenças graves, normais e em condições iguais
de desenvolvimento. Por exemplo, crianças de creches de Moscou onde
há uma alimentação mais ou menos igual e demais condições para o

12 No manuscrito lê-se “mede” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 21


desenvolvimento. Verificamos que essas crianças apresentam, em média,
um vestígio da primeira frase aos dois anos. Esta é a grandeza estatística
média que o material apresenta, ou seja, quando a média estatística da
criança apresenta esse vestígio. Comparo cada criança, separadamente,
com essa grandeza estatística média e digo: se, na pesquisa estatística,
uma criança média apresenta esse indicador aos dois anos e a minha
apresentou com um ano e oito meses, então, esta se desenvolve mais
rapidamente do que aquela.
Assim, a pedologia se apoia nesses padrões e grandezas constantes
que caracterizam o desenvolvimento e permitem comparar a idade da
criança segundo a certidão de nascimento com a sua idade real, estabele-
cendo os desvios para mais e para menos.
Nos dois exemplos, vimos, então, que o desenvolvimento não trans-
corre da mesma forma no tempo, de modo que seu ritmo e velocidade
coincidam com o ritmo do curso do tempo astronômico ou cronológico.
Vimos que, para o crescimento e para o peso, cinco meses não são a mes-
ma coisa nos primeiros anos e no 12º ano de vida. Vimos que, pela certi-
dão de nascimento, as crianças podem ser coetâneas, mas podem atingir
a idade real em diferentes idades. Então, tanto um quanto outro exemplo
nos convence de que, apesar de acontecer no tempo, o desenvolvimento
não é um processo organizado temporalmente de modo simples, mas
de forma complexa; seu ritmo não coincide com o ritmo do tempo.
Pergunta-se: como transcorre o desenvolvimento no tempo? A res-
posta a isso pode ser dada ainda de forma bem geral. Ele transcorre cí-
clica e ritmicamente, de tal forma que, se quisermos simbolizá-lo, numa
superfície plana, com uma linha que se eleva vagarosa e gradualmente,
como se a cada ano transcorresse um intervalo definido de desenvol-
vimento, não obteremos uma linha vertical reta, que seria uma repre-
sentação equivocada. Se quisermos acompanhar o desenvolvimento de
qualquer particularidade da criança – digamos, como ocorre o aumento
do peso, o crescimento em altura, o desenvolvimento da fala –, teremos
sempre que mostrar uma linha ondulada que segue em elevações, quedas
e se move para cima, ou seja, se desenvolve em ciclos. O tempo desse
desenvolvimento não é uma constante. Períodos de elevações intensas
se alternam com períodos de desaceleração, de retração. O desenvolvi-
mento se apresenta sob a forma de uma série de ciclos distintos, uma
série de épocas distintas, de períodos distintos, dentro dos quais o tempo

22 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


e o conteúdo se manifestam diferentemente. É claro que, se qualquer
alteração no desenvolvimento da criança ocorrer num período em que
se espera uma elevação, isso tem um sentido. Contudo, se essa alteração
ocorrer quando se esperava um leve declínio e não uma elevação, então o
sentido é outro. Por exemplo, suponham que, no último ano, uma crian-
ça tenha ganho pouco ou nenhum peso. Isso é muito ruim se acontecer
no momento em que deveria se dar o desenvolvimento real, fazendo-nos
pensar por que essa criança não ganhou peso quando todas, nessa idade,
o ganham abruptamente. Suponhamos que, em outro momento, ela não
tenha ganho peso. Isso não me preocuparia porque ela estaria num perí-
odo em que o ganho de peso deve ser reduzido. No desenvolvimento, o
significado de cada mudança e de cada acontecimento isolado se define
pelo ciclo a que estão relacionados.
Esses ciclos, essas ondas são observadas tanto em relação a diferen-
tes aspectos do desenvolvimento, digamos, do crescimento, do peso, da
fala, do desenvolvimento mental, da memória, da atenção etc., quanto
em relação ao desenvolvimento como um todo. Se quisermos apresen-
tar um quadro geral do desenvolvimento da criança, teremos uma linha
ondulada. Esses ciclos isolados do desenvolvimento tomados juntos são
chamados idades. A idade nada mais é do que um determinado ciclo de
desenvolvimento fechado, separado dos outros ciclos, que se diferencia
por seus tempos e conteúdos específicos. Se tomarmos as principais ida-
des infantis, veremos também que elas, por sua duração, não coincidem
umas com as outras. Por exemplo, a primeira idade – a do recém-nascido
– dura aproximadamente um mês, e, apesar disso, é uma idade completa.
A idade seguinte é a do bebê, e dura aproximadamente nove ou 10
meses; a seguinte, até dois anos; a próxima – a idade pré-escolar –, quase
quatro anos. Estão vendo como uma idade dura quatro anos e outra,
nove meses? Isso significa que os ciclos das idades não coincidem e não
são distribuídos no tempo de um modo simples tal que, em determina-
dos interstícios de tempo, o desenvolvimento percorra também deter-
minados intervalos do seu caminho. Assim, essa é a primeira lei ou a
primeira especificidade do desenvolvimento infantil; é esse o processo
que transcorre no tempo, mas o faz ciclicamente.
Agora, o segundo postulado que está relacionado a isso e que per-
mitirá esclarecer mais profundamente as características do desenvolvi-
mento infantil é a segunda especificidade, que normalmente carrega

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 23


a denominação de desproporcionalidade ou irregularidade. A criança
é um ser muito complexo. Todos os seus aspectos se desenvolvem, mas
a segunda lei diz que particularidades isoladas não se desenvolvem de
modo regular e proporcional. Por exemplo, nunca ocorre que partes do
corpo de uma criança, digamos, a cabeça, as pernas e o tronco, cresçam
de forma igual. Numa certa idade, podemos observar um crescimento
grande das pernas, mas bem menor do tronco e da cabeça. Assim, nunca
ocorre que os sistemas orgânicos, os órgãos, por exemplo, os sistemas
muscular, nervoso e digestivo, cresçam regularmente. Em cada perío-
do, sempre um dos sistemas cresce mais e outros, relativamente, menos
e mais devagar. No bebê, num determinado período, veremos um de-
senvolvimento rápido e intenso dos sistemas nervoso e digestivo e um
relativamente mais vagaroso do sistema muscular. Dessa forma, alguns
sistemas e diferentes órgãos também não crescerão proporcionalmente.
Alguns aspectos do desenvolvimento da criança, digamos o crescimento
em altura e seu desenvolvimento mental, guardam relação entre si. Mas
nunca vamos observar uma relação direta, regular, proporcional entre
o desenvolvimento, digamos, do comprimento do corpo e da ampli-
tude da mente. Não temos, aqui, um movimento direto e regular. Na
vida mental da criança, num determinado período de desenvolvimento,
nunca ocorre que, digamos, sua percepção, sua memória, sua atenção,
seu pensamento se desenvolvam de forma completamente regular e por
igual. Sempre algum aspecto de sua vida mental se desenvolve mais rapi-
damente e outros, mais devagar.
Isso significa, então, que o desenvolvimento jamais acontece de
modo proporcional e regular em relação ao organismo infantil como um
todo e à personalidade da criança. Isso nos leva a duas conclusões muito
importantes das quais decorrem, digamos assim, algumas leis.
A primeira delas pode ser formulada da seguinte forma: já que o
desenvolvimento não transcorre regular e proporcionalmente, então, em
cada novo degrau, ocorre não apenas o aumento de partes do corpo ou
de funções, mas altera-se a correlação entre elas. Se, por exemplo, em
um dado período, na criança, crescem irregularmente a cabeça, as per-
nas, o tronco, isso resultará no fato de que as proporções do seu corpo
também serão alteradas. Digamos que tenham transcorridos três anos e
as pernas cresceram mais aceleradamente que a cabeça. O que acontece-
rá? Toda a estrutura do corpo será diferente, será outra. Anteriormente,

24 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


a criança tinha pernas curtas e cabeça grande. Agora, aparece de pernas
compridas e cabeça pequena.
Uma vez que algumas funções e aspectos do organismo crescem ir-
regularmente, então, em cada degrau determinado, ocorre não apenas
um maior ou menor crescimento de aspectos isolados, mas também a
reestruturação, o reagrupamento das relações entre as diferentes particu-
laridades do organismo, ou seja, a própria estrutura do organismo e da
personalidade muda em cada novo degrau. Este é o primeiro postulado.
O segundo consiste no fato de que existem algumas leis básicas que
mostram que, em cada idade, determinadas particularidades da vida
orgânica da criança e de sua personalidade parecem se deslocar para
o centro do desenvolvimento, crescem muito e rapidamente. Antes e
depois disso, elas crescem bem mais devagar e, como se diz, se deslo-
cam para a periferia do desenvolvimento. Isso significa que, no desen-
volvimento da criança, cada particularidade tem seu período propício
para se desenvolver, ou seja, existe um período em que ela se desenvolve
otimamente.
Digamos que o desenvolvimento da marcha da criança seja mais in-
tenso por volta de um ano de vida, podendo começar um pouco antes
e terminar um pouco mais tarde. Assim, é possível dizer que a marcha
se desenvolve intensamente a partir do final do primeiro ano de vida até
o final do segundo ano. Até esse período, desenvolve-se a marcha, ou
melhor, as condições prévias para a marcha. Podemos predizer como essa
criança andará aos seis meses de vida dependendo do que observamos na
formação do esqueleto, da musculatura e da motricidade de suas pernas.
Mas não é possível dizer que, no primeiro ano de vida, a marcha se de-
senvolve tão vigorosamente quanto no segundo. Mais tarde, observare-
mos o desenvolvimento do modo de caminhar. Vamos admitir que um
escolar ande melhor que um pré-escolar. Então, seria possível dizer que
a marcha se desenvolve com tanto vigor quanto no primeiro período?
Não. Isso significa que, se tomarmos como exemplo a marcha, veremos
que, num determinado período, concentram-se os acontecimentos mais
importantes no desenvolvimento dessa função. Antes disso, ocorre a pre-
paração; depois, vem o aperfeiçoamento. Todavia, tanto a preparação
quanto o aperfeiçoamento são bem mais vagarosos e empobrecidos do
que o cerne do desenvolvimento.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 25


Tomemos como exemplo a fala. Quando se desenvolve a fala? De
novo, aproximadamente entre um ano e meio, três, quatro, cinco anos,
quando a criança normalmente começa a dominar todas as formas bá-
sicas da língua materna. A fala se desenvolve antes como balbucio? Sim.
Continua a se desenvolver mais tarde, depois dos cinco? Sim. Mas nem
antes nem depois dessa idade se desenvolve como um turbilhão, de
modo tão intenso, e faz avanços tão importantes. O principal período
em que a fala está no centro do desenvolvimento abrange exatamente
essa faixa etária.
Dessa forma, vemos que cada função tem o seu período preferencial
ou propício de desenvolvimento e, nesse período, uma determinada fun-
ção passa para o primeiro plano. Transcorrido o ciclo correspondente de
desenvolvimento, desloca-se para o segundo, e outra função se apresenta
no primeiro plano.
Dessa forma, a desproporcionalidade do desenvolvimento permite
concluir que lidamos com o desenvolvimento que não conduz apenas
ao aumento de aspectos quantitativos das especificidades da criança.
Conduz também à reestruturação das relações entre diferentes parti-
cularidades de desenvolvimento, sendo que cada idade se diferencia de
outra por seu conteúdo de desenvolvimento. Numa determinada idade,
algumas funções se apresentam em primeiro plano e outras, na periferia;
na idade seguinte, outras funções, que estavam na periferia, passarão ao
primeiro plano e as que estavam no centro, para a periferia.
Em particular, essa é a lei de acordo com a qual as funções mais
importantes amadurecem antes. Por exemplo, a percepção se desenvolve
antes da memória. Isso é bem compreensível para nós porque a percep-
ção é requisito, é uma função bem mais importante. A memória pode
surgir quando a criança já sabe perceber. A memória e a percepção se
desenvolvem antes do pensamento. O que vocês acham: o que se desen-
volve antes, a orientação no espaço ou no tempo? A orientação no espaço
se desenvolve antes. Ela é um requisito, é uma função básica. Logo, há
regularidades nessa sucessão das funções. Algumas funções amadure-
cem antes, outras mais tarde. Para que comecem a amadurecer, algumas
têm outras como requisitos etc. Consequentemente, essa desproporcio-
nalidade, essa irregularidade de tempos e do conteúdo do desenvolvi-
mento em diferentes ciclos determina que, entre os diversos aspectos do
desenvolvimento durante os ciclos, há uma relação complexa e regular.

26 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


As funções se apresentam umas antes e outras mais tarde, e a ordem não
é casual, mas conforma-se à lei da relação interna que mantêm entre si.
Desvendamos agora que, na primeira lei (sobre o desenvolvimento
cíclico infantil) e na segunda (sobre a desproporcionalidade ou irregu-
laridade do desenvolvimento de diferentes particularidades), o processo
de desenvolvimento tem uma estrutura extremamente complexa, uma
organização muito complexa e um curso no tempo também complexo.
Isso significa, então, que existem leis para essa estrutura complexa, esse
curso complexo? Elas devem existir. Desvendar como atuam essas leis em
cada caso separadamente é ou não importante do ponto de vista prático?
É importante. Consequentemente, deve existir uma ciência que estude
as leis do desenvolvimento e saiba aplicá-las na solução de uma série de
tarefas práticas.
Tentarei relatar como a ciência estuda essas leis e resolve as tarefas
práticas, mas antes falarei de duas especificidades básicas, duas leis fun-
damentais do desenvolvimento infantil.
A lei do desenvolvimento infantil consiste em que nem sempre ob-
servamos processos apenas progressivos, que seguem em frente, mas
também um desenvolvimento reverso de especificidades ou de aspectos
próprios da criança numa etapa inicial. Normalmente, essa lei é formu-
lada de modo que qualquer evolução no desenvolvimento infantil seja
também uma involução, isto é, um desenvolvimento reverso. É como
se os processos de desenvolvimento reverso ou inverso estivessem en-
trelaçados no curso da evolução da criança.
Por exemplo, a criança que aprende a falar para de balbuciar. E não
apenas isso. Como mostra a investigação, a criança falante, mesmo se
quisesse ou se pedíssemos a ela, não conseguiria reproduzir seu balbucio,
aqueles sons que produzia em forma de balbucio. Na criança que está de-
senvolvendo os interesses escolares, as formas de pensamento próprias ao
escolar apagam os interesses da idade pré-escolar, apagam as especificida-
des do pensamento próprias da idade pré-escolar. Ocorre um desenvolvi-
mento reverso das particularidades que dominavam anteriormente. Por
exemplo, o desenvolvimento psicossexual da criança. Em cada estágio, a
criança tem uma determinada organização ou estrutura da sua psicosse-
xualidade. Na passagem para o degrau seguinte de desenvolvimento, não
apenas surge uma nova estrutura ou organização da sexualidade infantil,
mas os traços principais que caracterizavam a estrutura anterior se sub-
metem a um desenvolvimento reverso.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 27


Isso, é claro, não deve ser compreendido no sentido mecânico de que
cada passo à frente está sempre ligado à simples anulação do que havia
antes. Existem relações muito íntimas entre os processos de involução
e os de evolução; há uma dependência íntima. Muito do que predomi-
nava antes não morre simplesmente, mas se reestrutura, se insere numa
nova organização superior. Muita coisa morre, entretanto, no sentido
direto dessa palavra. Há uma série de incorreções, de distúrbios do de-
senvolvimento infantil denominados infantilismo. Na tradução literal
para o russo, infantilismo significa “infantilidade”. Quando estudamos
em que consiste a essência desse distúrbio do desenvolvimento, nos con-
vencemos de que a essência consiste no fato de que foram atingidos os
processos de involução e de que o sistema que, num desenvolvimen-
to normal, deveria, na hora certa, passar para segundo plano não se
apagou a tempo e não sofreu um desenvolvimento reverso. A criança
entra na idade seguinte e adquire traços que são característicos da ida-
de madura, mas alguns aspectos conservam sua organização anterior,
infantil; permanece a infantilidade de aspectos no âmbito do sistema
característico de uma criança mais velha.
Finalmente, eis a última das leis do desenvolvimento em que eu gos-
taria de me deter para apresentar mais concretamente a ideia do objeto
da pedologia. Normalmente, ela é formulada como a lei da metamor-
fose no desenvolvimento infantil. Vocês sabem que metamorfose são as
transformações qualitativas de uma forma em outra. Ela é uma carac-
terística do desenvolvimento infantil e não se resume exclusivamente a
mudanças quantitativas ou a um simples crescimento quantitativo, re-
presentando um circuito de mudanças e de transformações qualitativas.
Por exemplo, quando a criança passa do engatinhar para o andar, do
balbucio à fala, das formas de pensamento concreto para o abstrato, para
o pensamento verbal, em todos esses casos, não ocorre apenas um cresci-
mento ou aumento de uma função anterior da criança, mas uma trans-
formação qualitativa de uma forma que se manifestava de outro modo.
Se tentarmos compreender essa expressão convencionando uma simples
imagem, pode-se dizer que o desenvolvimento infantil está repleto desses
exemplos que lembram a transformação do ovo em lagarta, da lagarta
em crisálida, da crisálida em borboleta, ou seja, lembram a metamorfose
biológica que observamos na ontogênese de alguns animais, mais especi-
ficamente dos insetos.

28 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Poderíamos, agora, tecer algumas conclusões gerais com base nas
leis do desenvolvimento que apresentei. Parece-me que os resultados po-
deriam ser formulados da seguinte forma. Primeiramente, vemos que
o processo de desenvolvimento infantil não é um mero crescimento
quantitativo de determinadas particularidades; não é um processo que
se resume apenas a crescimento ou incremento.
É um processo complexo que inclui, por força [de sua ciclicidade]13
e de sua desproporcionalidade, a reestruturação das relações entre seus
aspectos, entre diferentes partes do organismo, entre diferentes funções
da personalidade; uma reestruturação que conduz à mudança toda a
personalidade da criança, todo o seu organismo, em cada novo degrau.
Em seguida, podemos dizer que o processo de desenvolvimento
infantil não se esgota apenas com essa reestruturação, mas inclui um
circuito inteiro de mudanças e transformações qualitativas, de metamor-
fose, quando, diante dos nossos olhos, surge uma nova forma que, no de-
grau precedente, não existia, apesar de seu surgimento ter sido preparado
pelo desenvolvimento anterior. Surge, agora, claramente para nós a ideia
que, há muito tempo, bem antes da existência da pedologia científica,
Rousseau expressava numa famosa frase que até hoje se repete e que, por
sua essência, é uma frase com a qual se deve começar qualquer estudo
da pedologia. Rousseau dizia que a criança não é um simples adulto
de tamanho pequeno; ela é um ser que se difere do adulto não apenas
porque é menor em tamanho, não porque pensa de forma menos de-
senvolvida, digamos, ou por outras razões. A criança é um ser que se
difere do adulto qualitativamente pela estrutura de todo o organismo e
de toda a personalidade. Por isso, a transformação da criança em adulto
não é um simples crescimento do pequeno adulto que está dado desde o
início, mas o trajeto de uma série de mudanças qualitativas pelas quais
deve passar até atingir certo grau de amadurecimento. A mesma coisa
que Rousseau diz sobre a criança pequena em comparação com o adulto
se aplica também às crianças em diferentes degraus etários. Assim como a
criança não é um adulto em miniatura, o pré-escolar não é simplesmente
um escolar pequeno e o bebê não é um pré-escolar menor. Ou seja, de
novo, a diferença entre certas idades consiste não simplesmente em
que, no degrau inferior, estejam menos desenvolvidas as especificida-
des que se apresentam mais desenvolvidas nos degraus superiores. A

13 No manuscrito, “ritmo” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 29


diferença consiste no fato de que a idade pré-escolar, a idade escolar
etc., todas elas representam etapas específicas no desenvolvimento da
criança. Em cada uma dessas etapas, a criança se apresenta como um
ser qualitativamente específico que vive e se desenvolve segundo leis
diferentes próprias de cada idade.
Agora, vamos nos deter brevemente em algumas questões teóricas e
metodológicas relacionadas à compreensão do desenvolvimento infantil.
Provavelmente, vocês entendem que o desenvolvimento infantil é um
processo complexo, sensivelmente organizado e que tem uma estrutura
e regularidades complexas, e que, na discussão teórica do mesmo, não
há consenso entre as diferentes tendências da pedologia. Como vocês
sabem, não existe consenso na compreensão dos conceitos básicos, assim
como sobre a origem da vida, na biologia.
O conceito de vida, na biologia, é motivo para a divisão de todo
o pensamento científico burguês em dois campos – o dos vitalistas e o
dos mecanicistas –, da mesma forma que o de desenvolvimento infantil
pertence a certo número de conceitos básicos que devem ser esclarecidos
do ponto de vista filosófico e teórico geral. Aqui também não vamos
encontrar consenso de pontos de vista entre os investigadores.
Quais são as principais soluções metodológicas dessa questão sobre
a natureza do desenvolvimento infantil que existem hoje na ciência e
que vocês encontrarão quando estudarem os cientistas que constroem a
pedologia ou que participaram anteriormente de sua elaboração?
Para ser breve e claro, parece-me que podemos dividir as teorias do
desenvolvimento infantil em três grupos.
O primeiro está ligado, de alguma forma, ao que vocês provavelmen-
te conhecem da embriologia, mais precisamente da história da embrio-
logia e do que costumamos chamar de preformismo. Vocês sabem que
preformismo é o nome de uma teoria que supunha que, no embrião,
na semente a partir da qual se inicia o desenvolvimento embrionário,
já estaria previamente contida a forma futura que deveria surgir no fi-
nal do desenvolvimento, só que em tamanhos pequenos. O desenvolvi-
mento consistiria apenas no fato de essa forma pequena, microscópica,
aumentar e se desenvolver em uma forma correspondentemente mais
madura. Na tradução para o russo, preformismo significa “a existência de
uma forma anterior”. Vocês sabem que, desse ponto de vista, no estágio
inicial, anterior à embriologia científica, supunha-se que a semente do

30 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


carvalho continha o futuro carvalho com todas as suas raízes, com todos
os seus galhos, suas folhas, e que o desenvolvimento consistiria apenas
no fato de esse carvalhinho microscópico se transformar num enorme
carvalho.
Admite-se o mesmo (por via especulativa, bem entendido, ainda
que alguns defensores desse ponto de vista afirmem que verificaram isso
experimentalmente) em relação ao embrião humano, que conteria, já
formado, o futuro homem, e que o desenvolvimento embrionário leva-
ria esse homem microscópico a se transformar num recém-nascido. Na
embriologia, essas teorias foram deixadas para trás há muito tempo e têm
apenas um significado histórico. Na pedologia, elas conservam até hoje
um significado atual. Existem, e não são poucos, grandes cientistas sérios
que defendem esses pontos de vista.
Penso que fica claro por que essas teorias fizeram um ninho mais
denso e firme na pedologia do que na embriologia. Pois bem. Essa teoria
é absurda, contradiz muito os fatos e, assim que começou a elabora-
ção experimental da embriologia, foi muito fácil demonstrar que esse é
um postulado fantasioso e não corresponde à realidade. Na pedologia,
contudo, isso é mais difícil porque a criança recém-nascida, por sua apa-
rência, realmente dá a impressão de um homem quase formado. Pela
estrutura do seu corpo, pela presença de todos os órgãos, o bebê pare-
ce um homem pronto e terminado, apenas sem ter o tamanho de um
homem adulto. Por isso, o preformismo foi o que durou mais tempo
e ainda hoje existe na teoria [embriológica]14 ou pós-embriológica do
desenvolvimento.
Como ele se manifesta? Na pedologia, em que consiste essa teoria?
Ela parte do ponto de vista de que tudo que se desenvolve no homem,
na criança tem sua base última em rudimentos hereditários. De algu-
ma forma, toda característica, toda particularidade contígua ou distante,
direta ou indiretamente, guarda relação com embriões contidos nas ca-
racterísticas hereditárias da criança. Essa teoria supõe que se encontram
nesses embriões as predisposições para o desenvolvimento dos aspectos
que caracterizam um homem desenvolvido e que, como expressa um de
seus principais representantes, o desenvolvimento nada mais seria do que
a realização, a modificação, a combinação dos elementos do embrião.
Todavia, se os embriões vingarão ou não, dependerá do desenvolvimento.

14 No manuscrito, “extraembriológica” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 31


Se uns vingam e outros não, então o quadro será diferente daquele em
que todos ou os últimos vingam, mas não os primeiros. Em seguida,
como diz esse estudioso, no desenvolvimento, esses embriões se modi-
ficam, ou seja, mudam de forma dependendo das condições em que se
desenvolvem, atenuam-se ou intensificam-se e, então, tornam-se mais
flexíveis ou, ao contrário, mais rígidos, mais resistentes, dependendo das
condições em que surgem.
Finalmente, no transcurso do desenvolvimento, eles podem estabe-
lecer combinações. Por exemplo, não se pode admitir que, nos rudimen-
tos hereditários, haja predisposição para determinar qual das crianças
recém-nascidas será, no futuro, um engenheiro ou o melhor especialista
em datilografia. Isso depende da combinação que há nos embriões. Para
cada atividade seria necessária uma combinação de particularidades. No
desenvolvimento, dependendo de como se combinarão as especificida-
des, será verificado que um pode ser o melhor engenheiro e outro, o
pior; um poderá ter mais capacidade para datilógrafo e outro, menos.
Então, isso significa que, desse ponto de vista, tudo está contido pre-
viamente nos embriões e o desenvolvimento transcorre apenas, repito,
como realização, modificação e combinação de inclinações neles conti-
das previamente.
A inconsistência desse ponto de vista, penso, é muito fácil de de-
monstrar, levando em consideração que ele, em geral, nega, em sua
essência, o processo de desenvolvimento, assim como faz toda teoria
ligada à ideia de preformismo. Já que tudo está dado previamente desde
o começo, já que tudo ocorre apenas como uma realização, modificação
e combinação do que já estava dado desde o início, pergunta-se: o que,
em geral, diferencia o processo de desenvolvimento de todo processo de
vida? Por exemplo, um homem maduro ou cada um de nós. Será que a
realização ou não de nossas capacidades não depende das condições de
nossa vida? Será que as condições de vida não mudam ou não modificam
nossas particularidades? Será que, quando adultos, em alguma atividade,
não combinamos nossas inclinações? Consequentemente, se o desenvol-
vimento se resumisse apenas àquilo, então, em geral, o desenvolvimen-
to não se diferenciaria do não desenvolvimento nem de qualquer outro
estado.
Pois bem. O que é essencial, o que é mais importante e nos permite
destacar o desenvolvimento como um processo específico entre todos os

32 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


outros? Penso que vocês concordarão comigo se eu disser que o aspecto
mais importante que faz com que o desenvolvimento seja desenvolvi-
mento, que lhe atribui uma qualidade sem a qual não pode ser chamado
de desenvolvimento, é o surgimento do novo. Se, diante de nós, temos
um processo no decorrer do qual não surge nenhuma nova qualidade,
nenhuma nova particularidade, nenhuma nova formação, então, é cla-
ro, não podemos falar em desenvolvimento no sentido próprio dessa
palavra.
Vamos tomar como exemplo o desenvolvimento cosmológico, quan-
do da nebulosa se formam corpos celestes, sistemas inteiros, digamos o
sistema solar. Por que denominamos isso de desenvolvimento? Porque
ocorreu o surgimento de novos mundos, novos sistemas, novos corpos
celestes que não existiam antes. Por que falamos de desenvolvimento da
terra na geologia? Porque também ocorreu o desenvolvimento de uma
série de formações rochosas novas que não existiam antes. Por que, na
história, falamos de desenvolvimento histórico da humanidade? Porque
surgem novas formas de sociedades humanas nunca existentes na histó-
ria. Digamos que, agora, nos encontremos numa das mais grandiosas
rupturas históricas vividas pela humanidade, nos encontremos às véspe-
ras de um novo regime social que nunca existiu na história da humani-
dade. O que isso significa? Significa admitir que o processo histórico é
desenvolvimento histórico, um processo ininterrupto de surgimento do
novo. Apenas nesse caso podemos falar em desenvolvimento.
Do ponto de vista da teoria que estamos analisando, no desenvol-
vimento ocorrem apenas a realização e a modificação do que está dado
desde o início. Em outras palavras, do ponto de vista dessa teoria, não
surge nada novo. Já que é assim, fica evidente que, como já havia dito, es-
sencialmente, ela leva à negação de qualquer desenvolvimento. Para ela,
a criança é um pequeno adulto, ou seja, é um ser que, em seu estado em-
brionário e em pequenas proporções, já contém o que estará desenvol-
vido em proporções maiores no adulto. O desenvolvimento consistiria
apenas no crescimento do que já se encontra, em pequenas proporções,
no embrião, tornando-se maior. Consequentemente, essa teoria leva ine-
vitavelmente à negação do próprio desenvolvimento.
Outra teoria, contrária a essa, também não me parece correta e con-
siste na ideia de que o desenvolvimento é analisado como um processo
determinado não por suas leis internas, mas como um processo total e

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 33


externamente determinado pelo meio. Esses pontos de vista se desenvol-
veram na ciência burguesa e tiveram lugar na pedologia soviética durante
muito tempo. Supunha-se que a criança era um produto passivo, resul-
tado das influências do meio, e, assim, o desenvolvimento consistiria no
fato de a criança absorver, acolher de fora para dentro particularidades
que estão presentes nas pessoas que a rodeiam. Por exemplo, dizem que o
desenvolvimento da fala acontece porque a criança ouve. Falam em tor-
no dela, ela começa a imitar e também a falar. Ela simplesmente assimila,
decora a fala. Pergunta-se: por que ela assimila a fala a partir de um ano e
meio até os cinco e não antes nem mais tarde? Por que ela assimila desse
modo e passa por determinadas etapas? Por que a criança não decora a
fala da mesma forma como se decora uma lição na escola? Essa teoria não
pode oferecer resposta a todas essas perguntas. Desenvolve, contudo, seu
ponto de vista até o fim, analisando a criança não como um adulto em
miniatura (essa ideia pertence à teoria do preformismo), mas como uma
“tábula rasa” – provavelmente, já ouviram essa expressão. Os pedagogos e
os filósofos antigos diziam que a criança é uma “tábula rasa” – uma folha
de papel em branco, uma tabuleta em branco, como dizem (os romanos
escreviam nessa tabuleta branca), em que não está escrito o que deve-
ria. Ou seja, a criança seria um produto puramente passivo que, desde
o início, não acrescentaria nada de si, nem teria quaisquer momentos
que determinassem o curso de seu desenvolvimento. Isto é, ela seria um
simples aparato de absorção, apenas um recipiente que, durante o seu
desenvolvimento, seria preenchido com o que comporá o conteúdo da
sua experiência. A criança seria simplesmente uma marca do meio. Por
via externa, assimila e adquire o que vê nas pessoas ao seu redor.
Se a primeira teoria leva à negação do desenvolvimento porque en-
sina que nele tudo está dado desde o início, a segunda também o faz,
porque o substitui pelo simples acúmulo da experiência, pelo simples
reflexo das influências do meio e não pelo processo de movimento inter-
no da criança.
Como vemos, de forma semelhante, essas duas teorias levam a um
mesmo resultado. Em sua essência, não resolvem, mas aniquilam o pro-
blema do desenvolvimento. Como diziam antigamente, não desatam,
mas cortam o nó. Tanto numa quanto na outra, apesar de uma ver
tudo na criança e negar qualquer influência do meio sobre ela e a ou-
tra ver tudo no meio e negar qualquer significado na própria criança, o

34 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


resultado conduz ao mesmo ponto, à negação do desenvolvimento. Uma
o substitui pela realização das inclinações que estão embrionariamente
dadas, e a outra, pelo simples acúmulo da experiência. Como já disse, lá
e cá está ausente o mais importante, aquilo sem o que não se pode tratar
de desenvolvimento. É exatamente lá e cá que está ausente a ideia de que
a base do desenvolvimento é o surgimento do novo.
Por isso, em geral, o terceiro grupo de teorias – que ainda são elabo-
radas por diferentes autores e, em medidas distintas, não estão definiti-
vamente purificadas de pontos de vista frequentemente equivocados, to-
mados emprestados do primeiro e do segundo grupo –está no caminho
em que, mais cedo ou mais tarde, a pedologia deverá construir uma
teoria do desenvolvimento realmente correta e metodologicamente
irrefutável.
Já mencionei algumas vezes o que é mais importante para esse ter-
ceiro grupo de teorias quando falei da crítica aos dois primeiros grupos.
Na base desse grupo de teorias há a ideia de que o desenvolvimento
da criança é um processo de constituição e surgimento do homem, da
personalidade humana, que se forma por meio do ininterrupto apa-
recimento de novas particularidades, novas qualidades, novos traços,
novas formações que são preparados no curso precedente de desenvol-
vimento e não estão presentes, já prontas, em tamanhos reduzidos e
tímidos, nos degraus anteriores.
Tentei mostrar que a primeira e a segunda teorias levam à negação
do desenvolvimento. Assim, pois, elas não podem e não querem explicar
que surge algo novo. É exatamente essa ideia de surgimento do novo que
compõe o núcleo principal do terceiro grupo de teorias.
Assim, de acordo com esse terceiro grupo, desenvolvimento é um
processo de formação do homem com todas as suas particularidades; é
um processo que transcorre por meio do surgimento, em cada degrau,
de novas qualidades, novas especificidades, novos traços e formações ca-
racterísticas do homem. Todas essas particularidades, qualidades novas,
surgem não como se tivessem caído do céu, mas são preparadas pelo
período precedente de desenvolvimento. Assim como o avanço do so-
cialismo foi preparado pela história precedente de desenvolvimento e de
decomposição do capitalismo, aqui também acontece isso. Todavia, ao
mesmo tempo, não é possível dizer que o socialismo já esteja contido na
forma capitalista. Aqui também lidamos com o fato de que essas novas

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 35


formas que surgem em determinado degrau etário são preparadas por
todo o curso de desenvolvimento, mas não se encontram prontas.
Então, do ponto de vista do terceiro grupo de teorias, desenvolvi-
mento é um processo de formação do homem ou da personalidade que
acontece por meio do surgimento, em cada etapa, de novas qualidades,
novas formações humanas específicas, preparadas por todo o curso pre-
cedente, mas que não se encontram prontas nos degraus anteriores.
É importante levar em consideração duas ideias inevitáveis para uma
definição cientificamente correta da nossa compreensão. A primeira é: no
desenvolvimento, surge algo novo. Ele não é simplesmente um processo
de formação antecipada e isso difere a nossa compreensão da primeira
teoria, a do preformismo. Mas é importante dizer também que o novo
não cai do céu, surge necessária e regularmente do curso precedente do
desenvolvimento, ou seja, é necessário mostrar a relação entre o novo e o
precedente. Por isso, ao se rechaçar a primeira teoria, não se pode negar
totalmente o que nela é verdadeiro, mais precisamente, a relação entre
as etapas posteriores do desenvolvimento e o passado, e que o passado,
no futuro, tem uma influência iminente no surgimento do presente. É
preciso também ligar isso à ideia de que surgem novas formações e traços
específicos do homem seguindo as leis do desenvolvimento, isto é, eles
não são acrescentados de fora, de modo inesperado e independente da
criança; não caem do céu, não são criados por uma força vital que, em
determinada hora, dita seu aparecimento. Seu surgimento é necessária
e historicamente preparado pela etapa precedente. Essa segunda ideia
também é preciso conservar e arrolar.
Relatei de forma abstrata essas especificidades porque persegui ape-
nas um objetivo: tornar mais consistente a nossa ideia do objeto da pedo-
logia. Queria mostrar que o desenvolvimento da criança é um processo
complexo, que contém uma série de regularidades muito complexas, e
que o objeto dessa ciência está no estudo dessas regularidades.
Vamos conversar sobre as atribuições práticas da pedologia e seus
procedimentos quando formos falar da análise clínica das crianças e
examinar como são utilizados os dados pedológicos para análise de seu
desenvolvimento. A análise concreta das teorias, da última, em particu-
lar, faremos ao longo das nossas duas próximas aulas, quando falaremos
sobre o método da pedologia, sobre como ela estuda o desenvolvimento
infantil, sobre o meio e a hereditariedade, ou seja, sobre quais são as leis

36 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


concretas que existem para a determinação da influência das inclinações
hereditárias no desenvolvimento e qual é o papel real do meio no desen-
volvimento da criança. Então, parece-me, tudo isso ficará mais claro e
mais concreto.

Segunda aula. A definição do método da pedologia


Na aula anterior, falamos sobre o objeto da pedologia e esclarecemos
que ela se ocupa do estudo do desenvolvimento da criança, um processo
complexo que se manifesta numa série de regularidades fundamentais.
Depois, tivemos a oportunidade de ver na prática como, em cada
caso específico, especialmente em transtornos do desenvolvimento,
manifestam-se essas regularidades; como, no desenvolvimento de cada
criança, elas sofrem transtornos, disfunções, se alteram e como o diag-
nóstico pedológico procura desvendá-las.
Agora, gostaria de conversar a respeito do método da pedologia. Na
tradução do grego, método significa “caminho”. No sentido metafórico,
entende-se por método o modo de investigação ou de estudo de uma
parte definida da realidade; é o caminho do conhecimento que conduz
à compreensão de regularidades científicas em algum campo. Contudo,
obviamente, uma vez que cada ciência tem seu objeto de estudo especí-
fico, é necessário um método específico para o estudo de qualquer um
deles. O método é um caminho, um procedimento. Por ser um procedi-
mento, consequentemente, depende do objetivo para o qual a ciência se
orienta num determinado campo. Se cada ciência tem suas atribuições e
objetivos específicos, então, é claro que elabora também seus métodos de
estudos específicos, seus caminhos de investigação. Assim, pode-se dizer
que, da mesma forma que não existe ciência sem seu objeto, também
não existe ciência sem seu método. O caráter deste é sempre definido
pelo caráter do objeto da ciência. Por isso, se conhecemos, pelo menos
em algumas palavras, o que caracteriza o desenvolvimento da criança,
podemos passar à tarefa de esclarecer qual é a especificidade do método
da pedologia, o que nele é essencial e mais importante.
Parece-me que a primeira característica que distingue o método pe-
dológico consiste no fato de que, como se diz normalmente, ele é um
método de estudo da unidade do desenvolvimento; abrange não apenas
um aspecto do organismo, da personalidade da criança, mas todos os

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 37


aspectos de um e de outro. Por isso, desde antigamente, afirma-se que o
método pedológico é o da unidade.
Contudo, permaneceu por muito tempo sem clareza o que é esse
método na pedologia. Se esclarecermos com precisão o que ele significa
para a pedologia, compreenderemos, parece-me, os principais meios do
estudo científico e prático distintamente.
Antes de tudo, é preciso dizer que método da unidade não significa
método multilateral. Estudar uma coisa isolada e multilateralmente, em
seguida outra coisa e depois mais outra, estudar dados específicos, ainda
não é o método da unidade, apenas o multilateral. Normalmente, os
estudos multilaterais não abrangem apenas um, mas vários campos da ci-
ência que são necessários não em função de um objetivo teórico, mas de
objetivos puramente práticos e técnicos. Assim, é preciso combinar da-
dos de diferentes ciências. Todavia, obviamente, a pedologia não poderia
ser uma ciência específica se seu método consistisse apenas em coletar e
sistematizar dados de ciências diferentes.
O segundo ponto é que o método da unidade não exclui a análise.
Não existe ciência alguma que possa seguir por um caminho sem recor-
rer à análise, à decomposição de um todo complexo em momentos dis-
tintos que o constituem e o formam. Por isso, quando se fala de método
da unidade, novamente, não se deve supor um método que, por algum
motivo, seja somatório, generalizante ou que exclua a possibilidade de
um estudo analítico.
[Todas essas definições são negativas].15 Com relação à definição po-
sitiva, parece-me que é mais fácil esclarecer o que é método da unidade
na investigação pedológica se tomarmos e contrapusermos os dois prin-
cipais modos de análise geralmente utilizados na ciência e, particular-
mente, no estudo do desenvolvimento infantil.
Podemos denominar o primeiro desses modos de análise de decom-
posição em elementos. Então, no processo de análise, um todo complexo
é decomposto em elementos que o constituem, melhor dizendo, em par-
tes constituintes elementares. Um exemplo típico desse método é a aná-
lise química, em que decompomos um corpo complexo em elementos
que o constituem. Essas formas de análise existem em todos os campos
da ciência e, em particular, no estudo do desenvolvimento infantil. Se,

15 Ao que parece, Vigotski tem em vista que as definições indicadas por ele são apresentadas pela
negação – “não são” (N. da E. R.).

38 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


nesse estudo, nos interessar, digamos, a fala, essa formação complexa
que é a fala – que tem seu aspecto fisiológico e também o psicológico
–, e se assumirmos a tarefa de estudar a fisiologia ou a anatomia dos ór-
gãos da fala ou a sua psicologia, procederíamos como um químico que
decompõe a água em elementos que a constituem. Tomaríamos cada
aspecto da fala como um elemento independente e estudaríamos cada
um isoladamente.
A outra forma de análise consiste no que se poderia denominar de
método de decomposição ou método de análise que reúne as unidades
num todo complexo. O que isso significa? Qual é a característica do ele-
mento que é parte do todo? Penso que, em relação ao todo de que é par-
te, o elemento se caracteriza por não ter propriedades presentes no todo.
Se, por exemplo, quero explicar por que a água apaga o fogo, por que
alguns corpos afundam e outros flutuam na água, não posso responder
a isso dizendo que a água é composta de hidrogênio e oxigênio, sendo
sua fórmula química H2O, pois, ao decompô-la em hidrogênio e oxigê-
nio, as propriedades nela presentes desaparecem nesses elementos. Elas
são próprias da água apenas enquanto ela é água. Contudo, o oxigênio
mantém o fogo, o hidrogênio sofre a combustão e a propriedade da água
é a de apagar o fogo, que, nesse caso, desaparece e não pode ser explicada
pela soma das propriedades do oxigênio e do hidrogênio. Então, para a
análise que utiliza a decomposição em elementos, o mais característi-
co consiste no fato de que ela decompõe um todo em partes que não
contêm em si propriedades do todo e, por isso, exclui a possibilida-
de de explicação das propriedades complexas presentes no todo que é
constituído pelas propriedades das partes isoladas. Não posso explicar
por que a água apaga o fogo pela relação entre o fogo e os elementos que
formam a água. Por isso, pode-se dizer que, essencialmente, do ponto de
vista das propriedades do todo, no sentido próprio da palavra, essa não é
uma análise. É, antes de tudo, uma contraposição à análise, porque não
desmembra o todo complexo em elementos constituintes isolados, mas
reduz as propriedades desse todo complexo a uma única causa comum.
Quando digo que a água é composta de hidrogênio e oxigênio, isso
está relacionado apenas à sua propriedade de apagar o fogo ou às de-
mais propriedades? Claro que, decididamente, isso mantém relação com
as demais propriedades da água. Isso diz respeito ao oceano, à gota de
água da chuva, ou seja, isso é relativo também à água em geral. Então,

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 39


a análise que decompõe em elementos pode apresentar apenas conheci-
mentos que mantêm relação com as propriedades comuns de um todo.
Podemos esclarecer a natureza da água em geral via tal análise, mas essa
análise não nos explica o que dela exigimos, ou seja, a decomposição das
propriedades, as explicações de cada uma delas, as relações entre cada
uma delas. Isso significa, essencialmente, do ponto de vista do estudo
das propriedades da água, que essa não é uma análise no sentido próprio
da palavra.
Se isso está claro, então será fácil explicar o que é a análise que de-
compõe em unidades um todo complexo, pois ela é definida por dois
traços opostos. A análise que decompõe em elementos é definida pelo
fato de o elemento não conter propriedades do todo. Já a unidade é
definida pelo fato de que é a parte de um todo que contém, mesmo que
de forma embrionária, todas as características fundamentais próprias
do todo.
Digamos assim: para o químico, a água contém hidrogênio e oxigê-
nio. O físico, contudo, lida com moléculas, com o movimento molecu-
lar interno da água, ou seja, com partículas mínimas que, ainda assim,
são partículas de água e não elementos dos quais ela é constituída. Por
isso, o físico explica uma série de alterações que o corpo físico sofre e
desvenda a relação entre diferentes propriedades por meio das proprie-
dades moleculares da água, analisando e desmembrando uma série de
propriedades isoladas que fazem dela um corpo físico.
Se tomarmos uma fórmula bioquímica de alguma substância orgâ-
nica, isso será uma análise que decompõe em elementos. Se estudarmos
a vida, a fisiologia da célula viva do organismo, isso será uma unidade,
porque a célula viva conserva em si as propriedades fundamentais do
organismo como um todo. Em termos gerais, a unidade é a célula viva,
ou seja, ela nasce, se alimenta, metaboliza e morre, se altera, se transfor-
ma e pode também adoecer etc. Em outras palavras, na pequena célula,
lidamos não com o elemento, mas com a unidade.
A primeira característica da unidade consiste no fato de que a
análise destaca as partes que não perderam as propriedades do todo.
Imaginem que, por meio da análise, eu decomponha um corpo com-
plexo – é indiferente se real ou abstrato – em partes isoladas e, depois,
chegue a um determinado limite de decomposição em que obtenho
uma parte que contém em si as propriedades fundamentais do todo. Por

40 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


exemplo, a molécula de água contém em si as propriedades fundamen-
tais da água; a célula viva contém em si algumas propriedades fundamen-
tais de qualquer matéria viva, de qualquer organismo. A análise que nos
conduz à compreensão da célula e de sua vida, da constituição do tecido
pelas células, da constituição do órgão pelos tecidos ou a análise que leva
ao estudo das moléculas de água, da tensão molecular ou do movimento
molecular da água nos conduz, como resultado, às partes da água que
não perderam as propriedades do todo, que contêm em si as proprie-
dades fundamentais do todo no mais alto grau e de forma simplificada.
Digamos que seja impossível comparar a alimentação da célula com a
do organismo humano; contudo, na alimentação da pequena célula, há
elementos fundamentais de algo vivo. Essa é a primeira diferença básica
entre as duas análises.
Apresentarei exemplos concretos do campo da pedologia, fatos que
mostram a diferença nítida entre uma e outra forma de análise.
A segunda propriedade dessa análise é que ela se vale do método
de decomposição em unidades e, diferentemente da análise química,
não representa uma generalização. Ela não se relaciona com a natureza
da totalidade do fenômeno, mas pode ser uma análise por meio da
decomposição para explicar diferentes propriedades de uma totalidade
complexa. Então, isso significa que é análise no sentido próprio da pala-
vra. Por exemplo, não quero esclarecer toda a vida do organismo huma-
no, mas uma determinada função, digamos, a alimentação. Para isso, eu
preciso recorrer a quê? À análise de todo o organismo ou de determina-
dos aspectos de sua atividade? De determinados órgãos, de determinados
sistemas. Agora, quero explicar outros aspectos da atividade vital. Preciso
recorrer à análise de outros aspectos. A análise não me conduz a algo
como a fórmula química da água, que mantém uma relação similar tanto
com o grande oceano quanto com a gota de chuva. A análise me permite,
num caso, explicar a digestão e, no outro, o sistema circulatório; num
caso, por que a água apaga o fogo; no outro, por que os corpos afundam
ou flutuam etc. Isso significa que essa é análise genuína, ou seja, ela per-
mite, de forma simplificada, o estudo de algumas características funda-
mentais de um todo. Passemos aos exemplos concretos e isso ficará claro.
Durante muito tempo, predominou na pedologia a visão de que
o desenvolvimento depende de duas fontes: a hereditariedade e o
meio. Ninguém discordará disso. Digamos que a fórmula química de

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 41


qualquer desenvolvimento seja a hereditariedade e o meio. Isso está
correto? Penso que, indiscutivelmente, está correto. Isso está relacio-
nado ao desenvolvimento como um todo? Sim, do mesmo modo que a
fórmula química guarda relação com a água como um todo. Quando se
tentava utilizar a análise baseada na decomposição do desenvolvimento
e de cada momento isolado do mesmo nos elementos hereditariedade e
meio, estávamos na mesma situação pela qual passaríamos caso quisésse-
mos explicar as características concretas da água – por exemplo, que ela
apaga o fogo – partindo da ideia de que ela é composta de hidrogênio e
oxigênio. Esbarraríamos nos elementos que não contêm em si as proprie-
dades do desenvolvimento como um todo. Por exemplo, como explicar
a fala da criança? Em relação à fala, sempre existiram duas visões: o ina-
tismo e o empirismo. O inatismo afirmava que toda função é inata, de
base hereditária. O empirismo afirmava que a fala nasce da experiência.
Os inatistas diziam: se colocarmos em condições melhores, entre orado-
res, uma criança que tem mal desenvolvida a zona cerebral responsável
pela fala, ela não começará a falar. Isso significa que a fala se desenvolve
a partir de rudimentos hereditários. E os empiristas diziam: coloquem
uma criança com a zona cerebral responsável pela fala desenvolvida junto
de crianças surdas-mudas. Ela nunca falará. Então, isso significa que a
fala se desenvolve no meio e com a experiência. Da mesma forma avan-
çava a discussão em relação à percepção do espaço e a quase todos os
aspectos do desenvolvimento. A ciência enxergava, no início, apenas as
contradições.
Dessa forma, quando a ciência entrou em um beco sem saída, sur-
giram tendências que tentavam conformar o inatismo e o empirismo.
Começaram a dizer: a fala da criança se desenvolve, por um lado, com
base nas características hereditárias embrionárias e, por outro, sob a in-
fluência do meio. Isso está correto? Incontestavelmente, sim. Todavia,
está relacionado tanto à fala quanto, decididamente, ao desenvolvimento
como um todo. Por isso, até agora, enquanto falávamos do desenvol-
vimento em geral, seria necessário para a compreensão e nos satisfazia
por completo o princípio de que o desenvolvimento é determinado pela
hereditariedade e pelo meio.
Contudo, assim que surge o desejo de explicar algum aspecto con-
creto do desenvolvimento, por exemplo, a fala, com base em caracterís-
ticas hereditárias embrionárias plus influência do meio, não podemos

42 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


decompô-la desse modo, porque os caracteres embrionários hereditários
não contêm em si, necessariamente, o surgimento da fala e o meio ex-
terno não contém em si a necessidade do surgimento da fala na criança.
Então, começaram a imaginar que a fala da criança se desenvolve
de convergências, ou seja, do entrecruzamento, da coincidência de uma
influência com outra. Assim, imaginavam a coisa de tal forma que, no-
vamente, qualquer influência no desenvolvimento da criança deveria ser
explicada com a ajuda da convergência de dois fatores: da hereditarieda-
de, por um lado, e do meio, por outro. Todavia, na verdade, o estudo
dessas questões levou à necessidade de se recusar o modo de análise que
decompõe em elementos. Por que e como?
Antes de tudo, descobriu-se a infertilidade desse método de investi-
gação. A fala se desenvolve da [relação mútua]16 entre hereditariedade e
meio. Mas o mesmo pode ser dito em relação a outras características da
criança. O crescimento depende da influência do meio e da hereditarie-
dade; o peso da criança também depende disso; a brincadeira, a atividade
de brincar, também depende disso. Qualquer aspecto do desenvolvimen-
to da criança que focalizarmos se mostrará sempre dependente da here-
ditariedade e do meio. Isso significa que, para todas as questões relacio-
nadas ao desenvolvimento, teríamos apenas uma resposta: depende da
hereditariedade e do meio. Além disso, poderíamos dizer o que há mais
do meio e menos da hereditariedade e, em outro caso, o que há mais da
hereditariedade e menos do meio. E nada mais poderíamos descobrir
que fosse muito frutífero com a ajuda dessa análise.
De que outra forma pode-se tratar a análise, o estudo, digamos, do
desenvolvimento da fala? Dizemos assim: a fala é um todo complexo
que depende tanto do meio quanto da hereditariedade. Essa não é,
contudo, uma característica diferenciada dela, mas algo que é próprio
de todos os aspectos do desenvolvimento infantil.
Como devemos analisar o desenvolvimento da fala da criança? Antes
de tudo, parece-me que devemos partir do fato de que nela existem mo-
mentos isolados que representam unidades e não elementos, ou seja, que
representam momentos que conservam, mesmo que de forma primária,
características próprias da fala, assim como uma celulazinha conserva, de
forma primária, características próprias do organismo como um todo.

16 No manuscrito, “influência” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 43


Tomemos um exemplo concreto: o aspecto sonoro da fala.
Provavelmente, vocês sabem que, na velha linguística, estudava-se o as-
pecto sonoro da fala. [Estudavam-se os sons]17 com os quais se organiza a
fala. Imaginem que cada palavra seja construída de sons isolados com os
quais se organiza a fala. Isso está correto? Claro. Está certo. Se está certo
que a fala é constituída de sons isolados, de letras isoladas, de elementos,
surge uma série de questões difíceis de resolver. A primeira consiste em
que, se a fala é constituída de sons isolados, consequentemente, para se
estudar como se desenvolvem, na criança, os seus aspectos sonoros, é
preciso decompô-la em sons isolados e observar quando surgem as letras
isoladas “a”, “b”, “v”, “e” etc. Mas o som “a”, o som “b” etc., como sons
em si, não contêm nenhuma característica própria do som da fala hu-
mana, porque podem existir no papagaio ou no bebê até este aprender a
falar. Consequentemente, podemos estudar apenas as propriedades dos
sons acústicos como fenômenos físicos e fisiológicos que dependem da
articulação, dos movimentos articulatórios com a ajuda dos quais são
pronunciados.
Mas o que diferencia o som da fala humana de outros sons exis-
tentes na natureza? A diferença entre o som da fala humana e os sons da
natureza é que, em sua essência, os sons com a ajuda dos quais transmi-
timos um determinado sentido são uma unidade da fala e não um mero
som, mas um som significante, ou seja, um som que tem a característica
de transmitir um significado. O que diferencia os sons de qualquer pala-
vra que pronunciamos de quaisquer outros que existem na natureza, que
podem conter a mesma quantidade de oscilações por segundo, a mesma
duração, ou seja, todas as qualidades físicas? Os sons da fala humana se
diferenciam porque servem para a transmissão de um determinado senti-
do. Por isso, a investigação contemporânea compreendeu que a unidade
da fala não é simplesmente um som, mas um som significante. No estu-
do contemporâneo da fala, esse som que soa é designado de fonema, ou
seja, é uma combinação de sons que não pode mais ser decomposta e,
às vezes, é um som ou combinação de sons que não perdeu a principal
propriedade da fala humana e que o faz ser um som humano.
Permitam-me apresentar um exemplo simples. Em duas palavras di-
ferentes: um e ottsu,18 temos o mesmo som [u], no início de uma e no

17 No original, “ela era estudada do ponto de vista dos sons” (N. da E. R.).
18 Em russo, um significa “mente” e ottsu significa “ao pai” (N. da T.).

44 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


final da outra. Por suas características físicas, propriedades fisiológicas
e articulatórias, os dois sons são totalmente coincidentes, são o mes-
mo som. Contudo, ele é um fonema, uma unidade da fala. Por quê?
Pergunto: o som [u] na palavra ottsu está no final e é um som signifi-
cante. Ottsu significa algo? O “u” na palavra um é um som significante?
Não. Logo, isso significa que, no primeiro caso, estamos lidando com
um fonema e, neste último, com um som. Se eu decompuser a palavra
em sons como [u] e [m], então, para mim, toda a palavra permanece
como uma simples combinação casual de determinados sons. Se eu sou-
ber decompor a fala em partes, como, nesse caso, o som [u], verei que ele
contém uma propriedade básica da fala humana, uma função de signi-
ficados, mas, na verdade, numa forma muito embrionária. Isso porque,
por si só, o som [u] não significa qualquer objeto, nem guarda relação
com esse objeto; é uma função nebulosa de caráter dependente que ajuda
a diferenciar o significado ottsu de ottsa, ottsom, ob ottse etc.19 Mas isso
é o fonema, é a unidade. A análise mostra que a fala humana, por um
lado, se desenvolve e, por outro, se estrutura de forma desenvolvida
não de sons, mas de fonemas, ou seja, de sons que exercem a função
fundamental ou, mais precisamente, a de significado.
O que diferencia uma e outra análise da fala? Parece-me que, em
uma, decompomos em elementos que perderam as propriedades do
todo. No caso presente, decompomos em unidades que conservam as
propriedades do todo, ainda que de forma primária. A história do de-
senvolvimento da fala humana até hoje indica que, enquanto estivermos
estudando-o pelos sons isolados, será difícil entender como se desenvolve
a fala da criança. A investigação mostra que nunca poderemos entender
porque a criança pronuncia algumas palavras e não outras; porque pro-
nuncia algumas letras, alguns sons antes e outros mais tarde. Ainda, o
mais importante é que nunca entenderíamos de que forma a criança assi-
mila o principal vocabulário fonético da língua materna, aos dois ou três
anos, se todas essas palavras representassem combinações casuais de sons

19 Na língua russa, as declinações são formadas por seis casos para os substantivos, pronomes,
adjetivos. São eles: nominativo, genitivo, acusativo, dativo, instrumental e prepositivo. Dependendo
do caso da declinação, o substantivo otets sofrerá alteração em sua desinência. No exemplo
apresentado por Vigotski, a palavra otets está declinada no genitivo, instrumental, prepositivo (nessa
ordem), que, na tradução, seria: do pai, pelo pai, sobre o pai. E ottsu, no dativo, significa “ao pai”
(N. da T.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 45


isolados. Todavia, a criança assimila sem decorar, sem repetição especial.
Aprende, assim, a dizer, de forma estrutural.
Tomemos um exemplo concreto. Provavelmente, vocês sabem que,
no balbucio do bebê, o som [r] aparece muito cedo. Stern supôs que
as formações [er] e [rr] são quase as primeiras a surgirem no balbucio
infantil. Ao mesmo tempo, vocês sabem que o som [r] surge na fala da
criança muito tardiamente. Dessa forma, parece que ela domina o som
[r] no balbucio muito cedo, mas quando começa a falar, até os três,
quatro, cinco anos, não consegue pronunciá-lo. O que se verifica é que
ela domina o som [r] desde cedo, porém apresenta dificuldade com o
fonema não como som, mas como função semântica. Acontece que a
criança que fala [u] e [a] ainda não sabe diferenciar ottsu de ottsa. Por
que ela ainda não sabe falar corretamente ia dam ottsu (“eu darei para o
pai”)? Não é porque não saiba pronunciar o som [u], mas porque a fun-
ção desse som lhe é ainda inapreensível. O mesmo ocorre em relação ao
som [r]. A criança aprende o som [r] muito cedo. Todavia, é porque ele
exerce funções complexas de significado na composição da língua russa
que a criança começa a dominá-lo mais tarde. Ainda que seja o primeiro
a surgir no balbucio, aparece já tarde na fala sonora da criança. Tomei
como exemplo apenas esse aspecto do desenvolvimento infantil – mais
exatamente a fala e, no âmbito dela, apenas um momento, o seu aspecto
sonoro, o desenvolvimento da capacidade de falar. Com isso, vemos, é
claro, que eu recorri à análise. Destaquei a fala no desenvolvimento; na
fala, seu aspecto sonoro, e tentei decompô-lo em determinadas unida-
des. Então, há uma análise. Essa análise, contudo, tem um determinado
limite: o que conserva a propriedade dos sons da fala humana em geral,
ou seja, a característica de ser significante.
O que isso quer dizer? Tomemos o segundo exemplo. O estudo do
meio. Penso que vocês concordarão comigo que o significado de cada
elemento do meio será igual dependendo da relação que ele tem com a
criança. Por exemplo, adultos frequentemente conversam da mesma for-
ma em torno da criança quando ela tem seis meses e quando tem um ano
e seis meses. Contudo, essa mesma fala, que não mudou, tem o mesmo
significado quando a criança tem seis meses e quando tem um ano e seis
meses? Diferente. Isso significa que a influência de cada elemento do
meio dependerá não do que ele contém, mas da relação que tem com a
criança. O significado de um mesmo elemento do meio será diferente

46 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


dependendo de sua relação com a criança. A fala dos que estão em torno
da criança não mudará; será a mesma quando a criança tiver um ano ou
três anos, mas o seu significado para o desenvolvimento mudará.
Agora, imaginem que eu vá estudar do que depende a fala, como
faziam com frequência. A fala das crianças se desenvolve de diferentes
formas. Algumas começam a falar antes e melhor; outras, mais tarde e
pior; algumas se atrasam no seu desenvolvimento, outras se adiantam.
Quando desejam explicar por que é assim, dizem do que depende o de-
senvolvimento da fala da criança. Primeiramente, do meio circundante.
Se, no meio circundante, a fala é rica e se conversam muito com a crian-
ça, ela tem chances de se desenvolver rapidamente no que diz respeito à
fala. Agora, se no meio circundante, a fala é pobre e conversam pouco
com a criança, ela se desenvolverá de modo pior. Ou seja, depende, em
primeiro lugar, do meio falante e, em segundo, da própria mente da
criança. Se for inteligente, esperta e tiver boa memória, assimilará me-
lhor. Todavia, se for obtusa, atrasada e limitada, assimilará de um modo
pior. Tentavam explicar o desenvolvimento da fala partindo desses dois
motivos. Decompunham os dois em elementos e mensuravam, tomando
por base a quantidade de palavras que o ouvido da criança ouvia por dia
ou por hora e procurando esclarecer se isso realmente explicaria as dife-
renças no desenvolvimento de sua fala. Verificou-se que, decididamente,
isso não esclarecia por que o circunstância crucial não é, por si só, nem
o meio nem a mente, mas a relação entre o meio falante e a fala da
própria criança. Se gosta de falar, de se comunicar com os que estão à
sua volta, tem necessidade da fala, é uma coisa. Se tem uma relação tensa
com os que estão à sua volta, fecha-se e cada palavra soa de forma desa-
gradável, é outra completamente diferente. Consequentemente, vê-se
que, de novo, a unidade é crucial e não os elementos, ou seja, a relação
entre o momento do meio e as características da própria criança. Se
encontrarmos essa unidade, ela conservará em si o que é próprio do
desenvolvimento da fala como um todo, ou seja, a relação entre os
momentos do meio e os momentos pessoais, isto é, os que estão enrai-
zados nas especificidades da própria criança.
Eis por que o estudo que se vale do método de unidades nos permite
estudar a relação; estudamos as unidades que não foram decompostas em
elementos e conservam em si, de forma simplíssima, as relações entre es-
ses elementos, ou seja, aquilo que é mais importante no desenvolvimento.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 47


Penso que as dificuldades despertadas em vocês com a apresentação
dessa parte de minha aula estão relacionadas ao fato de que estou falando
desse método de forma abstrata. Todavia, muita coisa ficará mais clara
sobre a análise própria da pedologia quando, da próxima vez, exami-
narmos o problema do meio e da hereditariedade e esclarecermos o que
diferencia o estudo pedológico da hereditariedade do estudo da heredita-
riedade na genética, na biologia; o que diferencia o estudo pedológico do
meio do estudo do meio na higiene. Verificaremos que cada uma dessas
ciências tem atribuições diferentes de investigação, já que cada uma delas
se vale de métodos distintos para o estudo da hereditariedade e do meio,
enquanto a pedologia estuda tanto a hereditariedade quanto o meio
aplicando o método de que estou falando, ou seja, o método de de-
composição em unidades. Por exemplo, a higiene e a genética estudam
a hereditariedade e o meio aplicando o método de análise por decompo-
sição em elementos. Isso responde às atribuições dessas ciências. Então,
penso que, da próxima vez, quando nos aproximarmos concretamente
do estudo do meio e da hereditariedade, ficará mais clara a primeira es-
pecificidade do nosso método, com o qual, a princípio, nos encontramos
de forma abstrata.
Agora, quero me deter na segunda especificidade que caracteriza o
método pedológico. Uma vez que ela é bem mais simples e está relacio-
nada ao método de outras disciplinas, já conhecido por vocês, isso será
bem mais fácil e compreensível.
A segunda especificidade do método de investigação pedológica
consiste em que, no sentido amplo dessa palavra, ele é clínico. Para
explicar o que compreendemos ao dizer que a pedologia se utiliza do
método clínico de estudo, será bem mais fácil se, por um lado, compa-
rarmos esse método na pedologia ao correspondente na clínica – os dois
são suficientemente semelhantes – e se, por outro lado, contrapusermos
o método clínico de estudo com o sintomatológico.
Vocês sabem que, na medicina, antes do desenvolvimento do méto-
do clínico, predominava o sintomatológico. Ou seja, estudavam-se não
as doenças, mas os seus sintomas, suas características, seus fenômenos ex-
ternos. As doenças eram classificadas e agrupadas por seus sintomas. Os
doentes com os mesmos sintomas, com uma tosse, por exemplo, eram
relacionados em um grupo de doenças. Outros com sintomas de dor de
cabeça, por exemplo, em outro grupo de doenças. Da mesma forma, em

48 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


qualquer outra ciência, até o início da elaboração científica verdadeira,
predominavam os métodos puramente empíricos, baseados nos estudos
dos sintomas. Por isso, todas as ciências percorrem o caminho do estu-
do sintomatológico, do estudo empírico das manifestações externas. Por
exemplo, na botânica e na zoologia, antes de Darwin, as plantas e os
animais eram classificados por manifestações externas, pelas formas das
folhas, pelas cores das flores. Depois de Darwin, começaram a ser classi-
ficados pela origem, pelo que havia em comum na origem, em comum
na característica genética, porque passou a ser conhecido o processo que
levou à formação dessas características.
Da mesma forma, na medicina, o predomínio da medicina clínica,
que substituiu a sintomatológica, se mostra pelo fato de que começaram
a estudar não as manifestações externas, mas os processos que levam ao
surgimento dos sintomas. Começaram a estudar os processos subjacentes
aos sintomas. Assim, ficou claro que os doentes com os mesmos sintomas
poderiam ter diferentes processos e os com processos semelhantes pode-
riam ter diferentes sintomas. Ou seja, evidenciou-se a possibilidade de
passar das manifestações externas ao estudo de processos que subjazem a
elas e determinam o seu surgimento e a sua presença.
O mesmo ocorre na pedologia. Inicialmente, ela era uma ciência sin-
tomatológica. Estudava as características externas do desenvolvimento
infantil, do desenvolvimento mental infantil, do desenvolvimento da
fala infantil. Constatava que, em certa idade, a criança apresentava de-
terminadas características. Como todas as ciências sintomatológicas,
ela era predominantemente descritiva. Não conseguia explicar por que
algo surgiu. Até mesmo na pedologia soviética, havia pesquisadores que
propunham definir a pedologia como a ciência dos complexos de sin-
tomas etários, ou seja, um conjunto de características que diferenciaria
determinada idade. Vocês entendem muito bem que o estudo de caracte-
rísticas ou sintomas é apenas uma parte mais geral da função da ciência.
A ciência estuda características para aprender a desvendar o que subjaz
a elas; no caso, digamos, da clínica, estudar o processo patológico; no
caso da pedologia, os processos de desenvolvimento. Isso significa que,
na aplicação do método da pedologia, decisivamente, todas as caracte-
rísticas que obtemos nas nossas investigações e observações do desenvol-
vimento infantil tomamos apenas como sintomas de desenvolvimento.
Contudo, ao interpretarmos esses sintomas, contrapondo-os, temos que
chegar aos processos de desenvolvimento que os provocam.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 49


Dessa forma, quando digo que a pedologia emprega o método clí-
nico no estudo do desenvolvimento infantil, quero dizer: ela trata as
manifestações observadas no desenvolvimento infantil apenas como
características por trás das quais tenta identificar como transcorreu ou
como ocorreu o próprio processo de desenvolvimento que levou ao
surgimento desses sintomas.
Por exemplo, vocês já viram, da última vez, como determinamos
o desenvolvimento mental da criança. Sabemos que, pela certidão de
nascimento, a criança pode ter seis anos e, pelo desenvolvimento, nove
ou 12. Sabemos que se adiantou no desenvolvimento mental em quatro
anos. O que isso significa para um diagnóstico pedológico? Termina aí
a tarefa da investigação pedológica? Não. Apenas constatamos que isso
ocorreu. Contudo, por que ocorreu? Saberemos apenas se esclarecermos
o que aconteceu no processo de desenvolvimento da criança. O que le-
vou a isso? O que essas características evidenciam? Que não são caracte-
rísticas do desenvolvimento mental de uma criança de três anos, mas de
uma de 12 anos. Isso pode acontecer por diferentes motivos.
Frequentemente, lidamos com crianças que são dotadas além de sua
idade. Em uma de minhas conferências, gostaria de apresentar algumas
dessas crianças. Quando trazem uma criança, dizem que ela é desen-
volvida além dos anos que tem. Pergunta-se: o que provoca isso? Em
uma delas, verifica-se que isso foi provocado por um desenvolvimento
acelerado. Ou seja, essas crianças simplesmente percorrem o caminho do
seu desenvolvimento em um ritmo muito acelerado. O que uma crian-
ça atinge, domina aos oito anos, a outra atinge aos seis. Contudo, esse
desenvolvimento acelerado será posteriormente acompanhado de um
desenvolvimento mais vagaroso, ou, mesmo que não seja vagaroso, não
significa que diante de nós esteja uma criança bem-dotada.
Exemplos extremos típicos dessas crianças com desenvolvimento
acelerado são as wunderkind,20 a respeito de quem vocês provavelmente
já ouviram falar. Wunderkind é aquela que, numa idade muito precoce,
nos impressiona com algumas capacidades específicas – musicais, artís-
ticas, matemáticas.
Contudo, wunderkind é uma criança comum com desenvolvimento
acelerado. Admiramo-nos quando a criança tem cinco anos; realmente

20 No original russo, Vigotski usa a palavra alemã wunderkind, que, na tradução para o
português, significa criança prodígio (N. da T.).

50 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


nos impressiona porque, aos cinco anos, por exemplo, demonstra co-
nhecimentos matemáticos que são próprios de um jovem de 19 ou 20
anos ou de um adulto. O que há de impressionante nesse caso? Não são
as capacidades matemáticas em si, mas o fato de estarem presentes numa
criança tão pequena. Contudo, a maioria das wunderkind têm como
destino se tornarem pessoas medianas ou ficarem até mesmo abaixo de
pessoas com desenvolvimento médio. De uma grande quantidade de
wunderkind que prometem se tornar músicos, matemáticos ou pintores
reconhecidos, a maior parte, com frequência, não se transformam nem
em músicos, nem em matemáticos, nem em pintores medianos poste-
riormente. Tornam-se pessoas abaixo da média, porque a aceleração é
uma das manifestações de formas patológicas de desenvolvimento, de
desenvolvimento incorreto que não levará a nada bom. O compositor
alemão Liszt expressou essa especificidade da wunderkind num aforismo
muito irônico quando disse que ela está com seu futuro no passado, ou
seja, se antecipou muito precocemente na linha do seu futuro, mas é
uma criança sem futuro, no verdadeiro sentido da palavra.
Todavia, há crianças que também manifestam precocemente desen-
volvimento mental próprio de uma idade mais avançada. Elas se diferen-
ciam das anteriormente mencionadas por serem, essencialmente, verda-
deiros futuros talentos ou futuros gênios.
Apesar de os sintomas daquelas ou dessas formas de desenvolvimen-
to serem semelhantes, há necessidade de diferenciar a futura criança ge-
nial da futura wunderkind, ou seja, da futura flor estéril. Como fazer
isso? Os sintomas são semelhantes. A criança que você recebe apresenta
um QI (a relação entre a idade mental e a idade da certidão de nasci-
mento) igual a 1,9; ela tem 10 anos, mas demonstra ter 19. A outra
criança revela um QI equivalente. Porém, uma é a futura wunderkind e a
outra, um futuro gênio. Como diferenciar isso? Da mesma forma como
fizemos quando diferenciamos dois quadros sintomáticos semelhantes
um do outro. Procuramos os sintomas diferenciados. Dizemos assim: de
acordo com essas características, as duas crianças são parecidas. Devemos
procurar características pelas quais elas não se parecem, que nos permi-
tam diferenciá-las. Particularmente, em relação a essas crianças, existe
uma característica comum: a que tem desenvolvimento acelerado ou,
em casos extremos, a wunderkind nos impressiona com a presença de
sintomas que são característicos de idades mais avançadas; mas a criança

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 51


realmente bem-dotada, talentosa, genial nos impressiona com a presença
de sintomas que são característicos de sua própria idade, porém levados
a um desenvolvimento completo, rico, florescente, pleno. Se pudésse-
mos dizer assim: em seu desenvolvimento, a wunderkind se caracteriza
pela presença de sintomas que se adiantam às suas idades. Todavia,
a criança verdadeiramente talentosa e bem-dotada se caracteriza por
predominarem, no seu desenvolvimento, propriedades características
de sua idade, idade que é, contudo, vivenciada de forma especialmente
criativa e rica.
Vou apresentar um exemplo concreto. Recebi um menino que foi
descoberto por acaso. Ele era um matemático genial. O menino tinha
oito anos e 10 meses. Hoje, ele domina uma série de disciplinas do cam-
po da matemática avançada. Ao estudar essa criança, vimos que ela nos
impressionava não por ter nove anos e uma mente madura de um estu-
dante de 20 anos ou de um assistente de 25 ou de um mestre matemático
de 30. O menino nos impressionou por sua relação com a matemática
avançada e por demonstrar especificidades mentais próprias de qualquer
criança de nove anos. Entretanto, essas especificidades de uma mente
de nove anos foram levadas até os limites da genialidade, assim como,
precisamente, um gênio adulto se diferencia de qualquer um de nós não
por revelar, aos 30 anos, a experiência própria de um idoso de 90, mas
por levar a medidas geniais as mesmas especificidades de uma pessoa de
30 anos.
Por exemplo, esse menino de aproximadamente quatro ou cinco
anos descobriu, por ele mesmo, a forma de elevar o denominador a um
numerador comum. Ele ouviu a mãe perguntar ao pai quanto restaria se,
de 3/4, subtraísse 1/3. Raciocinou e disse qual seria o resultado e o que
restaria, apesar de ninguém ter lhe ensinado como fazer a subtração de
proporções. Quando lhe indagaram como conseguiu, verificou-se que,
inicialmente, ele descobrira sozinho a forma de chegar a um numerador
comum muito antes de realizar a operação. Caso vocês me perguntem:
se explicarmos algumas operações simples com subtração de proporções,
isso é acessível a qualquer criança nessa idade? As experiências de Leman21
e de outros demonstraram que sim. Todavia, a criança descobriu sozinha
essa forma de calcular. Quando conhecemos uma série de sintomas, nos

21 No original russo, Levan (N. da E. R.). Trata-se de um pedagogo dedicado ao trabalho com
crianças surdas da Tchecoslováquia (N. da T.).

52 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


convencemos de que diante de nós está realmente uma criança genial, ou
seja, um desenvolvimento de outro tipo, totalmente diferente do de uma
criança com o desenvolvimento acelerado.
Trouxe esses casos para mostrar que a pedologia não estuda sempre
os sintomas por si sós, mas, utilizando os estudos dos mesmos, tenta
chegar aos processos de desenvolvimento subjacentes àqueles sintomas.
Por isso, ela classifica os processos de desenvolvimento em diferentes es-
tágios, com seus aspectos isolados. Assim, o método da pedologia pode
e deve ser denominado de método clínico, ou seja, método que caminha
das manifestações específicas dos processos de desenvolvimento para o
estudo dos próprios processos de desenvolvimento, de sua essência, de
sua natureza.
A terceira especificidade que define o método pedológico é o que
poderia ser denominado de caráter genético comparativo.
Nem toda disciplina clínica se vale obrigatoriamente do modo ge-
nético de análise do seu objeto. Ao contrário, muitas disciplinas clí-
nicas usam outros modos. Mas a pedologia, que estuda o desenvolvi-
mento, dada a essência deste, não pode não empregar o modo genético
comparativo.
O que significa isso? Quando estudamos algum processo de desen-
volvimento, como podemos proceder? Podemos observar diretamente,
digamos, o percurso do desenvolvimento embrionário? Podemos obser-
var diretamente, desde o momento da concepção até o nascimento, o ca-
minho que o embrião percorre no útero materno? Claro que não. Como
podemos fazer para estudar esse caminho? Estudamos o embrião com
o método comparativo de cortes: o que houve na primeira semana, na
segunda, na terceira, na quarta etc. Ou seja, levamos em conta os pontos
isolados de desenvolvimento e os comparamos entre si. Assim, podemos
ver o que era e o que se tornou. Compomos uma imagem do ponto
de partida até onde a criança chegou, por qual motivo, em que prazo,
qual caminho percorreu para chegar de um ponto do desenvolvimento
a outro, que acontecimentos ocorreram no meio. A pedologia se vale
precisamente do mesmo método de cortes etários comparativos.
Podemos observar diretamente, in vivo, o desenvolvimento da men-
te da criança, de sua memória, o seu crescimento? Não. Podemos apenas
comparar o desenvolvimento da sua mente nesse instante e daqui a seis
meses, depois mais seis meses e mais seis meses. Veremos que, aos oito

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 53


anos, a criança possui algumas especificidades; aos 12, outras e mais ou-
tras. Fica claro o que houve com ela ao longo de meio ano: aos nove anos
e aos nove e meio. Percebo o caminho percorrido pela criança dos oito aos
12 anos. Em outras palavras, comparo o quadro de desenvolvimento em
diferentes etapas etárias. Essa comparação é o método principal com
a ajuda do qual podemos obter o nosso conhecimento sobre o caráter
e a trajetória do desenvolvimento infantil. Mas como essa comparação
não é realizada numa ordem aleatória, mas apenas numa ordem genética,
então estamos lidando com o método genético comparativo. Por exem-
plo, na clínica, utilizam também o método comparativo. Comparam,
digamos, uma doença com outra. Isso seria também o método genético
comparativo? Não. Porque, nesse caso, são comparadas entre si diferen-
tes formas de processos de enfermidades. No entanto, eu comparo não
apenas formas de desenvolvimento infantil – faço isso também –, mas
comparo principalmente a própria criança com ela mesma em dife-
rentes etapas de seu desenvolvimento. Quer dizer, o objeto da minha
comparação são as diferentes etapas de desenvolvimento infantil. É nesse
sentido que dizem que a pedologia se vale, em seus estudos, do método
genético comparativo. Ela produz como que recortes comparativos do
desenvolvimento em diferentes etapas etárias, e, contrapondo umas às
outras, utiliza a comparação como meio para representar o caminho de
desenvolvimento percorrido pela criança.
Permitam-me esclarecer isso num exemplo concreto. Sei, por exem-
plo, que, no momento do nascimento, quando a idade da certidão de
nascimento da criança é indicada com zero, ela não fala; ela é um ser
sem palavras. Aos seis anos, já tem uma fala desenvolvida. Em geral, já
domina corretamente a língua materna. Agora, quero estudar o desen-
volvimento do percurso dessa fala. Para isso, investigo o que acontece aos
três, aos cinco meses e o que acontece com um ano, um ano e meio, dois
e dois anos e meio. Então, descubro, por exemplo, que, por volta dos três
meses, se manifesta nela o gesto indicativo que tem relação com a fala.
Em seguida, aproximadamente aos seis meses ou um pouco antes, surge
o balbucio desarticulado; logo depois, aparecem as primeiras palavras,
a criança começa a falar com palavras separadas. Aproximadamente aos
dois anos surgem frases com duas palavras etc. O que isso me esclarece?
Comparando o que surgiu de novo e o que desapareceu de velho, já obte-
nho um quadro inteiro de desenvolvimento. Não constato simplesmente

54 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


como a criança passou de uma existência sem palavras para uma fala de-
senvolvida, mas conheço também o caminho que percorreu até o grito,
até o balbucio; depois, o balbucio desapareceu e surgiu algo mais, nessa
sequência, um evento dependendo do outro. Seguindo esse caminho,
com essas regularidades, a criança chegou à fala. Comparando a fala da
criança em diferentes etapas etárias, percebo, cada vez, o que desapareceu
e o que surgiu de novo, em que relação o novo está com o que havia an-
tes. Seguindo com esse método de cortes comparativos, percorrendo esse
caminho de comparação genética, obtenho a possibilidade de imaginar,
ter uma ideia do caminho de desenvolvimento da criança.
O método comparativo é empregado na pedologia ainda em outro
recorte, no mesmo sentido em que é utilizado em qualquer disciplina
clínica, mais exatamente quando não comparo a criança com ela mesma,
mas quando comparo entre si crianças com diferentes tipos de desenvol-
vimento. Então, será o método comparativo. Por exemplo, hoje, quando
apresentei o exemplo do método clínico, tentei mostrar que a criança
bem-dotada ou genial se desenvolve de modo diferente da que tem de-
senvolvimento acelerado. Comparei a criança não com ela mesma, mas
com outra. Esse também é um dos procedimentos, mas ele não contém
nada típico para a pedologia. Ele é próprio de qualquer ciência que se
vale do método clínico. Toda ciência que utiliza o método clínico e es-
tuda determinados processos que não são observados diretamente, não
são subjacentes aos sintomas, queira ou não, deve diferenciar várias for-
mas de transcurso desses processos. Por isso, a comparação desse gênero,
a aplicação do método comparativo desse gênero não é algo exclusivo,
específico da pedologia. A aplicação do método genético comparativo,
como já foi dito, em relação ao desenvolvimento etário é, para a pedolo-
gia, seu diferencial específico.
Agora, permitam-me apenas resumir o que disse. Afirmei a vocês
que toda ciência, incluindo a pedologia, tendo seu objeto específico de
estudo, deve ter também o seu método ou o seu caminho de investi-
gação. Esse caminho é definido pelas especificidades do objeto que é
estudado por uma determinada ciência. De acordo com elas, a pedologia
elabora seu método especial, que é definido, como tentei abordar, por
três momentos básicos. Primeiramente, porque é um método global
de estudo da criança. Não se deve entender por método de estudo da
unidade o estudo multilateral, nem o estudo que exclui a análise, mas

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 55


sim um tipo específico de análise, mais exatamente, a que se vale do
método de decomposição em unidades e não em elementos. Essa parte
difícil da aula de hoje será, espero, melhor compreendida após a próxima
conversa, mais concreta, em que estudaremos o meio e a hereditariedade
na pedologia, concretizando esse método de decomposição em unidades.
Uma vez que as outras ciências estudam os mesmos objetos com outros
métodos, a diferença desse tipo de análise ficará clara.
A segunda especificidade do método pedológico é que ele tem um
caráter clínico no sentido de estudo dos processos de desenvolvimento
que subjazem aos sintomas em determinadas idades.
E a terceira especificidade consiste no fato de que esse método é
genético comparativo, estuda a especificidade do desenvolvimento da
criança em diversas etapas etárias e as compara entre si, em espaços de
tempo mais estreitos, levando-nos, com isso, quem sabe, ao esclareci-
mento do caminho que a criança percorre no desenvolvimento de uma
etapa a outra.
Essas são as três especificidades básicas que definem o método de
investigação pedológica. Nos seminários e nas aulas práticas, conhecere-
mos uma série de procedimentos metodológicos de investigação. Existem
muitos: são procedimentos de investigação do desenvolvimento físico e
mental da criança, de determinadas funções e aspectos de seu desenvol-
vimento mental e da fala, bem como métodos de investigação da criança
etc. Mas isso já não é método, é metodologia, ou seja, é um determinado
sistema de procedimentos técnicos que realizam um ou outro método.
Todavia, pode-se aplicar corretamente essa metodologia apenas quando
se compreendem os princípios do próprio método a respeito do qual
falei hoje. Na pedologia, qualquer metodologia permite que assimilemos
apenas os sintomas e, depois, interpretando-os, cheguemos ao diagnósti-
co do desenvolvimento no sentido próprio dessa palavra.

Terceira aula. O estudo da hereditariedade


e do meio na pedologia
Hoje, gostaria de relatar a vocês sobre o estudo do meio e da heredita-
riedade na pedologia e espero ter a oportunidade de mostrar, de forma
mais concreta do que da última vez, em que consiste a especificidade do
método pedológico de investigação.

56 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


É provável que vocês já saibam que o desenvolvimento da criança
pode ser iminentemente determinado pela hereditariedade e pelo meio.
Isso é bastante claro e não exige comprovação. Todavia, o que apresenta
um grande interesse é esclarecer o que a pedologia estuda em relação à
hereditariedade e ao meio e como o faz.
Iniciaremos pela hereditariedade. Havia dito, da última vez, que a
pedologia não estuda as leis da hereditariedade em si mesmas, mas seu
papel no desenvolvimento, assim como, por exemplo, o clínico geral
também não estuda as leis da hereditariedade, mas, digamos, como elas
se aplicam na transmissão de determinadas doenças hereditárias. Do
mesmo modo, o pedagogo estuda de que forma inclinações hereditárias,
transmitidas segundo leis da hereditariedade, influenciam o desenvolvi-
mento do que é hereditário. Por sua vez, as leis de transmissão de carac-
terísticas hereditárias são estudadas pela genética e pela biologia geral.
Isso conduz a consequências importantes. Na pedologia, o proble-
ma da hereditariedade é apresentado de forma diferente de como é
feito na biologia geral ou na genética.
Gostaria de chamar atenção para quatro momentos que mudam
quando o problema da hereditariedade passa da genética para a pedologia.
Antes de tudo, na genética, quando queremos estudar as leis da here-
ditariedade, interessa-nos, predominantemente, a transmissão de certas
características simples; tentamos tomar certas características – por exem-
plo, a cor dos olhos – que parecem ser hereditariamente determinadas
ao máximo. Por isso, na genética, lidamos predominantemente com o
estudo dessas características simples.
Do ponto de vista da vida, do desenvolvimento da criança, essas
características são importantes? Será que podemos esperar que crianças
com olhos azuis, com olhos claros, se desenvolvam de forma diferente e
que seu destino seja totalmente distinto das crianças com olhos escuros,
com olhos de cor escura? Claro que não. É claro que essas características
não são essenciais nem importantes em si mesmas. Contudo, elas o são
do ponto de vista dos indícios de hereditariedade, pois estudando como
é transmitida a cor escura ou clara dos olhos, o geneticista estabelece as
leis segundo as quais ocorre a transmissão hereditária dessa característica
simples. Essas características, todavia, possibilitam saber muito pouco
sobre o que interessa ao pedólogo; poderemos saber pouco a respeito
de como a hereditariedade influencia o desenvolvimento. Por isso, em

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 57


grande parte das vezes, o pedólogo não lida com características simples,
digamos, a cor dos olhos ou dos cabelos, mas com as complexas, que
surgem e se alteram ao longo do desenvolvimento, porque apenas na
relação entre elas é que podemos estabelecer qual é o papel desempe-
nhado pela hereditariedade no desenvolvimento.
Em segundo lugar, o que muda quando o problema da heredita-
riedade é transferido da genética geral para a pedologia? A genética se
interessa pelo estudo de características puramente hereditárias, a cor dos
olhos, por exemplo. A ela interessam características que dependem mi-
nimamente do meio. Aliás, quanto mais frequente uma característica,
mais ela é determinada pela hereditariedade e menos é suscetível à influ-
ência de fatores não hereditários, provenientes do meio, na sua configu-
ração. Assim, a genética consegue obter conclusões mais puras que são
de seu interesse.
Ao contrário, não interessa ao pedólogo as características puramen-
te hereditárias, que independem do meio, mas aquelas cujo desenvol-
vimento sofre influência conjunta do meio e da hereditariedade. Neste
caso, exatamente no ponto em que as inclinações hereditárias e influên-
cias do meio participam da configuração de determinada característica, é
que podemos esperar encontrar o papel, o significado, o peso específico
das influências hereditárias em relação às demais. Então, ao estudar o
problema da hereditariedade, o pedólogo não lida com características
puramente hereditárias, mas, em grande parte, com as de origem híbri-
da. Esse é o segundo ponto.
Querendo ou não, em última instância, a genética não precisa estu-
dar a hereditariedade pura, mas as características diferenciadas, variantes,
que existem na espécie humana. Por exemplo, ela estuda as diferentes
cores dos olhos e por que variam entre as pessoas. Todavia, não apenas as
características que me diferenciam de outra pessoa são geneticamente de-
terminadas; também o são as comuns a mim e a outra pessoa. Por exem-
plo, tenho os olhos escuros, e isso é uma característica diferenciada, uma
variante na cor dos meus olhos que me distingue de pessoas com olhos
claros. Contudo, a própria estrutura do meu olho também é genetica-
mente determinada. Exatamente por ter que estudar, de forma pura, as
leis de transmissão dos caracteres hereditários é que a genética investiga
mais as características diferenciais, variáveis, e comparativamente menos
as características humanas hereditárias comuns.

58 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Por sua vez, o pedólogo não se interessa apenas pelas características
que variam, que diferenciam uma criança de outra, mas pelo modo
como as inclinações hereditárias presentes na pessoa conduzem as
crianças a um determinado tipo de desenvolvimento.
Por exemplo, como a genética estuda o desenvolvimento da fala?
Interessam-lhe as especificidades individuais, as variantes que diferen-
ciam a fala de uma criança da fala de outra. Para a pedologia, contudo,
o problema é esclarecer, em primeiro lugar e em termos gerais, quais
são as inclinações hereditárias das crianças e que papel desempenham,
junto com os eventos do meio, no desenvolvimento da fala. Quer dizer,
interessará à pedologia não apenas as diferenças individuais específicas,
mas também as características hereditárias comuns a todas as pessoas.
Finalmente, o último ponto. Ao estudar a hereditariedade, a gené-
tica lida normalmente com características que são pré-formadas, isto é,
formadas desde o início do desenvolvimento, estáticas, pouco alteráveis,
que não são submetidas a reestruturações bruscas ao longo do desen-
volvimento. Por quê? Porque a genética almeja estudar características
dos indícios que se manifestam nas leis hereditárias e, para isso, precisa
considerar as que são estáveis, constantes, que não se alteram ao longo da
vida. Se ela levar em conta uma característica inconstante que depende
do desenvolvimento, é claro que será difícil enxergar, de forma pura, as
leis da hereditariedade.
Por sua vez, interessa ao pedólogo a influência da hereditariedade
no desenvolvimento da criança. Ele se interessa, primeiramente, pelas
características dinâmicas que surgem ao longo do desenvolvimento da
criança, não pelas que já estão dadas e são independentes deste.
Todas as quatro diferenças na apresentação do problema da heredi-
tariedade na pedologia e na genética decorrem das atribuições diferen-
tes das duas ciências. A genética estuda as leis da hereditariedade e, por
isso, necessita de características puras, em estado puro; requer as que
são inalteráveis e estáveis ao máximo. A pedologia estuda o papel da
hereditariedade no desenvolvimento e, por isso, focaliza características
híbridas, instáveis e que se submetem a alteração no processo de desen-
volvimento da criança.
Disso decorre uma abordagem para a definição do papel ou da in-
fluência da hereditariedade no curso do desenvolvimento. Na genética,

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 59


adota-se a fórmula de Pearson,22 que admite que a hereditariedade seja
a correlação entre o grau de parentesco e o de semelhança: quanto mais
próximo o parentesco e maior a semelhança de alguma característica en-
tre duas pessoas analisadas, mais dados subjacentes existem sobre a deter-
minação hereditária de tal característica. Para a pedologia, essa fórmula é
falsa. No desenvolvimento da criança, podemos dizer que a hereditarie-
dade seja a correlação entre o grau de parentesco e o grau de semelhança?
Por exemplo, a criança se parece muito com o pai em algumas qualidades
do seu caráter, de suas convicções, de suas paixões e gostos. Vamos admi-
tir que essa semelhança seja igual a 90%; a coincidência total seria igual
a 100%. Suponhamos que essa semelhança seja de 90%. Suponhamos
também que o grau de parentesco, aqui, seja o mais próximo: 100%.
Podemos dizer, consequentemente, que essa semelhança entre o pai e o
filho é a que foi provocada necessariamente por motivos hereditários?
Parece-me que não, pois isso poderia ser devido também ao fato de que
o pai influenciou o filho não com a contribuição de fatores hereditários,
mas de fatores do meio. Apresento, a seguir, investigações simples que
conduziram a uma série de mal-entendidos. Na Alemanha, Peters23 es-
tudou as notas escolares de crianças de uma escola popular por quatro
gerações e descobriu que existe uma correlação muito alta entre as notas
boas do bisavô, do avô, do pai e do filho, e também entre as notas ruins
do bisavô, do avô, do pai e do filho. Ele concluiu que a capacidade de es-
tudar e obter boas notas na escola, de acordo com a fórmula de Pearson,
é hereditariamente determinada. Por quê? Porque a correlação entre as
notas boas e ruins é mais estreita quanto mais próximo for o parentes-
co entre os escolares estudados. Todavia, basta examinar esse estudo do
ponto de vista pedológico para verificarmos que essa conclusão é incor-
reta. Por quê? O que é preciso para obtermos boas notas na escola? É
necessária uma série de condições. Vamos admitir que os camponeses
fossem abastados. Contudo, Peters estudou principalmente camponeses
alemães de povoados rurais. Se as demais condições fossem as mesmas,
os camponeses abastados teriam melhores chances de que seus filhos se
saíssem bem na escola do que os não abastados, pobres? Claro. O mero
fato de o bisavô, o avô e o pai serem alfabetizados cria condições para que

22 Karl Pearson (Londres, 1857-1936), cientista inglês que desenvolveu métodos estatísticos de
investigação de fenômenos psíquicos.
23 W. Peters (1880-?), famoso pesquisador no campo dos rudimentos psíquicos hereditários.

60 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


o neto seja alfabetizado? Claro. Parece que, quando falamos de desen-
volvimento e de características muito complexas que não estão presentes
desde o início e que envolvem a herança e o meio, a semelhança e sua
coincidência com o grau de parentesco nada nos diz sobre a natureza
hereditária ou não hereditária dela.
Vamos à segunda investigação. Na Alemanha, Bühler24 estudou
crianças infratoras e constatou que existe uma grande correlação entre
elas e pais infratores. Há maior quantidade de infratores entre crianças
com pais que, em alguma época, cometeram infração e foram ambos
presos, ou apenas um deles, do que nos grupos em que nenhum dos
pais esteve na prisão. Novamente, Bühler tece uma conclusão segundo
a fórmula de Pearson: já que entre pais e crianças existe semelhança na
inclinação para cometer infrações e essa semelhança está intimamente
relacionada ao grau de parentesco, isso significa que as inclinações que
levam a pessoa à cadeia também são determinadas e transmitidas here-
ditariamente. Podemos, de novo, observar o equívoco dessa conclusão
quando aplicada a características complexas, híbridas e dinâmicas. Por
quê? Pelo simples fato de considerar que, se os dois pais estiveram na
prisão, isso pode contribuir para que a criança cometa uma infração.
A criança pode ficar abandonada, passar fome e o próprio exemplo dos
pais pode influenciá-la de forma degradante. Finalmente, os motivos de
caráter social que levaram o pai e a mãe a cometerem um crime podem
também levar a criança a fazê-lo. Portanto, em todos esses casos em que
se utiliza a fórmula de Pearson, chega-se a uma conclusão equivocada.
Concluindo, podemos dizer que o problema da hereditariedade se
apresenta na genética e na pedologia de modo tão diferente que a fór-
mula geral de Pearson é incorreta para aplicação a características com-
plexas estudadas pela pedologia.
Gostaria de falar a respeito de um dos principais métodos que auxi-
lia a pedologia contemporânea a estudar a hereditariedade e seu papel
no desenvolvimento da criança: o método comparativo do estudo de
gêmeos. Vocês sabem que, às vezes, nascem gêmeos. Os gêmeos são de
diferentes tipos. Provavelmente, vocês também já ouviram falar disso.
Alguns são univitelinos e outros, bivitelinos. A diferença entre eles é que,
em um caso, nascem duas crianças que se desenvolveram de um mesmo

24 Charlote Bühler (1893-1974), psicóloga austríaca que estudava os problemas da psicologia


infantil e genética.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 61


óvulo fertilizado e, no outro, desenvolveram-se duas crianças a partir de
dois óvulos diferentes fertilizados. Penso que vocês entendem qual é a
diferença que existe entre os dois tipos de gêmeos. Os univitelinos têm
carga hereditária idêntica. São os únicos seres no mundo cuja heredita-
riedade coincide absolutamente. Como se expressou um dos investiga-
dores, ela coincide assim como a dos nossos lados direito e esquerdo do
corpo. Por quê? Porque eles se desenvolvem de um mesmo óvulo fertili-
zado, ou seja, de uma mesma célula do pai e da mãe. Então, os caracteres
hereditários dos gêmeos univitelinos são absolutamente coincidentes.
Em relação aos gêmeos bivitelinos, que se desenvolvem de dois
óvulos fertilizados, a hereditariedade não é idêntica e existe diferença
entre os dois, assim como entre o irmão e a irmã ou entre dois irmãos
ou duas irmãs.
Agora, imaginem que estejamos estudando gêmeos univitelinos e
bivitelinos e comparando-os da seguinte forma. Estudo alguma caracte-
rística, digamos, o desenvolvimento da fala. Estudo isso e mais alguma
coisa nos gêmeos univitelinos. Imaginem que eu tenha quatro crianças,
um par de gêmeos univitelinos e outro de bivitelinos. Estudo as capa-
cidades musicais e a fala nos dois casos. Como consigo estabelecer a
semelhança no interior de cada par? Estudo como são desenvolvidas as
capacidades musicais num gêmeo e no outro. Se elas se desenvolverem
de modo completamente igual, digo que coincidem 100%. Se se desen-
volverem de forma que a coincidência seja apenas pela metade, digo que
a semelhança se expressa em 50%.
Estudei as capacidades musicais dos gêmeos e estabeleci que o coefi-
ciente de semelhança se expressa pela cifra 0,93 nos univitelinos e 0,67
nos bivitelinos. Se, entre os gêmeos univitelinos, houvesse uma total
coincidência, a cifra seria igual a 1 (um); caso contrário – sem nenhu-
ma coincidência –, seria igual a 0 (zero). Se estudasse 100 crianças e
obtivesse coincidência em 93 casos, então a semelhança equivaleria ao
coeficiente 0,93; nos gêmeos bivitelinos, apenas a 0,67.
Comparei a fala dos gêmeos dentro de cada par. Constatou-se que,
nos gêmeos univitelinos, a fala apresenta um coeficiente de semelhança
ainda maior, igual a 0,96, enquanto nos bivitelinos, equivale a 0,89.
Então, vamos agora analisar o que isso tudo significa. Gostaria de
perguntar a vocês: com base em que dados se pode dizer qual das duas
capacidades estudadas – as musicais ou as da fala – é a mais e qual é a

62 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


menos determinada pela hereditariedade? Raciocino da seguinte forma:
o que diferencia os gêmeos univitelinos dos bivitelinos? O que os dife-
rencia é o fato de os primeiros terem uma carga hereditária idêntica. No
que diz respeito ao meio de desenvolvimento dos gêmeos univitelinos e
dos bivitelinos, as condições intrauterinas foram iguais, os dois pares de
gêmeos se desenvolveram no útero da mãe ao mesmo tempo, o que sig-
nifica que, se a mãe se sentia física e psiquicamente do mesmo modo em
relação a cada um, a gravidez foi única. Os gêmeos nasceram e viveram
nas mesmas condições. Normalmente, exceto em alguns casos sobre os
quais falarei mais adiante, as condições de desenvolvimento de gêmeos
são iguais, assim como a vida de dois irmãos numa só família. Contudo,
nos gêmeos, são ainda mais semelhantes, porque eles nasceram na mes-
ma época e viveram normalmente juntos. Considerando, então, que há
semelhança em relação ao meio nos gêmeos bivitelinos e nos univiteli-
nos, o que diferencia um par do outro? A diferença é que a carga heredi-
tária é idêntica nos segundos e não o é nos primeiros.
Penso da seguinte forma: se uma característica minha depende da
hereditariedade, isso significa que, entre gêmeos univitelinos e bivite-
linos, deve haver grande divergência quanto à semelhança intrapar. Se
a característica depende da hereditariedade e esta é igual num caso e
diferente no outro, então, no que diz respeito à característica focalizada,
a semelhança deve ser muito maior nos gêmeos univitelinos. No âmbito
de cada par univitelino e de cada par bivitelino, as condições do meio
são mais ou menos iguais, mas, nos gêmeos univitelinos, a carga here-
ditária é idêntica, enquanto nos bivitelinos, não.
Nasceram duas crianças de um mesmo óvulo fertilizado. Se estudo
uma característica que depende maximamente da hereditariedade, então
a sua semelhança nos gêmeos univitelinos deve ser bem maior que nos
bivitelinos, já que a carga hereditária é idêntica nos primeiros. A carac-
terística que estudo depende da hereditariedade, então, nesse caso, deve
apresentar uma grande semelhança; já no par de gêmeos bivitelinos, por
não ser idêntica, deve apresentar similitude bem menor. O grau de here-
ditariedade de determinada característica será definido pelo grau de di-
vergência entre os coeficientes de semelhança dos gêmeos univitelinos
e dos bivitelinos. Quanto maior a divergência entre esses coeficientes,
ou seja, quanto maior a semelhança nos gêmeos univitelinos em relação
aos bivitelinos, mais a característica é determinada hereditariamente.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 63


Vejamos com exemplos. Imaginem uma característica A que apre-
sente um grau de semelhança de 0,30 tanto nos gêmeos univitelinos
quanto nos bivitelinos. O que isso significa? Será que o fato de a carga
hereditária ser idêntica em uns e não ser em outros teve influência? Será
que esse fato influenciou o coeficiente de semelhança? Não. Nos dois
casos é 0,30. Então, a hereditariedade não desempenhou nenhum papel.
Se não há divergência, isso significa que a característica não é hereditaria-
mente determinada. Imaginem que outra característica B apresente uma
semelhança de 0,93 nos gêmeos univitelinos e de 0,13 nos bivitelinos.
Isso, por exemplo, em relação ao timbre de voz. Essa, é claro, é uma
característica bastante determinada hereditariamente. Por quê? Porque
as condições do meio dentro de cada par são iguais, sendo a semelhança
mínima neste caso e máxima no anterior. Por que, no caso em questão,
pode existir tamanha semelhança? Porque a carga hereditária é idêntica.
Isso significa, então, que, quanto maior a divergência no coeficiente de
semelhança entre os gêmeos univitelinos (GU) e os gêmeos bivitelinos
(GB), mais a característica é determinada hereditariamente.
Agora, se retornarmos aos nossos exemplos, poderemos ver o que é
mais determinado hereditariamente: as capacidades musicais ou o de-
senvolvimento da fala? As capacidades musicais, pois a diferença entre
os gêmeos é de 0,93 e 0,67 nesse caso, ao passo que é de 0,96 e 0,89 no
caso da fala. Isso significa que o coeficiente absoluto de semelhança não é
importante em si mesmo, pois o que importa é o quanto esses coeficien-
tes de semelhança divergem entre os dois pares de gêmeos. Por exemplo,
poderia considerar uma característica que apresentasse coeficiente igual a
0,17 nos GU e a 0,20 nos GB. Essa característica seria mais determinada
hereditariamente do que a fala, que é igual a 0,96 nos GU. O importante
é a divergência.
Caso isso esteja claro, então, imaginem o caráter do método aplicado
na pedologia em geral e que é fundamental para o estudo da hereditarie-
dade e de seu papel no desenvolvimento. Tomam-se gêmeos univitelinos
e bivitelinos. Para simplificar, separei um par de cada. Contudo, em fun-
ção da estatística, posso separar, para conferência, não apenas dois pares,
mas 100, algumas centenas de pares de uns e de outros.
Para que considerar muitos pares? Para eliminar características ca-
suais. Levando-se em conta o meio, há gêmeos que não são educados
igualmente. Um dos casos foi publicado em Moscou. Num estudo com

64 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


gêmeos, quando a mãe informou sobre a época em que eram bebês, dis-
se que viviam em condições completamente iguais: eram alimentados e
banhados do mesmo modo e recebiam o mesmo cuidado. Contudo, no
decorrer da conversa, verificou-se que ela sempre alimentava um antes
do outro; dava banho primeiro num e depois, na água suja, no outro.
Então, as condições higiênicas e de alimentação, propriamente dizendo,
não foram iguais. Essa divergência pode ocorrer porque um gêmeo é
considerado mais esperto, mais querido, e o outro simplesmente é sub-
metido a condições piores. Por isso, para igualar as condições, separa-se
uma amostra representativa maior tanto de GU quanto de GB. Essa
amostra permite obter dados mais seguros e estatisticamente fidedignos.
Quando utilizamos essa amostra, consideramos também algumas carac-
terísticas complexas, digamos, o desenvolvimento da fala, das capaci-
dades musicais, o desenvolvimento mental da criança, esclarecendo-se
o coeficiente de semelhança nos GU e nos GB. Assim, evidenciam-se
as características que apresentam maior ou menor divergência. Quanto
menor a divergência, mantidas as demais condições, em relação à carac-
terística investigada nos dois casos, menos ela é determinada hereditaria-
mente. Quanto maior a divergência, mantendo-se as outras condições
iguais, mais ela é determinada hereditariamente. Então, por meio do
estudo de características complexas nos gêmeos univitelinos e bivite-
linos, temos a possibilidade de estudar a influência da hereditariedade
na formação e no desenvolvimento de características complexas e di-
nâmicas que são determinadas não apenas pela hereditariedade, mas
também pelo meio.
Agora, gostaria de relatar brevemente um estudo sobre o papel da
hereditariedade no desenvolvimento em que foi utilizado o método de
estudo comparativo de gêmeos univitelinos e bivitelinos.
Primeiramente, se considerarmos características do desenvolvimento
concernentes ao psiquismo da criança, ou seja, características complexas
que surgem no desenvolvimento e que são determinadas tanto pela he-
reditariedade quanto pelos fatores do meio, e outras características que
guardam relação com o desenvolvimento da personalidade consciente do
ser humano, evidencia-se que, entre as funções elementares, mais simples,
mais primitivas, a divergência é maior do que nas funções superiores. Por
exemplo, se consideramos o aspecto motor da criança e estudamos as
funções motoras e seu desenvolvimento nos gêmeos univitelinos e nos

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 65


bivitelinos, vemos que, quanto mais elementar é a função estudada, mais
próxima está, por sua natureza, do ato motor mais elementar, bem como
maior será a divergência entre os dois tipos de gêmeos. Se a divergência
é maior, consequentemente, essa função é mais determinada hereditaria-
mente. Se considerarmos o que se admite chamar, na psicologia, de atos
psicomotores, ou seja, as formas superiores de movimento – por exem-
plo, as formas voluntárias de movimento, os movimentos que são, de um
modo ou de outro, relacionados ao psiquismo, à consciência da pessoa e
estão ligados aos centros superiores do cérebro –, a divergência será me-
nor. Ou seja, a função se mostra menos determinada hereditariamente.
Então, com base nas investigações, a primeira lei que delas decorre
mostra que, mantendo-se as demais condições iguais (caso sejam esco-
lhidas funções do mesmo gênero), quanto mais elementar é a função,
maior a divergência dos coeficientes de semelhança entre os GU e os
GB. Mais uma vez, quanto mais alto o nível da função, mantendo-
-se as mesmas as demais condições (no caso de escolha de funções do
mesmo gênero), menor é a divergência. Por isso, sob a forma de uma lei
específica, pode-se dizer que, mantendo-se as demais condições iguais,
as funções elementares, que parecem estar bem no início do desenvol-
vimento e constituem condições para o desenvolvimento posterior, são
mais determinadas hereditariamente do que as funções mais complexas
de mesmo gênero, de nível superior, que surgem relativamente tarde no
desenvolvimento.
A segunda lei esclarece um pouco essa lei anterior. Imaginem que te-
nhamos uma série de funções, de características A, B, C, D, H etc. Nesse
caso, não anotarei separadamente as observações sobre os dois tipos de
gêmeos, mas apenas as divergências existentes entre eles. Quanto maior
a divergência, maior a determinação hereditária.
Suponhamos que, nesse caso, iniciemos pela divergência máxima. A
divergência maior é igual a 0,60. Se considerarmos uma série de funções,
jamais será observada uma queda constante dessa divergência: função A
= 0,60; B = 0,55; C = 0,50; D = 0,45; H = 0,40; K = 0,35; L = 0,30 etc.
Durante muito tempo, os pesquisadores procuraram essa escala, no topo
da qual estariam as funções determinadas hereditariamente ao máximo;
no degrau lá embaixo, as que seriam minimamente determinadas e, en-
tre elas, dispostas regularmente, as demais funções, numa ordem decres-
cente de sua determinação hereditária. Supunha-se que isso poderia ser

66 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


encontrado. No entanto, verificou-se que nunca poderíamos obter essa
série. Se considerarmos uma série de funções que abrangem, mais ou me-
nos em sua totalidade, as manifestações humanas no desenvolvimento da
criança, sempre aparecerão rupturas bruscas que separam um grupo de
funções de outro. Da mesma forma, entre um grupo e outro de funções
não apenas não existe uma passagem tão constante, mas parece haver um
salto no interior de um mesmo grupo. Se a divergência num grupo se
expressa por dezenas como 60 e 45, no outro ela o faz por unidades até o
limite de 10. Não existe, consequentemente, esse movimento constante,
gradativo, decrescente de determinação hereditária em toda a série de
funções. Quando estudamos todas elas juntas, encontramos uma ruptu-
ra que divide bruscamente a série em duas partes.
Quando perguntamos como são esses dois grupos de funções, ve-
rifica-se que, em um deles, a divergência se expressa de forma brusca e
apresenta números grandes e consideráveis, pois estamos lidando com
funções elementares, inferiores, que, como podemos supor, são predo-
minantemente produto da evolução biológica que nos aproximou da
constituição do tipo humano. Já no segundo grupo, que se segue à rup-
tura, à linha em que a divergência não se manifesta por números grandes
e consideráveis, mas incomensuravelmente menores, estamos falando a
respeito de funções superiores, especificamente humanas e que, como
podemos supor com base nas pesquisas de que dispomos, são produto
do desenvolvimento histórico do homem. Ou seja, são aquisições que
o homem fez ao longo de seu desenvolvimento no processo histórico.
Consequentemente, essa ruptura ou divisão brusca mostra que, no de-
senvolvimento ontogenético, as diferentes funções não estão apenas
numa relação quantitativa diferente com a hereditariedade, sendo umas
mais e outras menos relacionadas. No que se refere à hereditariedade, o
grupo de funções superiores está qualitativamente em outra relação que
não a das funções inferiores. Isso se expressa no fato de não haver uma
passagem gradual, mas uma ruptura, já que as próprias escalas dessa di-
vergência são diferentes para diferentes grupos de funções. No âmbito
de cada grupo de funções, existem divergências maiores e menores, mas,
entre os dois grupos, há uma ruptura e não uma passagem gradual. Isso
mostra que as funções superiores, produto do desenvolvimento histó-
rico do homem, encontram-se numa outra relação com a hereditarie-
dade que não a das funções elementares, predominantemente produto

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 67


do processo de desenvolvimento evolutivo do homem. Dessas duas leis
que relatei até agora, podemos e devemos extrair conclusões que têm um
grande significado teórico e prático.
Que conclusão podemos extrair da primeira lei? Se vocês se lem-
bram, defini a primeira lei de forma a afirmar que a divergência entre as
funções superiores é menor do que entre as elementares, mantendo-se
iguais as demais condições. Por isso, pode-se concluir que quanto mais
longo o caminho do desenvolvimento de alguma função (o que signi-
fica função superior? É a que surge mais tarde e percorre um caminho
mais longo no seu desenvolvimento), menor a influência hereditária.
Ela não se manifesta tão diretamente. Quanto mais curto o caminho
de desenvolvimento de alguma função, mais diretamente se manifesta
determinada influência da hereditariedade. Vamos considerar a cor dos
olhos. Essa característica do homem percorrerá um caminho longo no
seu desenvolvimento? Insignificante, porque ela é muito determinada
hereditariamente. No caso das funções superiores humanas, o caráter, as
convicções éticas, a visão de mundo etc., maior é o caminho percorrido
e menor a determinação hereditária direta, mantendo-se as demais con-
dições iguais. Isso significa que o desenvolvimento não realiza, modifica
ou simplesmente combina inclinações hereditárias. Ele acrescenta algo
novo a essas inclinações. Como se diz, ele mediará essa realização de
inclinações hereditárias e, no seu processo, surgirá algo novo, que re-
fratará uma ou outra influência hereditária.
Da segunda lei – que afirma que as funções se dividem bruscamente
em duas partes, não havendo gradação, passagem gradativa da determi-
nação hereditária entre elas – podemos extrair a seguinte conclusão: as
inclinações hereditárias guardam uma relação com as funções inferiores
totalmente diferente do que guardam com as superiores. Se, no caso das
funções inferiores, essas inclinações são mais ou menos diretamente de-
terminantes de seu desenvolvimento, no das superiores, é mais provável
que desempenhem papel de condições e não de momentos determinan-
tes de seu desenvolvimento. A segunda lei diz que não há uma passagem
gradativa. Então, pode-se concluir que algumas funções não são simples-
mente menos determinadas do que outras. Isso pode ser dito a respeito
de quaisquer funções inferiores: elas mantêm uma determinada relação
com a hereditariedade e as inclinações hereditárias se encontram, de
modo específico, numa relação diferente com a vida e com as funções

68 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


superiores. Ainda, em que consiste essa outra relação? Quanto às funções
inferiores, as inclinações hereditárias influenciam de modo mais ou me-
nos direto o caráter e o destino da própria função; porém, em relação às
superiores, tais inclinações são, provavelmente, condições cuja presen-
ça é necessária para que essas funções possam se desenvolver, já que, no
seu ponto de origem, nada existe além dessa condição.
Contudo, a lei mais complexa, difícil, importante e interessante é
a terceira. Teremos feito o principal se a assimilarmos. Falarei sobre ela
apresentando um exemplo concreto, e depois de uma forma mais geral.
Vamos tomar um exemplo simples. Imaginem que eu estude uma ca-
racterística nos dois tipos de gêmeos e encontre uma divergência entre
os coeficientes de semelhança igual a 0,37. Isso significa que essa carac-
terística é, num certo grau, hereditariamente determinada, pois a diver-
gência é grande. Mas eis que se apresenta a questão: se encontrei isso em
crianças de três anos, o que acontecerá quando eu estudar essas mesmas
crianças aos sete e aos 13 anos? Verifica-se que não será mantida a mesma
divergência. Nas crianças de sete anos, ela será de 0,29, e nas de 13, de
0,27. Então, essa divergência não é constante, não é permanente, não
fica inalterada com a idade, muda com a idade. Eis o fato.
Agora, perguntamos: o que isso significa? À primeira vista, pode pa-
recer incompreensível. Convencionamos que a divergência mede a de-
terminação hereditária. Em um caso, a divergência em relação à mesma
característica é maior; no outro, menor. Isso significa que a determinação
hereditária da característica mudou. Mas a hereditariedade da criança
poderia mudar dos três aos 13 anos? Claro que não. A hereditariedade
não muda dos três aos 13 anos. O que aconteceu, então? O papel da
hereditariedade no desenvolvimento mudou; o peso específico da influ-
ência hereditária se alterou.
Ficando claro isso, é possível formular a lei que nos interessa de for-
ma geral. Podemos dizer assim: o coeficiente de semelhança, no âmbito
dos GU e dos GB, em relação à mesma característica não é constante
nem permanente ao longo do desenvolvimento etário da criança. Ele
se altera na passagem de uma idade a outra e, como consequência, se
altera também a divergência do coeficiente entre os GU e os GB. Como
a divergência pode se alterar? Ela é uma diferença e pode se modificar
apenas se forem alterados o subtraendo ou o diminuendo. Isso significa
que, se modificamos o diminuendo ou o subtraendo, consequentemente

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 69


se altera a diferença. Que conclusão podemos extrair dessa lei? Que a
hereditariedade não se modifica ao longo do desenvolvimento etário,
mas o peso específico de sua influência pode sofrer alteração se, de fato,
como falamos desde o início, surge algo novo que não estava pronta-
mente contido nas inclinações hereditárias.
Então, digamos, no período de desenvolvimento em que surge o
novo, o papel da influência hereditária pode ser relativamente menor e
seu peso específico pode se tornar menor. Consequentemente, alteram-
-se, de modo constante, o peso específico e o significado relativo das in-
fluências hereditárias. A cor dos olhos é determinada pela hereditarieda-
de. Digamos que, por força dessa lei, eu tenha recebido a cor escura dos
olhos de um dos meus antepassados. Essa cor mudará ao longo do meu
desenvolvimento etário? Não. Contudo, verifica-se também que carac-
terísticas hereditárias imutáveis alteram seu peso específico ao longo do
desenvolvimento das funções superiores. No caso em que a característica
se desenvolve, surge necessariamente algo novo nela, e, à medida que
esse novo se desenvolve, o peso específico das influências hereditárias
se torna ou mais forte e passa para o primeiro plano ou mais fraco e
passa para o segundo plano. O que acabei de mostrar (um exemplo de
redução das influências hereditárias) é a divergência no desenvolvimento
de um dos aspectos da fala. Todavia, não pensem que é sempre assim:
nos anos iniciais, essa divergência é máxima; menor nos intermediários
e mínima nas idades mais avançadas. Às vezes, lidamos com fenômenos
opostos, em que a divergência é muito insignificante na infância e muito
significante aos 1[?]25 anos. Em relação a algumas especificidades da
constituição psicossexual, pode-se dizer que a divergência entre GU e
GB se mostra mínima exatamente na infância. No período da puberda-
de, quando todo o sistema psicossexual da pessoa é desdobrado e atin-
ge o nível de amadurecimento, essas influências hereditárias são fortes.
Dessa forma, o seu peso específico cai ou cresce com a idade, mas pode
cair antes e crescer depois e vice-versa. Consequentemente, não há uma
regra única para todas as funções que mostre que, com a idade, o peso
específico cresce ou cai necessariamente.
Finalmente, eis o quarto pressuposto ou o quarto resultado obtido
no processo de investigação de gêmeos e que também caracteriza o papel
da hereditariedade no desenvolvimento da criança. Com as pesquisas,

25 No manuscrito está desse modo (N. da E. R.).

70 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


esclareceu-se que não há e não pode haver uma definição sumária das
influências hereditárias no curso do desenvolvimento que tenha a mes-
ma relação com todos os aspectos deste e com todas as idades. Vimos
que algumas características têm um peso específico do ponto de vista de
sua determinação hereditária, mas outras têm um peso diferente. Alguns
aspectos do desenvolvimento estão mais diretamente relacionados à he-
reditariedade e outros, menos. Numa certa idade, as influências heredi-
tárias, mesmo que em relação a uma característica apenas, se mostram de
modo mais direto e, em outra idade, de forma não tão direta. Por isso,
não há uma fórmula geral, uma regra comum que possa expressar e de-
terminar sumariamente o papel das influências hereditárias no curso do
desenvolvimento. Essas influências hereditárias são rigidamente diferen-
ciadas de acordo com certos aspectos do desenvolvimento ou com certas
idades de desenvolvimento de cada um deles.
Eis por que, ao lidar com características complexas, híbridas, dinâ-
micas e mutáveis, o pedólogo não pode separar diferentes aspectos do
desenvolvimento – os que são determinados hereditariamente e os que
são determinados pelo meio. O problema se mostra bem mais comple-
xo e exige um estudo diferenciado, em diferentes degraus etários, das
influências hereditárias no curso do desenvolvimento para cada um dos
seus aspectos isoladamente e para o mesmo aspecto separadamente.
Resta-me dizer, muito brevemente, a respeito dos dois últimos pos-
tulados que decorrem da investigação com gêmeos e que, junto com os
outros que apresentei até o momento, esgotam o fundamental, o mais
importante: o conteúdo do estudo geral do papel da hereditariedade no
desenvolvimento da criança.
O primeiro postulado mostra que, quando se trata de herança de
características humanas comuns, ou seja, do mesmo gênero ou seme-
lhantes, a divergência nos coeficientes de semelhança entre GU e GB
é menor do que quando se trata da herança de características variáveis,
mantendo-se as demais condições iguais. Por exemplo, a característi-
ca do meu olho. Penso que é fácil compreender que, se eu enumerar
todas as características do meu olho, será possível observar as variáveis
que, em outras pessoas, possam ser diferentes das minhas e também ser
comuns a qualquer olho humano. Então, mantendo-se as mesmas as
demais condições, se considerarmos características análogas, veremos
que a divergência será menor ou maior ao se estudar, respectivamente,

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 71


o desenvolvimento de aspectos humanos comuns ou as características
variáveis, isto é, as que diferem de pessoa para pessoa. Como veremos
mais à frente, essa lei tem uma grande aplicação no estudo do desenvol-
vimento físico da criança, assim como no das leis gerais do crescimento e
das regularidades específicas e constitucionais que definem o crescimen-
to de crianças com diferentes tipos de constituição.
Finalmente, o último postulado é frequentemente apresentado,
em sua essência, como se fosse uma síntese do que dissemos antes.
Analisamos a divergência nos coeficientes como uma característica ou
uma medida da determinação hereditária desta. Podemos perceber que
essa divergência nunca é igual a zero e, tendo em vista os aspectos que
se desenvolvem, nunca é igual a 100. O que isso significa? Caso a diver-
gência fosse igual a zero, isso significaria que a hereditariedade não de-
sempenharia papel algum no desenvolvimento daquela característica. Se
a divergência for igual a 100, isso significa que apenas a hereditariedade
tem esse significado. Caso considerássemos as características simples com
as quais opera a genética, digamos, a cor dos olhos, veríamos que o coe-
ficiente de divergência seria igual a zero ou a 100. Todavia, se levarmos
em conta características com as quais opera a pedologia – as relacionadas
ao desenvolvimento e que têm uma história de desenvolvimento –, ve-
remos que a divergência nunca será igual a zero ou a 100. Isso significa
que sempre há divergência e, se ela existe, por menor que seja, indepen-
dentemente da função superior que estejamos estudando, então, lá na
ponta, o componente de hereditariedade participa do desenvolvimento
por menor que seja seu peso específico relativo nesse caso concreto.
O papel desse componente nunca se reduz a zero absoluto e, da mes-
ma forma, nunca a divergência é igual a 100. Isto é, um aspecto que
se desenvolve nunca é determinado apenas como uma característica
puramente hereditária, ou seja, o meio também participa do desen-
volvimento. Logo, o desenvolvimento contém sempre, numa unidade,
aspectos hereditários e do meio. É verdade que essa unidade é variada.
Vimos que o papel e o peso específico das influências hereditárias podem
ser maiores em relação a algumas funções do que em relação a outras, e
menor numa determinada idade do que em outra. Consequentemente,
essa unidade é mutável. Contudo, por menor que seja o peso específico
da hereditariedade, ele nunca cai a zero, e seja qual for o peso específico
do meio no desenvolvimento da criança, ele também nunca cairá a zero,

72 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


tornando a divergência igual a 100. Logo, os componentes das influên-
cias hereditárias e das influências do meio participam diretamente das
características que se desenvolvem. Ou seja, desenvolvimento é sempre
um processo dinâmico, uma unidade de influências hereditárias e do
meio. Contudo, essa unidade não é constante, não é permanente, não
é algo dado para todo o sempre e sumariamente determinado. É uma
unidade mutável, diferenciada, constituída de diversas formas e requer,
a cada vez, um estudo concreto. Nunca se observou algum aspecto do
desenvolvimento que fluísse como se fosse determinado apenas pela
herança ou pelo meio, ou seja, o desenvolvimento não consiste de uma
combinação mecânica de dois fatores, de duas forças externas, do meio
e da hereditariedade, que se combinam e o movem para frente.
Da próxima vez, vamos nos deter no estudo do meio. Esclareceremos
também como, atualmente, foram identificadas as diferenças entre o es-
tudo da hereditariedade na pedologia e na genética, bem como eluci-
daremos a diferença entre o estudo do meio na pedologia e na higiene.
Daí, então, poderemos formular algumas conclusões concretas sobre a
nossa conversa anterior – sobre a natureza do método na investigação
pedológica.

Quarta aula. O problema do meio na pedologia


Hoje, o tema de nossa aula é o problema do meio na pedologia. Ele
se apresenta da mesma forma que o problema da hereditariedade, con-
forme vimos, quando falamos que a pedologia estuda a hereditariedade
sob seu ponto de vista específico e não se interessa pelas leis dela em si
mesmas, mas pelo papel que desempenha no desenvolvimento da crian-
ça. O mesmo pode ser dito a respeito do meio. A pedologia não estuda
o meio em si mesmo; isso é objeto de outras ciências. Entre as ciências
mais próximas da pedologia, poderíamos indicar a higiene como a que
predominantemente estuda o meio do ponto de vista de sua relação com
o adoecimento e a preservação da saúde.
Do mesmo modo que em relação à hereditariedade, o pedólogo não
estuda o meio e as leis de sua estruturação, mas o seu papel e o significa-
do de sua participação e influência no desenvolvimento da criança. Por
isso, precisamente como no problema da hereditariedade, também aqui
devemos, antes de tudo, esclarecer algumas leis básicas e conceitos que
caracterizam esse significado ou papel.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 73


Em primeiro lugar, gostaria de apresentar o que, brevemente, já
destacamos. Precisamente, para uma compreensão correta do papel do
meio no desenvolvimento da criança, é necessário investigá-lo não com
parâmetros absolutos, mas relativos, se for possível assim expressar. O
meio não deve ser estudado como um ambiente de desenvolvimento
que, por força de conter determinadas qualidades ou características, já
define pura e objetivamente o desenvolvimento da criança. É sempre
necessário abordá-lo do ponto de vista da relação existente entre ele e a
criança numa determinada etapa de desenvolvimento. Isso pode ser afir-
mado como uma regra geral que se repete com frequência na pedologia:
é necessário passar dos indicadores absolutos do meio para os relativos,
ou seja, para esses mesmos indicadores na sua relação com a criança.
Duas ideias nos permitem defender esse pensamento. A primeira é
que o papel de quaisquer elementos do meio é distinto em diferentes
degraus etários. Por exemplo: a fala das pessoas que estão ao redor da
criança pode ser a mesma quando ela tem seis meses, um ano e seis meses
ou três anos e seis meses. Ou seja, a quantidade de palavras que ela ouve
e o caráter da fala, do vocabulário, da erudição, considerando o contexto
cultural, podem permanecer os mesmos. Contudo, qualquer um enten-
de que esse fator, que não mudou ao longo do desenvolvimento, tem um
significado diferente quando a criança compreende a fala, quando não
a compreende de forma alguma e quando se encontra entre essas duas
fases, começando a compreendê-la.
Dessa forma, o papel do meio no desenvolvimento pode ser eviden-
ciado apenas quando levamos em consideração a relação entre a criança
e o meio.
Antes de tudo, o meio, no sentido direto da palavra, se modifica
para a criança a cada degrau etário. Alguns autores dizem que o de-
senvolvimento da criança consiste na ampliação gradativa do seu meio.
O útero da mãe é o meio da criança que ainda não nasceu; após vir ao
mundo, também dispõe, como meio próximo, de um ambiente muito
pequeno. Como se sabe, o mundo distante não existe para o recém-nas-
cido. Para essa criança, existe apenas o mundo que se relaciona direta-
mente com ela, ou seja, o que se articula em torno de um espaço estreito,
formado por fenômenos e objetos ligados ao seu corpo. Aos poucos,
o mundo distante começa a se aproximar. Contudo, no início, trata-se
também de um mundo muito pequeno: o mundo do quarto, do pátio

74 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


mais próximo, da rua. Quando começa a andar, esse mundo se expande
e, cada vez mais, novas relações entre a criança e as pessoas que a circun-
dam se tornam possíveis. Posteriormente, o meio se modifica por força
da educação, que o torna específico para a criança a cada etapa etária: na
primeira infância, a creche; na idade pré-escolar, o jardim de infância;
na idade escolar, a escola. Cada idade tem seu próprio meio, organizado
para a criança de tal maneira que, quando tomado no sentido de algo
puramente externo, se modifica na passagem de uma idade para outra.
Todavia, isso é pouco. Até mesmo quando o meio se mantém pouco
alterado, o mero fato de a criança mudar, no processo de desenvolvi-
mento, faz com que se modifiquem o papel e o significado dos momen-
tos do meio que parecem permanecer inalterados. Um evento que tem
determinado significado desempenha um papel numa idade específica.
Todavia, dois anos depois, começa a ter outro significado e a desempe-
nhar outro papel por força de mudanças da criança. Ou seja, a relação da
criança com aqueles eventos do meio mudou.
Valendo-nos de exemplos que vimos quando analisamos crianças,
podemos dizer, com mais precisão ou exatidão, que os momentos essen-
ciais para definição da influência do meio no desenvolvimento psicoló-
gico, no desenvolvimento da personalidade consciente, são a vivência.
A vivência de uma situação qualquer, de um componente qualquer do
meio define como será a influência dessa situação ou meio sobre a crian-
ça. Ou seja, não é esse ou aquele momento, tomado independentemente
da criança, que pode determinar sua influência no desenvolvimento pos-
terior, mas o momento refratado através da vivência da criança.
Tomemos um exemplo simples dentre os casos de nossa clínica.
Estamos lidando com três crianças da mesma família. O ambiente ex-
terno a essa família é igual para as três crianças. Em essência, é uma
situação muito simples. A mãe bebia e, pelo que se viu, sofria de trans-
tornos nervosos e psíquicos por causa disso. As crianças se deparavam
com uma situação extremamente difícil. Certa vez, em um momento de
embriaguez ou por ocasião de uma crise decorrente do transtorno, a mãe
tentou atirar um filho pela janela, espancou e derrubou as crianças no
chão. Numa palavra, as crianças viviam num ambiente de pavor e terror.
Trouxeram-nos as três crianças. Cada uma delas apresentava um
quadro completamente específico de distúrbio de desenvolvimento na
mesma situação. O mesmo ambiente apresentava quadros completa-
mente diferentes nas três crianças.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 75


Na criança menor, tínhamos um quadro que se apresenta com mais
frequência junto a crianças pequenas em circunstâncias como essa. Ela
reagia a isso com uma série de sintomas neuróticos, isto é, defensivos.
Estava oprimida pelo pavor em relação ao que estava acontecendo. Como
resultado, desenvolveu medos, enurese, gagueira; às vezes, simplesmente
silenciava ou perdia a voz. Em outras palavras, ela reagia à situação com
total abatimento e indefensibilidade.
Na segunda criança, desenvolveu-se um estado de extremo sofri-
mento (vimos um exemplo quando estudamos uma de nossas crianças).
Exatamente, como se diz, um estado de conflito interno que é frequen-
temente encontrado em situações semelhantes, quando surge uma rela-
ção afetiva contraditória da criança com a mãe – lembrem-se do que já
falamos –, uma relação ambivalente. Por um lado, a mãe era, para ela,
um objeto de muita ligação; por outro, era fonte de medo, das mais pe-
sadas impressões que sentia. Autores alemães denominam esse complexo
afetivo que a criança sente de Mutter-Hexkomplex, ou seja, “complexo da
mãe bruxa”, que é quando se unem o amor pela mãe e o terror diante da
bruxa. O segundo filho foi trazido com um conflito evidente, com uma
contradição interna decorrente do choque da relação positiva e negativa
com a mãe; por um lado, uma relação afetiva forte e, por outro, um ódio
terrível dela, ou seja, um comportamento terrivelmente contraditório.
Ele queria voltar prontamente para sua casa e, ao mesmo tempo, expres-
sava pavor quando falavam desse retorno.
Finalmente, a terceira criança, o filho mais velho, à primeira vista,
apresentou um quadro inesperado. Acabamos percebendo que se tratava
de uma criança de inteligência curta, bastante tímida, mas que, ao mes-
mo tempo, apresentava traços de alguma maturidade, seriedade e preo-
cupações precoces. Esse filho entendia a situação, entendia que sua mãe
era doente e sentia pena dela; percebia que as crianças mais novas esta-
vam em perigo quando a mãe se enfurecia. Coube-lhe um papel específi-
co a desempenhar. Ele deveria levar a mãe para se deitar, cuidar para que
ela não fizesse nada com os pequenos e consolá-los. Ele simplesmente se
tornou o chefe da família, o único que deveria cuidar dos demais. Como
resultado, o curso de seu desenvolvimento mudou bruscamente. Ele não
era um garoto de vivacidade correspondente à sua idade, com interesses
reais e simples, em vigorosa atividade. Tratava-se de uma criança que se
alterara acentuadamente durante seu desenvolvimento, uma criança de
outro tipo.

76 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Quando se toma esse exemplo – e de exemplos assim está repleta
a experiência de um pesquisador que se ocupa de material concreto –,
vê-se facilmente que uma mesma situação do meio, um mesmo aconteci-
mento que atinge diferentes pessoas que se encontram em etapas etárias
distintas tem uma influência distinta sobre o desenvolvimento de cada
uma delas.
O que determina que as condições do meio exerçam três influências
diferentes em três crianças distintas? Isso se explica pelo fato de que a re-
lação de cada uma delas com os acontecimentos do meio é diferente. Ou,
poderíamos dizer, cada uma das crianças vivenciou a situação de forma
diferente. Uma a vivenciou sem lhe atribuir um sentido, sem compreen-
der o pavor que a introduzia numa situação de indefensibilidade. A outra
a vivenciou de forma consciente como um conflito agudo entre uma
relação afetiva intensa e sentimentos de medo, ódio e raiva. A terceira,
até certo ponto, como um menino de 10 ou 11 anos poderia vivenciá-la,
como uma desgraça que se abateu sobre a família e que exigia deixar tudo
de lado para, de alguma forma, tentar suavizá-la, ajudar a mãe doente e
as crianças. Então, a influência que a situação exerceu sobre o desenvol-
vimento das três crianças foi diferente em função do aparecimento, nas
mesmas, de três vivências distintas acerca da mesma situação.
Com a ajuda desse exemplo, gostaria de esclarecer a ideia de que, de
um modo diferente de outras ciências, se a pedologia não estuda o meio
enquanto tal, independentemente da criança, mas o seu papel e influên-
cia no curso do desenvolvimento, então ela deveria encontrar o prisma
que refrata a influência do meio sobre a criança. Ou seja, ela deveria
saber encontrar a relação existente entre a criança e o meio, a vivência
da criança, como ela toma consciência, atribui sentido e se relaciona afe-
tivamente com um determinado acontecimento. Digamos que esse seja
o “prisma” que define o papel e a influência do meio no desenvolvimento
do caráter da criança, no seu desenvolvimento psicológico e assim por
diante.
Em função desse exemplo, gostaria de chamar atenção para apenas
mais um ponto. Se se recordam, quando falamos sobre o método da
nossa ciência, tentei defender a ideia de que, na ciência, a análise que
decompõe em elementos deve ser substituída pela análise que articula
unidades num todo complexo. Além disso, dissemos que, diferentemen-
te dos elementos, as unidades representam os produtos da análise que

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 77


não perdem as características inerentes ao todo e, de um modo simples,
conservam as características deste.
Hoje, valendo-me de um exemplo concreto de estudo do meio, gos-
taria de mostrar algumas dessas unidades com que a pesquisa psicológica
opera. A vivência pode ser um exemplo. Vivência é uma unidade na
qual se representa, de modo indivisível, por um lado, o meio, o que se
vivencia – a vivência está sempre relacionada a algo que está fora da pes-
soa –, e, por outro lado, como eu vivencio isso. Ou seja, as especificida-
des da personalidade e do meio estão representadas na vivência: o que foi
selecionado do meio, os momentos que têm relação com determinada
personalidade e foram selecionados desta, os traços do caráter, os traços
constitutivos que têm relação com certo acontecimento. Dessa forma,
sempre lidamos com uma unidade indivisível das particularidades da
personalidade e das particularidades da situação que está representada
na vivência. Por isso, metodologicamente, quando estudamos o papel do
meio no desenvolvimento da criança, é vantajoso fazer a análise do pon-
to de vista de suas vivências porque, como já disse, nelas são levadas em
conta as particularidades pessoais que participaram da definição da re-
lação da criança com uma dada situação. Por exemplo, será que todas as
minhas particularidades pessoais constitutivas e dos mais diversos tipos
participam inteira e igualmente? Claro que não. Numa determinada si-
tuação, algumas de minhas particularidades constitutivas desempenham
papel principal; em outra, desempenham esse papel outras especificida-
des que, na situação anterior, sequer poderiam se manifestar. Para nós, é
importante saber não apenas quais são as particularidades constitutivas
da criança, mas quais delas, em dada situação, desempenharam papel
decisivo na definição da relação da criança com determinada situação,
enquanto em situação distinta, outras o fizeram.
Assim, a vivência auxilia a destacar as peculiaridades que desem-
penharam um papel na definição da relação com uma dada situação.
Imaginem que, pela minha constituição, eu seja dotado de certas parti-
cularidades. É claro que vou vivenciar uma situação de um determinado
modo. Contudo, se sou dotado de outras especificidades, certamente vou
vivenciá-la de outra maneira. Por isso falam a respeito das peculiaridades
constitutivas das pessoas, diferenciando-as em agitadas, comunicativas,
animadas, ativas ou mais emotivas, indolentes e obtusas. É claro que, se
lidamos com duas pessoas que têm características constitutivas opostas,

78 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


um mesmo acontecimento provocará vivências distintas em cada uma.
Consequentemente, de modo geral, as especificidades constitutivas da
pessoa ou da criança parecem ser mobilizadas por uma vivência na qual
se precipitam e se cristalizam. Ao mesmo tempo, a vivência não represen-
ta apenas a conjugação dessas particularidades pessoais da criança, que,
por sua vez, definem como esta vivenciou determinado acontecimento,
mas também os diversos acontecimentos vivenciados de diferentes ma-
neiras pela criança. Uma mãe embriagada ou psiquicamente doente é o
mesmo que uma babá psiquicamente doente, mas não é o mesmo que
um pai ou um vizinho embriagado. Isso significa que o meio, que, nesse
caso, apresentou-se como uma situação concreta, também é sempre re-
presentado numa determinada vivência. Por isso, temos razão ao analisar
a vivência como uma unidade de momentos do meio e da personalidade.
Justamente por isso ela é um conceito que permite a análise das leis do
desenvolvimento do caráter e o estudo do papel e da influência do meio
no desenvolvimento psíquico da criança.
Tomemos mais um exemplo que também ajudará a esclarecer como
a pedologia estuda, concretamente, o papel do meio no desenvolvimento
da criança ao investigar as relações que existem entre ela e o meio circun-
dante. Penso que vocês concordarão com o fato de que uma ocorrência
qualquer no meio, ou uma situação qualquer, influenciará a criança de
formas diferentes dependendo de como ela compreende seu sentido e
significado. Por exemplo, imaginem a seguinte situação: morre uma pes-
soa na família. É claro que a criança que entende o que é a morte reagirá
a isso de uma maneira diferente daquela que não entende nada do que
ocorreu. Ou, então, uma família em que os pais se separam. Nessas fa-
mílias, frequentemente nos deparamos com momentos ligados a crianças
difíceis de serem educadas. Mais uma vez, a criança que entende o que
está acontecendo, que entende o significado do que se passa, reagirá de
forma diferente daquela que não o faz.
De forma breve e simples, poderia dizer que a influência do meio
no desenvolvimento da criança, junto com as demais influências, será
medida também pelo nível de compreensão, de tomada de consciência,
de atribuição de sentido ao que nele acontece. Se as crianças tomam
consciência de formas distintas, isso significa que um mesmo aconteci-
mento terá sentidos completamente diferentes para elas. Sabemos que,
muitas vezes, acontecimentos tristes significam alegria para a criança por

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 79


ela não ter clareza do significado deles. Isso ocorre porque lhe permitem
o que comumente não é permitido, por exemplo, lhe oferecem bala para
que ela se cale e não atrapalhe. Assim, ela percebe uma doença grave da
mãe como um acontecimento alegre, prazeroso e, de repente, parece até
uma aniversariante. Tudo isso quer dizer que a influência de uma ou
outra situação não depende apenas do seu conteúdo, mas também do
quanto a criança a compreende ou lhe atribui sentido.
Quando lidamos com crianças com retardo mental, em particular o
retardo severo, quase sempre nos convencemos de que, constantemen-
te, elas não têm compreensão suficiente. Muitas vezes, isso as protege e
as priva de situações em que uma criança normal sofreria severamente.
Vocês sabem que, com frequência, as crianças criam situações em que
tratam outra como retardada. Houve um caso que ocorreu há pouco em
nossa clínica – uma criança com malformação severa. As outras crianças
a provocavam. Ela mesma sabia que era muito deformada e falava sobre
isso. Para uma criança com intelecto normal, essa situação poderia se
tornar uma fonte infinitamente traumática. Ela se defrontaria sempre e
em qualquer lugar com a sua deformidade e com o fato de não ser como
as demais crianças, que ririam dela, a provocariam, se colocariam acima
dela e se recusariam a brincar com ela. A humilhação frequente com a
qual se depararia a levaria, repetidamente, a uma vivência sofrida, a neu-
roses, a desordens funcionais ou a alguma desordem psicogênica, enfim,
às desordens que surgem das vivências. Contudo, para essa criança da
qual estou falando, nada disso acontece. Xingam-na, humilham-na, e,
de fato, ela se encontra em uma posição extremamente difícil; para ela,
tanto faz; é como se fosse água batendo na pena do pato, porque ela
não sabe generalizar. Hoje, sempre que a provocam, lhe é desagradável.
Entretanto, como generalizar e atingir o mesmo que qualquer criança
normal, fazendo surgir o sentimento de menos-valia, de humilhação, de
amor-próprio ferido? Isso não ocorre porque a criança não compreende
completamente o sentido e o significado do que lhe está acontecendo.
Esse é um claro exemplo de como uma atribuição de sentido insufi-
ciente a algum acontecimento ou a alguma situação, que verificamos em
crianças com retardo mental, frequentemente as protege de adoecimen-
tos, de reações patológicas e de desvios no desenvolvimento a que outras
crianças estão sujeitas.

80 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Então, o que temos? No meio circundante, há lugar para uma situ-
ação que levaria uma criança normal a um trauma, a um distúrbio, mas
não a criança referida. Por quê? Porque ela não atribui sentido à situação
como um todo. O que apresentei como exemplo de uma ocorrência pa-
tológica acontece, de fato, em cada uma das idades. A mesma situação,
se desencadeada quando a criança tem um, três, sete ou 13 anos, terá um
significado totalmente diferente para ela. Um mesmo acontecimento
ocorrido em idades diferentes da criança, ao se refletir na consciência
de modo absolutamente diferente, tem para ela um significado absolu-
tamente diferente.
Em função disso, há um conceito conhecido e suficientemente com-
plexo, mas muito importante para a compreensão da influência do meio
no desenvolvimento. Ele está ligado ao que representa o significado da
nossa palavra. É claro que vocês sabem que nos relacionamos com as pes-
soas em torno de nós principalmente com a ajuda da fala. Esse é um dos
principais instrumentos por meio dos quais a criança tem uma relação
psicológica com as pessoas ao seu redor. Pesquisas sobre a fala mostraram
que o significado das palavras para as crianças não coincide com o nosso,
ou seja, para elas, ele possui uma estrutura diferente nas diversas etapas
etárias. Tentarei esclarecer isso com a ajuda de exemplos.
Perguntemo-nos, antes, o que é o significado da palavra. Se eu dis-
ser que o significado de uma palavra representa sempre, do ponto de
vista psicológico, uma generalização, creio que vocês concordarão comi-
go. Tomemos uma palavra qualquer, por exemplo, palavras como “rua”,
“pessoa”, “tempo”. Elas não se referem a um objeto único, mas a uma
classe conhecida e a um grupo de objetos. Do ponto de vista psicológico,
o significado de toda palavra sempre representa uma generalização. Creio
que isso está claro. Esse é o primeiro postulado.
As generalizações ocorrem e se estruturam na criança de maneiras
diferentes da que acontece conosco, pois ela não inventa sua própria lín-
gua. Ela encontra as palavras prontas, subjacentes aos objetos e assimila
nossa língua e o significado das palavras nela presentes. Então, a crian-
ça relaciona as palavras aos mesmos objetos a que nós as relacionamos.
Quando fala “tempo” ou “pessoa”, tem em vista as mesmas coisas que
queremos dizer, mas as generaliza de maneira diferente da nossa, com a
ajuda de outro ato mental. Ela ainda não faz as generalizações superio-
res que chamamos de conceitos; suas generalizações têm caráter mais

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 81


concreto, mais visual. Dizem que, no estágio precoce de desenvolvimen-
to, as generalizações da criança lembram as que representamos por sobre-
nomes. Para nós, o sobrenome também representa um grupo de pessoas
e não uma única pessoa. Como esse grupo de pessoas com um mesmo
sobrenome é generalizado? Ele é generalizado com base numa relação de
parentesco entre as pessoas. Não com base numa relação lógica como
uma categoria, mas com base no parentesco, de fato, entre as pessoas.
Somente levando em conta a própria pessoa, não posso dizer se é Petrov
ou Ivanov. Se eu souber que é filha de Petrov ou Ivanov, isto é, se eu sou-
ber sua relação, de fato, com outras pessoas, saberei seu pertencimento a
este ou aquele sobrenome. Assim como em nós se estrutura a generaliza-
ção dos sobrenomes, como mostra a pesquisa, se estrutura, na criança de
idade pré-escolar, a generalização dos objetos, ou seja, a criança designa
com palavras os mesmos objetos, assim como nós, mas os generaliza de
forma diferente, de forma mais concreta, mais visual, mais factual.
Por força disso, as generalizações da criança são diferentes das nossas
e daí decorre que ela não compreende a realidade, os acontecimentos
que estão à sua volta do modo como nós o fazemos. Nem sempre o
adulto pode transmitir à criança o significado completo de determina-
do acontecimento. Ela não compreende tudo, mas somente uma parte;
compreende um aspecto e não outro; compreende à sua maneira, reela-
borando, reestruturando do seu modo, selecionando apenas uma parte
do que explicaram. O resultado, então, é que, em diferentes etapas do
desenvolvimento, a criança não apresenta uma correspondência total-
mente adequada às ideias de um adulto. Isso significa que, em diferen-
tes etapas do desenvolvimento, ela generaliza de formas diferenciadas e,
consequentemente, atribui sentidos de forma diferente à realidade e ao
meio circundante. Em consequência, o desenvolvimento do pensamento
e da generalização infantil também está ligado à influência do meio sobre
a criança.
Eis que a criança começa a entender melhor depois de alguns anos.
O que antes não entendia, entende agora. Será que, nesse instante, a
influência de alguns acontecimentos familiares sobre ela teria mudado?
Sim. Antes, poderiam ter sido mais neutros. Agora, entretanto, desem-
penham o papel de momentos fundamentais no desenvolvimento da
criança. Isso significa que o desenvolvimento do pensamento infantil, o
significado das palavras infantis define uma nova relação que pode existir
entre o meio e determinados processos de desenvolvimento.

82 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Se quisermos generalizar o que foi dito antes, poderíamos formular
da seguinte maneira: como já disse, a pedologia não estuda apenas o
meio em si mesmo, em seus indicadores absolutos para conhecer o seu
papel e sua influência no desenvolvimento infantil. No estudo acerca do
papel do meio no desenvolvimento, o significado de primeira ordem é
dado pela relação entre determinada situação do meio e a criança e o que
essa relação pode revelar com a ajuda de diferentes exemplos concretos.
Como já comentei, a mesma situação familiar pode exercer três influ-
ências diferentes sobre o desenvolvimento das crianças. O meio exerce
influência sobre o desenvolvimento da criança de forma distinta, em ida-
des diferentes, porque a própria criança se modifica, assim como se altera
sua relação com a situação. Como já dissemos, o meio exerce influência
pela vivência da criança, ou seja, dependendo de como ela elaborou in-
ternamente sua relação com determinado momento ou situação. O meio
define o desenvolvimento da criança dependendo do grau de sentido que
ela atribui a ele. Poderíamos apresentar, ainda, uma série de momentos
que demonstram, decididamente, que qualquer aspecto do desenvolvi-
mento determinará a maneira como este será influenciado pelo meio, ou
seja, permanecerá no centro a relação do meio com a criança, e não o
meio ou a criança isoladamente.
Chegamos à conclusão de que o meio não pode ser analisado como
um ambiente imóvel e externo em relação ao desenvolvimento, mas deve
ser compreendido como mutável e dinâmico. Assim, de certa forma, a si-
tuação influencia a criança, direciona o seu desenvolvimento. Contudo,
tanto ela quanto seu desenvolvimento se modificam, se tornam outros.
Não é apenas a criança que muda, mas também a sua relação com o
meio, que começa a influenciá-la de uma nova maneira. Essa compre-
ensão dinâmica e relativa do meio é o mais importante de tudo que
podemos haurir quando falamos do meio na pedologia. Isso é, contudo,
pouco concreto. Podemos concordar com o fato de que é importante
estudar a relação com o meio: se ela é diferente, então, a influência dele é
diferente. Todavia, ainda não foi dito o mais importante. Qual é o papel
principal do meio em relação ao desenvolvimento da criança? Gostaria,
agora, de responder a essa questão.
Antes de tudo, estamos novamente, no estudo do meio, diante da-
quilo com o que nos deparamos quando falamos da hereditariedade.
Se vocês se recordam, falamos que não há e não pode haver uma ca-
racterização cumulativa da influência da hereditariedade sobre todos os

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 83


aspectos do desenvolvimento. Quando não queremos estudar as leis da
hereditariedade em si mesmas, que, em geral, são homogêneas, quando
queremos estudar a sua influência sobre o desenvolvimento, a heredita-
riedade exige ser tratada necessariamente de forma diferenciada em rela-
ção aos distintos aspectos do desenvolvimento. Lembram-se de quando
tentei mostrar como os resultados dos estudos com gêmeos revelam que
a hereditariedade não desempenha o mesmo papel em relação às funções
psicológicas superiores e às elementares? É o seguinte: a hereditariedade
deve ser tratada de forma diferenciada em relação aos diferentes aspectos
do desenvolvimento.
O mesmo pode ser dito em relação ao meio, por exemplo, a sua
influência nos processos de desenvolvimento, tais como o crescimento
e o pensamento lógico da criança. É claro que seria difícil esperar que,
além da lei geral, que permanece válida, a relação do meio com um de-
terminado aspecto do desenvolvimento influencie tanto um caso como o
outro. À exceção dessa lei geral, seria difícil esperar que o meio possuísse
a mesma influência e que, de forma similar, a manifestasse no que se
refere a todos os aspectos do desenvolvimento. Isso é incorreto. Junto
a uma compreensão dinâmica do meio, começamos a entender que a
relação entre ele e diversos aspectos do desenvolvimento é diferente. Por
isso, devemos estudar, de forma diferenciada, a influência do meio, diga-
mos, no crescimento da criança, no crescimento de determinadas partes
específicas e sistemas do organismo, ou, digamos, a sua influência sobre
o desenvolvimento de funções sensório-motoras ou, ainda, das funções
psicológicas e assim por diante.
Quando se quer falar a respeito de um estudo do meio de um modo
geral, seria mais cômodo, de um lado, não tomar um aspecto restrito do
desenvolvimento, mas um que seja mais ou menos central e essencial, e,
de outro, tomar um aspecto em que a influência do meio se mostre com
sua força máxima.
Vamos considerar o desenvolvimento da personalidade, da consciên-
cia da criança, de suas relações com a realidade circundante e verificar em
que consiste o papel específico do meio sobre ele.
Se tomarmos todas as qualidades específicas da personalidade da
pessoa que se constituíram num período de desenvolvimento históri-
co do ser humano, chegaremos a uma conclusão extremamente sim-
ples, mais precisamente: que, neste caso e em geral, entre o meio e o

84 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


desenvolvimento da criança, existem certas relações que são inerentes
somente ao desenvolvimento infantil e a nenhum outro.
Se falarmos sobre o desenvolvimento da personalidade da criança,
sobre qualidades especificamente humanas, em que consistem as relações
específicas entre meio e desenvolvimento? Parece-me que a particulari-
dade consiste no seguinte: no desenvolvimento da criança, o que deve
ser obtido ao final, como seu resultado, é dado, desde o início, pelo
meio. E não simplesmente é dado desde o início, mas influencia os pri-
meiros passos do desenvolvimento da criança. Esclarecerei isso com um
exemplo.
Uma criança que mal começou a falar pronuncia palavras separada-
mente, como normalmente fazem as crianças que começam a dominar a
fala. Todavia, no meio em que ela se encontra, já existe uma fala desen-
volvida e que deverá surgir nela somente ao final do desenvolvimento?
Existe. A criança fala com frases simples, mas a mãe se dirige a ela com
uma fala gramatical e sintaticamente formulada, com um vocabulário
grande, circunscrito à criança, é claro, mas, de qualquer modo, com uma
forma desenvolvida de fala. Essa forma desenvolvida, que deverá surgir
no final do desenvolvimento infantil, vamos convencionar denominá-la,
assim como fazem na pedologia contemporânea, de terminal ou ideal.
Ideal no sentido de que consiste em um modelo do que deve ser obtido
ao final do desenvolvimento, ou terminal no sentido de que é essa a
forma que a criança, ao final de seu desenvolvimento, deverá alcançar.
Denominemos essa forma de fala da criança de primária, inicial. A maior
particularidade do desenvolvimento infantil consiste no fato de que ele
se realiza em condições de relação recíproca com o meio, quando a for-
ma ideal, terminal, a que deve surgir ao final do desenvolvimento, não
somente existe no meio contíguo à criança desde o início, como real-
mente interage e exerce influência sobre a forma primária, sobre os pri-
meiros passos do desenvolvimento infantil, ou seja, sobre algo que deve
se formar ao final e, de algum modo, influencia os primeiros passos do
desenvolvimento.
O mesmo ocorre com todas as outras coisas. A criança desenvolve a
ideia de quantidade e o pensamento aritmético? Como se dá o raciocínio
aritmético? Como se sabe, no início, digamos, na idade pré-escolar, a
criança ainda tem uma ideia limitada e obscura de quantidade. Essas for-
mas iniciais do pensamento aritmético infantil, contudo, se encontram

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 85


em relação recíproca com o pensamento aritmético desenvolvido de
uma pessoa adulta. Ou seja, novamente, a forma final, que deverá surgir
como resultado de todo o desenvolvimento infantil, está presente desde
o início. E não apenas está presente, como, de fato, determina, direcio-
na os primeiros passos que a criança dá, nesse sentido, no caminho do
desenvolvimento.
Para que fique claro para vocês em que grau isso estabelece condições
peculiares, singulares e únicas inerentes ao desenvolvimento infantil,
pergunto o seguinte. Vocês imaginam, por exemplo, como é a evolução
biológica? Podem imaginar que ela ocorra de tal modo que a forma ideal,
superior, aquela que surgiu apenas com o desenvolvimento, já existisse
no período inicial, quando havia apenas as formas inferiores e primárias,
e que estas se desenvolviam sob a influência direta da forma final? Claro
que não conseguimos imaginar nada semelhante.
No campo do desenvolvimento histórico, podemos imaginar uma
sociedade em que, desde a existência da forma primária de organização
social e econômica humana, já houvesse, também, a forma superior de
organização, digamos, a organização econômica e social comunista, e
que esta realmente tenha orientado os primeiros passos do desenvolvi-
mento histórico da humanidade? É impossível imaginar isso.
Com relação ao desenvolvimento do ser humano, seria possível ima-
ginar que, quando o homem primitivo surgiu na terra, na sua forma
inicial, já existisse uma forma superior final como o homem do futuro e
que esta forma ideal, de certa maneira, tenha influenciado diretamente
os primeiros passos dados pelo homem primitivo? É impossível imaginar
isso. Nenhum dos tipos de desenvolvimento que conhecemos ocorre de
modo que, quando se constitui a forma inicial, já tem lugar a forma
superior ideal que surge ao final do desenvolvimento, que se relaciona
diretamente com os primeiros passos da forma inicial ou primária que a
criança dá no caminho do desenvolvimento. Nisso consiste a maior par-
ticularidade do desenvolvimento infantil, que se diferencia dos outros
tipos, entre os quais nunca encontraremos tal situação.
O que isso significa? Parece-me que, a partir daqui, é possível con-
cluir algo de grande importância que permite esclarecer diretamente o
papel peculiar do meio no desenvolvimento da criança. De que maneira
se desenvolve nela a forma ideal ou final da fala? Vimos que, no prin-
cípio do desenvolvimento, ela domina apenas a forma inicial. Ou seja,

86 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


digamos que, no campo da fala, ela pronuncie apenas palavras separa-
damente. Contudo, essas palavras compõem uma parte do diálogo dela
com a mãe, que já domina a forma ideal de fala que deverá surgir apenas
ao final do desenvolvimento. Uma criança de um ano ou de um ano e
meio de vida pode dominar essa forma ideal, isto é, dominá-la de modo
simples, imitá-la? Não pode. Será que uma criança dessa idade, moven-
do-se do primeiro ao último passo, progressivamente, pode adaptar sua
forma inicial a essa forma final? Sim. Pesquisas demonstram que é isso,
na realidade, o que acontece.
Consequentemente, no que se refere ao desenvolvimento da perso-
nalidade e de características especificamente humanas, isso significa que,
no desenvolvimento da criança, o meio se apresenta no papel de fonte de
desenvolvimento. Ou seja, desempenha não o papel de ambiente, mas de
fonte de desenvolvimento.
O que isso significa? Antes de tudo, uma coisa muito simples. Se no
meio não existe a forma ideal correspondente e se o desenvolvimento
da criança, por força de quaisquer circunstâncias, transcorre fora dessas
condições específicas sobre as quais já lhes falei, ou seja, fora da relação
com a forma final, então a forma correspondente não irá se desenvolver
por completo na criança.
Imaginem uma criança que cresça entre pessoas surdas, entre pais e
parentes surdos-mudos. Sua fala irá se desenvolver? Não. E o balbucio?
Sim. Até as crianças surdas-mudas desenvolvem o balbucio. Isso significa
que o balbucio pertence a um conjunto de funções que está mais ou
menos diretamente enraizado no que é inato. Mas a fala da criança não
irá se desenvolver. Para que se desenvolva, é necessário que a forma ideal,
que interage com a inicial e conduz a criança ao desenvolvimento, esteja
presente no meio.
Em primeiro lugar, isso significa que o meio é a fonte de todas as
características especificamente humanas da criança. Se a forma ideal esti-
ver ausente, não se desenvolverá a atividade, a característica, a qualidade
correspondente na criança.
Em segundo lugar, imaginemos que, no meio em que a criança se
encontra, esteja ausente a forma ideal. Ou seja, o desenvolvimento da
criança não se submete à lei sobre a qual acabei de falar ou, mais precisa-
mente, a forma terminal está ausente e, portanto, não interage com a ini-
cial. Contudo, a criança se desenvolve entre outras crianças. Isto é, há, no

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 87


meio, os seus coetâneos com a forma inferior, inicial. Então, a atividade
e as características correspondentes serão desenvolvidas nessa criança? As
pesquisas demonstram que sim, mas de forma extremamente peculiar:
elas irão se desenvolver sempre com muita vagarosidade e uniformidade,
não atingindo nunca o nível que é possível quando há, no meio, a forma
ideal correspondente.
Vejamos dois exemplos. O primeiro é o seguinte. Tomemos uma
criança surda-muda. Veremos que o desenvolvimento da fala na criança
surda-muda transcorrerá por duas linhas, dependendo se apenas ela é
surda-muda na família ou se irá se desenvolver na relação com outras
crianças surdas-mudas. Estudos mostram que crianças surdas-mudas de-
senvolvem uma fala peculiar, a mímica, uma língua de sinais ricamente
desenvolvida. A criança desenvolve outra língua, uma língua própria.
Juntas, em colaboração, em sociedade, criam essa língua. Mas será que se
pode comparar o desenvolvimento dessa língua de sinais com o desen-
volvimento da fala na criança que se desenvolve na relação com a forma
ideal? Claro que não. Se lidamos com a ausência de uma forma ideal no
meio e falamos apenas com as formas iniciais que interagem entre si,
isso significa que o desenvolvimento carrega um caráter extremamente
limitado, comprimido e empobrecido.
Tomemos outro exemplo. Vocês já ouviram falar que crianças em
creches têm uma série de vantagens em relação às educadas apenas na
família. Em idade precoce, ensinam-se a elas a autonomia, os cuidados
consigo próprias e a disciplina. Todavia, há uma série de aspectos des-
vantajosos da creche em relação à educação em casa. Um deles é o que
se apresenta como objeto de sérias preocupações de todos que trabalham
com essa idade e diz respeito ao desenvolvimento tardio da fala. Como
regra, no bebê que fica em casa, que se desenvolve em casa, a fala se de-
senvolve antes, de forma rica e melhor do que no bebê que é educado na
creche. Por quê? Pelo simples motivo de que, em casa, tendo a mãe ou
uma figura que a substitui, digamos, a babá, o bebê ouve o tempo todo
a fala direcionada a ele e se encontra, assim, o tempo todo num processo
de relação com a forma ideal da fala. Na creche, onde há uma educado-
ra para um grupo de crianças, o bebê tem muito menos possibilidades
de relação direta com a forma ideal. No entanto, as crianças da creche
podem falar entre si. Todavia, elas falam pouco e mal, suas conversas
não são fontes de desenvolvimento rico. Para que o desenvolvimento

88 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


de características superiores especificamente humanas possa ocorrer be-
neficamente e bem, é necessário que a forma ideal e a final conduzam
exatamente, se é possível dizer assim, o desenvolvimento infantil desde
o início.
Eis por que, quando a criança cresce entre outras crianças, como
nas creches, sua fala se desenvolve de forma mais empobrecida. Se com-
pararmos um grande material de pesquisa com crianças de três anos,
fisicamente saudáveis, crescidas em condições favoráveis na creche e em
casa, veremos que, em média, as que ficam em casa, em relação ao de-
senvolvimento da fala, são superiores às da creche, enquanto estas são,
em geral, significativamente superiores às de casa em relação a uma série
de outros aspectos, tais como a independência, a disciplina, os cuidados
consigo mesmas.
Ainda é possível mais um exemplo simples. Imaginem que uma
criança desenvolva o pensamento aritmético e a imaginação relativa a
quantidade não na escola ou no jardim de infância, isto é, sem relação
com a forma ideal dos adultos. As crianças são entregues a si próprias
e em seu meio não há forma desenvolvida de pensamento aritmético.
O que vocês pensam? Essas crianças irão longe no desenvolvimento do
pensamento aritmético? Não, apesar de entre elas haver crianças muito
talentosas do ponto de vista intelectual. Seu desenvolvimento, no entan-
to, será extremamente limitado e estrito.
Em função de todos esses exemplos, podemos tecer uma conclu-
são. Ela diz respeito ao fato de se romper a relação entre a forma final,
existente no meio, e a forma inicial que a criança domina por força de
determinados motivos externos ou internos. Nesses casos, o desenvolvi-
mento da criança se torna extremamente limitado e não ocorre o pleno
desenvolvimento de formas e características correspondentes de ativida-
de da criança.
Essa relação pode se romper por diferentes motivos: externos, quan-
do a criança ouve, mas vive entre pais surdos e não falantes, ou internos,
quando ela vive com pais falantes, mas ela própria é surda. Tanto num
como no outro caso, o resultado é o mesmo: a criança é excluída da rela-
ção entre a forma inicial e a ideal e o seu desenvolvimento se desorganiza.
Penso que a situação sobre a relação entre a forma ideal e a inicial e os
exemplos que apresentei esclarecem a ideia que expressei no início, mais
precisamente: que o meio se apresenta como fonte de desenvolvimento

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 89


para as formas de atividade e das características superiores especifica-
mente humanas, ou seja, exatamente a relação com o meio é a fonte para
que surjam essas características na criança. Se essa relação for violada por
força de circunstâncias inatas da criança, as características superiores não
surgirão.
Em breves palavras, gostaria agora de tentar avaliar o significado te-
órico disso e esclarecer esse ponto que é suficientemente convincente e
claro se afirmado, não do ponto de vista da pedologia, mas do ponto
de vista do que conhecemos, em geral, acerca do desenvolvimento e da
natureza humana.
O que significa a lei que acabei de apresentar a vocês? Significa algo
muito simples: o homem é um ser social e, fora da relação com a so-
ciedade, jamais desenvolveria as qualidades, as características que são
resultado do desenvolvimento metódico de toda a humanidade.
Como se desenvolveu a minha fala e a de vocês? Não fomos nós que
a criamos. A humanidade a criou ao longo de seu desenvolvimento his-
tórico. O meu desenvolvimento consiste no fato de que, ao longo dele,
de modo geral, dominei a fala conforme as leis históricas do meu desen-
volvimento e o processo de relação com a forma ideal. Mas imaginem
que eu fosse posto nessas condições do mesmo modo que uma criança
surda que tivesse de criar sozinha uma língua, sem poder utilizar a forma
humana elaborada ao longo do desenvolvimento da humanidade. Eu
não iria longe. Eu criaria uma fala das mais primitivas, elementares e
restritas. De fato, a circunstância de o homem ser social por sua natureza
e de seu desenvolvimento consistir no domínio de formas de atividade
e de consciência que foram elaboradas pela humanidade no processo de
desenvolvimento histórico está essencialmente na base da relação entre a
forma ideal e a inicial.
O meio é a fonte de desenvolvimento dessas características e qualida-
des especificamente humanas, em primeiro lugar, no sentido de que é nele
que existem as características historicamente desenvolvidas e as peculia-
ridades inerentes ao homem por força de sua hereditariedade e estrutura
orgânica. Elas existem em cada homem pelo fato de ele ser membro de
um grupo social, ser uma unidade histórica que vive numa determinada
época e em determinadas condições históricas. Consequentemente, no
desenvolvimento da criança, as características e qualidades especifica-
mente humanas surgem por um caminho um pouco diferente daquele

90 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


das que são diretamente determinadas pelo curso do desenvolvimento
histórico precedente do homem. No meio, existem as formas ideais de-
senvolvidas e elaboradas pela humanidade que deverão surgir ao final
do desenvolvimento. Essas formas ideais influenciam a criança desde os
seus primeiros passos no processo de domínio da forma inicial. No seu
processo de desenvolvimento, ela se apropria do que antes era uma for-
ma externa de relação com o meio ou a transforma em seu patrimônio
interno.
Quero terminar apenas com o esclarecimento da última lei acerca da
influência do meio sobre o desenvolvimento da criança, que elucidará o
que tenho em mente quando falo sobre o meio como fonte de desenvol-
vimento. No decorrer do desenvolvimento da criança (vamos nos deter
detalhadamente nisso quando falarmos sobre o desenvolvimento psico-
lógico da criança), evidencia-se uma lei fundamental diante dos pesqui-
sadores. Permito-me formulá-la apenas em linhas gerais e esclarecer com
um exemplo.
Essa lei consiste em que as funções psicológicas superiores, as carac-
terísticas superiores específicas do homem, surgem inicialmente como
formas de comportamento coletivo da criança, como formas de cola-
boração com outras pessoas. Somente depois elas se tornam funções
internas individuais da criança.
Tomarei um exemplo que esclarecerá isso. Vocês sabem que, inicial-
mente, a fala se mostra como um meio de relação entre as pessoas. Com
a ajuda da fala, a criança conversa com as pessoas ao seu redor e estas,
com ela. Pensem agora em cada um de nós. Sabe-se que existe, em cada
um de nós, a chamada fala interna, ou melhor, o que conseguimos for-
mular para nós mesmos em silêncio, as ideias em palavras, e que ela
desempenha um papel muito grande no nosso pensamento. Esse papel
é tão grande que alguns pesquisadores, de maneira incorreta, chegaram
a identificar os processos da fala com os do pensamento. De fato, para
cada um de nós, a fala interna consiste em uma das mais importantes
funções de que dispomos. Se, devido a doenças, a fala interna da pessoa
é comprometida, ocorre um distúrbio forte de todo o seu pensamento.
Como surgiu a fala interna em cada um de nós? Uma pesquisa mos-
tra que a fala interna surge com base na externa. Inicialmente, para a
criança, a fala é um meio de relação entre as pessoas e se apresenta em sua
função social, em seu papel social. Pouco a pouco, contudo, ela aprende

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 91


a utilizá-la para servir a si própria, a seus processos internos. Então, além
de meio de relação com as pessoas, a fala se torna também meio de pen-
samento interno da criança. Essa fala não será aquela que soa em voz
alta, que utilizamos quando nos relacionamos com os outros, mas será
uma fala interna, calada, muda. De onde surgiu a fala como meio de
pensamento? Da fala como meio de relação. Da atividade externaliza-
da, que acontecia entre a criança e as pessoas ao redor, surgiu uma das
mais importantes funções internas, sem a qual o pensamento humano
seria impossível. Esse exemplo ilustra o postulado geral que está ligado à
compreensão do meio como fonte de desenvolvimento. Existe, no meio,
a forma ideal ou terminal que interage com a inicial, própria da criança,
resultando no fato de que uma determinada forma de atividade se tor-
na patrimônio interno da criança, sua propriedade, uma função de sua
personalidade.

Quinta aula. Leis gerais do desenvolvimento


psicológico da criança
Até agora, falamos de um modo geral sobre o desenvolvimento como
um todo. Procuramos definir as regularidades e os eventos mais gerais
dos quais ele depende e examinamos a hereditariedade e o meio. Vimos
também, primeiramente, que as regularidades comuns do desenvolvi-
mento se mostram de forma distinta em diferentes aspectos do mesmo.
Em segundo lugar, quando falamos sobre o meio e a hereditariedade,
também tivemos que nos aproximar da mesma [questão]:26 não há uma
lei geral única que determina o papel da hereditariedade de modo homo-
gêneo em todos os aspectos do desenvolvimento. Quando falamos sobre
o meio, também dissemos que não há uma lei que, com uma fórmula
geral e de modo comum, responda de uma vez por todas e com o mesmo
êxito à questão de como o meio influencia o desenvolvimento em todos
os seus aspectos. Isso significa que, quando analisamos o desenvolvimen-
to em geral, chegamos sempre à mesma necessidade de diferenciá-lo,
de analisá-lo por partes. Assim, se não há uma lei geral acerca de como
a hereditariedade influi no desenvolvimento, deve-se estudar, conse-
quentemente, como ela o faz em relação a cada aspecto separadamente.

26 Na edição russa é usada a palavra “conclusão”, seguida de nota de rodapé esclarecendo que a
palavra usada no estenograma original é “questão”. Optamos por esta última alternativa (N. da T.).

92 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Conhecendo o modo como ela influencia separadamente cada aspecto,
saberemos generalizar e obter alguma ideia dessa influência sobre o de-
senvolvimento em geral e em sua totalidade.
Penso que, para vocês, não há nenhuma dificuldade de compreen-
der também que o desenvolvimento pode ser um processo diferenciado,
pois ele é um processo em que a pessoa, desde o nascimento, passa
pelo caminho até a constituição de uma personalidade desenvolvida,
madura, a constituição de um organismo de uma pessoa desenvolvida
e madura. Esse é um sistema complexo que não pode se desenvolver
de modo completamente homogêneo em todos os seus aspectos. Os
distintos aspectos têm diferentes significados, momentos e pesos espe-
cíficos; aspectos distintos têm interdependências distintas. Resumindo
e simplificando, o homem é um sistema único. Com isso todos concor-
dam. Contudo, não é um sistema homogêneo, mas um sistema organi-
zado complexamente e heterogêneo.
Por isso, o próximo passo a dar no estudo do desenvolvimento do
homem é conhecer os principais elementos em que devemos separá-lo
com o objetivo de investigar, lembrando apenas e sempre que esses dis-
tintos aspectos se encontram numa determinada relação, numa deter-
minada dependência uns dos outros. Isso, contudo, não os impede de
ter leis próprias, autônomas, leis estas que se manifestam num dado as-
pecto do desenvolvimento e não o fazem em outro.
Vamos começar pelo desmembramento do processo geral de desen-
volvimento e tentaremos analisar, de forma mais concreta, as regularida-
des que orientam o desenvolvimento psicológico da criança.
Aqui, contudo, nós caímos na mesma situação de antes. O desen-
volvimento psicológico da criança se desmembra numa série de aspectos
e no âmbito destes, novamente, há algumas peculiaridades. O estudo
desses diferentes aspectos já faz parte do curso específico da pedologia,
da pedologia etária, e hoje nos deteremos nas leis gerais do desenvolvi-
mento psicológico da criança ou nas leis gerais do desenvolvimento da
personalidade consciente da criança.
Permitam-me começar do mais importante, do essencial, daquilo
que caracteriza as leis do desenvolvimento psicológico. Pelo que falamos
antes e o que vocês trazem de outros cursos, sabemos que, durante o
desenvolvimento, a criança não apenas passa pelo crescimento ou au-
mento do que está dado desde o início, mas por uma reestruturação
das relações entre determinados aspectos do organismo, por mudanças e

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 93


reestruturação de sistemas orgânicos. Por exemplo, falamos: será que o
corpo, as pernas e as extremidades, o dorso e a cabeça da criança crescem
de forma regular e homogênea num certo período de tempo? Isso nunca
acontece. Alguma parte do nosso corpo sempre cresce predominante-
mente ou de modo mais intenso, enquanto outras crescem mais devagar.
Isso leva ao fato de que, na etapa seguinte de desenvolvimento, as pro-
porções se reestruturam e também o fazem as relações entre as partes.
Essa situação nós analisamos como lei geral do desenvolvimento.
Tomemos o desenvolvimento do sistema endócrino. Vocês sabem
que o desenvolvimento desse sistema não envolve apenas o crescimen-
to ou maturação das glândulas; na idade infantil, o desenvolvimento
do sistema endócrino transcorre principalmente devido à mudança, à
correlação no sistema de secreção interna das glândulas. Algumas glân-
dulas involuem, ou seja, passam por um caminho de desenvolvimento
retroativo ao longo do desenvolvimento infantil, seja no início ou mais
tarde. O timo, que desempenha um papel muito grande nos processos
precoces de formação do organismo, começa muito cedo a dar lugar
a outras glândulas e sofre um processo de desenvolvimento retroativo.
Outras glândulas começam a aparecer em outra idade e, na passagem de
uma idade para outra, lidamos com a reestruturação da relação entre as
glândulas de secreção interna. Então, como veremos, quando falamos
sobre o desenvolvimento físico da criança, em cada idade predomina a
sua fórmula endócrina, ou seja, a forma que expressa as especificidades
das relações de determinadas glândulas de secreção interna características
de cada época etária.
Em relação ao desenvolvimento psicológico da criança, durante
muito tempo, essa regularidade estava fora da atenção dos pesquisado-
res. A psique do homem era apresentada como uma formação complexa.
Naturalmente, essa psique começou a ser desmembrada com o objeti-
vo de estudá-la cientificamente, distinguindo-se determinadas funções
psicológicas, digamos, memória, atenção, pensamento, vontade, emo-
ção etc. Quando essa antiga psicologia funcional abordava o problema
do desenvolvimento infantil, ela pensava que as funções psicológicas se
desenvolviam separadamente e que as relações entre elas não se desen-
volviam, permaneciam inalteradas. Isso é um grande equívoco e se con-
figura como um obstáculo na ciência do desenvolvimento psicológico
da criança.

94 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Primeiramente, devemos começar esclarecendo a principal regula-
ridade do desenvolvimento psicológico. Ela consiste no fato de que, no
decorrer deste, se alteram e crescem não apenas certas funções psicoló-
gicas, mas principalmente mudam as correlações entre elas, pois existe
uma especificidade no sistema de relações entre as funções para cada
etapa etária. Na passagem de uma idade para outra, muda, em primeiro
lugar, o sistema de relação entre as funções, e o desenvolvimento de
cada função em separado depende do sistema em que ela se desenvolve.
Ou seja, a lei que conhecemos, relativa ao organismo como um todo,
vamos aplicar também ao desenvolvimento psicológico da criança. O
desenvolvimento como um todo determina o desenvolvimento das par-
tes, ou seja, o desenvolvimento da consciência da criança como um todo
determina o desenvolvimento de cada função isoladamente, de cada for-
ma isolada de atividade consciente. Assim, não ocorre simplesmente o
desenvolvimento da memória, da atenção, do pensamento isoladamente,
mas do conjunto das mudanças surge um desenvolvimento comum da
consciência, uma mudança da consciência como resultado do desenvol-
vimento de certas funções. Na realidade, acontece algo pelo caminho
inverso – exatamente a mudança da consciência como um todo, ou seja,
a reestruturação das relações entre funções isoladas leva ao fato de que
cada função é posta em condições específicas de desenvolvimento, o que
tentarei apresentar a vocês.
Para que esse postulado geral que caracteriza o desenvolvimento psi-
cológico fique mais claro e visível, devemos tomar concretamente algu-
mas idades infantis e ver o que ocorre na passagem de uma idade para
outra.
Vamos começar pelo bebê. Como vocês pensam? No bebê, ou seja,
no início do desenvolvimento, será que existe uma situação em que cer-
tas funções estão diferenciadas? Por exemplo, podemos observar nos be-
bês a memória por si só? O bebê pode se ocupar da memorização de
algo? Podemos observar o pensamento isolado da ação? A ação isolada da
afetividade, das emoções? Nunca. O que caracteriza a consciência do re-
cém-nascido e do bebê nos primeiros meses? O traço mais característico
que diferencia a consciência do recém-nascido e do bebê da consciência
da criança em idades posteriores consiste no fato de ser uma consciência
absolutamente indiferenciada no seu aspecto funcional. O que isso sig-
nifica? Significa que, na consciência do bebê, podemos demonstrar que

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 95


existe o germe de todas as futuras funções. Todavia, essa consciência é
diferenciada? Cada função pode funcionar isoladamente? Não.
Tomemos outro exemplo. Existe memória no bebê? Sim. O bebê
reconhece a mãe, reconhece os objetos conhecidos e os diferencia dos
desconhecidos. Se, com objetivos experimentais, alimentarmos sempre
a criança com a mamadeira de uma determinada cor e forma e, depois,
alimentarmos com uma mamadeira de outra cor e forma, o bebê vai
pegar aquela que ele reconhece; ele estenderá a mão para ela mesmo que
esteja mais longe. Será que o bebê tem a capacidade de assimilar e recor-
dar? Sim. Sem dúvida, tanto que muitos autores dizem até que o que o
bebê memoriza no ano zero, ou seja, entre o momento do nascimento e
um ano de vida, ultrapassa, em quantidade, tudo o que memorizamos
no restante da vida. Na realidade, o bebê nasce sem saber nada sobre o
mundo. Consequentemente, todas as qualidades das coisas (doce, amar-
go; todas as sensações de carinho, de tato – duro, macio, áspero, liso,
frio, quente), tudo que, em geral, parece que nunca recordamos, todas as
qualidades básicas elementares do mundo são memorizadas exatamente
pela criança quando tem a idade de bebê. Assim, no bebê, não existe ape-
nas a possibilidade de memorização, mas essa possibilidade de memori-
zar, de recordar se realiza de forma muito intensa. Muitos pesquisadores
supõem que a memória jamais realizará um trabalho tão intenso quanto
nessa idade.
Contudo, ao mesmo tempo, o que caracteriza a memória no bebê?
A memória enquanto tal não existe. Ela não foi separada da atividade
geral da consciência. Vou apresentar dois exemplos simples. Vocês sa-
bem que o bebê pertence às idades que, posteriormente, são atingidas
pela amnésia, idades que são extraídas da nossa memória. Lembramo-
nos de quando éramos bebês? Não existem tais pessoas. Existem pessoas
que afirmam que conservaram flashes de lembranças. São raríssimas essas
pessoas e ainda há a questão do quanto essas lembranças são realmente
de quando eram bebês, se estão relacionadas apenas à idade de quando
eram bebês ou se surgiram mais tarde. Existe a memória no bebê, ela
trabalha intensamente, mas ele não lembra, ele não conserva nenhuma
recordação dessa idade. Esse é um dos fundamentos que mostram que
a memória do bebê não se diferencia da nossa por ser mais fraca ou por
ele memorizar mais devagar, por se lembrar de um espaço de tempo mais
curto, por poder memorizar uma quantidade menor de coisas. No bebê,

96 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


a memória, antes de tudo, se diferencia principalmente por ter outra re-
lação com a consciência como um todo; ela não é diferenciada, não está
separada da atividade da consciência como um todo.
Tomemos um segundo exemplo. Tomemos a experiência de verificar
a memória da criança quando ela é alimentada, por um período de tem-
po definido, com uma mamadeira que tem uma determinada forma e
cor. Pergunta-se: então, o bebê está se alimentando e, além disso, ele tem
que memorizar de que mamadeira se alimenta? Não. Isso simplesmente
não ocorre. O que ele ingere, que, naquele momento, sacia sua fome, e
também o fato de estabelecer uma determinada relação afetiva com o
alimento e com o que vê, tudo isso está junto, tudo isso conflui para uma
única coisa. Dessa forma, ele memoriza, mas essa memorização não está
separada ou diferenciada como uma atividade isolada no âmbito de toda
a atividade da criança. Essa memorização não está apartada das emoções,
da fome, do instinto, da saciedade, não está separada da percepção. Em
uma palavra, essa recordação, que não é diferenciada, não existe como
função isolada. Um dos estudiosos que se ocupou precisamente dessas
experiências diz que essa recordação do bebê causa uma impressão para-
doxal. Por um lado, ele memoriza com muita facilidade, rápida e solida-
mente as coisas que lhe são acessíveis. Claro, pois sua memória nos im-
pressiona por seu frescor, sua agilidade em comparação com a memória
da criança um pouco mais velha. Por outro lado, essa memorização ainda
não existe como tal. O bebê não diferencia de outras percepções o leite
que bebe da mamadeira que tem forma quadrada. Ocorre que tal percep-
ção, diz aquele autor, o bebê recebe como se estivesse bebendo um leite
azul retangular. Se nos detivermos não apenas na memória, mas em ou-
tros aspectos da atividade da consciência do bebê, chegaremos à mesma
conclusão de que nele existem, de forma embrionária, frequentemente
bem desenvolvidas e desde o início, funções que, como a memória, não
são diferenciadas, não estão isoladas umas das outras. Do mesmo modo
que no embrião, na célula, temos, indistintamente, os futuros órgãos e
tecidos da criança, também aqui, na consciência, temos, indiferenciada-
mente, as futuras funções que devem se desenvolver, que ainda não se
diferenciaram, não se desenvolveram.
O exemplo que definitivamente permite esclarecer esse ponto de
partida do desenvolvimento da consciência no bebê pode consistir
na analogia entre esta consciência e o desenvolvimento motor. O que

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 97


diferencia o desenvolvimento motor da criança? Nele, inicialmente, o
bebê se desenvolve de forma que surgem alguns movimentos diferencia-
dos, alguns reflexos isolados de alguns órgãos, depois, aos poucos, esses
reflexos começam a se ligar em grupos; em seguida, em grupos maiores, e
depois surgem movimentos globais. Penso que quem já viu um bebê não
concordará com essa descrição do caráter do desenvolvimento motor.
O desenvolvimento motor do bebê carrega um caráter de movimento
global, ele se move com o corpo inteiro. Um dos investigadores mostrou
que, se você oferecer ao bebê faminto algo agradável, digamos, um min-
gau de sêmola, ele se curva feito um aro ao encontro do alimento, estica
as perninhas, estica os braços, a cabeça, e lembra um aro com a parte
aberta direcionada ao objeto. Se você oferecer algo desagradável – pingar
algo amargo na sua língua –, ele vai se encurvar para o lado oposto. Esse
é um movimento de um todo, não é diferenciado, não está fragmentado
em movimentos de certos órgãos. Em que consiste o desenvolvimento
motor do bebê? Consiste no fato de que, desse movimento não fragmen-
tado, não isolado do corpo inteiro, aos poucos começam a se destacar os
movimentos diferenciados das pernas, dos braços e dos pés. Por exem-
plo, nós desconsideramos um momento importante no desenvolvimen-
to motor da criança que é quando ela começa a fazer com as mãos o que
fazia com os pés, quando surgem os movimentos diferenciados.
Até certo ponto, essa analogia permite esclarecer também o que en-
contramos no período inicial do desenvolvimento do bebê, mais pre-
cisamente, a não fragmentação, a indiferenciação de certas funções da
consciência. Se é assim, penso que vocês concordarão com a ideia que
defende que, no bebê, existem funções psicológicas – memória, atenção,
pensamento, vontade etc. – que futuramente se desenvolverão. Essa ideia
não suporta a crítica e não se confirma com os fatos. O ponto de partida
do desenvolvimento da consciência no bebê permite dizer que, no início,
não há o desenvolvimento de certas funções em geral; existe apenas a
consciência como um todo indiferenciado e, pelo visto, o próprio de-
senvolvimento consiste na diferenciação de certas funções, que, como
veremos, ocorre em determinadas idades.
Se nos limitarmos a isso na caracterização do ponto inicial do desen-
volvimento da consciência, então, em seguida, devemos nos perguntar:
está bem; no bebê, há certas funções indiferenciadas, mas como ocorre a
diferenciação depois? Todas as funções surgem de uma só vez? Eis que a

98 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


idade de bebê chegou ao fim. Começou a primeira infância, começou o
segundo ano. A consciência dele se diferencia e surgem, de imediato, a
memória, a atenção, a imaginação, as emoções, todas as funções, ou não?
Pesquisas mostram que isso nunca acontece. Inicialmente, apresenta-
-se, na primeira infância, um grupo de funções que ainda está insufi-
cientemente diferenciado internamente e ocupa um lugar dominante
em relação a todas as outras funções. Que função é essa? Penso que é
mais correto denominá-la, como se faz na psicologia contemporânea, de
percepção afetiva, ou seja, emoções e percepções ainda indiferenciadas
entre si. Contudo, essas funções se isolam do resto da consciência como
um todo no limiar entre o bebê e a primeira infância. Se antes devíamos
desenhar a consciência como um círculo indiferenciado, agora ele vai se
dividir em centro e periferia. No centro estará a percepção diretamente
ligada às emoções, e todas as outras atividades já começam a agir por
meio da percepção.
Permitam-me esclarecer isso. Como age a memória da criança na
primeira infância, principalmente na primeira metade desta, no segundo
ano de vida e numa parte do terceiro ano? A forma predominante da
memória infantil que permanece é a que se manifesta de modo indife-
renciado da percepção, ou seja, do reconhecimento. Vocês já viram uma
criança de até três anos se recordar de algo a respeito de si mesma? Não.
Como se apresenta com mais frequência sua memória? Quando conse-
gue reproduzir algo que aconteceu anteriormente numa determinada si-
tuação, ou, ao ver um objeto, o reconhece e também os acontecimentos a
ele relacionados, ou seja, a memória da criança na primeira infância age
apenas quando e enquanto puder participar da atividade da percepção.
Nisso se expressa sua submissão, sua dependência em relação à situa-
ção de percepção. A memória ainda não é encontrada, ainda não aparece
como algo que a criança dessa idade tentou memorizar por si só.
Tomemos o pensamento da criança dessa idade. Alguma vez vocês
verificaram que a criança pudesse pensar abstratamente? Seu pensamen-
to sempre se reduz ao pensamento concreto-visual ou, como dizem, ao
pensamento voltado para a ação prática, isto é, ela sabe adivinhar, seja
a respeito da relação entre os objetos percebidos visualmente, seja em
função de encontrar alguma ação racional e direcionada também numa
situação concreto-visual. O que significa o fato de existir na criança um
pensamento exclusivamente concreto-visual? Significa que essa criança

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 99


pensa apenas até o momento em que percebe, ou seja, apenas nos limites
do que é percebido. E o que é característico do nosso pensamento? É que
podemos pensar não apenas quando e a respeito do que temos e vemos
diretamente diante dos nossos olhos.
Seja a memória da criança dessa idade, seja o seu pensamento, ve-
remos que ambos estão submetidos à percepção; a memória e o pensa-
mento não existem por si sós, mas também não existem de forma indi-
ferenciada como era no bebê, existem como se fossem subordinados à
percepção, guardando certa dependência dela.
O mesmo ocorre com as emoções da criança. Quem já viu crianças de
três anos sabe bem como é maravilhosamente fácil distraí-las. Aconteceu
algo desagradável, é possível distrair a criança desse fato – criou-se um
novo ambiente, entregou-se um novo objeto – pronto, tudo passou. A
criança vai ficar triste porque, no futuro, acontecimentos desagradáveis
a aguardam? Ela sofre porque o médico, agora, vai colocar a colher na
sua boca. No entanto, após apenas alguns minutos, e se, na situação em
que estiver, nada a ameaçar diretamente, sua emoção não se manifesta! É
possível alegrar a criança com o fato de que dali a cinco dias receberá um
presente? Ela não pode ter uma relação emocional com isso. Sua emoção
se manifesta apenas nos limites de sua percepção.
Penso que esses exemplos são suficientes para ver que, na primeira
infância, quando a criança dá o primeiro ou o segundo passo em seu de-
senvolvimento psicológico, ocorre uma mudança brusca na estrutura de
sua consciência em relação ao bebê. Se, no bebê, lidamos com a consci-
ência como um todo, que é totalmente indiferenciada em suas atividades
isoladas, encontramos, no segundo degrau do desenvolvimento, formas
bruscamente separadas das demais formas de atividade da consciência,
ainda internamente indiferenciadas da percepção afetiva da criança, que
ocupa o lugar central de função dominante e determina toda a atividade
da consciência. Ou seja, surge, nessa idade, um fenômeno que podemos
denominar de relações interfuncionais na consciência, ou seja, relações
entre funções. Já há, aqui, determinadas diferenciações das relações entre
a percepção e a memória? Sim. Podemos dizer que, nessa consciência,
a percepção e a memória já se relacionam de forma diferente do que a
memória e o pensamento? Penso que podemos. Como se relacionam,
aqui, a percepção e a memória? Como funções predominantes e subordi-
nadas. E a memória e o pensamento que são subordinados à percepção?
São funções independentes. E estas funções, memória e pensamento,

100 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


também se relacionam uma com a outra, assim como cada uma se rela-
ciona com a percepção? Não. Elas se relacionam de forma diferente. Já
que é assim, fica claro que, pela primeira vez, vemos as relações diferen-
ciadas entre as funções. Isso é o início das diferenciações das funções,
que se caracterizam por três momentos básicos que podemos, agora,
formular em três postulados gerais que conservam o seu significado em
todas as idades posteriores.
Do que vimos até agora, podemos tirar uma conclusão que abranja
três leis principais que caracterizam o desenvolvimento psicológico da
criança. A primeira pode ser formulada assim: da consciência indiferen-
ciada inicial nunca surgem, imediatamente, de forma diferenciada, todas
as funções. Ao contrário, tudo ocorre do seguinte modo: a diferencia-
ção das funções acontece sucessivamente, pois, no início, separa-se uma
função que não representa com frequência e plenitude uma unidade di-
ferenciada e que, internamente, não está diferenciada de modo suficien-
te. Vou esclarecer essa lei. Ela quer dizer o seguinte: o desenvolvimento
não ocorre de forma que, no início, a consciência seja indiferenciada e,
depois, imediatamente, num belo dia, torna-se diferenciada. A diferen-
ciação ocorre em partes, por funções isoladas; além disso, internamente
e no seu próprio âmbito, as funções permanecem pouco diferenciadas.
Por exemplo, na primeira infância, a percepção se destaca da trama ge-
ral da consciência. Já disse a vocês que ela ainda é insuficientemente
diferenciada da própria emoção. Além disso, as percepções auditivas e
visuais, as percepções das cores e das formas ainda são muito indife-
renciadas. Então, apesar de a função como um todo já estar destacada
internamente, ela é bastante articulada. Ela se destacou como um todo
indiferenciado.
Por último, o que é preciso acrescentar a tal conclusão decorrente
dessa lei? Em cada etapa etária, diferentes funções apresentam distintos
graus de diferenciação externa e interna. Isso significa, por exemplo, que,
na primeira infância, a percepção é mais diferenciada que a memória.
Consequentemente: (1) em cada etapa etária, diferentes funções em
distintos graus estão separadas da consciência como um todo e são
diferenciadas internamente em diferentes graus.
Por isso, nunca há desenvolvimento regular da função. Essa é a pri-
meira lei.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 101


A segunda lei que caracteriza o desenvolvimento psicológico da
criança, ao que me parece, decorre do que eu disse anteriormente. Ela
pode ser formulada do seguinte modo:
(2) A função que se diferencia nessa idade não adquire simplesmente
uma independência relativa da consciência como um todo, mas ocupa
um lugar central em todo o seu sistema, se apresenta na qualidade de
função dominante que determina, em certa medida, a atividade de toda
a consciência.
Agora, vou esclarecer esse ponto. Isso significa que a função não
apenas se isolou e, com isso, tudo acabou. Para uma função, se isolar
significa predominar. Ela se separou para poder ocupar uma posição do-
minante. Como uma parte distinta, ela já colore, em maior ou menor
medida, a atividade de todo o resto indiferenciado da consciência. Do
que depende a maior ou menor medida de uma dada função dominante?
Depende do quanto as funções restantes estão diferenciadas. Por exem-
plo, na primeira infância, a percepção domina e as funções restantes es-
tão diferenciadas ou pouco diferenciadas? Pouco. Por isso, nesse caso,
a percepção determina a atividade da consciência em grande medida.
Contudo, na idade seguinte, quando lidamos com outras funções mais
diferenciadas, o papel dominante da função central se apresentará com
menos precisão, numa medida menor. Entretanto, a lei permanece em
vigor; a consciência se estrutura hierarquicamente. Ela não se estrutura
como uma série de funções democraticamente estabelecidas, destaca-
das e que não se subordinam umas às outras, que não se ligam umas às
outras em princípios de igualdade. No desenvolvimento psicológico, o
sentido de diferenciação consiste em que lidamos com uma hierarquia,
uma organização complexa. A separação de cada função significa uma
alteração da atividade da consciência como um todo. Então, ocorre não
apenas a distinção ou a diferenciação de uma dada função. Graças a uma
função que se destacou, a consciência em sua totalidade adquire uma
estrutura nova, um novo tipo de atividade, uma vez que aquela função
começa a predominar.
Devido a isso é que surge o que falei antes, mais precisamente, que
para cada função dominante emerge um sistema de ligações interfuncio-
nais na consciência, ou seja, funções distintas se relacionam de diferentes
formas umas com as outras. A percepção se relaciona com a memória,
assim como a memória com o pensamento? Não. A percepção domina.

102 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


O pensamento e a memória são funções indiferenciadas e se subordi-
nam à percepção. O pensamento se relaciona com a memória de modo
diferente. Eles se ligavam por meio da percepção e aquelas duas funções
eram subordinadas a esta. Assim, podemos acrescentar à segunda lei o
seguinte: graças a essa predominância em cada etapa etária, surge, para
uma certa idade, um sistema específico de relações interfuncionais que
nunca são iguais para funções diferentes. Para uma determinada idade,
diferentes funções estão em distintas relações umas com as outras.
Agora, passemos à terceira lei. Ela consiste em que a função que, pela
primeira vez, se destacou e predomina na consciência numa determina-
da idade se encontra como que numa situação privilegiada em relação
ao seu desenvolvimento. Diz-se a respeito dessas funções dominantes
e destacadas numa determinada idade que se encontram em condições
mais benéficas de desenvolvimento, pois todo o restante da consciência
serve a elas. Na primeira infância, a percepção se destacou, foi para o
centro e ocupou uma posição dominante. Isso é ou não benéfico para
o seu desenvolvimento? Será que, graças a isso, nessa idade, a percepção
se desenvolverá no ritmo máximo? Sim, porque a memória não age de
forma diferente, mas articulada à percepção; o pensamento também não
age diferentemente como no processo da percepção. Então, todas as fun-
ções, toda a consciência parecem servir à atividade daquela função. Isso
possibilita a ela o máximo crescimento e desenvolvimento e a máxima
diferenciação interna.
Então, em seguida ao processo de diferenciação externa, de sepa-
ração de uma função de toda a consciência, tem início o período de
sua diferenciação interna, de seu máximo desenvolvimento e separação
interna, ou seja, de surgimento de uma estrutura interna complexa e
hierarquicamente organizada. Por isso, o período de predominância de
desenvolvimento para cada função é exatamente aquele em que ela se
diferencia suficientemente pela primeira vez, ou seja, é como se fosse a
principal época de amadurecimento da percepção. Pode-se dizer que,
em toda história antecedente e posterior, a função nunca percorre um
desenvolvimento tão intenso quanto nesse exato período em que ela
predomina. Então, onde está concentrado o principal desenvolvimento
da percepção propriamente dita? Está concentrado na primeira infância,
quando essa função predomina. Antes, a percepção se desenvolvia? Sim.
Mais tarde vai se desenvolver? Sim. E o centro dela, a época principal, é
exatamente aqui.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 103


Pelas leis gerais de desenvolvimento, sabemos que cada função, sis-
tema e aspecto dele tem seu período ideal. Por exemplo, o amadureci-
mento, o desenvolvimento sexual ocorre desde o primeiro dia de desen-
volvimento da criança, desde o período intrauterino, até o último dia
de vida madura. Mas em que idade se concentram os principais fatos
do desenvolvimento sexual? Entre os 13 e 15 anos. O que ocorreu antes
disso e o que ocorrerá depois não podem ser comparados, em termos de
seu significado para o desenvolvimento sexual, com os acontecimentos
desse período etário.
A fala da criança, em suas formas embrionárias, se desenvolve até
um ano e meio? Desenvolve-se. Depois dos cinco? Sim. Mas onde se
concentram os acontecimentos principais e decisivos que determinam
o domínio das bases da fala? Entre um ano e meio e cinco anos. Nesse
período, a criança domina o mais importante da língua.
A lei geral de desenvolvimento afirma que cada função, sistema e
aspecto do desenvolvimento tem o seu período ideal e mais intenso. A
lei particular que analisamos afirma que o desenvolvimento ideal para a
função psicológica é o período em que ela, pela primeira vez, se diferen-
cia do restante da consciência e se apresenta como função dominante.
Se isso está claro, podemos passar à formulação da terceira lei do
desenvolvimento psicológico. No período seguinte à diferenciação exter-
na de uma dada função, (3) a função dominante na consciência se en-
contra em condições benéficas máximas de seu desenvolvimento, pois
todas as outras formas de atividade da consciência parecem servi-la. Isso
possibilita a diferenciação interna da própria função. Em cada período, a
função dominante realiza um desenvolvimento intenso ao máximo não
apenas em comparação com as demais funções no mesmo período, mas
também em comparação com sua própria história anterior e posterior.
Isso significa que, na primeira infância, a percepção se desenvolve ao
máximo e intensamente não apenas em comparação com a memória, o
pensamento ou a vontade, ou seja, a percepção se desenvolve mais inten-
samente do que as demais funções também em comparação com a sua
própria história de desenvolvimento antes e depois desse período. Esse
período é intenso ao máximo, é o mais rico por seu conteúdo.
Se, até aqui, for possível considerar finalizado o esclarecimento das
três principais leis do desenvolvimento psicológico na infância, nos resta
tornar claro o quarto e mais importante postulado que engrandece essas
três leis.

104 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Com base no que eu disse até agora, seria incorreto imaginar que o
desenvolvimento da consciência27 ocorresse do seguinte modo: inicial-
mente, há uma consciência indiferenciada; depois, uma função se dife-
rencia; na idade seguinte, outra; na próxima, a terceira; depois, a quarta.
Consequentemente, cada idade se distinguiria de outra idade e, gradual
e ordenadamente, seriam destacadas determinadas funções. Se nos limi-
tarmos a esse raciocínio, que pode surgir com base nas leis que acabei de
relatar, chegaremos a uma ideia totalmente incorreta sobre o curso do
desenvolvimento da consciência que não corresponde à realidade.
Já na idade pré-escolar, a situação muda bruscamente se comparar-
mos com a primeira infância. Se tomarmos a passagem do bebê para
a primeira infância, veremos que, nele, a consciência é indiferenciada,
mas, na primeira infância, a percepção se destaca, se diferencia. Se fo-
calizarmos a idade escolar, a situação é outra. A percepção na idade pré-
-escolar se diferenciou tanto externa quanto internamente. Pode, agora,
simplesmente se destacar alguma outra nova função que imediatamen-
te ocupe o lugar que a percepção ocupava antes? Não, porque, grosso
modo, a percepção não tinha um concorrente, já que ela se destacou
primeiramente. A nova função que começa a se diferenciar na idade pré-
-escolar tem, com frequência, um concorrente muito potente, tem uma
função relativamente independente e internamente isolada que é a per-
cepção. Então, devido a isso, uma nova função que apenas começou a se
diferenciar nessa idade pode, de imediato, ocupar na consciência a situ-
ação dominante que era ocupada pela percepção na consciência indife-
renciada? Claro que não. Além disso, a percepção, na primeira infância,
se destacou de uma consciência indiferenciada. Essa é uma das situações
em que, na primeira infância, já surgiram as relações interfuncionais, ou
seja, diferentes funções já se encontram numa determinada subordina-
ção em relação à percepção. E a função nova, que se destacou na idade
pré-escolar, pode dominar de imediato essas relações? Ou as funções que,
dependendo de uma determinada função, reestruturam de outra forma
suas relações ao se transferirem para outras funções? Claro que de outra
forma. Assim, a idade pré-escolar já não repete a história de diferenciação
que é relativamente simples na primeira infância.

27 Na edição russa é usada a expressão “desenvolvimento do conhecimento”. A nosso ver, deve


ser “desenvolvimento da consciência”, pois é disso que o autor trata imediatamente a seguir (N. da
T.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 105


Em que se diferencia a nova função que aparece na idade escolar?
Em que se diferenciam as circunstâncias na primeira infância? Como
tentei dizer agora, a diferença, em cada nova etapa, consiste no fato de
a situação se tornar mais complexa, e essa complexidade se resume a
dois momentos: primeiramente, a situação se torna complexa porque,
na consciência, já há uma função que dominava antes, que era diferen-
ciada internamente, era forte, independente e mais desenvolvida do que
a que apenas agora começou a se desenvolver. Em segundo lugar, todas
as demais funções já não se encontram numa situação indiferente e de-
sorganizada, mas já estiveram subordinadas à percepção, já agem num
determinado sistema. Por isso, quando o desenvolvimento da consciên-
cia passa de uma indiferenciação total para uma primeira diferenciação,
então, nesse momento, imagina-se uma situação relativamente simples.
Aqui, surge apenas um sistema definido, e quando a consciência se trans-
fere da primeira infância para a idade pré-escolar, já há de antemão um
sistema. Penso que vocês concordarão com o fato de que uma coisa é
passar da consciência indiferenciada para um sistema primário simples e
outra é passar de um sistema para o outro. Consequentemente, o próxi-
mo passo no desenvolvimento da consciência é realizado de outra forma.
A nova função que se destaca como dominante, e que também está em
condições benéficas máximas de desenvolvimento na idade pré-escolar,
é a memória. A memória se desenvolve predominantemente na idade
pré-escolar.
As três leis que citei até agora são suficientes para explicar o desen-
volvimento da consciência até o início da idade pré-escolar, quando se
apresenta uma nova regularidade, a quarta. O que há de novo? O novo
aqui consiste no fato de que, na passagem do bebê para a primeira infân-
cia, surgiu, pela primeira vez, um sistema; pela primeira vez as funções
começaram a se destacar; pela primeira vez algo começou a dominar
no sistema da consciência; pela primeira vez surgiram relações interfun-
cionais; já na passagem para a idade pré-escolar, é preciso passar de um
sistema para outro. A passagem de um sistema para outro transcorre de
forma diferente e mais complexa do que a passagem da indiferenciação
da vida da consciência, isenta de qualquer sistema, para um sistema
primário definido.
Onde se situa a especificidade desse segundo passo? O que há nele
em comum com o primeiro e o que é diferente e novo? O que há de
velho e o que ele repete do velho caminho? Ele repete o velho caminho

106 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


apenas porque, na idade pré-escolar, também não são todas as funções
que se destacam, apenas uma, a memória. Em seguida, repete o velho
passo porque a memória sozinha não é, ainda, internamente diferencia-
da. Repete porque a memória também começa a ocupar um lugar domi-
nante na idade pré-escolar, assim como a percepção ocupava na primeira
infância, e todas as outras funções da criança também agem de forma
subordinada e em situação de dependência da memória, assim como
antes agiam em relação à percepção. Em meados da idade pré-escolar,
até mesmo a própria percepção entra em relação de subordinação com
a memória. Repete-se a velha história, a memória também, na idade
pré-escolar, passa a ocupar um lugar de condições benéficas máximas de
desenvolvimento, ou seja, ela se desenvolve mais intensamente do que as
demais funções nessa idade e do que a própria memória se desenvolvia
antes e se desenvolverá depois. Resumindo, tudo que foi dito sobre as
três primeiras leis conserva sua força também no segundo passo, mas,
junto a isso, há ainda circunstâncias novas para as quais gostaria de cha-
mar atenção.
A primeira circunstância consiste no fato de que a nova função, a
memória, na idade pré-escolar, precisa alterar, em sentido oposto, suas
relações com a função que dominava até então. Na primeira infância,
ela estava subordinada à percepção; na idade pré-escolar, deve ocorrer
o inverso: de função predominante, a percepção deve se tornar subor-
dinada, e a memória, de função subordinada, deve se transformar em
função predominante. A primeira novidade com a qual nos deparamos
é que a nova função, por assim dizer, tem um concorrente potente, um
rival competente. Ela deve ocupar não um lugar vazio, como foi com
a percepção, mas reestruturar um sistema que já se constituiu. Esse é o
primeiro ponto.
Em segundo lugar, ela deve, se pudermos dizer assim ou traduzir li-
teralmente para a língua russa uma palavra estrangeira, ressubordinar a si
as demais funções. Não simplesmente subordinar, como se fossem livres,
nunca subordinadas, mas ressubordiná-las, transferir para sua própria
dependência funções subordinadas à percepção.
Levando em consideração esses dois postulados, podemos analisá-los
como expressão do postulado mais comum sobre o qual falei anterior-
mente, e sua novidade consiste no fato de que antes deveria surgir o
sistema, enquanto agora o sistema deve ser reestruturado. O desenvolvi-
mento posterior se caracteriza pela reestruturação do sistema.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 107


Penso que ficará claro se eu disser que o desenvolvimento decorre
desse postulado de forma muito peculiar. Mais precisamente: em to-
das as idades posteriores, uma nova função se desenvolve e começa a
ocupar uma situação dominante por meio da função anterior. Como
diz metaforicamente um dos pesquisadores, a nova função é traiçoeira.
Desejando ocupar o lugar da função que dominava antes, faz com esta
um acordo, se eleva em seus próprios ombros. Resumindo, a nova fun-
ção chega à situação de dominância por meio da que dominava antes, se
apoia nela, inicialmente. No limiar da primeira infância e da idade pré-
-escolar, pode-se dizer com precisão qual das duas funções domina. Por
meio da função que dominava anteriormente, por meio da percepção,
a nova função ressubordina a si as demais funções. Assim, não ocorre
simplesmente de a percepção se deslocar do seu lugar, o qual passa a ser
ocupado pela memória, que passa a subordinar as funções a si. O sistema
antigo se transforma de tal modo que a memória, antes de tudo, passa
a dominar a percepção, começa a se ligar a ela e, por meio desse centro,
reestrutura o resto do sistema.
Quanto mais passam as idades, mais as situações se tornam com-
plexas. Para ser breve, vou apresentar a vocês apenas um passo seguinte
e formular a lei com a qual vou finalizar hoje. Na idade escolar, a situa-
ção será ainda mais complexa, porque, primeiramente, vamos lidar com
duas funções diferenciadas, a percepção e a memória; em segundo lugar,
vamos lidar com todas as funções restantes que, certa vez, foram subordi-
nadas à percepção e depois ficaram subordinadas à memória. O próprio
fato da ressubordinação leva à sua diferenciação já num novo sistema,
numa nova [relação]28 uma com a outra. Na idade escolar, a situação será
mais complexa, e cada vez mais nas idades posteriores.
Dessa forma, o estudo do desenvolvimento mostra que, na medida
em que há a passagem de uma idade para outra, a complexidade das
ligações interfuncionais aumenta extremamente. Graças a isso, surge
uma especificidade que é importante ao extremo, mais precisamente:
para se diferenciarem, nem todas as funções devem passar pela situação
dominante. Não é que toda função, para se diferenciar, precise passar por
essa situação, mas surge um novo caminho de diferenciação das funções
por meio de sua ressubordinação. Em cada nova etapa, reestruturam-
-se todas as relações funcionais. Sim; antes, elas eram subordinadas à

28 No original, “reflexão” (N. da E. R.).

108 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


percepção; depois, à memória; em seguida, na idade escolar, ao intelecto
etc. Nessa reestruturação das relações interfuncionais é que ocorre a sua
diferenciação, ou seja, uma série inteira de funções se diferencia de for-
ma muito sutil e precisa sem passar por uma situação dominante.
Se isso está claro, podemos passar à formulação do quarto e último
postulado que caracteriza as regularidades psicológicas do desenvolvi-
mento infantil. (4) O processo seguinte de diferenciação funcional da
consciência ocorre não pelo caminho direto do surgimento de uma nova
função dominante e de um novo sistema de relações interfuncionais a ela
correspondente, mas pelo caminho da reestruturação do sistema antigo e
de sua transformação num novo sistema. Além disso, quanto mais dife-
renciado for o sistema da consciência em que ocorre essa reestruturação,
mais complexamente transcorre o processo de reestruturação do sistema
antigo em novo.
Por último, é graças à ressubordinação das funções, que ocorre em
cada etapa, e à reestruturação das relações interfuncionais que se torna
possível a diferenciação das funções sem que elas percorram o caminho
da própria função dominante.

Sexta aula. Leis gerais do desenvolvimento


físico da criança
Hoje, vamos nos deter brevemente em algumas leis gerais do desenvol-
vimento físico da criança. Rigorosamente, dividir o desenvolvimento
da criança em psicológico e físico, como foi admitido durante muito
tempo, não nos parece correto nem se justifica cientificamente, porque
o desenvolvimento psicológico está intimamente relacionado ao físico e
nunca se apresenta como uma linha independente. Por isso, a divisão em
dois aspectos mostra-se, também, incorreta do ponto de vista metodoló-
gico e extremamente desvantajosa do ponto de vista da apresentação das
suas principais leis.
Porém, é preciso diferenciá-los. Como já dissemos, o deselvolvimen-
to psicológico é composto de uma série inteira de aspectos e linhas sepa-
radas. O próprio desenvolvimento físico é um conceito agrupador; nele
estão contidos o crescimento e o desenvolvimento de uma série de siste-
mas orgânicos, por exemplo, do sistema ósseo ou do sistema circulatório,
endócrino e nervoso. Todos representam diferentes linhas de desenvolvi-
mento físico que mantêm uma relação complexa entre si.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 109


Há uma série desses aspectos do desenvolvimento que não é possível
relacionar apenas ao desenvolvimento psíquico ou apenas ao físico. Por
exemplo, o desenvolvimento motor ou dos movimentos. Por um lado, os
movimentos do homem ou da criança são manifestações de sua atividade
consciente, de sua atividade psicológica, mas, por outro, o movimento
é sempre um ato motor realizado e executado pelo organismo. Por isso,
quando analisamos o sistema motor, a diferenciação em psíquico e físico
se torna simplesmente impossível.
Ou, por exemplo, [ao estudar o desenvolvimento do sistema nervo-
so, o do cérebro, o relacionamos ao desenvolvimento físico e estudamos
separadamente o desenvolvimento psicológico].29 Entretanto, a função
psicológica é exatamente a função do cérebro em desenvolvimento.
Apresento tudo isso como exemplos que demonstram em que me-
dida é válido dividir o desenvolvimento nessas duas partes como duas
totalidades e o quanto é mais correto desmembrá-lo seguindo outro
critério: pelas linhas independentes de desenvolvimento dos sistemas,
analisando-as separadamente. Para reduzir, de alguma forma, essa fra-
gilidade que é obtida com a divisão do desenvolvimento nesses dois as-
pectos, vou me deter apenas em dois sistemas: o desenvolvimento dos
sistemas endócrino e nervoso e seu significado para o desenvolvimento
físico e psicológico geral da criança. Tentarei tomar esses dois sistemas
centrais e, com eles, ilustrar algumas leis gerais do desenvolvimento físi-
co [de modo semelhante]30 ao que falamos, na vez passada, a respeito do
desenvolvimento psicológico, tentando encontrar leis comuns de caráter
geral. Além disso, o desenvolvimento dos sistemas endócrino e nervoso
está relacionado de forma direta com o desenvolvimento psicológico.
Tudo isso tomado conjuntamente nos permitirá, até certo ponto, ter
uma ideia sobre a complexidade e as leis básicas do desenvolvimento
orgânico da criança.
Permitam-me iniciar pelo desenvolvimento do sistema endócrino.
É preciso dizer que, há muito tempo, foi apontada a existência de uma
relação entre o crescimento e o desenvolvimento orgânico da criança
por um lado e entre a atividade das glândulas endócrinas por outro. Daí
surgiu a ideia de que seriam as glândulas endócrinas que representariam

29 No estenograma, lê-se: “quando estudamos o desenvolvimento do sistema nervoso, o


desenvolvimento do cérebro, o relacionamos com o desenvolvimento físico, mas quando estudamos
o desenvolvimento psicológico, o estudamos separadamente” (N. da E. R.).
30 No estenograma, “da mesma forma” (N. da E. R.).

110 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


um sistema regulador do crescimento e desenvolvimento da criança. Ou
seja, estes se dariam diretamente graças à atividade das glândulas endó-
crinas. Tal ideia não é correta teoricamente pelo simples motivo de que
o sistema endócrino é uma parte do organismo que também cresce e se
desenvolve com ele e no qual se reflete o estado geral do crescimento e
do desenvolvimento do organismo e de seus outros sistemas. Por isso, é
necessário primeiramente explicar como se desenvolve o próprio sistema
endócrino. Em segundo lugar, é importante entender que relação existe
entre o desenvolvimento do sistema endócrino por um lado e o do orga-
nismo como um todo por outro.
Quanto à questão de que o próprio sistema endócrino representa
uma parte do organismo e, consequentemente, se desenvolve junto com
ele e, por isso, também precisa de explicação, não podendo ser analisado
como um motivo primário a que reduzimos todos os fenômenos do de-
senvolvimento físico, ela obtém explicação hipotética e muito provável
de acordo com os conhecimentos mais amplos que foram adquiridos
nas últimas décadas no campo de estudo dos processos de crescimento
e desenvolvimento físico. Particularmente, o estudo das vitaminas como
fatores de crescimento obrigou muitos pesquisadores a reverem seu pon-
to de vista a respeito do sistema endócrino como um sistema que, por si
só, regula o crescimento e o desenvolvimento da criança. Isso os obrigou
a uma opinião mais correta e independente, de acordo com a qual o
sistema endócrino é analisado como um elemento intermediário entre
a alimentação do organismo e o seu crescimento e desenvolvimento.
Assim como o restante do organismo, ele também depende, em primeiro
lugar, da alimentação, e as investigações mostraram que, num organismo
infantil em estado de fome geral, particularmente numa avitaminose,
há uma mudança brusca das glândulas endócrinas. Assim, o sistema en-
dócrino, bem como outros sistemas do organismo diferentes dele, de
forma muito peculiar, sofre com o estado de fome generalizado, princi-
palmente com a insuficiência de vitamina. Contudo, ao mesmo tempo,
a ele pertence, ao que parece, um papel central no desenvolvimento do
organismo da criança, e esse papel mediador entre a alimentação, um
simples crescimento e a formação do organismo é, de forma bem geral, a
expressão que caracteriza o papel do sistema endócrino.
Vamos nos deter em dois aspectos dessa questão. Primeiramente, no
desenvolvimento do próprio sistema endócrino e, em segundo lugar, no

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 111


papel que exerce em relação ao crescimento geral e ao desenvolvimento
do organismo. Tanto de um quanto de outro, como já disse, poderemos
extrair algumas leis importantíssimas que caracterizam, em geral, o de-
senvolvimento físico como um todo e encontram sua expressão peculiar
ao usarmos o sistema endócrino como exemplo.
Em que consiste o crescimento e o desenvolvimento do sistema
endócrino? Antes de mais nada, lidamos aqui com o crescimento no
próprio sentido dessa palavra, ou seja, estamos lidando com o fato de
que as glândulas, inicialmente pequenas, na medida em que a criança
se desenvolve, aumentam e se transformam em órgãos maiores. Porém,
isso não esgota todo o conteúdo do desenvolvimento endócrino, mas é
claramente um momento subordinado e não de primeira ordem.
São três as circunstâncias essenciais que caracterizam o desenvolvi-
mento do sistema endócrino e têm um significado mais amplo, como já
disse, do que o sistema endócrino em si mesmo. Antes de tudo, porém,
vamos nos concentrar no desenvolvimento do sistema endócrino em si.
A primeira circunstância que caracteriza o desenvolvimento do sis-
tema endócrino consiste em que ele amadurece de forma irregular. Isso
significa que algumas glândulas não se apresentam no mesmo nível de
amadurecimento logo no início de seu funcionamento. Algumas glându-
las amadurecem e alcançam o máximo da sua função antes; outras, mais
tarde; e outras, mais tarde ainda. Algumas estão relativamente madu-
ras no início do desenvolvimento, outras amadurecem apenas no final.
Então, isso significa que a primeira circunstância que caracteriza o desen-
volvimento do sistema endócrino é a irregularidade no amadurecimento
de suas partes isoladas.
A segunda circunstância característica do desenvolvimento do siste-
ma endócrino é o fato de que não é possível compreendê-lo sem levar
em consideração que, nele, processos evolutivos, ou seja, processos de
desenvolvimento progressivo estão quase sempre entrelaçados, num todo
indivisível, com processos de involução, com processos de desenvolvi-
mento regressivo ou retroativo.
Na passagem de uma época da infância para outra, deparamo-nos
não apenas com o amadurecimento de glândulas ainda imaturas, mas
também com o processo inverso de involução das glândulas que atingi-
ram o ponto máximo de seu desenvolvimento no estágio anterior. Além
disso, esses processos de desenvolvimento retroativo tanto podem ocorrer

112 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


no sentido absoluto da involução – isto é, as glândulas param totalmente
de executar seu papel funcional e, ao que parece, renascem no sentido
estrutural do tecido – quanto sem a total exclusão da glândula do sistema
endócrino. Como dizem os pesquisadores, esses processos estabelecem
limites mais estreitos para sua atividade, reduzem sua atividade. Nesse
caso, também podemos observar uma marcha regressiva do desenvolvi-
mento, que, contudo, não conduz o processo até o fim. Há apenas uma
relativa diminuição do papel de alguma glândula.
Os números com os quais quero ilustrar isso e que tomo empres-
tados de um dos mais destacados estudiosos dessa questão – Beadle32
– são extremamente esclarecedores em relação a uma parte do sistema de
glândulas de secreção interna.
As glândulas suprarrenais são, na vida embrionária e no momento
do nascimento da criança, as mais maduras em todo o sistema, en-
quanto uma série de outras funções se encontra no estágio de ativida-
de mínima. A glândula da tireoide, digamos, no início, logo depois do
nascimento, como demonstra uma série de investigações, se encontra
no estado de atividade mínima e, consequentemente, em maturação es-
trutural e funcional mínima. As glândulas suprarrenais são, num grau
bem maior, órgãos amadurecidos. Contudo, impressiona especialmente
a maturidade relativa desse órgão. Assim, por exemplo, sabe-se que, no
primeiro mês do desenvolvimento embrionário, as glândulas suprar-
renais são maiores que os rins. No sexto ou no sétimo mês, elas são
iguais, em tamanho, a metade dos rins e, em seguida, a correlação se
estrutura assim: no recém-nascido, as glândulas suprarrenais e os rins
encontram-se numa proporção de 1:3; no adulto, de 1:28. Se tomarmos
a proporção em relação ao corpo inteiro, então, no embrião de quatro
ou cinco meses, a correlação entre as glândulas suprarrenais e o corpo
todo é de 1:144; no recém-nascido, de 1:750; e, no adulto, de 1:6.000.
Dessa forma, se compararmos o momento inicial e o momento final do
desenvolvimento, isto é, um recém-nascido e um adulto, a maturação
e a predominância das glândulas suprarrenais em relação aos rins e ao
corpo como um todo se mostram extremamente grandes. Então, soman-
do uma série de investigações dedicadas a essa questão, Beadle diz que,
nesse caso, ocorrem mudanças que somente podem ser analisadas como
hiperplasia, ou seja, um superdesenvolvimento precoce com posterior
desenvolvimento retroativo – uma involução.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 113


A glândula do bócio, que sofre involução no processo de desenvol-
vimento infantil, pode servir de exemplo do sistema de secreção interna
ou endócrino. Vocês sabem que ela também desempenha um enorme
papel no desenvolvimento da criança nos primeiros anos de vida. Entre
os diferentes pesquisadores, até hoje, não há uma concordância a res-
peito de quando ocorre, no processo central, a involução da glândula
do bócio. Alguns admitem que ela inicia o desenvolvimento regressivo
muito cedo, logo nos dois primeiros anos da criança. Outros pensam
que os principais processos de desenvolvimento regressivo precedem a
idade do amadurecimento púbere. Mas não há dúvida de que a glândula
do bócio, uma das funções mais maduras no início do desenvolvimento,
uma glândula que desempenha papel predominante no sistema de glân-
dulas de secreção interna no processo de desenvolvimento infantil, sofre
desenvolvimento regressivo. Há fundamentos para pensar que isso tem
relação com a hipófise, que também, como alguns autores supõem, no
momento intermediário do desenvolvimento infantil, sofre desenvol-
vimento regressivo.
Contudo, se observarmos as glândulas em que o processo de invo-
lução não atinge o ponto zero, como disse antes, em relação às demais
glândulas, verifica-se o desenvolvimento regressivo.
Consequentemente, poderíamos repetir que a segunda peculiarida-
de característica do desenvolvimento do sistema endócrino consiste em
que, quando algumas glândulas, de modo irregular, atingem o amadure-
cimento, observa-se ainda, no sistema de secreção interna, um entrela-
çamento íntimo entre os processos de evolução e involução, os processos
de desenvolvimento progressivo e regressivo.
Finalmente, a terceira e mais complexa lei que caracteriza o desen-
volvimento das glândulas de secreção interna consiste no fato de que o
desenvolvimento do sistema endócrino frequentemente pode ser obser-
vado como um fenômeno em que as glândulas amadurecem de modo
relativamente precoce, ocupando um lugar predominante no sistema de
secreção interna, preparando e estimulando o desenvolvimento de outras
glândulas. Porém, como é apenas graças à ação estimulante dessas glân-
dulas que as outras amadurecem – as que eram imaturas e amadureceram
mais tarde –, então as que amadureceram mais tarde parecem oprimir
as atividades daquelas que favoreciam o desenvolvimento destas, con-
tribuindo para a diminuição ou redução de suas funções ou para uma

114 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


involução ou regressão relativa. Um exemplo simples dessa mudança
no sistema das glândulas de secreção interna é o que ocorre no limiar da
idade escolar e da puberdade. Uma série de investigações, acredito, com
mais fidedignidade do que em qualquer outro campo, nos permite ima-
ginar um quadro dessa alteração endócrina, dessa mudança no sistema
endócrino que ocorre às vésperas do amadurecimento sexual e ao longo
do próprio processo de amadurecimento sexual. Essa alteração pode ser-
vir de exemplo da terceira lei, que gostaria de ilustrar agora.
O início do amadurecimento sexual não ocorre realmente devido ao
rápido crescimento das glândulas sexuais. Assim, as primeiras manifesta-
ções que podemos observar e que mostram o início do amadurecimento
sexual, por exemplo, é o rápido crescimento do comprimento do corpo,
dos ossos longos, uma série de mudanças no sistema nervoso autônomo
– todas essas mudanças, como mostram as pesquisas, têm como motivo
iminente não o amadurecimento das glândulas sexuais, mas a sua hiper-
função, uma atividade acelerada da glândula da tireoide por um lado e
da área frontal da hipófise por outro. Ao que parece, essas glândulas são
tão predominantes no período da idade escolar que alguns autores deno-
minam essa idade de infância hipofisária, querendo demonstrar com isso
que a hipófise é uma glândula hegemônica, que predomina e determina
o caráter do desenvolvimento na idade escolar; são as glândulas que pre-
param o amadurecimento sexual. A hipófise e a tireoide agem de forma
estimulante e excitante no crescimento e amadurecimento das glândulas
sexuais. Isso é sabido pelo simples fato de que, se houver um defeito na
hipófise ou na tireoide, o amadurecimento sexual pode se retardar ou
nem acontecer.
O amadurecimento sexual tem início, quando, às vésperas dele,
ocorre uma série de mudanças. Todas essas mudanças, como mostram
as investigações, estão implicadas não devido ao amadurecimento das
glândulas sexuais, mas por força da hiperfunção da tireoide.
Dessa forma, o início do amadurecimento sexual, como diz Beadle,
não ocorre graças ao amadurecimento das glândulas sexuais, mas, se é
possível assim dizer, apesar dele, graças à insuficiência das glândulas se-
xuais, à hiperfunção, à função reforçada de duas glândulas – tireoide e
hipófise – graças ao intenso desenvolvimento regressivo da glândula do
bócio, que, como uma glândula da primeira infância, ao que parece,
age de forma a retardar, oprimir, reter o amadurecimento das glândulas
sexuais.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 115


Assim, segundo Beadle, três mudanças ocorrem no início do ama-
durecimento sexual. Por um lado, atrofia-se a glândula do bócio, que
oprime, retém o desenvolvimento sexual. Por outro, agem intensamen-
te as duas glândulas que favorecem o desenvolvimento sexual, e esse é
o primeiro período do amadurecimento sexual – quando as próprias
glândulas sexuais não desempenham um papel significativo. Por isso, o
amadurecimento destas não é apenas um motivo direto das mudanças
que ocorrem no início dessa idade, mas uma consequência secundária
das mudanças no sistema de secreção interna. Posteriormente, observa-
-se a época ou o período de amadurecimento sexual, que se caracteriza
pela luta das glândulas sexuais, já relativamente amadurecidas, com as
que prepararam o caminho para elas. Ocorre, dessa forma, a situação
seguinte, em que a hipófise e a glândula tireoidiana, como se expressam
os pesquisadores, parecem preparar seu inimigo. Isso porque é conhecida
a regularidade com que elas agem de modo estimulante no desenvol-
vimento das glândulas sexuais, e estas, por sua vez, de modo opressor,
na atividade daquelas. Apresentarei alguns fatos com os quais vamos
nos certificar da presença dessa regularidade. A hipófise e a glândula ti-
reoidiana estimulam o desenvolvimento das glândulas sexuais, e estas,
quando atingem um determinado grau de desenvolvimento, freiam as
atividades da tireoide e da hipófise, ou seja, das glândulas que garantem
o próprio desenvolvimento das glândulas sexuais.
Esse segundo momento – a luta das glândulas sexuais pela hegemo-
nia, pelo domínio –, novamente, pode ser caracterizado por uma série de
sintomas no desenvolvimento físico e psicológico da criança.
Finalmente, a terceira época, a do amadurecimento, se caracteriza
pelo fato de que a glândula da tireoide e a hipófise sofrem um relativo
desenvolvimento regressivo, são colocadas, como diz Beadle, em limites
estreitos e reduzem sua função. Isso, novamente, pode ser visto numa sé-
rie de sintomas. Em todo esse concerto endócrino, as glândulas sexuais,
que se mantêm numa situação dominante ao longo de toda a vida ma-
dura do homem e praticamente até sua velhice, começam a desempenhar
um papel predominante.
Dessa forma, o que mais deveríamos agregar a esse exemplo para
que ele seja de todo compreendido? Parece-me que mais duas ideias. Em
primeiro lugar, devemos nos convencer acerca de quais dados, de fato,
comprovam as ideias de que falei de forma abstrata; em segundo, deve-
mos generalizar esse exemplo e observar qual lei geral nele se manifesta.

116 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Permitam-me começar pelas características factuais que nos possi-
bilitam estabelecer que as relações que tentei relatar a vocês realmente
existem. A primeira delas consiste no seguinte. Já falei que os dados da
patologia demonstram que, se estamos lidando com um defeito, seja
hipofunção, hipoplasia ou aplasia da glândula da tireoide ou da hipófi-
se, o amadurecimento sexual pode nem começar. Amanhã, para ilustrar
todo o tema de hoje, vamos analisar algumas crianças com desenvolvi-
mento físico irregular e, com esses exemplos, poderemos nos convencer
de que tanto a ausência quanto o início do amadurecimento sexual são
relacionados à hiperfunção primária ou à hipoplasia da hipófise ou da
glândula da tireoide. Então, isso significa que a ausência de uma dessas
glândulas leva à ausência do amadurecimento sexual. Essa é a primeira
circunstância. Esse é um dos principais momentos que nos convence de
que a hipófise e a glândula da tireoide estimulam e favorecem o amadu-
recimento sexual.
Agora, a circunstância inversa. Quais são os fatos que deixam claro
que as glândulas sexuais, que se desenvolveram, agem de forma a oprimir,
ou seja, levam ao desenvolvimento regressivo das funções da hipófise e
da glândula da tireoide[?]31 Pelo visto, como vocês sabem, a hipófise, a
área frontal da hipófise, guarda relação com o crescimento do corpo em
altura, provavelmente com o crescimento das pernas. Sabe-se também
que quando se inicia o amadurecimento sexual e assim que ele atinge seu
estágio intermediário, o aumento do comprimento do corpo, em parti-
cular de suas extremidades, que foi muito acelerado no primeiro período
de amadurecimento sexual (com hegemonia da hipófise), se desacelera, e
o aumento do comprimento relativo das extremidades em relação ao de
todo o corpo se torna, junto com o amadurecimento sexual, mais vaga-
roso. Mas sabe-se também que, por força de alguns motivos patológicos,
o desenvolvimento sexual pode ser retardado ou nem ocorrer. Então, o
que acontece nesse caso? Ocorre um crescimento extremamente intenso
no comprimento do corpo, crescimento este denominado “eunucoide”,
em que crescem de modo intenso, particularmente, as extremidades, as
pernas e os braços. Vocês provavelmente já ouviram falar a respeito des-
sa anomalia do crescimento. Por que ocorre esse crescimento acelerado
de todo o comprimento do corpo e, principalmente, das extremidades

31 No original, a frase parece ser interrogativa, porém não consta ao final o ponto de interrogação
(N. da T.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 117


quando está ausente o amadurecimento sexual? Porque a hipófise con-
tinua a predominar e não ocorre o desenvolvimento regressivo das suas
funções, desenvolvimento este que ocorre na criança normal quando a
glândula sexual ocupa um lugar predominante no sistema endócrino.
Esses dois momentos, ou seja, o atraso do desenvolvimento sexual
quando há um defeito na hipófise e a interrupção da função desta no
início do amadurecimento sexual, assim como o crescimento eunucoide
quando há atraso do amadurecimento sexual ou ele não se inicia, tudo
isso junto é uma das poucas ilustrações da ideia de que, ao mesmo tem-
po que a hipófise e a glândula da tireoide favorecem o crescimento das
glândulas sexuais e podem ser analisadas como fatores iminentes que
determinam o seu amadurecimento, estas agem de forma opressiva e
freiam a atividade daquelas glândulas, provocando o seu desenvolvimen-
to regressivo.
Se tentarmos novamente retornar à formulação geral dessa tercei-
ra lei do desenvolvimento do sistema endócrino, poderíamos dizer o
seguinte. No desenvolvimento do sistema endócrino, observam-se fre-
quentemente relações inversas entre as glândulas de secreção interna,
que, no processo de desenvolvimento infantil, se invertem na passagem
de uma idade para outra. Então, por exemplo, no desenvolvimento das
glândulas sexuais, elas se apresentam numa tal relação direta com a hi-
pófise e a glândula da tireoide que, dado o desenvolvimento ou a função
insuficiente destas, as próprias glândulas sexuais não se desenvolvem. O
desenvolvimento sexual, como vimos, começa por onde? De uma fun-
ção extremamente intensa daquelas duas glândulas. Então, isso significa
que, às vésperas do amadurecimento sexual, qual é a relação que existe,
o que depende de quê? As glândulas sexuais dependem da hipófise e da
glândula da tireoide. Assim que se desenvolverem as glândulas sexuais, a
relação se inverte. A própria hipófise e a glândula da tireoide começam a
depender das glândulas sexuais. Dessa forma, as ligações, as relações que
caracterizam o desenvolvimento do sistema endócrino, com a predomi-
nância das glândulas sexuais, são as mesmas que se estabelecem apenas
no desenvolvimento ou até mesmo no final deste. O que é uma grandeza
predominante e determinante no sistema que se formou e amadureceu
no decorrer do desenvolvimento surge como uma grandeza que depen-
de das outras. Agora, o que aparece como uma grandeza que determi-
na o desenvolvimento de outras glândulas se apresenta subordinada no

118 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


sistema amadurecido. Simplificando, as relações entre certas glândulas,
tanto no sistema endócrino em desenvolvimento quanto no desenvolvi-
do, frequentemente se invertem. Esse é o terceiro postulado que caracte-
riza o desenvolvimento do sistema endócrino.
Agora, poderíamos extrair algumas conclusões gerais partindo das
regularidades do desenvolvimento do sistema endócrino que menciona-
mos até o momento e nos determos no segundo aspecto da questão, ou
seja, nas consequências que o desenvolvimento do sistema endócrino
traz para o desenvolvimento do organismo como um todo?
Vimos, primeiramente, que o sistema endócrino amadurece irre-
gularmente em suas partes. Algumas glândulas atingem o máximo de
amadurecimento no início do seu desenvolvimento, outras, ao final, e
outras, ainda, em um ponto intermediário, ora mais cedo, ora mais tar-
de. Por exemplo, temos todos os fundamentos para supor, e com isso
concorda a maioria dos pesquisadores, que a glândula tireoide, no início
do desenvolvimento infantil, se encontra em sua atividade mínima, mas,
logo depois de um ano, ela começa a amadurecer rapidamente e atinge
uma situação de predominância relativamente precoce no sistema das
glândulas de secreção interna, mantendo-se nessa situação ao longo de
aproximadamente dois anos, até o início da idade pré-escolar. Pelo que
foi visto, nessa idade, ela perde a predominância, pois tem início o pe-
ríodo denominado de estirão, ou seja, o primeiro crescimento acelerado
longitudinal, que predomina em relação ao latitudinal. Esse período co-
meça aproximadamente aos três anos ou um pouco mais tarde, mas já
está relacionado à atividade acelerada da hipófise. As outras glândulas
amadurecem mais tarde.
Depois, também descobrimos que os processos de evolução das glân-
dulas estão intimamente entrelaçados com os de involução, que con-
duzem o desenvolvimento regressivo até zero ou, se não até zero, pelo
menos o deslocam para trás.
Finalmente, também descobrimos que as relações entre diferentes
glândulas, observadas no desenvolvimento, se alteram ao longo deste.
Se, no desenvolvimento das glândulas sexuais, há relações diretas com a
glândula da tireoide e com a hipófise, então, assim que aquelas começam
a se desenvolver, a glândula da tireoide e a hipófise também se encami-
nham para a situação de subordinação a elas. Como podemos generalizar

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 119


e, nos valendo [das conclusões],32 formar um quadro geral do desenvol-
vimento do sistema endócrino e perceber nele algumas leis que são gerais
para uma série de sistemas orgânicos?
Vimos primeiramente que o desenvolvimento orgânico de forma al-
guma se reduz exclusivamente ao crescimento e que este é uma grandeza
decorrente do estado de todo o sistema. Além disso, vimos que o sistema
se desenvolve como um todo e de tal forma que nele são estabelecidas,
em cada degrau etário, cada vez mais novas e novas relações e subordi-
nações entre suas partes distintas.
O que é o organismo ou o sistema orgânico? Ele é um todo único
complexo. O que significa desenvolvimento nesse todo único complexo
quando aplicado ao organismo ou ao sistema orgânico? Desenvolvimento
significa, antes de tudo, mudança das relações, mudança da própria or-
ganização do sistema.
Nas glândulas de secreção interna, com frequência percebemos que
o processo de desenvolvimento abrange primeiramente o sistema como
um todo, inclui o crescimento como uma circunstância subordinada e
consiste principalmente em alterações da organização interna do siste-
ma. A mudança dessa organização é que se reflete, antes de tudo, nas
relações, nas subordinações, nas ligações que estão na base do sistema
e unem suas partes distintas num todo único. Graças a isso, cria-se o
postulado que se segue. Cada época etária da infância, ao que parece, se
inicia com uma determinada alteração endócrina, com uma reestrutu-
ração da organização do sistema endócrino. O sistema se reconstrói no
sentido de as glândulas que predominavam anteriormente começarem
a passar para o segundo plano ou sofrerem um processo de involução e
as ainda imaturas começarem rapidamente a amadurecer e ocupar um
lugar de predominância. Em seguida, as glândulas que predominavam
passam para uma situação de subordinação, e as que antes eram subordi-
nadas saem dessa situação e começam a predominar. Em outras palavras,
ocorre uma mudança do fluxo, da organização, da estrutura do sistema
endócrino. Por isso, dizem que cada idade tem a sua fórmula endócrina,
ou seja, tem a sua estruturação do sistema endócrino. Por isso, a criança,
do ponto de vista de sua estrutura orgânica, se diferencia do adulto, pois
seu organismo é todo diferente, com outra ligação dos sistemas entre si e
de seus elementos internamente.

32 No estenograma, “delas” (N. da E. R.)

120 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


O sistema endócrino da criança aos sete anos difere daquele da crian-
ça aos três e aos 13 anos não apenas em função de algumas glândulas
serem ainda pequenas e, mais cedo ou mais tarde, ficarem maiores ou
mesmo menores, mas, antes de mais nada, porque ele é outro sistema,
ou seja, está organizado de modo diferente. Os seus elementos estão
interligados uns aos outros de diferentes formas, estão unidos num todo
único de outro modo.
De forma um pouco mais simples do que fizemos em relação ao
desenvolvimento psicológico da criança, pode-se dizer, seguindo muitos
pesquisadores, que o sistema endócrino se caracteriza, em cada idade,
primeiramente como predominante, ou seja, nele, numa determinada
idade, um grupo de glândulas se apresenta predominante. Esse grupo
ou uma glândula a ele pertencente dá o tom a todo o sistema endócrino
e se constitui como o centro do qual depende a definição de todas as
ligações e relações estruturais internas.
Assim, a reestruturação, a reorganização interna do sistema se mostra
a característica fundamental que abrange o desenvolvimento do sistema
endócrino em todos os três aspectos a partir dos quais começamos a
estudá-lo.
Ainda há uma última conclusão que pode nos interessar aqui. Ela
consiste no fato de que, no processo de desenvolvimento, os compo-
nentes superiores do sistema são dependentes dos inferiores. Estes ama-
durecem relativamente cedo e parecem preparar o caminho para o de-
senvolvimento dos sistemas superiores, atuando como condições com
base nas quais é possível ter início o desenvolvimento destes últimos.
Eles garantem, de forma muito complexa, o atraso e a estimulação do
desenvolvimento dos sistemas superiores num determinado intervalo de
tempo. Por exemplo, com base nos fatos do que se denomina puber-
tas praecex (desenvolvimento sexual precoce), não há dúvida de que o
amadurecimento sexual tardio da pessoa é garantido com a frenagem
realizada por uma série de glândulas que agem sobre o desenvolvimento
sexual. Durante um longo tempo, prevaleceu a afirmação de que a hi-
pófise executava essa função, de frear o desenvolvimento das glândulas
sexuais, e de que uma disfunção da mesma implicava o amadurecimento
sexual precoce, sendo a sua involução condição necessária para o amadu-
recimento sexual. Nos últimos 10-15 anos, depois da guerra, principal-
mente, essa opinião foi posta em dúvida. Beadle, sobretudo, questionou

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 121


essa relação de dependência, apesar de não se atrever a negá-la defini-
tivamente. Porém, quase ninguém suspeitava que a glândula do bócio
tivesse um significado muito grande no processo de desenvolvimento
na primeira infância, mas, sem dúvida, é dela a função de frenagem do
amadurecimento das glândulas sexuais; a involução da glândula do bócio
é condição necessária para o desenvolvimento daquelas. Dessa forma, o
amadurecimento tardio do sistema superior é garantido por uma série
de frenagens que partem de outras glândulas. Ao mesmo tempo, certas
glândulas, como vimos, [determinam]33 e estimulam o desenvolvimen-
to das glândulas sexuais.
Vemos, dessa forma, a seguinte lei básica: o sistema endócrino se
desenvolve como um todo, não ocorrendo o desenvolvimento de cada
glândula separadamente. Em função disso, ocorre a alteração de todo o
sistema. Caso contrário, se observa também uma dependência inversa: o
sistema endócrino se desenvolve como um todo, se reestruturando inter-
namente e, dependendo do seu desenvolvimento e de sua reestruturação
como um todo, ocorre também o crescimento e o desenvolvimento de
certas glândulas. Isso fica evidente principalmente no desenvolvimento
com irregularidades, quando há indícios de amadurecimento sexual pre-
coce ou tardio ou quando ele sequer se inicia.
Por que o amadurecimento sexual pode não ocorrer? O motivo mais
provável é a aplasia – não desenvolvimento ou hipoplasia –, desenvol-
vimento insuficiente das glândulas sexuais. Esse é o motivo mais pro-
vável para que não ocorra o amadurecimento sexual. Porém, não é o
caso mais frequente de não ocorrência do amadurecimento sexual; ele
deixa de ocorrer porque alguma outra função foi atingida, a hipófise
ou a glândula da tireoide, por exemplo. Crianças com aplasia genéti-
ca ou precocemente adquirida da glândula da tireoide ou da área fron-
tal da hipófise permanecem sexualmente imaturas para o resto da vida.
Consequentemente, as mudanças que ocorreram em outra área do siste-
ma endócrino definem também o destino das glândulas sexuais. Desse
modo, o desenvolvimento das glândulas sexuais depende do estado e do
fluxo do desenvolvimento de todo o sistema e vice-versa.
Como explicar o desenvolvimento sexual precoce? É claro que pode
ser explicado, às vezes, por uma hiperplasia direta, ou seja, pelo superde-
senvolvimento, aceleração ou desenvolvimento exagerado das glândulas

33 No estenograma, “representam” (N. da E. R.).

122 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


sexuais. Esse, contudo, não é o motivo mais frequente. Aliás, é o mais
raro. O mais frequente é a aceleração do desenvolvimento sexual que é
definido pela hiperfunção ou hiperplasia de outras glândulas – suprar-
renais ou hipófise. Há mudança nessas glândulas; então, lidamos com o
amadurecimento sexual não aos 13, mas aos sete ou aos três anos.
Todos esses fatos nos convencem de que o sistema endócrino se de-
senvolve como um sistema único. Nele, o desenvolvimento do todo que
se constitui na reorganização do sistema e da relação entre suas partes
antecede o de determinadas glândulas, cujo próprio desenvolvimento é
uma grandeza funcional dependente, decorrente do desenvolvimento do
sistema como um todo, e não o contrário, o desenvolvimento do sistema
como um todo não é uma grandeza decorrente ou o resultado do desen-
volvimento de certas glândulas.
Disso podemos tirar uma conclusão muito importante. É completa-
mente diferente o significado que tem o fato de uma glândula ser atingi-
da, apresentar um defeito na infância, na idade madura ou em diferentes
idades da criança. Isso acontece porque existem relações de dependência
que, ao longo do desenvolvimento, se invertem. Imaginem um distúrbio
brusco na atividade da hipófise ou da glândula da tireoide ocorrido no
primeiro ano da idade escolar, ou seja, entre oito e 12 anos. Qual será seu
significado? Acarretará o desenvolvimento sexual insuficiente. Porém, se
lidarmos com esse distúrbio num sistema já desenvolvido, será que ele
terá a mesma influência nas glândulas sexuais? Não. Então, isso significa
que o papel ou o significado positivo ou negativo, do ponto de vista do
defeito, no fluxo de desenvolvimento se altera na passagem de uma idade
para outra e é qualitativamente diferente na infância e na idade madura.
Agora, para finalizar essa questão, vamos nos deter apenas no que é
relativo à influência do sistema endócrino no desenvolvimento geral do
organismo – psicológico e físico.
Tomamos o sistema endócrino e tentamos, em traços gerais, imagi-
nar como ocorre o desenvolvimento. Mas esse sistema é parte do organis-
mo, está ligado a outros sistemas, seu desenvolvimento não se limita ape-
nas à sua reestruturação interna. Ele não é um estado autônomo dentro
de outro no organismo. Para se desenvolver, depende de outros sistemas
do organismo, do estado geral deste, o que, por sua vez, influencia outros
sistemas. Mostrar as interdependências complexas que existem entre o
desenvolvimento do sistema endócrino, os outros sistemas e o organismo

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 123


como um todo é o que eu gostaria de fazer para finalizar a discussão do
nosso tema.
Já falei a respeito de dados que foram obtidos por meio de observa-
ções de mudanças no sistema endócrino e do seu desenvolvimento sob a
influência de uma desnutrição generalizada, particularmente por falta de
vitaminas. Quando lidamos com uma desnutrição severa do organismo,
temos também mudanças profundas no desenvolvimento do sistema
endócrino. Esse é claramente um exemplo grosseiro a respeito da inter-
dependência entre o sistema endócrino e o estado geral do organismo
que eu gostaria de ilustrar. Uma dependência mais delicada se apresen-
ta quando tomamos um caso especial de carência de vitaminas, porque
estas guardam relação direta com o crescimento. Estamos lidando aqui
com o momento que, muito provavelmente, está relacionado à regulação
do crescimento do sistema endócrino. Aqui, se manifesta de modo mais
sutil e nítido o padecimento do sistema endócrino em seu estado, em seu
desenvolvimento, quando todo o organismo se encontra em situações
desfavoráveis de crescimento e desenvolvimento.
Podemos encontrar uma ilustração mais detalhada na área da pato-
logia. Algumas doenças comuns do organismo que levam a um distúr-
bio profundo, a uma fragilidade e a um enfraquecimento da vitalidade,
incluindo a capacidade para o crescimento e o desenvolvimento, afetam
também o sistema endócrino, de forma mais sutil, delicada e diferencia-
da a depender do distúrbio.
Todos esses fatos tomados juntos demonstram, mais uma vez, que o
sistema endócrino não é maquinista de um trem dentro do organismo,
aquele que dá ordens à sua maneira, mas é também parte do organismo,
de um dos sistemas ao qual, ao longo do crescimento e do desenvolvi-
mento, compete frequentemente um papel predominante e que deve
ser analisado inicialmente como um sistema particular no interior do
organismo como um todo. Há, em particular, uma dependência pro-
funda, infelizmente ainda pouco estudada em seus detalhes, que apre-
senta muitos momentos discutíveis. Contudo, é indiscutível o fato da
interdependência entre os sistemas endócrino e nervoso, uma dependên-
cia mútua. Sabemos que, por um lado, o desenvolvimento regular do
sistema endócrino garante, como veremos a seguir, o desenvolvimento
adequado do sistema nervoso. Assim, sabe-se, por exemplo, que crian-
ças que nascem com um defeito cerebral, ou seja, com alguma insufici-
ência cerebral permanecem profunda e mentalmente atrasadas, com o

124 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


cérebro pouco desenvolvido. Isso ocorre também quando lidamos com
crianças que, por razões genéticas, não se desenvolveram ou com aquelas
em que está ausente alguma das glândulas de secreção interna, ligada,
diretamente e de algum modo, à atividade do cérebro, em particular a
glândula tiroidiana. Vocês sabem que a ausência da glândula tiroidiana
leva à idiotia,34 ou seja, ao desenvolvimento extremamente insuficiente
do cérebro e de suas funções aliado ao desenvolvimento físico extrema-
mente insuficiente do organismo. Sabemos que as glândulas endócrinas
são diferentes em suas medidas e guardam relação com a atividade do
sistema nervoso central, com o desenvolvimento do cérebro e de suas
funções, de modo e graus diversos. Por isso, fica claro que, digamos, no
período de recém-nascido e nos primeiros seis meses de vida, como aca-
bamos de ver, a atividade da glândula tiroidiana está no nível mínimo;
a atividade do cérebro nessa época, é claro, se diferencia essencialmente
da de outras épocas, quando a glândula tiroidiana atinge o ponto má-
ximo no seu desenvolvimento. Isso ocorre não apenas porque o próprio
cérebro cresceu, mas também porque a sua atividade, que é determinada
pelo sistema endócrino, elevou-se a um degrau superior. Há também
uma dependência inversa, uma dependência entre a atividade do cérebro
e o desenvolvimento endócrino. Assim, sabe-se que algumas áreas do
cérebro, em particular o diencéfalo, ligado à vida do sistema nervoso
autônomo, ao metabolismo, especialmente, estão intimamente ligadas
às funções de secreção interna. Repito. É possível estabelecer essa rela-
ção com a ajuda de algumas observações gerais; os mecanismos que lhe
servem diretamente, como já disse, são, até hoje, discutíveis em muitos
momentos. Por exemplo, Tcheni,35 um dos pesquisadores mais eminen-
tes nessa área, escreveu que os mais diversos distúrbios cerebrais levam a
um distúrbio profundo do desenvolvimento do sistema endócrino e, em
consequência, secundariamente, a mudanças orgânicas comuns que se
iniciam como resultado da insuficiência no desenvolvimento do sistema
endócrino ou de uma parte dele.
Ainda falaremos, em particular e com detalhes, sobre o sistema
nervoso e as glândulas de secreção interna quando formos analisar o

34 Idiotia – estado doentio, forma superior de deficiência mental que se caracteriza pelo não
desenvolvimento global e profundo da atividade psíquica e da psique. O idiota se encontra no
estágio de desenvolvimento mental de uma criança com até dois anos de idade.
35 Infelizmente, não encontramos informações a respeito desse estudioso a quem Vigotski se
refere.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 125


desenvolvimento do cérebro, ou seja, numa próxima vez. Agora, gostaria
apenas, nessa parte do nosso tema, de acrescentar uma reflexão. Já que
a atividade das glândulas de secreção interna está diretamente ligada ao
desenvolvimento e ao funcionamento do cérebro, então ela também se
liga diretamente ao desenvolvimento psicológico do ser humano, pois
este é exatamente o desenvolvimento das funções do cérebro, das funções
do sistema nervoso central. Por isso, vocês provavelmente sabem que
as alterações endócrinas que ocorrem na passagem da criança de uma
idade para outra significam não apenas mudanças no desenvolvimen-
to orgânico dela, mas também uma mudança no seu desenvolvimento
psicológico. Na passagem de uma idade para outra, se altera o sistema
de necessidades, de interesses, de incitações instintivas, de emoções e de
afetos em geral, de todas as forças motrizes do nosso comportamento, de
todo um sistema, como dizem, motor, ou seja, de toda natureza semior-
gânica, semipsicológica das funções que são as forças motoras do nosso
comportamento. Todo o sistema de necessidades orgânicas, de interesses,
de impulsos se encontra numa relação direta com o desenvolvimento do
sistema endócrino da criança. O primeiro aspecto que diferencia uma
idade de outra não consiste em que uma criança com mais idade seja
mais desenvolvida, digamos, apresente a função intelectual, a compreen-
são mais desenvolvida que uma criança com menos idade. O primeiro
aspecto que surge, antes de tudo, na passagem de uma idade para outra
é a alteração das necessidades, dos interesses vitais com os quais está
relacionada cada idade. Por isso, é possível dizer que a fórmula endó-
crina, que define de modo mais provável o desenvolvimento do sistema
endócrino numa idade, tem consequências bem mais profundas. Ela de-
termina também o fluxo do desenvolvimento do cérebro, o caráter da
atividade de suas funções na idade e, de certa forma, o desenvolvimen-
to psicológico da criança. Essas são as relações do sistema endócrino se
analisadas por um determinado lado, ou seja, pelo lado do cérebro e do
desenvolvimento psicológico da criança associado ao cérebro.
Resta-me ainda falar um pouco a respeito das relações do desenvol-
vimento do sistema endócrino que seguem em outra direção, em direção
ao assim chamado desenvolvimento físico da criança.
Os dados iniciais, obtidos seguindo uma via dupla, a extração ou dis-
túrbio experimental de alguma glândula em filhotes de animais, e a se-
gunda via, a observação do distúrbio de crescimento e de desenvolvimen-
to quando há defeito de alguma glândula, levaram a uma representação

126 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


bastante grosseira do papel orientador que determinadas glândulas de-
sempenham no crescimento e no processo de desenvolvimento da crian-
ça. Na realidade, é difícil imaginar a coisa desse modo, como se alguma
glândula, mais ou menos direta ou indiretamente, produzisse, por si
mesma, todas as alterações que levam ao processo de crescimento ou de
desenvolvimento no organismo. Na realidade, o caráter do crescimento
e do desenvolvimento, em cada etapa etária, não é determinado por uma
glândula, mas por todo o estado do sistema endócrino numa determi-
nada idade. Isso não exclui, mas supõe que esse sistema seja fragmenta-
do, isto é, um sistema em que certas glândulas desempenham diferentes
papéis em relação a diferentes aspectos do desenvolvimento. Senão não
seria um sistema orgânico, pois jamais denominaríamos de organismo
uma combinação tal de partes em que todas elas desempenham funções
isoladas. O mesmo ocorre no sistema endócrino. Ele age como um todo
em suas partes isoladas, que, em diferentes etapas etárias, desempenham
um papel distinto em relação a certos aspectos do desenvolvimento.
Isso pode ser expresso numa fórmula que mostra que algumas glân-
dulas, em particular a do bócio, a tiroidiana, provavelmente, e a hipófise,
em especial sua área frontal, estão ligadas diretamente ao processo de
crescimento e de morfogênese do organismo como um todo e de certos
órgãos e tecidos. Isso significa apenas que cada uma dessas glândulas não
age sozinha, mas manifesta suas influências nos processos de crescimento
somente no sistema endócrino como um todo e num determinado ní-
vel de desenvolvimento desse sistema, que se caracteriza por uma certa
organização das relações entre suas partes isoladas. Por isso, os proces-
sos de crescimento e de desenvolvimento, como se sabia desde o início
do estudo do desenvolvimento físico da criança, se expressam de modo
muito específico em cada etapa etária. O crescimento segue de manei-
ras diferentes em distintas épocas da infância. Na nossa literatura rus-
sa, Maslov36 foi o primeiro a formular essa ideia da heterogeneidade do
crescimento nos diversos degraus etários, não apenas segundo o ponto
de vista de que diversas partes do corpo crescem em ritmos distintos em
idades diferentes, mas no sentido de que as bases bioquímicas do cresci-
mento se mostram diferentes nos diversos degraus etários. No entanto,
não foi ele o primeiro a elaborar essa ideia.

36 Mirrail Stiepanovitch Maslov (1885-1961), pediatra russo e soviético, membro da Academia


de Ciências Médicas da União Soviética.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 127


Dessa forma, as mesmas alterações nos aspectos externos, digamos,
o crescimento no comprimento do corpo, no comprimento ou diâme-
tro de suas diferentes partes, são aparentemente os mesmos fenômenos
nas diversas épocas etárias, mas têm significados distintos, dependendo
de sua origem, do gênero dos processos que, por sua natureza, estão
em sua base. Vocês sabem, pelos fatos obtidos por meio da extração ou
distúrbio experimental de uma glândula em animais no período de seu
desenvolvimento infantil e pelos dados de observação de defeitos genéti-
cos de determinadas glândulas ou de defeitos adquiridos precocemente,
quais tipos de deformações do desenvolvimento ocorrem. Por exemplo,
no nanismo, a criança permanece no nível de três ou cinco anos, com
sérios defeitos, digamos, da glândula tiroidiana ou com defeitos no cam-
po da hipófise, em particular na sua área frontal. Consequentemente, o
distúrbio da hipófise e o crescimento geral no desenvolvimento do sis-
tema endócrino dele decorrente levam à estagnação geral dos processos
de crescimento ou adquirem um caráter totalmente diferente. Em casos
extremos, podemos observar que, com frequência, o desenvolvimento
físico da criança, em particular o crescimento da altura de seu corpo e,
constantemente, em outras direções, permanece no nível que encontra-
mos numa criança normal aos três, cinco anos etc.
Penso que, se vocês compreenderam o que eu disse anteriormente,
que o peso específico de cada glândula se mostra diferente em cada ida-
de, então provavelmente também entenderam que podemos fazer uma
reflexão inversa. Se vemos que o crescimento da criança estagnou no ní-
vel de seis, três ou oito anos, podemos chegar à conclusão inversa relativa
aos motivos que levaram à interrupção do crescimento exatamente no
limiar de determinada idade.
Por último, vocês podem imaginar que o mesmo distúrbio de uma
mesma glândula terá significado distinto em diferentes idades, pois o
peso específico dessa glândula em outro sistema de glândulas de secreção
interna, devido à sua organização, terá, claro, um significado diferente.
É possível resumir o que eu disse hoje em poucas palavras. Tentei
mostrar, primeiramente, que o desenvolvimento do sistema endócrino,
assim como qualquer desenvolvimento (falamos disso desde o início), se
caracteriza como uma organização extremamente complexa do processo
de desenvolvimento em que o crescimento não se apresenta como cir-
cunstância principal ou predominante. No primeiro plano emergem os

128 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


processos de organização interna do sistema, os processos de evolução e
involução, de alteração das interdependências do desenvolvimento.
Depois, tentei mostrar que o sistema que escolhemos como modelo
de sistemas orgânicos desvela não apenas sua política interna, mas tam-
bém a externa. Ele está ligado não apenas à reestruturação de todas as
relações internas, mas também a uma série de outros sistemas, influen-
ciando o desenvolvimento destes, do sistema nervoso, digamos, e experi-
mentando uma influência desses sistemas em seu desenvolvimento.
Finalmente, quero apenas indicar que, com base em dados factuais,
alguns pesquisadores mais corajosos se permitiram apresentar um pos-
tulado com o qual gostaria de concluir hoje e começar da próxima vez.
Mais exatamente, ele consiste na ideia de que, no processo de desenvol-
vimento orgânico da criança, ocorre não apenas a mudança das relações
de dependência no interior de um sistema, mas também a alteração das
relações entre os sistemas. Por exemplo, Beadle apresentou o postula-
do que diz que, no processo de metabolismo, o sistema endócrino, em
particular a glândula tiroidiana, desempenha um papel decisivo até cer-
to momento, e o cérebro, o diencéfalo, especificamente, é subordinado
ao sistema endócrino. Porém, com o início do desenvolvimento sexual,
alteram-se não apenas as relações internas do sistema endócrino, mas
também as relações entre o cérebro e o sistema endócrino. O cérebro,
anteriormente subordinado a um determinado aspecto da vida orgânica,
assume agora o papel hegemônico, ou seja, a mesma inversão das rela-
ções que encontramos no interior do sistema, Beadle generaliza para as
relações entre sistemas.
Quando desvendarmos o desenvolvimento de outros sistemas orgâ-
nicos, digamos, o nervoso, a relação entre os sistemas ficará mais clara.

Sétima aula. As leis do desenvolvimento


do sistema nervoso
Hoje, devemos analisar o desenvolvimento do sistema nervoso, do cére-
bro como um dos principais momentos do desenvolvimento da criança.
É comum dizer que existem três leis básicas do desenvolvimento
do sistema nervoso e de suas funções. Iniciaremos pelo exame delas e,
posteriormente, tentaremos formular, como sempre, algumas conclusões
gerais relativas ao desenvolvimento cerebral, ao psicológico e também ao
desenvolvimento físico da criança de um modo geral.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 129


A primeira lei diz que, ao longo do desenvolvimento infantil, obser-
va-se um fenômeno que recebeu a denominação de transição das funções
para os centros superiores. Isso significa que funções que eram execu-
tadas por centros ou áreas inferiores do cérebro nos estágios iniciais
de desenvolvimento começam, no decorrer deste, a ser executadas por
centros superiores. Essa lei de transição de funções para os centros supe-
riores é observada de modo bastante evidente tanto na filogênese quanto
na ontogênese do cérebro. Vejamos, por exemplo, o desenvolvimento
filogenético do cérebro. Vocês sabem que, sobretudo nos invertebra-
dos, o cérebro seguiu seu desenvolvimento principalmente pela via de
formação de novos andares, novas estruturas. Porém, como se expressa
Edinger,37 um dos maiores estudiosos do desenvolvimento filogenético
do cérebro, o lastro ou a base de todas as funções inferiores elementares é
mais ou menos comum em todos os animais invertebrados.
Então, se tomarmos os animais que se encontram em estágios infe-
riores e não têm as formações superiores que surgem nos animais supe-
riores, em particular no ser humano, veremos que as mesmas funções que
são exercidas com o auxílio dos centros superiores, do córtex cerebral,
por exemplo, no homem, são realizadas neles com o auxílio dos centros
inferiores. Dessa forma, digamos assim, a função de deslocamento, de
locomoção (deslocamento no espaço), o caminhar, que é realizado nos
invertebrados inferiores com o auxílio dos centros cerebrais inferiores,
é realizado com o auxílio dos centros superiores nos animais que estão
num estágio superior.
Como o objeto de nossa análise não é a filogênese, mas a ontogênese,
então, permitam que me detenha na ilustração dessa lei no desenvolvi-
mento da criança. Vamos tomar, por exemplo, o desenvolvimento mo-
tor do recém-nascido ou do bebê, principalmente no primeiro estágio
dessa idade. Provavelmente, vocês sabem que observamos nessa idade
movimentos que, durante muito tempo, permaneceram incógnitos, in-
compreendidos e têm sua analogia apenas em duas áreas: primeiramente,
nos diferentes estágios da filogênese, ou seja, lembram funções arcaicas,
primitivas que não observamos no homem, mas nos animais próximos
ao homem, em particular nos macacos. Ao mesmo tempo, fenômenos
análogos no campo da patologia são observados no recém-nascido. Mais

37 Ludwig Edinger (1855-1918), neurologista e anatomista alemão, fundador da anatomia


comparativa do sistema nervoso.

130 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


à frente, encontraremos a explicação para isso. Por exemplo, uma série de
movimentos muito típicos do recém-nascido consiste no tipo atetoide,
que é observado também quando há doenças do sistema nervoso e como
resultado de alguma função alterada por doença. Provavelmente, vocês
sabem ainda que, no recém-nascido e no bebê, e, às vezes, até um pouco
mais tarde, observamos uma série de reflexos à semelhança dos que, nos
adultos, são sintomas de doença orgânica do sistema nervoso central. Por
exemplo, o reflexo de Babinski.38 Caso esse reflexo seja constatado no
adulto doente, isso é tomado como sintoma de distúrbio orgânico do sis-
tema nervoso. Porém, em qualquer recém-nascido, no bebê, esse reflexo
se apresenta como uma norma e sua ausência é indicação de anomalia.
Uma série de reflexos que surgem mais tarde como resultado de doenças
é observada como o estado normal, natural no recém-nascido, no bebê
e, com frequência, até ainda mais tarde.
Dessa forma, podemos ver, na motilidade, nas funções motoras, nos
movimentos, digamos, do recém-nascido, uma série de formas que, repi-
to, são análogas a estágios iniciais da filogênese ou a distúrbio do sistema
nervoso central.
Que conclusão podemos extrair disso? Se eu perguntar por que, em
estágios iniciais da filogênese, existem esses movimentos, penso que vocês
concordarão que é possível tecer a seguinte conclusão: porque essa função
é exercida pelos centros inferiores. Na patologia, elas [se manifestam]39
porque estamos lidando com distúrbios dos centros superiores ou com
o elo entre os centros superiores e os inferiores. Isso significa, então, que
a presença desses movimentos no bebê indica o quê? Indica que, nele,
essas funções motoras são exercidas pelos centros inferiores. À medida
que prossegue o desenvolvimento da criança, essas mesmas funções pas-
sam para os centros superiores, ou seja, começam a ser exercidas por eles.
Por exemplo, em disfunções do córtex humano, em doenças do córtex
cerebral, temos, digamos, uma série de paralisias, uma série de distúrbios
motores, perda de funções motoras e alteração no caminhar. No entanto,
animais que sequer possuem o córtex cerebral andam muito bem. Pelo
visto, essa função de locomoção, de deslocamento no espaço é exercida

38 Joseph Jules François Félix Babinski (1857-1932), neurologista francês. Em 1896, descreveu
o reflexo que recebeu o seu nome.
39 No estenograma, “se apresentam” (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 131


no estágio inicial da filogênese pelos centros inferiores e, ao longo da
filogênese e da ontogênese, passam ao nível superior.
Contudo, é claro que, aqui, ainda resta muita coisa a ser compre-
endida. Em primeiro lugar, como ocorre essa transição e, em segundo,
por que os degraus iniciais da mobilidade, na ontogênese, nos lembram
formas que observamos apenas em alterações patológicas de funções
cerebrais.
Todavia, antes de explicar isso – a explicação se encontra na segunda
lei que se segue –, gostaria de ilustrar o mesmo princípio com as funções
sensórias, com a função da visão. As funções sensoriais do bebê também
lembram o que encontramos apenas nos estágios iniciais da filogênese
ou o que encontramos em adoecimentos. Por exemplo, o bebê vê, mas
não diferencia os objetos; para ele, os objetos ainda não adquiriram per-
manência ou constância. Ele não percebe a imobilidade dos objetos. Ao
que parece, é possível supor que o bebê e o recém-nascido percebem
tudo em movimento, porque, com o movimento da própria cabeça ou
do olho, a imagem se desloca na retina e surge uma ilusão, da mesma
forma como acontece conosco quando estamos num vagão de trem e
nos parece que tudo está em movimento e nós estamos parados. Ou seja,
com o movimento da cabeça ou do olho, o bebê percebe os objetos que
estão imóveis como se estivessem em movimento. Encontrar esse estado
de coisas num adulto, quando ele perde a constância da percepção e os
objetos começam a lhe parecer sempre em movimento quando é ele pró-
prio que se move, será sempre sintoma de distúrbio orgânico do sistema
nervoso central.
Então, acontece a mesma coisa na mobilidade e nas funções sensó-
rias, como vimos: no bebê, tanto as funções sensoriais quanto as motoras
são executadas ainda com ajuda dos centros inferiores e, por isso, têm
um caráter análogo aos estágios iniciais da filogênese, quando os cen-
tros superiores sequer existiam, ou aos sintomas que se manifestam em
alguma alteração patológica das funções cerebrais, num distúrbio desses
centros superiores ou do elo destes com os inferiores.
Então, ao formular a primeira lei, podemos dizer mais uma vez
que, ao longo do desenvolvimento, uma das principais regularidades é a
passagem das funções ao nível superior. Isso significa que, nos estágios
iniciais de desenvolvimento, determinadas funções cerebrais são exe-
cutadas com o auxílio dos centros inferiores, mas, no decorrer dele, as

132 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


mesmas funções transitam para os centros superiores. Essa é a primeira
lei.
Agora, a segunda lei nos explicará como ocorre a transição e o que
se oculta por trás desta no processo de desenvolvimento. Essa lei afirma
que, na transição das funções para o nível superior, os centros inferio-
res que anteriormente as executavam não se separam em definitivo de
sua função, mas se conservam, incluindo-se como uma instância su-
bordinada à atividade dos centros superiores. Anteriormente, qualquer
função, a sensória, digamos, no bebê era realizada com o auxílio dos cen-
tros cerebrais inferiores. Ao longo do desenvolvimento, como dissemos,
ocorre a transição dela para o nível superior, ou seja, a função sensória
começa a ser executada pelos centros superiores. Pergunta-se, então: o
que acontece com os centros inferiores? Eles simplesmente desempenha-
ram seu papel e involuíram, atrofiaram-se, da mesma forma que ocor-
re na história do desenvolvimento do sistema endócrino, por exemplo?
Não. Nunca ocorre desse modo no sistema nervoso central. Os cen-
tros inferiores, que, no estágio inicial de desenvolvimento, executavam,
digamos, uma função sensória ou motora, não desaparecem na transi-
ção desta para os centros superiores, mas perdem sua independência.
Anteriormente, eram eles que exerciam essa função por completo, mas
agora ela passou a fazer parte de um todo, tornou-se parte dos centros su-
periores, formou uma instância subordinada a estes. Ou seja, os centros
superiores não apenas substituíram os inferiores, mas passaram a exercer
aquela mesma função por meio destes; os centros superiores começaram
a regular, direcionar e enriquecer esse trabalho. Mais adiante, direi qual
é o caminho, de que maneira os centros superiores se estruturam sobre
os inferiores e, ainda assim, continuam a agir por meio destes. Dessa
forma, os centros inferiores, que determinam o fluxo de uma função
no estágio inicial do desenvolvimento, não perdem, repito, sua relação
com essa função na transição dela para os centros superiores, mas apenas
sua independência, tornam-se uma instância subordinada às superiores,
conservando e representando um mecanismo executor, a parte final do
mecanismo complexo que começa a ser dirigido pelos centros superiores.
A conservação da atividade dos centros inferiores na composição dos
superiores no momento da transição das funções para estes é a segunda
lei do sistema nervoso central.
Penso que ficou claro para vocês que, em tal estado de coisas, os
centros inferiores alteram sua função na transição desta para o centro

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 133


superior. Já que perdem sua independência, não executando a função
por completo, parece-me que deve ficar completamente claro para vocês
que o modo como funcionavam, a sua atividade se torna outra, pois
anteriormente esta era independente e, agora, é parte de um todo hierár-
quico, é apenas uma instância executora subordinada. Por isso, a transi-
ção das funções para os centros superiores sempre está ligada à alteração
da atividade dos centros inferiores, que se tornam instâncias subordina-
das e não mais independentes.
Contudo, a transição das funções para o nível superior está ligada
não apenas à alteração das atividades dos centros inferiores, mas tam-
bém à alteração da própria função. Anteriormente, para simplificação,
apresentei a questão de forma um pouco incorreta. Disse assim que, por
exemplo, a locomoção, o deslocamento no espaço é executado, em ani-
mais inferiores, pelos centros inferiores. No entanto, no homem, como
esse caminhar é executado? Pelos centros superiores, pois, quando o cór-
tex cerebral é afetado, ocorre também uma desarticulação do caminhar,
do andar e, às vezes, até mesmo paralisia total dos membros inferiores.
Contudo, o próprio caminhar, que passou para o nível superior, per-
maneceu como uma mesma função ou se tornou totalmente diferente?
Penso que está claro que a própria função se tornou infinitamente mais
rica, mais flexível, mais refinada, mais complexa do que era antes. Por
isso, a passagem das funções para o nível superior significa, ao mesmo
tempo, um desenvolvimento funcional potente do sistema nervoso
central, ou seja, o surgimento de possibilidades completamente novas
de funcionamento.
Caso isso esteja claro, podemos formular a segunda lei de desen-
volvimento do sistema nervoso. Na transição das funções para o nível
superior, a lei de conservação dos centros inferiores indica que estes cen-
tros, que executam alguma função nos estágios iniciais de desenvolvi-
mento, não são relegados à margem, mas se conservam como instâncias
subordinadas e agem não de modo independente, e sim sob o comando
e orientação dos centros superiores. Na transição das funções para os
níveis superiores, altera-se o papel funcional dos centros inferiores graças
à perda de sua independência. Em seu desenvolvimento, a função que
executavam se eleva ao estágio superior por força de sua inclusão nos
centros superiores.
Expressarei a terceira lei do modo como é formulada normalmente.
Contudo, ela precisa de séria correção e complementação, o que faremos

134 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


mais tarde. O sentido da terceira lei é que se, no cérebro já desenvolvi-
do de um adulto, por força de alguns motivos de caráter orgânico ou
de ordem dinâmica, o centro, a instância superior se fragiliza, então, a
execução da função é assumida pelo centro inferior que, certa vez, agiu
independentemente no processo de desenvolvimento. Dessa forma,
surgem duas consequências muito curiosas. Por um lado, na patologia,
observamos frequentemente casos de regressão a degraus iniciais de de-
senvolvimento. O doente demonstra formas de motilidade, de funções
sensórias, de fala e de pensamento encontradas em estágios iniciais de
desenvolvimento que são normais. Isso se deve a que, com a fragilida-
de funcional dos centros superiores, a execução da função passa a ser
garantida pela atividade dos centros inferiores. Isso é normal, é uma lei
relativa aos degraus iniciais do desenvolvimento. Dessa forma, em alte-
rações patológicas de funções cerebrais, frequentemente observamos algo
semelhante a uma regressão, um retorno a estágios iniciais de desenvolvi-
mento já percorridos pelo indivíduo.
Por outro lado, graças a isso, surge também uma situação em que é
possível a analogia com sintomas que observamos em estágios iniciais de
desenvolvimento e na patologia ou no distúrbio cerebral. Por exemplo, o
reflexo de Babinski, como já falei, é normal no início da vida da criança.
Por quê? Porque esse reflexo guarda relação com a reação independente
dos centros inferiores, das partes inferiores que guiam nossa mobilidade.
Por que ele desaparece depois? Porque esses centros inferiores perdem
sua independência e os movimentos que se apresentavam como reflexo
de Babinski já não podem se manifestar de forma independente, mas
apenas como parte constituinte de uma série de outros, de inervações
mais complexas que levam a reações motoras mais complexas. No entan-
to, assim que ocorre o distúrbio no sistema cerebral superior ou se rompe
a relação entre os centros cerebrais superiores e inferiores, os inferiores,
por força da terceira lei, se tornam independentes de novo. Novamente,
passam a exercer com independência as funções motoras e, em consequ-
ência, conduzem a um estado em que se manifesta o reflexo de Babinski,
ou seja, a reação que é normal no bebê.
Mais um exemplo: as funções sensórias. As percepções do bebê, como
já disse, se diferenciam por sua inconstância, instabilidade e ausência de
diferenciação dos objetos. Porém, podemos observar os mesmos traços
quando os centros superiores da percepção são afetados. Por quê? Porque

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 135


os centros inferiores sensórios, que executavam a função quando se trata-
va do bebê, readquirem a independência e a execução das funções senso-
riais. Consequentemente, em alguns distúrbios dos centros superiores da
percepção, observa-se de novo o quadro de regressão a estágios anteriores
de desenvolvimento e a analogia, claro, apenas analogia, porque uma
coisa é o reflexo de Babinski no bebê e outra, o mesmo reflexo no adulto.
O significado disso, nas duas situações, é oposto. No entanto, novamen-
te, observa-se a analogia entre os sintomas patológicos e os do início do
desenvolvimento. De onde surge essa analogia? A origem é comum, pois
tanto no desenvolvimento inicial quanto na patologia os centros inferio-
res têm independência e se exclui a atividade dos centros superiores. No
primeiro caso, ela está excluída em função da imaturidade dos centros
superiores; no segundo, por força do distúrbio desses centros.
Essa terceira lei poderíamos formular como a lei de emancipação
dos centros nervosos (é comumente denominada desse modo). Ela sig-
nifica que, dada uma fragilidade funcional dos centros superiores que
surge em decorrência de motivos orgânicos ou dinâmicos, os centros
inferiores se emancipam, começam a agir independentemente, toman-
do para si a execução da função que não é mais garantida pelos centros
superiores afetados.
Gostaria de esclarecer algo para advertir a respeito de uma com-
preensão equivocada da terceira lei. Seria incorreto imaginar que, no
distúrbio cerebral, se observa um retorno direto a estágios iniciais de
desenvolvimento. Eu disse que isso deve ser entendido apenas como uma
analogia, como uma semelhança externa. Por exemplo, será que pode-
mos dizer que, quando uma pessoa tem paralisadas as duas pernas ou
simplesmente não anda, apesar de ter os movimentos conservados, isso é
uma regressão ao estágio em que a criança, ainda bebê, não sabe andar?
Não, não se pode dizer isso, assim como não se pode dizer que a pessoa
que teve os centros da fala afetados, que adoeceu fisicamente, retorna ao
estágio em que a criança sequer falava. Não se pode dizer isso. Porém,
existe ou não uma relação entre esses fenômenos? Parece-me que existe.
Por que a criança não fala até determinada idade? Exatamente porque
seus centros estão insuficientemente desenvolvidos, ainda não amadure-
ceram, e as funções inferiores da fala, as funções motoras e as sensoriais
são executadas pelos centros inferiores. Isso significa que a criança não
anda e não fala porque seus centros superiores ainda não amadureceram.

136 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


O doente para de andar ou perde a fala porque teve afetados os mesmos
centros superiores, ou seja, nos dois casos, há fundamentos para uma
analogia: na ausência de atividade dos centros superiores, guardam-se
semelhanças entre estágios iniciais de desenvolvimento e quadros que
surgem no distúrbio do córtex cerebral.
Essa semelhança permanece como tal enquanto é analisada de modo
estático, mas, se examinada de modo dinâmico, é claro que haverá uma
diferença entre imaturidade e distúrbio central. O centro imaturo é di-
nâmico, é aquele que, dia após dia e mais cedo ou mais tarde, amadurece.
Um centro doente – digamos que haja um processo inflamatório – é
tal que pode se desintegrar. Então, mesmo havendo semelhança externa
entre quadros que surgem com o distúrbio cerebral e os observados nos
estágios iniciais de desenvolvimento, é preciso perceber que também há
contradições entre eles, porque, num caso, esse quadro significa, dinami-
camente, o papel e o desenvolvimento dessas funções e, em outro, signi-
fica sua desintegração e aniquilação. Por isso, a ausência da marcha ou da
fala na criança significa, simplesmente, um estágio inicial na formação
dos centros superiores com o auxílio dos quais serão garantidos o andar
ereto e a fala, mas o distúrbio da marcha e da fala, digamos, em algum
doente com processo inflamatório significa uma alteração patológica de
funções cerebrais que provavelmente é o estágio inicial de desintegração
que, posteriormente, atingirá uma piora da atividade das funções cere-
brais restantes.
Assim, se analisarmos as funções estaticamente, num momento de-
terminado, há uma analogia. Porém, se o fizermos em sua dinâmica, elas
pertencem a dois processos contraditórios: o de desenvolvimento e o de
desintegração. Por isso, é feliz a comparação dessa semelhança com a
coincidência que pode haver entre dois trens que estão em direções opos-
tas. Exatamente por força de estarem em direções opostas, e não apenas
diferentes, é que eles se encontram em determinado ponto do caminho.
Os trens que vão de Moscou a Leningrado e de Leningrado a Moscou se
encontram em determinado ponto, têm a mesma localização no espaço
num certo momento do tempo. No entanto, o trem que vai de Paris a
Viena e o que vai de Moscou a Leningrado sequer se encontram. Dessa
forma, o desenvolvimento e a desintegração do sistema nervoso se ma-
nifestam como processos em direções opostas, mas não como processos
que, geralmente, nada têm em comum.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 137


Como já disse a vocês, a terceira lei de desenvolvimento do sistema
nervoso precisa de muitas correções e complementações essenciais. A
correção, na realidade, diz respeito ao fato de que ela reflete apenas um
aspecto das alterações que ocorrem quando há algum distúrbio cerebral,
exatamente o aspecto que tem semelhança externa com o quadro inicial
de desenvolvimento. No entanto, outro aspecto diferencia agudamente
o quadro que observamos quando há alterações nas funções cerebrais em
consequência de distúrbios dos centros superiores do que observamos
nos estágios iniciais do desenvolvimento. A lei não abrange esse segundo
aspecto. Por isso, ela não nos esclarece por completo e, consequentemen-
te, fornece uma explicação incorreta da questão. A lei diz que, quando há
fragilidade do centro superior, a instância inferior toma para si a execu-
ção de suas funções, passa a ocupar o lugar do mais antigo, assim como
acontece na guerra com a morte ou o ferimento do primeiro capitão,
quando o segundo capitão, subordinado ao primeiro, assume o coman-
do do destacamento. Isso está correto, tais casos podem ser observados.
Porém, observam-se regularmente – e quase sempre – casos de outra
ordem. Mais precisamente, quando certa parte do cérebro é afetada, a
execução de sua função é assumida não apenas pelo centro inferior, que,
no desenvolvimento, até já perdeu certo grau de sua independência e
não pode, de forma direta e mecanicamente, substituir o centro supe-
rior, mas muito mais pelo centro superior, que frequentemente assume
e garante a função que já não pode ser executada pelas vias normais em
decorrência de um centro correspondente ter sido afetado.
Apresentarei um exemplo simples. Quando são afetados os centros
superiores da percepção, esse quadro de distúrbio das funções sensórias
recebe a denominação de agnosia. A essência desse distúrbio está no fato
de que o doente continua a ver os objetos, sua visão não sofreu alteração,
mas ele deixa de reconhecer os objetos. Ele vê que há algo preto, retan-
gular, macio, mas não é uma pasta; ele não consegue reconhecer isso. Ele
não fragmenta a realidade que percebe numa série de objetos isolados,
não consegue distinguir as qualidades correspondentes de cada objeto
que percebe etc. O que, então, acontece com o doente? Por um lado,
ocorre o previsto na terceira lei, ou seja, a visão e a percepção do doente
retornam às especificidades observadas em estágios iniciais de desenvol-
vimento da percepção, digamos, no bebê. Isso está correto. Por outro
lado, como já há uma série de desenvolvimentos dos centros superiores,
então não é que esse doente não reconhece o objeto e tudo termina aí.

138 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


Na verdade, ele passa a adivinhar que objeto poderia ser. Ele começa a in-
terpretar, a desvendar, a agir da mesma forma que agiríamos caso nos ti-
vessem vedado os olhos e nos obrigassem a nos orientar no cômodo. Não
veríamos diretamente as direções a seguir e os objetos à nossa volta, mas,
apalpando, adivinhando, interpretando e raciocinando, nos moveríamos
como um investigador que, seguindo os indícios, reconstrói um crime.
Assim agiríamos nesse caso. Desse modo age também, normalmente, o
doente que perdeu a capacidade de reconhecer diretamente os objetos.
Ele começa a adivinhar, e, nesse caso, sua adivinhação pode estar ou não
correta. Porém, de qualquer modo, o que é importante é que, com o au-
xílio da função superior, com a ajuda da interpretação, da adivinhação e
com o raciocínio, ele executa o que executamos com a ajuda de uma ope-
ração inferior. Não concluímos que, por ser preta, ter fechos, orifícios e
por ser algo em que se pode guardar coisas, então, provavelmente, é uma
pasta. Vemos diretamente que é uma pasta, mas o doente, para isso, tem
que recorrer a esses raciocínios complexos. Eis um exemplo: são mostra-
dos óculos ao doente. Ele diz que é uma tesoura. Por que ele se equivoca?
Porque os círculos de vidro dos óculos lhe lembraram os orifícios de
uma tesoura. No entanto, se nos pedissem para apalpar apenas os dois
orifícios da tesoura, poderíamos tomar o objeto por óculos ou tomarmos
óculos de determinada forma por tesouras. Frequentemente, contudo,
o doente acerta. Acertando ou errando, mesmo assim observamos um
fenômeno regular que consiste em que a função que, num homem sau-
dável, é executada pelo centro inferior, sendo impossível sê-lo no doente,
devido ao fato de o centro ter sido afetado, passa a ser executada com o
auxílio dos centros superiores. Dessa forma, quando um centro é afeta-
do, sua função começa a ser executada não apenas pelo centro inferior,
isso é correto, mas também pelo centro superior em relação ao afetado.
Se atentarmos para essa correção, poderemos extrair uma conclusão
importante com a qual gostaria de finalizar a nossa análise das leis do de-
senvolvimento do sistema nervoso na infância. Eu não apresentaria essa
correção caso ela não tivesse relação com o desenvolvimento. A primeira
parte dessa terceira lei, que formulei anteriormente, indica e explica o
porquê de, em estágios iniciais do desenvolvimento, observarmos certos
quadros que são análogos aos que começam a surgir em distúrbios cere-
brais. A segunda parte da lei parece não ter relação direta com o desen-
volvimento. Contudo, isso é apenas aparente, pois, na realidade, numa
análise atenta, podemos nos convencer de que a segunda parte também

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 139


tem uma relação muito importante com o problema do desenvolvimen-
to e, em particular, nos explica algumas regularidades muito importan-
tes do desenvolvimento atípico e anormal na infância. As observações
mostram que, se o mesmo centro for afetado na infância ou na idade
madura, as consequências e os sintomas serão diferentes. Vale a pena
examinar isso.
Vamos admitir que, digamos, por algum motivo hereditário ou em
consequência de algum distúrbio cerebral ocorrido no período de desen-
volvimento intrauterino ou nos primeiros meses de vida, tenha surgido
na criança uma surdez central, ou seja, um desenvolvimento insuficiente,
um defeito ou uma afecção nos centros da audição. Pergunta-se: isso
terá ou não algum significado para o desenvolvimento da criança, assim
como, num adulto, uma bala poderia ter ferido o centro da audição?
As prováveis consequências serão semelhantes: com o centro da audição
afetado, a criança, assim como o adulto, será surda, os dois igualmen-
te não ouvirão. Contudo, a criança com o centro da audição afetado
permanecerá muda por toda a vida, apesar de seus centros de fala não
terem sofrido, pois a fala se desenvolve apenas graças ao fato de ser ouvi-
da, e ela, devido à surdez, permanecerá muda, tornando-se uma criança
surda-muda.
Porém, no adulto, se temos uma surdez central, se a bala atingiu o
centro da audição, isso significa que o doente perderá na mesma hora
sua capacidade de falar? Não. Nele, a fala está desenvolvida e ele não a
perde de imediato. É verdade que a fala está organizada de tal forma que,
com a perda da audição, a capacidade de falar começa também a sofrer.
No entanto, prevenindo-se a perda da fala, oferecendo-se imediatamente
ao doente a possibilidade de controlá-la, ela pode, até certo grau, ser
preservada. Mais que isso, mesmo que não seja preservada, ela se desin-
tegra e se extingue de forma completamente diferente, não de imediato
e automaticamente como consequência direta da perda da audição. Isso
significa que o mesmo distúrbio apresenta consequências diferentes para
o desenvolvimento na infância e para a idade madura.
Entretanto, o inverso também é verdadeiro: diferentes distúrbios de
diferentes centros podem apresentar quadros semelhantes na infância e
na idade madura. Por exemplo, quando surge a mudez no adulto, surge
a denominada afasia motora – a incapacidade de falar com a voz, inca-
pacidade de fala articulada, quando é afetado o seu centro motor, isto é,

140 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


o assim denominado centro de Broсa.40 Como pode ocorrer a mudez
total na criança? Quando é atingido o centro da audição. Isso significa
que quadros semelhantes na criança e no adulto podem ser encontrados
em diferentes distúrbios e diferentes quadros podem ser encontrados em
distúrbios semelhantes.
O que explica esse estado de coisas em que um distúrbio semelhan-
te, na idade madura e na infância, se manifesta em quadros distintos e
diferentes distúrbios, num mesmo quadro? Parece-me que isso é abran-
gido pela lei principal do desenvolvimento da criança com algum defeito
no sistema nervoso. Isso significa que somos introduzidos ao círculo da
pedologia patológica; ao mesmo tempo, essa mesma lei fornece material
para algumas generalizações relativas ao desenvolvimento da criança nor-
mal. Ela pode ser expressa da seguinte forma: se, na infância, for afeta-
do algum centro B, sofrerá mais o centro superior C, que é posterior,
que o inferior A a ele subordinado. Se, no adulto, o centro B sofrer,
mantendo-se as demais condições iguais, sofrerá mais o centro inferior
A do que o superior C.
Explicaremos isso com o exemplo da encefalite epidêmica. Sabe-se
que a encefalite epidêmica atinge normalmente a área do córtex do siste-
ma nervoso. Ela se manifesta na infância e na idade madura por meio de
diferentes distúrbios. Na infância, em particular, a encefalite epidêmica
acarreta, normalmente, como uma de suas consequências, a hiperativi-
dade motora, uma hiperdinamicidade, ou seja, uma motilidade extrema,
uma presença exagerada de movimentos, e, nesse caso, o desenvolvi-
mento mental, do caráter e dos movimentos superiores voluntários da
criança são muito atingidos. Se dissermos que o centro B foi atingido,
o que mais é atingido na criança? Seus movimentos primários não são
atingidos. A criança até se movimenta excessivamente. Mas o que mais
foi atingido nela? O centro C, os movimentos superiores voluntários.
Na criança, nesse caso, os centros A, que são os movimentos simples,
sofrerão menos. A criança pós-encefálica nunca ou raramente apresenta
o aspecto motor refreado. Estará sempre andando, pegando tudo, e em
momento algum ficará tranquilamente sentada; suas mãos estarão sem-
pre em movimento. O movimento impulsivo simples não apenas não
foi afetado como está terrivelmente reforçado; ele não é refreado como
ocorre numa criança normal. Naquela criança, o movimento consciente

40 Paul Broca, anatomista francês (1824-1880).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 141


superior voluntário sofrerá muito. Na criança, o centro superior C, re-
lacionado aos movimentos voluntários, sofrerá mais do que o centro A,
dos movimentos simples.
O que observamos em doenças desse tipo no adulto? Um quadro
oposto. Nos adultos, normalmente, não se observa o distúrbio hiperdi-
nâmico, mas adinâmico. Eles ficam mais parados, retraídos, manifestam
distúrbios no andar e, com frequência, não conseguem estender a mão
sem que surja um tremor. Caso estendam a mão uma ou duas vezes, isso
se realiza de forma incrivelmente vagarosa. Quando se diz ao doente:
“Aperte o botão quando eu bater na mesa”, nessas pessoas, uma simples
reação tem a duração 100-200 vezes maior do que em qualquer um de
nós. Nesse caso, movimentos muito simples estão refreados ou afetados.
Porém, se a esse doente for solicitada uma tarefa que exige formas supe-
riores de movimento, ele parece se desvencilhar das amarras e a executa
bem. Há muito tempo, desde o início dos estudos com pós-encefálicos,
chamou-se atenção para esse paradoxo no seu desenvolvimento motor.
O doente não sabe dar dois passos em um cômodo ou dois passos pe-
quenos, mas sobe muito bem uma escada, porque andar pelo cômodo
é um ato automatizado que, em grau significativo, é transferido para os
centros inferiores automatizados, que são responsáveis por esse tipo de
movimento. Porém, o subir a escada exige que se atente voluntariamente
para onde se deve colocar o pé.
Mais que isso, é possível obrigar esse doente a andar pelo cômodo da
seguinte forma: desenhando linhas com giz no chão e pedindo que seus
passos sejam dados apenas sobre a linha. Então, ele andará. Vejam só,
ele consegue realizar com mais facilidade o mais complexo e não o mais
simples. Surpresas ainda maiores causam experimentos em que, diante
do doente, que não consegue dar passos ou dá passos incrivelmente pe-
quenos, se posiciona uma cadeira e se pede a ele que dê um passo por
cima dela. Então, posicionando diante dele, a cada passo, uma cadeira, é
possível obrigá-lo a andar uma grande distância, ou seja, cada vez que se
substitui um simples movimento automatizado por um mais complexo,
ele consegue executá-lo. No entanto, é quase incapaz de realizar movi-
mentos simples.
Ou, por exemplo, um dos experimentos que observei. Pede-se ao
doente que feche os olhos. Ele não pode executar de imediato esse ato
automatizado e, um tempo depois, executa, mas verifica-se que ele o faz
por via complexa, pela via de confluência. Durante um longo tempo,

142 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


ele não conseguia mostrar como se fecham os olhos. Foi preciso conferir
como funciona esse mecanismo, sendo-lhe proposto mostrar como dor-
mia. Então, ele fechou os olhos, inclinou a cabeça para o lado e mostrou.
Quando lhe diziam: “Feche os olhos”, ele pensava consigo mesmo: é pre-
ciso mostrar como eu durmo, e daí fechava os olhos, ou seja, novamente,
ao tornar uma tarefa mais complexa, ele a executava, solucionando-a por
uma via de confluência.
Agora, o último exemplo com experimentos que tive a oportunidade
de observar. Numa reação simples, o doente manifestava seus movimen-
tos de modo retraído, e se pedíamos a ele que, em resposta a um sinal,
apertasse o botão de um interruptor elétrico duas ou três vezes, o fazia
muito devagar. Porém, se lhe perguntássemos: “Quantos anos você tem?
Bata tantas vezes quantos anos você tem”, ele conseguia bater 37 anos.
Ou seja, quando não simplesmente batia, mas quando a batida era in-
cluída numa operação inteira – na contagem dos anos de sua idade –,
era-lhe possível realizá-la.
Em um adulto, paradoxalmente, é atingido fortemente o A, que na
criança, é menos atingido, sequer o é ou, se for, o é numa dire­ção con-
trária, porque a atividade do centro inferior se fortalece, torna-se inde-
pendente, livre da influência de retração que se origina nos centros su-
periores. No adulto, é exatamente o A que é atingido muito fortemente,
e o C, bem menos. Isso se expressa no fato de que uma tarefa simples
automatizada se transforma numa tarefa que exige formas superiores vo-
luntárias de movimento, sendo, assim, executada com muita facilidade.
Pode-se encontrar casos de adultos encefálicos que não conseguem andar
num chão plano, mas conseguem muito bem dar passos por cima de
cadeiras, quando obrigamos a agir o centro C, e isso se executa bem, mas
o centro A funciona mal.
Penso que, com esses exemplos, ficou clara para vocês a regularida-
de que, de fato, está na base dessa lei. Podemos passar agora à explica-
ção dessa regularidade e, em seguida, às conclusões gerais que decorrem
dela e das três leis de desenvolvimento do sistema nervoso, analisadas
anteriormente.
Como explicar que, na criança com o distúrbio de algum centro,
perturba-se mais o centro superior e, no adulto, o centro inferior corres-
pondente? Já nos deparamos com algo análogo quando falamos sobre o
desenvolvimento do sistema endócrino. Se vocês se lembram, examina-
mos os anões e falamos sobre os hipofisários. Tentamos mostrar que, na

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 143


infância, quando há insuficiência da hipófise, ocorre aplasia das glându-
las sexuais que, no desenvolvimento normal, são como os centros supe-
riores endócrinos em relação à hipófise e à glândula tiroidiana na idade
de amadurecimento sexual e depois dela.
Aqui, o que é essencial? Parece-me que é o fato de que as relações
entre centros cerebrais próprias do adulto surgem exatamente no de-
senvolvimento. É próprio do adulto que A dependa de B e B, de C.
Porém, no sistema nervoso, não é assim desde o início, isso surge no
desenvolvimento. Inicialmente, A, como vimos, age segundo a primeira
lei, independentemente e de modo autônomo em relação a B; posterior-
mente, a função se transfere para B, para o centro superior; depois, para
C, que está mais acima. Isso significa que, na infância, ainda não foram
estabelecidas as relações de dependência, hierárquicas, a subordinação
dos centros inferiores aos superiores, que é a lei para a atividade do cé-
rebro desenvolvido. Por força disso, se, na idade infantil, o centro B não
se desenvolve ou é afetado, pergunta-se: o centro C pode ou não se de-
senvolver? Não, porque o B é a condição prévia para o desenvolvimento
do centro C. A lei da passagem das funções para os centros superiores
enuncia que o desenvolvimento segue de baixo para cima. Inicialmente,
os centros inferiores agem; depois, a função se transfere para o centro
superior. Porém, se o centro inferior não existe, se ele não age por si, não
há nada para passar ao centro superior. Assim, as relações características
da atividade do cérebro desenvolvido de uma pessoa se estabelecem ao
longo do desenvolvimento. Por força disso, se um cérebro ainda ima-
turo é afetado, ou seja, um cérebro em que essas relações ainda não se
estabeleceram, então, por ter sido afetado na infância, as consequências
serão, num certo sentido, opostas às dos distúrbios que observamos na
idade madura. Por quê? Porque, em certo sentido, observa-se, na infân-
cia, uma relação de dependência oposta à da idade madura. Lembremos,
novamente, do sistema endócrino. No desenvolvimento, é a hipófise que
depende das glândulas sexuais ou o contrário? As glândulas sexuais de-
pendem da hipófise. Vocês se lembram do sistema endócrino na idade
de transição? O que depende de quê? A hipófise depende das glândulas
sexuais. São exatamente as glândulas sexuais e o amadurecimento sexual
que levam à redução da atividade da hipófise, não ocorrendo o cresci-
mento eunucoide. Ele ocorre na aplasia.
No cérebro desenvolvido, o que depende de que – B de C ou C de
B? B de C; num cérebro desenvolvido, os níveis inferiores dependem dos

144 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


superiores. O que surge antes no desenvolvimento? Os níveis inferiores.
No desenvolvimento, C depende de B. Por isso, os mesmos distúrbios
acarretam necessariamente quadros diferentes num cérebro maduro e
num cérebro em desenvolvimento.
Agora, no tempo restante, permitam-me expressar, em termos gerais,
as conclusões a que nos leva o exame das quatro leis fundamentais do
desenvolvimento do sistema nervoso.
A primeira consiste no fato de que, apesar de termos analisado o
desenvolvimento do sistema nervoso e de cada sistema ter peculiaridades
de desenvolvimento – em particular o nervoso –, nos deparamos com
relações de dependência que nos reportam ao sistema endócrino. Nesse
instante, gostaria de indicar as relações de dependência que nos fazem
lembrar o que encontramos no desenvolvimento psicológico.
Por que é possível que o desenvolvimento psicológico, o do sistema
nervoso e o do sistema endócrino tenham regularidades comuns? Por
força do fato de que todos os aspectos do desenvolvimento são partes
de um único processo. Eu os dividi em partes por comodidade para o
exame, mas, em sua essência, a psique não se desenvolve sem o cérebro e
este sem o sistema endócrino; tudo é um processo único. Por força dessa
unidade, apesar de cada aspecto do desenvolvimento ter suas leis espe-
cíficas, as que analisei não podem ser diretamente transpostas nem para
o desenvolvimento psicológico, nem para o endócrino. Porém, como
todos esses aspectos representam uma unidade, então, observam-se tam-
bém certas regularidades comuns.
O que encontramos como indício fundamental do desenvolvimento
psicológico da criança? Caso estejam lembrados, já o formulamos, dizen-
do que a essência do desenvolvimento psicológico da criança consiste,
em primeiro lugar, não no fato de que certas funções cresçam indepen-
dentemente: a memória aumenta, a atenção se reforça, cresce a percep-
ção, mas no fato de que cada degrau etário tem seu sistema de funções
psicológicas, com predominância de uma determinada função que está
no centro. Algo análogo a isso encontramos no desenvolvimento do sis-
tema nervoso, que está intimamente ligado ao psicológico no sentido de
que este parece ser o aspecto funcional daquele.
O que vemos agora? Na passagem de uma idade para outra, alteram-
-se apenas os centros ou as relações entre eles? As relações entre os cen-
tros se alteram tanto que, ao final do desenvolvimento, elas se tornam
contrárias. No início, tudo depende do centro inferior, mas, ao final, este

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 145


depende integralmente dos centros superiores. Essa alteração das relações
intercentrais como fato fundamental do desenvolvimento do sistema
nervoso e a mudança das ligações interfuncionais como fato fundamen-
tal do desenvolvimento psicológico, na realidade, representam dois as-
pectos intimamente ligados de um mesmo processo de desenvolvimento.
No entanto, as relações se alteram também no sistema endócrino.
Em que consiste o desenvolvimento no sistema endócrino? Vimos que
diferentes glândulas amadurecem em tempos diferentes. Altera-se não
apenas a força, a potência ou a massa de determinada glândula, mas tam-
bém as relações entre elas. Parece-me que, nesse instante, encontramos a
fórmula comum que nos ajudará a compreender teórica e corretamente a
essência de qualquer aspecto do desenvolvimento infantil. Precisamente,
a sua essência consiste na alteração das relações existentes em um todo
único, e o organismo representa uma totalidade complexa. As relações,
por sua vez, definem como é estruturado o organismo, como essa tota-
lidade se estrutura. A criança, num certo degrau de desenvolvimento,
difere do adulto não em função de apresentar as mesmas relações que
ele em tamanhos reduzidos, ou seja, ela é, em certo sentido, outro orga-
nismo. O fato central do desenvolvimento infantil, seja o do sistema
endócrino ou o do organismo como um todo, o assim denominado
desenvolvimento físico, seja o do sistema nervoso ou o psicológico,
permanece sendo a alteração das relações internas do todo, a nova or-
ganização que a criança apresenta em cada novo degrau etário.
Gostaria de finalizar com uma ideia que tive a oportunidade de ouvir
de uma das maiores autoridades no estudo do desenvolvimento morfo-
lógico da criança, ideia a que chegou em seu campo assim como nós no
nosso. Ele diz que, antigamente, consideravam o crescimento como o
fenômeno fundamental do desenvolvimento físico. Por isso, considera-
va-se que este se realizava de forma mais enérgica na primeira infância,
nos primeiros meses, nos primeiros anos de vida, e, posteriormente, essa
energia caía. Ele demonstrou que, nos primeiros meses e anos de vida, no
início do desenvolvimento, ocorria principalmente o aumento da massa,
ou seja, o próprio desenvolvimento transcorria com pouca intensidade.
O desenvolvimento, que consiste na reestruturação de partes e de re-
lações, transcorre intensamente, aumentando a cada idade, e toda sua
essência consiste na reestruturação das relações entre os sistemas em cada
novo degrau etário. Num curso mais específico de pedologia da idade,
será possível mostrar que, na primeira infância, a criança respira de forma

146 Fundamentos da Pedologa de L.S. Vigotski


diferente de uma mais velha. Isso acontece não apenas no sentido de que
a respiração seja mais ou menos intensa do que na criança mais velha,
mas no sentido de que há outro sistema, outra estrutura orgânica dos
pulmões, sendo outro o próprio processo de respiração. O mesmo pode
ser dito em relação ao sistema ósseo, ao sistema muscular etc. Porém, o
crescimento, com isso, não perde seu significado. Ele se apresenta em
todos os campos do desenvolvimento, seja o físico, seja o psicológico.
É exatamente por isso que é desenvolvimento. As alterações se movem
numa determinada direção, na do crescimento maior, mas este não é o
aspecto primário pelo qual deve ser explicado todo o desenvolvimento.
O crescimento é o próprio resultado, o aumento das funções que surge
como resultado de uma organização nova e mais elevada do todo que se
desenvolve.
Assim, o crescimento não é o motivo primeiro. Num certo sentido, é
o resultado, a expressão dos processos de desenvolvimento.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 147


As falsas ideias de
L. S. Vigotski na
pedologia41

Eva Izrailevna Rudniova

Nota inicial da edição russa


Este trabalho, assinado por Ie. I. Rudniova, contém, por um lado, uma
crítica “às deturpações de Vigotski na pedologia” e é citado com relativa
frequência. Foi publicado numa tiragem de 10 mil exemplares, um ano
e meio depois da publicação da resolução do CC do PCR(b)42 “Sobre as
deturpações da pedologia no sistema dos Narcompros”,43 de 4 de julho
de 1936. Por outro lado, representa uma campanha patriótica contra a
“adulação” e a “reverência” ao Ocidente (manifestadas, principalmente,
em publicações científicas no exterior) ocorrida no âmbito do “caso do
acadêmico N. N. Luzin” (a campanha na imprensa de 3 de julho a 6 de
agosto de 1936). Na presente brochura, a crítica a Vigotski é apresentada

41 Traduzido do original russo: Rudniova, E. I. Pedologuitcheskie izvraschenia Vigotskogo.


Moscou: 2012 (livro encomendado).
42 Comitê Central do Partido Comunista Russo (dos bolcheviques) (N. da T.).
43 Narodni Comissariat po Prosvescheniu (Narcompros) – Comissariado do Povo para Educação
(N. da T.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 149


em duas direções: pela linha da crítica ao mecanicismo, aos testes e, mais
amplamente, à pedologia e pela linha da crítica ao ecletismo de sua teo-
ria, resultante de uma aceitação não crítica de várias teorias psicológi-
cas estrangeiras. É um exemplo clássico de uma aparente “proibição de
Vigotski” na União Soviética entre meados dos anos 1930 e os anos 1950
e uma grande raridade bibliográfica, apesar da sua grande tiragem. Além
disso, é um exemplo maravilhoso do discurso crítico na ciência soviética
em meados dos anos 1930. A brochura de Rudniova dialoga tematica-
mente com a investigação crítica de A. N. Leontiev, “O estudo do meio
nos trabalhos pedológicos de L. S. Vigotski” (publicado pela primeira
vez na revista Voprosi Psirrologuii, 1998).
A brochura da [camarada] Rudniova, em breves linhas, apresenta uma
crítica das deturpações pedológicas nos escritos de Vigotski e mostra sua
relação com a teoria “antileninista” da morte gradual da escola.

A Resolução do CC do PCR(b), de 4 de julho de 1936, “Sobre


as deturpações pedológicas no sistema dos Narcompros”,44 exige o des-
mascaramento das concepções antimarxistas, cientificamente falsas, no
trabalho de formação e de educação, e asseiam o caminho para a criação
da ciência das crianças verdadeiramente marxista.
Um dos “pilares” da pedologia foi L. S. Vigotski. Seus livros acarre-
taram um grande mal à escola soviética.
A análise dos trabalhos de Vigotski, publicados ao longo de 10
anos, começando por A pedologia da idade escolar e terminando com
Pensamento e fala (1934), desvenda o caráter antimarxista de seus pontos
de vista e sua relação orgânica com a “teoria antileninista da morte gra-
dual da escola”.
Ele apresentava como “novidades” os escritos reacionários de cien-
tistas burgueses. Essas fontes reacionárias alimentavam também a tola e
antileninista “teoria da morte gradual da escola”.
A “teoria da morte gradual da escola”, antileninista, perpassa todas as
expressões de Vigotski, particularmente em A pedologia da idade escolar e
A pedologia do adolescente.
Já nos primeiros trabalhos, afirma que os pais e os professores não
têm direito de prescrever nada às crianças. Com muita frequência, trans-
creve as palavras de Tolstói: “A educação estraga, não corrige”. Ele fala
44 Para consulta, ver a tradução desse documento em Prestes, 2010, Anexos.

150 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


contra os elogios e castigos, contra exames e notas. O trabalho educacio-
nal, segundo Vigotski, é uma anormalidade: ao tentar prevenir atitudes
ruins dos estudantes, parece que fixamos a atenção deles nessas atitudes.
A educação estética também deve seguir seu próprio fluxo, pois, segundo
a visão falsa de Vigotski, a criação infantil é espontânea, porém se carac-
teriza por verdadeiros modelos de arte, poesia etc.
Na cidade do futuro, na opinião de Vigotski, não haverá nenhum
prédio no qual estará o letreiro “escola”, porque a escola entrará por com-
pleto no trabalho e na vida, estará na fábrica, na praça, no museu, no
hospital, no cemitério. Como se vê, o seu ponto de vista coincide por
completo com as expressões “esquerdistas” de V. N. Chulguin, que bra-
dava a favor da tola e antileninista “teoria da morte gradual da escola”.
Em seus últimos trabalhos – Pensamento e fala, O desenvolvimento
mental das crianças no processo de instrução –, Vigotski nega a influência
da instrução no desenvolvimento, reduz o papel do conhecimento, ten-
tando se referir a suas “investigações” tanto no campo da natureza do
objeto (compreensão da palavra oral e escrita) quanto também das espe-
cificidades psíquicas da criança (interpretação sobre o desenvolvimento
das funções psicológicas, dos conceitos etc.).
Ele seguia cegamente cada nova corrente que surgia na psicologia
burguesa. Tentando tecer uma “crítica” a Piaget, a Koffka e a outros, ele,
na verdade, os seguia. Não superava as correntes psicológicas burguesas,
mas as tomava emprestadas sem criticá-las. O ecletismo na sua concep-
ção está expresso claramente: é difícil encontrar alguma corrente na psi-
cologia burguesa que tenha surgido nas duas últimas décadas e que não
tenha encontrado lugar em seus trabalhos. Freud, Dewey, Levi-Bruhl,
Adler, Verner, Piaget, Clapared, Koffka, Keller, Levin – todos, de certa
forma, encontraram repercussão em seu sistema eclético.
Ao longo de sua vida, Vigotski esteve sob a influência de diferentes
correntes pedológicas e psicológicas e, invariavelmente, em todas as eta-
pas de seu trabalho, objetivava “fundamentar” psicologicamente a “teoria
da morte gradual da escola”. Seguindo seus professores burgueses, toma-
va deles a metodologia de investigação. Em função disso, seus trabalhos
e os trabalhos de seus alunos realizados com crianças se configuravam,
essencialmente, como chacotas com as nossas crianças soviéticas e se re-
duziam a testes e questionários tolos e absurdos elencados por Piaget,
Clapared e outros.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 151


Dessa forma, Vigotski-pedólogo relacionava suas expressões nocivas
tanto com questões psicológicas quanto pedagógicas, tentando solucio-
nar problemas tais como instrução e educação. Dedicou, em seus es-
critos, muita atenção, principalmente nos últimos anos de sua vida, às
questões do pensamento e da fala, cuja resolução tem um significado
enorme para a psicologia e para muitos problemas pedagógicos.

O problema do pensamento e da fala em Vigostki


A análise das expressões de Vigostki sobre a questão do pensamento e da
fala mostra que ele tem posições antileninistas e idealistas. Toda a ativi-
dade psíquica da pessoa é vista ou analisada por ele não à luz da teoria
leninista da reflexão, como um processo complexo, único e dialético de
reflexão ativa na consciência humana da realidade objetiva, mas como
um processo idealista, imanente (interno e autossuficiente), um processo
que ocorre fora das relações sociais de classes, fora da atividade produtiva
das pessoas.
A palavra aparece nos seus estudos na qualidade de instrumento, de
ferramenta que organiza toda a atividade psíquica.
“A tomada de consciência é um ato da consciência e o objeto dela é a
própria atividade da consciência” (Pensamento e fala, p. 193). Em Marx,
o objeto da consciência é a existência consciente, mas, em Vigotski, a
própria consciência aparece na qualidade de objeto. Segundo ele, os con-
ceitos científicos superiores não se apoiam na percepção da realidade
real, mas a sua fonte é a palavra. A passagem de uma forma de pensa-
mento para outra, na criança, tem um caráter de autodesenvolvimento e
os conceitos superiores de tipo científico “não podem ser introduzidos na
consciência da criança de fora para dentro” (Pensamento e fala, p. 176).
Enquanto sabemos que o desenvolvimento do pensamento na criança
e o domínio de formas mais complexas de pensamento acontecem sob
uma ação direta da educação e da instrução no processo de domínio do
patrimônio cultural da humanidade, Vigotski, por sua vez, diz que tanto
a memória quanto a atenção são uma força específica contida em nós.
Ele ignora a base material dos fenômenos psíquicos, quando, como é
evidente, sem um substrato material, não podemos compreender nem
explicar os processos psicológicos. Lenin atribuía um significado muito
importante ao estudo do substrato material dos fenômenos psíquicos.
Escreveu: “[...] o psicólogo científico renegou as teorias filosóficas da

152 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


alma e passou ao estudo direto do substrato material dos fenômenos psí-
quicos, isto é, dos processos nervosos e apresentou, digamos, uma análise
e uma explicação de certos processos psíquicos”. Lenin considerava tão
importante o estudo do substrato material que, até certo grau, compara-
va a mudança de rumo ocorrida na psicologia por meio desse estudo com
a reviravolta provocada por Marx no estudo da sociedade.45
Em questões psicológicas e cognitivas básicas, Vigotski defendia as
posições do idealismo subjetivo, mas, como eclético, conjugava-o com o
materialismo vulgar, principalmente no período de 1925 a 1930. Assim,
nos trabalhos publicados entre 1926-1927, ele conjugou a reflexologia
e o freudismo; em A pedologia da idade escolar (1928), a reflexologia e
a psicologia estruturalista; em A pedologia do adolescente (1931), a refle-
xologia e a teoria de Piaget etc. Por isso, não é de se admirar que, em
alguns trabalhos seus, encontremos as expressões materialistas vulgares e,
em outros, opinião de ordem subjetivo-idealista a respeito das mesmas
questões. Sobre a consciência e algumas funções psíquicas, podemos en-
contrar seu ponto de vista vulgar-materialista em afirmações do tipo “a
consciência é apenas o reflexo dos reflexos” (coletânea Psicologia e mar-
xismo, p. 190) e “o inconsciente e o psíquico são o que os reflexos sig-
nificam, transmitidos para outros sistemas etc.” (Psicologia e marxismo,
artigo de Vigotski, p. 187-189). Cada função psíquica é analisada por
ele do ponto de vista da reflexologia. A atenção é um sistema de reações.
A memória, de um ponto de vista grosseiro e mecânico, apenas um elo
entre estímulos e um grupo de reações. Todo processo de instrução é
construído em base reflexológica, isto é, se resume, em outras palavras, a
puro adestramento.
Em A pedologia da idade escolar (1928), Vigotski também reduz o
pensamento e determinadas funções psíquicas a reflexos. No artigo in-
trodutório ao trabalho de Thorndike, Os princípios da instrução basea-
dos na psicologia, de 1930, Vigotski analisa a concepção behaviorista de
Thorndike como “bolchevismo na psicologia”.
As ideias que apresenta sobre a questão da psique mostram que ele
claramente ignora o estudo marxista-leninista, segundo o qual a psique
não pode ser reduzida ao movimento da matéria. Entretanto, sabe-se

45 Ver “Quem são os ‘amigos do povo’ e como eles lutam contra os ‘social-democratas’”, Obras,
v. 1, 3ª edição, p. 64-65 (N. da E. R.).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 153


muito bem que Marx, Engels e Lenin lutavam contra tal reducionismo
vulgar. Em Materialismo e empiriocriticismo, Lenin escreveu:
Os pontos de vista [dos materialistas] não consistem em extrair a
sensação do movimento da matéria ou reduzi-la ao movimento da
matéria, e sim reconhecer a sensação como uma das qualidades da
matéria em movimento (Lenin, Materialismo e empiriocriticismo, t.
XIII, p. 38, inserção da edição russa).

Nos últimos trabalhos (Pensamento e fala, O desenvolvimento men-


tal da criança no processo de instrução e outros), Vigotski permanece em
posições mecanicistas. O equívoco metodológico e pedagógico da sua
“teoria” do pensamento se refletiu principalmente na sua interpretação
do conceito.
Vigotski destinou uma considerável atenção à questão da formação
e do desenvolvimento de conceitos nas crianças, principalmente em seu
último trabalho (Pensamento e fala), apresentando uma divisão comple-
tamente falsa dos conceitos em científicos e cotidianos. Os “estudos” de
seus alunos mais próximos – O desenvolvimento dos conceitos científicos
nos escolares, de Chif, e Sobre a questão do desenvolvimento do pensamento
nos escolares, de Zankov – também são dedicados a esse assunto. Antes
de mais nada, é totalmente incorreta a divisão que Vigotski faz dos con-
ceitos em cotidianos e científicos. Segundo a sua “teoria”, os conceitos
cotidianos surgem na criança como resultado de relação (obschenie) com
o meio, mas os científicos surgem no processo de instrução com base
nos conceitos cotidianos. O conceito científico, segundo ele, pode sur-
gir apenas com base no conceito cotidiano e, contrariando os principais
postulados do marxismo, se origina não da reflexão do mundo objetivo
em nossa consciência, mas da palavra.
Da mesma forma, a interpretação que tem a respeito da natureza
do conceito contraria nitidamente o estudo de Lenin. De forma defini-
tiva, Marx diz: “A dialética dos conceitos tornava-se apenas uma refle-
xão consciente do movimento dialético do mundo externo” (Marx, “L.
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, Obras escolhidas, t. 1, p.
350). Segundo Lenin, o conceito é o reflexo da natureza na consciência
do homem.
O desenvolvimento do conceito na infância é analisado por Vigotski
também como um processo de desenvolvimento interno independente.

154 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


Ele fala sobre a maturação do conceito. A substituição gradual das etapas
qualitativamente diferentes do conceito ocorre como resultado de leis
internas.
O desenvolvimento do conceito na criança, segundo ele, acontece
em três etapas: sincréticos, por complexos e conceitual. A primeira eta-
pa (até os dois, três anos) se caracteriza pelo fato de que as representa-
ções da criança parecem se formar pelo método de tentativas e erros de
Thorndike e se manifestam como um conjunto “não configurado e não
ordenado”.
O estágio de desenvolvimento por complexo que apresenta, seguin-
do Werner, transcorre até os 12-13 anos. A Vigotski parecia que, nesse
estágio de desenvolvimento, os conceitos se diferenciam por sua subjeti-
vidade; o estabelecimento de uma relação entre os conceitos a respeito de
diferentes objetos está fora de qualquer ligação com a realidade objetiva.
“A causalidade, a indeterminação das configurações e a ausência de limi-
tes, em especial, são traços que diferenciam o pensamento por comple-
xo.” Apenas depois dos 12 anos, segundo Vigotski, a criança passa para
o pensamento por conceito. “Apenas com 12 anos, ou seja, com início
da idade de transição, a criança começa a desenvolver processos que a
levam à formação de conceitos e ao pensamento abstrato” (Pensamento
e fala, p. 106).
Dessa forma, também a passagem de um estágio de desenvolvimen-
to dos conceitos para outro, segundo Vigotski, é o resultado exclusivo
de autodesenvolvimento. Ele tenta explicar todo o desenvolvimento dos
conceitos na criança apenas pelos traços etários, e o próprio conceito de
desenvolvimento etário é construído com base no desenvolvimento orien-
tado internamente, numa autorrevelação peculiar, ou seja, com base na
mesma e assim denominada lei biogenética, que é contrarrevolucionária.
A oposição categórica entre os conceitos cotidianos e científicos está
intimamente ligada à posição idealista de Vigotski, à sua interpretação
formalista e lógica do conceito científico, que, segundo ele, está livre de
qualquer conteúdo concreto, reconhecendo este último apenas no con-
ceito cotidiano que foi criado artificialmente por ele.
Ao contrapor esses dois tipos de conceitos, ele apresenta uma contra-
dição bastante equivocada:
O desenvolvimento do conceito “irmão” [cotidiano] não começou
com a explicação do professor nem com a formulação científica do

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 155


conceito. No entanto, esse conceito está impregnado de uma rica ex-
periência da criança. Porém, é exatamente o que foi dito por último
– não é possível dizer a respeito do conceito “A lei de Arquimedes”
(Pensamento e fala, p. 177, inserção da edição russa).

O mesmo postulado falso repete Chif, aluna de Vigotski, dizendo:


“O aspecto fraco dos conceitos científicos se apresenta na sua pobreza
de conteúdo, no seu verbalismo. […] Os conceitos cotidianos são muito
impregnados de conteúdo” (Chif, O desenvolvimento dos conceitos cientí-
ficos em escolares, p. 168). Como vemos, Vigotski interpreta o conceito
no espírito da lógica formal.
Sabe-se que a lógica formal estabelece uma dependência proporcio-
nalmente inversa entre o volume e o conteúdo do conceito. “Quanto
maior o volume do conceito, quanto mais geral ele for, mais pobre é seu
conteúdo, e quanto mais rico for o seu conteúdo, menor é seu volume”
(Vvedenski, Lógica como parte da teoria do conhecimento, p. 68). A inter-
pretação dada por Vigotski aos conceitos cotidianos e científicos com-
prova que o abstrato e o concreto são compreendidos por ele no espírito
da psicologia burguesa, que se apoia na lógica formal.
Ele evidentemente ignora o estudo marxista-leninista sobre o abs-
trato e o concreto. A dialética da passagem da sensação para a ideia, da
unidade para o todo consiste, exatamente, no fato de que o todo não
descarta a unidade, mas a conserva.
O pensamento, que ascende do concreto para o abstrato, não se
distancia da verdade – caso esteja correto (NB) (Kant, assim como
todos os filósofos, falava do pensamento correto) –, mas se aproxima
dela. A abstração da matéria, da lei da natureza, a abstração do valor
etc., em uma palavra, todas as abstrações científicas (corretas, sérias,
não absurdas) refletem a natureza com mais profundidade, mais
corretamente, mais plenamente (Coletânea de trabalhos de Lenin,
IX, p. 165-166 ou Cadernos filosóficos, p. 166).

“O concreto é concreto porque é uma combinação de múltiplas de-


terminações, sendo uma unidade da diversidade” (Marx, “Introdução
à Crítica da Economia Política”, em Marx e Engels, Obras completas, t.
XII, parte I, p. 191).

156 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


O problema de formação e desenvolvimento dos conceitos é um dos
mais atuais na pedagogia; a ele estão relacionadas questões fundamentais
do processo de estudo, como a metodologia do ensino, a elaboração de
livros didáticos e de material visual.
O entendimento de Vigotski acerca do conceito científico como um
conceito depurado de conteúdo acarreta, inevitavelmente, um esquema-
tismo na instrução.
Não se pode assimilar uma generalização se ela não inclui as riquezas
de um material factual. A generalização só será valiosa caso abranja uma
grande quantidade de material de fato. Apenas uma junção orgânica do
material factual com a generalização pode criar uma base sólida na cons-
ciência, um fundamento resistente para os próximos conhecimentos.
A divisão dos conceitos em científicos e cotidianos de Vigotski car-
rega um caráter artificial e inventado. É difícil adivinhar, pela concep-
ção de Vigotski, por que a palavra “cinema” é um conceito cotidiano,
mas “exploração” é apenas um conceito científico. O conceito “cinema”
não está apenas ligado à experiência pessoal da criança e pode ser com-
preendido com a orientação do professor; no entanto, inicialmente, o
conceito de exploração, em um país capitalista, pode ser adquirido pela
experiência própria da criança. A interpretação de Vigotski a respeito do
problema do pensamento leva não apenas ao esquematismo na instru-
ção, mas também à formação de complexos. Segundo Vigotski, o de-
senvolvimento de conceitos em crianças de 12 anos é por complexo, e a
instrução, de acordo com esses postulados falsos, deve ser também por
complexo. A psicologia estruturalista, que, nos últimos anos, indubita-
velmente influenciou Vigotski, foi utilizada por ele para fundamentar o
sistema de instrução por complexos. Em contraposição à velha psicolo-
gia, que analisava os fenômenos psíquicos como uma combinação mecâ-
nica das sensações, das ideias, a psicologia burguesa estruturalista analisa
cada fenômeno psíquico como uma totalidade, além de independente
em relação às especificidades das partes.
Koffka foi bastante coerente quando, partindo dos princípios da psi-
cologia estruturalista, afirmou que a instrução nunca é específica, o que,
na tradução para a linguagem da escola, significa a independência da
instrução em relação ao seu conteúdo.
“A instrução” afirma Vigotski seguindo Koffka, “é a formação da
estrutura”. A estruturação, no entendimento de Vigotski, está ligada à

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 157


depuração de certos objetos de suas especificidades e à instrução por
complexos.
O sistema de instrução por complexos, condenado pelo partido e
pelo governo, rechaçado pela teoria e pela prática da instrução, é fun-
damentado psicologicamente por Vigotski em todos os seus trabalhos.
Em 1934, ele repete que o pensamento por complexo é fato e aponta
que o erro dos pedólogos se dá apenas quando orientam os professores
para a instrução por complexo, quando o pensamento por complexo já
seria uma etapa do passado.
Dessa forma, e também após os decretos do CC do PCR(b) sobre
a escola, Vigotski se apresentou como defensor da instrução do sistema
por complexo.
Sua teoria a respeito da origem e do desenvolvimento da língua, da
qual decorre a negação do papel da gramática na instrução, é antimarxis-
ta, anticientífica, como vamos demonstrar agora.
A interpretação idealista, formal e dogmática da palavra oral e escrita
o leva a conclusões esquerdistas em relação ao papel da gramática.
A sua afirmação de que a fala e o pensamento têm raízes genetica-
mente diferentes caminha na contramão dos estudos de Marx e Engels
sobre a origem e o desenvolvimento do pensamento e da fala como de-
corrência do processo social do trabalho. Esse postulado de Vigotski
também é oposto aos dados do estudo marxista-leninista da linguística,
à teoria jafética, de Marr, sobre a unidade da língua e do pensamento.
Desse modo, a passagem da língua linear, gesticulada, por meio da
mímica para a sonora e a do pensamento concreto para o abstrato está
ligada à transição da utilização de instrumentos naturais para artificiais.
“As raízes da fala herdada não estão na natureza externa, nem dentro de
nós, dentro da nossa natureza física, mas no social, em sua base material,
nos meios de produção e na técnica” (Marr, Teoria jafética, p. 18). Sobre
a origem do pensamento, Marr diz: “A tomada de consciência não foi
criada natural e historicamente apenas pelo fato de encontrar o objeto
no meio físico, e sim nos processos de produção e de emprego da técnica,
que não são tomados da natureza, mas da produção” (Teoria jafética, p.
84).
Entre o pensamento e a fala, que surgem, segundo a opinião de
Vigotski, de diferentes fontes, são estabelecidas relações funcionais bem
complexas ao longo do processo de desenvolvimento e o resultado é a
unidade da fala e do pensamento.

158 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


A unidade da fala e do pensamento, segundo ele, se realiza no signi-
ficado da palavra. Ele chega à ideia de equivalência entre o pensamento
e a palavra.
Na realidade, cada palavra não é apenas uma generalização, mas
uma unidade gramatical também. Entre o conteúdo e a forma da palavra
existe uma unidade dialética, não uma equivalência: a palavra pode ser
complexa por seu conteúdo, porém simples por sua forma e vice-versa.
A desconsideração da forma da palavra é certa desvalorização da regra
gramatical.
Vigotski chega à conclusão de que
a criança da idade pré-escolar já domina todas as formas básicas gra-
maticais e sintáticas. A criança na escola, durante o estudo da língua
materna, não adquire essencialmente novas habilidades de formas
e estruturas gramaticais e sintáticas. Desse ponto de vista, o estudo
da gramática é realmente desnecessário (Pensamento e fala, p. 213).

Essas conclusões arquiesquerdistas, que acarretaram muito prejuízo


à escola, decorrem da “teoria” antimarxista de Vigotski sobre a língua.
A análise de suas expressões sobre a questão das funções psíquicas
superiores e também a respeito de outras questões diretamente ligadas ao
processo de instrução mostra, com bastante clareza, que os preconceitos
da teoria antileninista da morte gradual da escola, que são mencionados
na Resolução do CC do PCR(b) de 3 de setembro de 1935, se alimen-
tam da concepção de Vigotski.
A “teoria” das funções psíquicas superiores foi desenvolvida por
Vigotski em seus primeiros trabalhos – Pedologia da idade escolar, de
1930, e Pedologia do adolescente – e se repete, sem alterações específicas,
em seus últimos livros.
O postulado inicial da teoria de Vigotski é a falsa divisão de todas as
funções psíquicas em inferiores e superiores.
A voluntariedade e a tomada de consciência, segundo ele, são os tra-
ços principais das funções psíquicas superiores. A função psíquica deve
se tornar consciente e voluntária para ser superior. As funções psíquicas
superiores são mediadas, intelectualizadas e estruturadas com base no
pensamento.
A essência do desenvolvimento cultural de qualquer função psí-
quica parece consistir no fato de “que a criança aprende a utilizar

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 159


funcionalmente determinados signos conhecidos como meio para execu-
tar certa operação psíquica” (Pedologia da idade escolar, p. 30). De modo
completamente equivocado, Vigotski afirma que a mediação, a intelec-
tualização da função ocorre sob a influência da palavra que aparece como
um signo, um símbolo.
Apoiando-se na “teoria” muito nociva e contrarrevolucionária de de-
senvolvimento cultural, Vigotski afirmava que a memória da criança,
assim como a memória do homem primitivo, é eidética: segundo ele,
40% das crianças passam pelo estágio eidético, mas se forem incluídas as
crianças com memória eidética oculta, então são 100%.
A essência da eidética consiste na capacidade de enxergar, no sentido
literal dessa palavra, a imagem em todos os seus detalhes e, posterior-
mente, como ela age diretamente na percepção visual. A memória eidéti-
ca é a memória fora da imagem, ela limita a percepção da criança apenas
numa situação presente.
As imagens eidéticas são subjetivas, não diferenciadas e parecem ser
características do ser humano que está no estágio inferior do desenvol-
vimento cultural.
Essa “teoria” arquirreacionária foi tomada emprestada por Vigotski
do psicólogo alemão E. Ensh, que agora é nitidamente um agente direto
do fascismo.
Aliás, Vigotski conhecia bem as línguas estrangeiras e esteve no ex-
terior; por isso, não poderia desconhecer o ódio animal do demagogo
fascista Ensh em relação à União Soviética, ao marxismo e, apesar disso,
sem escrúpulos, trouxe essas bobagens para as páginas de nossa imprensa.
Seguindo os psicólogos e pedólogos burgueses, Vigotski afirmou
que, aos 12 anos, a memória da criança passa da esfera da percepção para
a do pensamento e, na realidade, na sua interpretação, se dissolve no
pensamento. A memória lógica é interpretada por ele como livre de tudo
que é concreto. Ele escreve: “A memória é preenchida não apenas por
imagens concretas das impressões, mas também por seus conceitos, suas
ligações e relações. [...] A memorização de imagens concretas é substituí-
da pela assimilação dos conceitos” (Pedologia do adolescente).
A redução da memória cultural lógica à “memória de conceitos” e
ligações externas a imagens concretas tem por base uma compreensão
idealista da natureza da memória e leva à sua dissolução no pensamento.

160 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


Essa interpretação da memória é uma expressão de Janet sobre as
ideias de Mach. Janet diz “que o tempo foi criado pela memória”. Tudo
em nosso conhecimento humano é construção mental.
Em relação à instrução de crianças, essa ruptura entre a memória
lógica e as imagens e representações leva a justificar o esquematismo da
sociologização no ensino das bases das ciências. Aos 12-14 anos, segun-
do Vigotski, a atenção, assim como a memória, de direta e espontânea,
se transforma em mediada e intencional; de sistema de percepção passa
para o sistema de pensamento e praticamente se dilui nele.
Tal entendimento da atenção, tal ruptura brusca entre voluntário e
involuntário é refutada pelo seu desenvolvimento no plano genético e
funcional. A atenção voluntária surgiu da involuntária, como foi mos-
trado por Ribot.
Na questão do desenvolvimento das funções intelectuais, Vigotski
se encontra sob a influência dos psicólogos burgueses como Piaget,
Clapared e Adler. Desse último, tomou emprestada a assim chamada
teoria da compensação, a essência da qual se reduz, segundo Adler, ao
seguinte: o desenvolvimento insuficiente dos processos intelectuais su-
periores é encontrado com mais frequência nos trabalhadores e é com-
pensado (restabelecido) com o desenvolvimento das funções psíquicas
elementares. Essa “teoria” burguesa, demasiado nociva, encontrou uma
utilização ampla em Vigotski na questão das crianças mentalmente re-
tardadas. A “teoria” da compensação de Adler “fundamenta” a “lei” rea-
cionária da pedologia contemporânea sobre a predestinação para retardo
mental de crianças das classes trabalhadoras.

Instrução e desenvolvimento mental da


criança na falsa ciência de Vigotski
As questões do desenvolvimento mental da criança sem dúvida inte-
ressam a cada professor, a cada um que trabalha com crianças. O de-
senvolvimento mental depende muito da organização e do método de
instrução. A unidade do processo de ensino, educação e desenvolvimen-
to mental da criança decorre do estudo marxista-leninista sobre o pro-
cesso de conhecimento. A instrução e o desenvolvimento constituem
uma unidade. A instrução provoca e direciona uma série de processos
de desenvolvimento intelectual. O domínio de conhecimentos leva ao
desenvolvimento, ao aperfeiçoamento das funções psíquicas. Para nós, o

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 161


desenvolvimento mental não é apenas um pré-requisito para a instrução,
mas também seu resultado. Agora, os falsos teóricos da pedologia abor-
daram essa questão com sua “lei” antirrevolucionária de predestinação
fatalista das crianças.
Vigotski, nessa questão, assim como em uma série de outras, perma-
neceu como um fiel aluno dos teóricos burgueses, refletindo, em conse-
quência, correntemente a influência de Torndike, Buhler, Piaget, Koffka
e outros.
Os psicólogos burgueses, de acordo com sua metodologia, analisam
o desenvolvimento do intelecto de forma isolada em relação à realidade,
abstraindo-o das condições concretas do processo de ensino e conheci-
mento, o que leva à ruptura entre o desenvolvimento mental e a instru-
ção (Piaget) ou à dissolução da instrução no desenvolvimento (Koffka),
à subestimação dos saberes escolares.
Vigotski afirma que a instrução e o desenvolvimento formam uma
unidade, sendo que a instrução tem o papel guia. A instrução impulsiona
o desenvolvimento, mas apenas quando se apoia nas funções não ama-
durecidas, nas que ainda não finalizaram seu amadurecimento, não no
desenvolvimento de hoje, mas no de amanhã. O papel guia da instrução
é aparente e falso. Na realidade, a instrução, em Vigotski, desempenha
um papel externo em relação ao desenvolvimento, não altera nada no
desenvolvimento da criança. É uma afirmação absolutamente incorreta
e mentirosa. Todo professor sabe muito bem como aumenta o desenvol-
vimento da criança com a chegada dela à escola, como é completamente
impossível separar o desenvolvimento da criança da instrução.
Os pontos de vista de Vigotski sobre instrução e desenvolvimento
se refletiram de forma extremamente nociva na assim chamada teoria da
zona de desenvolvimento iminente. Vigotski chama de zona de desen-
volvimento iminente
a distância entre o nível atual de desenvolvimento da criança, que é
determinado com a ajuda de testes que são resolvidos pela criança
de maneira independente, e o nível de um desenvolvimento possível
que também é determinado com a ajuda de testes, mas que são re-
solvidos pelas crianças sob a orientação do adulto.

162 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


A “teoria” da zona de desenvolvimento iminente, que Vigotski e seus
alunos apresentam como “descoberta”, foi tomada emprestada da pes-
quisadora americana Mc Carthy.
Vigotski atribui um papel muito grande à zona de desenvolvimento
iminente na pedagogia. Ela é, segundo ele, um meio para “diagnosticar
o desenvolvimento mental, o aproveitamento escolar e para organizar as
turmas escolares”.
Do ponto de vista dessa falsa teoria de Vigotski, a escola e o professor
são totalmente incapazes de alterar o desenvolvimento da criança. Isso se
torna muito nítido quando ele trata da influência da escola no desenvol-
vimento mental e do aproveitamento escolar dos estudantes.
Ele afirma que o fraco aproveitamento de crianças que chegam à
es­cola com o desenvolvimento mental alto (QI), em comparação com
o aproveitamento de crianças com o intelecto menos desenvolvido, se
ex­plica pelo fato de, no primeiro grupo, a zona de desenvolvimento imi­
nente das crianças estar esgotada e sublinha o fatalismo: 5% de escolares
estão destinados ao não aproveitamento escolar porque já “perpassaram”
a zona de desenvolvimento iminente.
Segundo Vigotski, ocorre que, se o nível de desenvolvimento mental
das crianças que chegam à escola aumenta sob a influência do crescente
nível cultural dos trabalhadores, o aproveitamento na escola, por sua vez,
diminui. Ele escreve:
Eles [quem chegou com o nível mental mais elevado] o obtêm por
conta da zona de desenvolvimento iminente, ou seja, eles perpassam
sua zona de desenvolvimento iminente antes e, por isso, têm uma
zona de desenvolvimento relativamente pequena, pois já a utiliza-
ram em certa medida (Vigotski, Desenvolvimento mental de crianças
no processo de instrução, p. 52, inserção da edição russa).

Dessa forma, verbalmente, a instrução é predominante, é guia, mas,


na verdade, o significado da instrução é negado. Vigotski chega à “con-
clusão” absurda de que a escola não só não promove o desenvolvimento
mental da criança, mas o retarda.
Então, ocorre que “aquele [que chegou à escola com um alto de-
senvolvimento mental] será o último, a escola não é benéfica para o seu
desenvolvimento mental, diminuindo os seus ritmos” (Desenvolvimento
mental de crianças no processo de instrução, p. 78). Pelas palavras de

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 163


Vigotski, a instrução desempenha um papel guia, mas, na realidade, ele
“fundamenta” e defende posições de Chulguin na questão da influência
da escola no desenvolvimento mental da criança.
Do ponto de vista dessa “teoria” estapafúrdia, anticientífica, os pra-
zos de instrução devem ser adaptados ao desenvolvimento mental que
corresponde à zona de desenvolvimento iminente; Vigotski considera
igualmente mortal o desvio para cima ou para baixo. A zona reflete o
amadurecimento das funções. Ela existe em crianças e está ausente nos
adultos, em que os processos de amadurecimento estão finalizados. Os
absurdos dessas ideias chegam ao ponto de ele afirmar que o desenvolvi-
mento é interrompido com a chegada do amadurecimento; no adulto, a
psique permanece inalterada, não surgem novas qualidades.
Assim como para o organismo humano existe uma temperatura
ideal, 37ºC, o desvio para cima ou para baixo ameaça algumas fun-
ções vitais e, no final das contas, pode levar à morte; o mesmo ocor-
re na instrução – existe uma “temperatura ideal” para ensinar certa
disciplina. Se começarmos a ensinar muito cedo ou muito tarde,
então a instrução será dificultada da mesma forma (Desenvolvimento
mental de crianças no processo de instrução, p. 35).

Não há necessidade de comprovar que essa conclusão do autor é


refutada pelo sucesso da revolução cultural em nosso país. A massa de
milhões de trabalhadores em nosso país se levantou, despertou para uma
participação criativa na construção da sociedade socialista e começa a
dominar áreas dificílimas da ciência. Vigotski tentou injuriar os traba-
lhadores, estabelecendo uma idade “ideal” para a instrução, tentando
reduzir a zero as grandes conquistas da Grande Revolução Socialista de
Outubro no campo da cultura.
Seguindo os cientistas burgueses, apresenta a teoria reacionária e
nociva de que todos os estágios do desenvolvimento infantil estão im-
pregnados de crises, isto é, de momentos em que o desenvolvimento de
cada criança transcorre com sofrimento. Segundo essa “teoria”, a idade
escolar, por um lado, se limita com a crise que ocorre aos sete anos e, por
outro, com o período crítico de amadurecimento sexual.
A “teoria” das crises leva à conclusão de que toda fração no desenvol-
vimento acarreta não apenas dificuldades insuperáveis para a instrução
e educação, mas também predestina a criança à patologização. Segundo

164 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


essa “teoria”, o retardo e alguma defectividade definem o destino de cada
criança em determinadas etapas de seu desenvolvimento. Essa teoriazi-
nha muito nociva, ligada à “teoria” de predestinação da criança pelos
fatores biológicos e sociais, desestimula e desarma o professor: em vez
de lhe indicar os meios mais efetivos de educação e instrução, Vigotski,
nocivamente, afirma que os anos “de crise” pioram o aproveitamento do
escolar.
Assim, Vigotski surge como aluno de seus professores burgueses:
Meuman, Piaget, Terman e outros.
O famoso pedagogo e psicólogo burguês Meuman escreveu:
Acredito que apenas na última série da escola popular, com 14 anos
de idade, é possível dizer que a criança está em condições de obser-
var, compreender os raciocínios executados ou o objetivo do raciocí-
nio (Meuman, Ensaio sobre pedagogia experimental, p. 187).

Segundo Piaget, as crianças começam a pensar logicamente a partir


dos 12 anos. Entre os psicólogos burgueses, muitos, escravos fiéis das
classes dos exploradores, escreveram que o pensamento das crianças cam-
ponesas nunca se desenvolve até o pensamento abstrato, lógico. Binet e
Terman afirmam em uníssono que apenas a partir dos 12-14 anos surge
nas crianças a capacidade de interpretação dos fenômenos, quando todo
responsável sabe que até mesmo crianças de três ou quatro anos podem
explicar os fenômenos a elas acessíveis. Desse modo, Vigotski não está
só. Segundo a opinião de Blonski, “a visão de mundo de um escolar da
sétima série não ultrapassa os limites de sua casa, aquilo que o rodeia na-
quele determinado momento” (Blonski, Desenvolvimento do pensamento
do escolar). A isso parece corresponder também o vocabulário do esco-
lar da sétima série, do qual as palavras abstratas constituem apenas 5%,
enquanto as que se referem à situação circundante imediata constituem
53% (as palavras restantes se relacionam à casa, às aulas etc.).
Vigotski aceita integralmente a periodização da infância e do desen-
volvimento do pensamento definida pelos cientistas burgueses. Por isso,
faz a afirmação nitidamente errada de que “[a]penas na idade de transi-
ção o domínio do pensamento lógico torna-se um fato real” (Pedologia
do adolescente, p. 313).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 165


No seu último trabalho (Pensamento e fala), também afirma que
a criança até os 12 anos não possui a capacidade para formação de
conceitos.
Todas essas características etárias levavam à justificativa para a piora
do aproveitamento escolar no campo no ensino de qualquer disciplina.
Semelhantes afirmações falsas se refletiram também nos trabalhos
de nossos metodólogos de história. Assim, V. N. Bernadski,46 no artigo
“Resultados dos trabalhos de história nas VII séries”, destacando a pobre-
za dos conhecimentos histórico-concretos dos alunos, o esquematismo,
chega à seguinte conclusão: “A conclusão disso é clara. Não é algo novo
e desconhecido para o metodólogo ou para o bom professor prático. Já
foi formulado por uma série de metodólogos burgueses que destacavam
a limitação das forças mentais do adolescente”.
Em vez de mobilizar a atenção do professor para a organização do
ensino, demonstrar os melhores modelos, instrumentalizá-lo com os me-
lhores procedimentos do ensino de história, o metodólogo Bernadski,
repetindo os delírios pedológicos sobre a “limitação das forças mentais
do adolescente”, acarreta um mal ao ensino de história. V. N. Bernadski
propõe, com base na característica da idade tomada dos pedólogos, ins-
truir os escolares de apenas sete anos, da escola média, somente com fa-
tos e, assim, propõe um ensino simplificado e exclui o curso sistemático
de história não apenas da escola primária, mas também da escola média.
A “teoria” profundamente equivocada de Vigotski sobre a instrução
e o desenvolvimento causou um enorme mal para a escola. As suas ma-
nifestações sobre o ensino de determinadas matérias provocaram perdas
à nossa escola e devem ser consideradas nocivas.
Assim, Chif, aluna de Vigotski, no trabalho Desenvolvimento dos con-
ceitos científicos no escolar, realizado sob a orientação direta de seu pro-
fessor, enxerga a tarefa da instrução não no domínio de conhecimentos
concretos no campo da história pelos escolares, e sim, da mesma forma
que seu professor, reduz a instrução a fazer apenas com que os saberes
já presentes se tornem conscientes e voluntários. O indicador dessa to-
mada de consciência para Chif é o alto percentual do correto emprego,
pelas crianças, de conjunções adversativas e causais em testes para inferir
os conceitos científicos. Eram dados para as crianças os mesmos testes
anticientíficos sobre os conceitos “científicos e cotidianos” com frases

46 Viktor Nikolaievitch Bernadski (1890 - 1959 (N. da T.)), historiador soviético, pedagogo.

166 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


interrompidas com as palavras ‘porque’ e ‘apesar’ que se propunha que
elas finalizassem. Deixando de lado, por enquanto, a análise dessa me-
todologia grosseiramente errônea, tomada, sem nenhuma alteração, de
Piaget, é preciso destacar todo o equívoco dos dados sobre a tomada de
consciência nos estudos sociais para o emprego das formas gramaticais.
Tomar consciência nas ciências sociais, na história e em qualquer outra
disciplina consiste em uma unidade orgânica com a assimilação dos fa-
tos. Em Chif, no entanto, eles se apresentam de forma ilustrativa.
Tal interpretação da natureza do ensino de ciências sociais não pode
deixar de levar à sociologização, à sua diluição no desenvolvimento
lógico-formal, à negação de saberes tão necessários no estudo de cada
matéria. Tal “posição” do autor contradiz radicalmente as indicações dos
camaradas Stalin, Kirov e Jdanov sobre os resumos de livros didáticos
de história e as Resoluções do CC do PCR(b) sobre o ensino da história
civil, que exige o estudo de fatos e o correto esclarecimento deles. Apesar
de todo o trabalho de Chif ser extremamente contraditório com as di-
retivas do partido, direcionadas contra o esquematismo no ensino de
história e de ciências sociais, ela, com a “humildade” característica dos
alunos de Vigotski, sublinha que suas “investigações” se anteciparam à
resolução do CC do PCR(b) sobre o ensino de história.
Certos psicólogos, mesmo após a resolução do CC do PCR(b) “Sobre
as deturpações pedológicas no sistema dos Narcompros”, tentaram de-
fender que a proposição da questão sobre instrução e desenvolvimento
de Vigotski estava correta. Assim, o [camarada] Kolbanovski, em um de
seus artigos de revista, afirmou que o erro de Vigotski consistia apenas
no fato de ter superestimado a instrução.
Tal apresentação da questão está absolutamente incorreta. O sistema
nocivo de Vigotski sobre o desenvolvimento e a instrução se acopla à
“teoria antileninista de morte gradual da escola” e deve ser desmascarada,
rejeitada, não corrigida. Do ponto de vista pedagógico, as manifestações
dele sobre a instrução e o desenvolvimento serviram à “teoria” antileni-
nista de morte gradual da escola. A base metodológica delas é a compre-
ensão de Mach sobre o intelecto, sobre o autodesenvolvimento deste, a
independência em relação ao mundo externo e a ruptura metafísica entre
o pensamento e o conteúdo.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 167


A metodologia de “investigação de Vigotski”
A unidade desenvolvimento mental e processo de instrução obriga o
professor a não se alienar dos estudos das especificidades psíquicas da
criança.
Isso obriga o psicólogo a não separar a investigação do desenvolvi-
mento do intelecto da criança do processo de instrução, e, apenas neste
caso, os dados de seus experimentos podem ajudar o professor no seu tra-
balho. Como já dissemos, no campo de metodologia da investigação de
crianças, Vigotski transitava de uma metodologia burguesa para outra.
A “metodologia” burguesa existente na ciência burguesa de medi-
ção do intelecto, começando com o sistema de Binet em todas as suas
variações, tem a intenção de se isolar em relação aos conhecimentos da
criança, seu estudo, sua educação, suas experiências.
A metodologia de estudo do desenvolvimento mental da criança,
começando com Binet e terminando com a metodologia de Piaget, tão
difundida entre os pedólogos, era um instrumento com a ajuda do qual
os psicólogos burgueses tentavam provar a superioridade intelectual das
crianças das classes dominantes em relação às crianças dos trabalhadores.
Exatamente ela que, de forma totalmente acrítica, foi transportada para
o nosso país.
É preciso levar em consideração que o trabalho experimental nas
investigações de Vigotski, em geral, ocupa um lugar bastante limitado.
Ele diz muito sobre os resultados das “investigações experimentais” e
extremamente pouco sobre a própria metodologia de investigação.
A ele e seus alunos (Luria, Sarrarov, Chif, Zankov, Leontiev) perten-
ce um lugar de destaque na divulgação acrítica, entre nós, da metodo-
logia burguesa, em particular da metodologia de Piaget. Um dos alunos
de Vigotski – Sarrarov – criou a metodologia de estudo dos conceitos,
que, em sua essência, não se diferenciava da metodologia do famoso psi-
cólogo fascista alemão N. Ach e consistia na descoberta irracional da
correspondência entre a forma de um brinquedo e sua denominação ex-
cessivamente abstrata. O absurdo dessa “metodologia” estava claro para
qualquer pessoa em sã consciência; esses “experimentos” não podem ter
outro nome senão o de um autêntico deboche das nossas crianças.
Para a investigação do desenvolvimento dos conceitos, Vigotski e
seus alunos utilizaram ainda a metodologia de Piaget, apresentando às
crianças frases incompletas que eram interrompidas com as palavras

168 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


“porque” e “apesar”; era exigido das crianças que inventassem o final das
frases.
Com o objetivo de esclarecer o postulado – o que significa a trans-
ferência do nome para a criança e a transferência da característica de
um objeto para outro –, Vigotski e seus alunos se valiam do auxílio das
seguintes perguntas absurdas: “Se o cachorro tem chifre, o cachorro dá
leite?”.
Essa “metodologia” se encaixa por completo na avaliação feita na
resolução do CC do PCR(b).
Esses ditos “exames” científicos, realizados com um grande número
de estudantes e seus pais, eram direcionados, predominantemente,
contra aqueles que tinham mau aproveitamento ou que não se en-
quadravam no regime escolar. Os métodos dos pedólogos tinham
por objetivo provar, do ponto de vista “científico” e “biossocial” da
pedologia contemporânea, a condicionalidade hereditária e social
do mau aproveitamento do estudante ou de alguns defeitos em seu
comportamento (Resolução do CC do PCR(b) “Sobre as deturpa-
ções pedológicas no sistema dos Narcompros”).

A “lei” de determinação fatalista de


predestinação de crianças sob a influência da
hereditariedade e do meio em Vigotski
A resolução do CC do PCR(b) “Sobre as deturpações pedológicas no sis-
tema dos Narcompros” desvendou com clareza e por completo o sentido
classista da teoria anticientífica de determinação fatalista da predestina-
ção de crianças sob a influência da hereditariedade e do meio.
O CC do PCR(b) verifica que tal teoria somente pôde surgir como
resultado da transferência dos pontos de vista da pedologia burguesa
anticientífica para a pedagogia soviética sem a devida crítica. Essa
pedologia estabelece como tarefa, com o objetivo de manutenção do
poder das classes dominantes, provar o talento e os direitos especiais
para a existência das classes exploradoras e de “raças superiores” e,
por outro lado, a condenação física e espiritual das classes dos tra-
balhadores e das “raças inferiores” (Resolução do CC do PCR(b)
“Sobre as deturpações pedológicas no sistema dos Narcompros”).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 169


A predestinação fatalista das crianças em função dos fatores heredi-
tários foi formulada com clareza por Vigotski não apenas em seus traba-
lhos iniciais, mas também nos últimos.
“É possível afirmar, sem perigo de superestimar, que, decididamente,
todos os meios e ações que a futura pessoa e o cidadão do mundo terão
ao longo da sua vida já estão dados quando se encontra no berço e se
debate indefeso, sem saber fixar o olhar e segurar a mão” (assim escrevia
Vigotski em 1926). Esse postulado é totalmente reacionário e um con-
trabando das mais nocivas teorias da psicologia burguesa.
Na questão do meio e da hereditariedade, Vigotski estava sob a influ-
ência de obscurantistas como Busemann.
Busemann é autor de vários trabalhos sobre questões do meio, di-
vulgados também aqui, com muito afinco, pelos pedólogos, e todas as
partes sublinham o atraso do pensamento, da fala da criança proletária.
Inúmeras vezes Vigotski se refere a esses escritos demagógicos.
Agora, Busemann é um dos mais evidentes obscurantistas da
Alemanha fascista. Junto com E. Ensh e N. Ach, que, como já dissemos,
influenciaram Vigotski, Busemann criticou severamente alguns psicó-
logos alemães, acusando-os de serem “materialistas bolcheviques” e de
ignorarem o espírito “nacionalista” e religioso. Vigotski se vale não ape-
nas da metodologia de estudos das capacidades mentais de Binet, mas
também de suas afirmações sobre a questão do meio e da hereditarieda-
de, que carregam um caráter tipicamente burguês. No trabalho As ideias
contemporâneas sobre as crianças, Binet afirma que a criança proletária
manifesta um insucesso no aproveitamento, uma atenção inferior que,
aos 11 anos, é igual à de uma criança de nove anos”.47 E que “a definição
moral correta do miserável consiste não na frase: ‘É a pessoa que não tem
dinheiro’, mas nas palavras: ‘É a pessoa que não é capaz de guardá-lo’”. A
face vergonhosa do burguês se mostra aqui sem máscara.
Vigotski se refere também a outros psicólogos burgueses que, com
um determinado objetivo de classe, comprovam a predestinação da
criança pelo fator hereditário (Bühler, Peters e outros). Bühler afirmava
que existe uma correlação alta entre a permanência dos pais na prisão e
as crianças: de 30 crianças cujos pais estiveram presos, 28 também foram
parar na prisão. Peters estabeleceu a correlação entre o sucesso escolar de

47 No original, não estão indicadas as aspas iniciais na frase (N. da T.).

170 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


pais e suas crianças. Apesar de o sentido classista burguês estar aqui bem
evidente, Vigotski se junta a essa afirmação arquirreacionária.
Em relação ao meio, ao longo de todo o seu trabalho, ele defen-
dia a influência do meio imutável no desenvolvimento da criança e
em nada se diferenciava, nessa questão, de outros pilares da pedologia
(Zalkind e Blonski). Nas aulas de pedologia proferidas por ele em 1934,
no Instituto Pedagógico de Moscou, o meio se apresenta como fonte
de todo o desenvolvimento da criança. “O meio é a fonte de todas as
características específicas humanas da criança, e se está ausente, no meio,
a forma ideal correspondente, então, na criança, não se desenvolverá a
atividade, a característica, a qualidade correspondente” (Fundamentos da
pedologia, 1934, p. 114).
Vigotski “psicologiza” o meio. Fala sobre a alteração do meio no pro-
cesso de vivência. Em Fundamentos da pedologia (1934), como em outros
lugares, apresenta o caso em que três crianças, no mesmo meio, se en-
contram nas mesmas condições (uma situação familiar difícil, com a mãe
doente), mas as crianças reagem de formas diferentes. Aqui, temos a mu-
dança subjetiva psicológica do meio, mas, objetivamente, ele permanece
inalterado. A “teoria” da psicologização do meio foi tomada por Vigotski
de Busemann, de quem falamos antes sobre as posições “metodológicas”.
Vigotski sofre uma influência maior, nas questões da hereditariedade
e do meio, por parte da teoria de convergência de Stern. Essa teoria, que
converge mecanicamente os fatores hereditários e os do meio, foi avalia-
da pelos pilares “da área de pedologia” como a mais progressista.
A teoria de convergência, de predestinação pela linha da hereditarie-
dade e do meio, estabelece, ao mesmo tempo, uma determinação dúbia e
se vale dos estudos burgueses para comprovar a superioridade das classes
dominantes e o retardo dos explorados.
Na questão do meio e da hereditariedade, até o final da vida, Vigotski
permaneceu nas posições de Stern. Nele, o princípio da convergência
perpassa qualquer aspecto do desenvolvimento físico e psíquico.
“Deem-me todas as reações de um recém-nascido e também todas
as influências de cruzamento, na estrutura do meio, e eu direi com uma
precisão matemática qual será o comportamento do adulto em cada mo-
mento determinado”, dizia Vigotski em 1926. Essa “teoria” eclética é
defendida por ele em todas as suas obras, desde Pedologia da idade escolar
até Fundamentos da pedologia, de 1934.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 171


Nas suas afirmações sobre questões do meio e da hereditariedade,
além da influência de Stern, revelou-se também a de Freud e principal-
mente a de Adler, com suas afirmações muito nocivas sobre a luta per-
manente entre a criança e o meio. Os desejos insatisfeitos passam para
o campo do inconsciente, para o subsolo, como ele diz, e entram em
luta com o meio; a tarefa da educação é a sublimação (transição) desses
desejos para os superiores e o estabelecimento de um equilíbrio entre o
meio e a criança. Não é por acaso que Vigotski, na introdução ao livro
de Freud (Além do princípio do prazer), intitula a concepção deste de
materialista e dialética.
A “teoria” do equilíbrio se mostrou parte constitutiva da “teoria”
eclética anticientífica e burguesa de predestinação fatalista das crianças
pelos fatores biológicos e sociais.
A “teoria” antimarxista, anticientífica do equilíbrio, a “teoria” de
adaptação do homem ao meio se constituiu, em Vigotski, numa com-
plementação a Freud: entre a criança e o meio, entre o aluno e a escola,
segundo ele, ocorre uma luta constante e a tarefa da educação é o esta-
belecimento do equilíbrio entre a criança e o meio, ou seja, submissão
daquela a este.
Os fundadores do marxismo mostraram o equívoco e o aspecto
reacionário da “teoria” do equilíbrio. Segundo a definição do camara-
da Stalin, “[...] ela não tem nada em comum com o leninismo”. “Não
existe absolutamente nenhuma tranquilidade, um equilíbrio incondicio-
nal. Qualquer movimento tende ao equilíbrio, mas o movimento como
um todo, novamente, aniquila esse equilíbrio” (Engels, Anti-Dühring,
t. XIV, p. 62). Engels mostrou como Dühring, baseando-se no princí-
pio do equilíbrio, concluiu sobre o desaparecimento das contradições de
classe na sociedade capitalista.
Todos os trabalhos de Vigotski estão repletos de um biologismo to-
talmente sincero. Criticando Köhler, Koffka e principalmente Thorndike
pela transferência de regularidades dos animais para o ser humano, po-
rém, ele mesmo não está livre disso.
Em seus primeiros trabalhos, assim como Bühler, ele afirma que a
criança, do mesmo modo que o animal, passa por três estágios de desen-
volvimento (instinto, adestramento e intelecto). Nos últimos trabalhos,
ele segue Köhler e Koffka no assunto sobre os aspectos comuns no de-
senvolvimento do intelecto do macaco e do homem.

172 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


A principal lei contemporânea da pedologia está ligada à assim cha-
mada lei biogenética do desenvolvimento. A “lei” biogenética é, em gran-
de parte, defendida pela maioria dos psicólogos e pedólogos burgueses.
Toda a assim denominada teoria do desenvolvimento histórico-cul-
tural da criança, criada por Vigotski, parte do fato de que a criança, em
seu desenvolvimento, repete o percurso da humanidade. O desenvolvi-
mento das funções psíquicas, no plano histórico, consiste na passagem
das formas naturais de comportamento para as culturais; o ser humano
domina as funções, a utilização delas se torna voluntária e consciente
e tudo isso ocorre sob a influência dos instrumentos, dos signos. No
estágio do desenvolvimento cultural, a palavra desempenha o papel des-
se instrumento. Os pedólogos, incluindo ele, acusam as crianças dos
trabalhadores com a mesma mentira dos imperialistas sobre os povos
colonizados para justificar a invasão de novos territórios em nome do
“progresso” e da “cultura”.
Assim é, por exemplo, a afirmação de que, no homem primitivo,
não existe diferença entre a percepção e a memória, que ela é eidética. O
domínio da memória ocorre sob a influência dos signos (nós, cadarços
vegetais, unha de onça etc.), que mudam ao longo do desenvolvimento.
O pensamento do homem primitivo, segundo Vigotski, é sincré-
tico e complexo. “O homem primitivo não tem conceitos, os nomes
abstratos e genéricos lhe são estranhos” (Vigotski, Estudos da história do
comportamento).
Ele amplia também “o princípio” biogenético para o processo de
ensino e educação. Assim, o ensino da escrita, segundo sua opinião, tem
que ter um caráter natural. A história do desenvolvimento da escrita
está relacionada ao domínio do sistema de signos, deve ser repetida pela
criança no processo de instrução. Essa instrução, “do ponto de vista pe-
dológico, deve ser estruturada como uma transição do desenho das coisas
para o desenho da fala” (Desenvolvimento mental das crianças no processo
de instrução). O método natural de ensino da escrita exige a transição da
escrita pictográfica (por imagem) para a representação ideográfica (sig-
nos abstratos).
No ensino da aritmética, segundo Vigotski, a criança também deve
repetir o percurso do desenvolvimento da ciência, da aritmética natural,
baseada na figura de números, para a cultural, que se caracteriza pela
utilização de signos.

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 173


A “lei” biogenética reacionária na instrução leva a equívocos
grosseiros.
Concordando com a “lei” contrarrevolucionária e biogenética, os
representantes da falsa ciência pedológica chegaram à negação da lógica
na instrução: em vez de uma exposição sistemática de um determinado
conteúdo para as crianças, seria oferecida uma composição fragmenta-
da e segmentada de informações em combinações casuais, como se esse
método estivesse de acordo com as peculiaridades etárias. Isso contradiz
claramente os principais postulados da nossa pedagogia.
A escola precisa apresentar saberes de forma lógica. Engels escreveu:
Dessa forma, o único método adequado era o lógico. Porém, em
sua essência, este é o mesmo procedimento, só que livre de sua for-
ma histórica e das casualidades que o distorcem. O fluxo das ideias
deve começar de onde começa a história. O movimento posterior se
apresentará como um reflexo especular do processo histórico, que
adquire uma forma abstrata e teoricamente sequencial; o reflexo
corrigido, mas corrigido de acordo com as leis que são dadas pelo
processo real histórico, contudo, a cada momento pode ser analisa-
do no ponto mais alto de seu desenvolvimento, em seu total ama-
durecimento e perfeição (Karl Marx, Obras escolhidas em dois tomos,
t. I, p. 283, Partizdat, M. 1933).

Todas as afirmações de Vigotski sobre o meio e a hereditariedade


estão em total contradição com o estudo de Marx – Engels – Lenin –
Stalin. A compreensão da hereditariedade, que ele toma de cientistas
burgueses, vinha acompanhada da ideia de que o desenvolvimento e a
educação da pessoa são processos pacíficos. Tal compreensão do desen-
volvimento leva inevitavelmente à negação do papel da instrução e da
educação. Marx e Engels analisam o desenvolvimento do ser humano
como um processo dialético único em que ocorre a permanente luta
entre a hereditariedade e o aspecto criador – a adaptação que destrói o
que foi herdado.
A teoria do desenvolvimento mostra como, começando por uma
simples célula, a cada passo para frente, até mesmo de uma planta
mais complexa, por um lado, e do homem, por outro, [o desenvolvi-
mento] ocorre em forma de luta permanente entre a hereditariedade
e a adaptação.

174 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia


Com isso, observa-se como são pouco aplicadas a tais formas de
desenvolvimento as categorias do tipo “positiva” e “negativa”.

Pode-se analisar a hereditariedade como um aspecto positivo que


preserva um lado; a adaptação pode ser analisada como negativa
quando constantemente destrói aquilo que foi herdado. Porém,
com o mesmo sucesso, pode-se analisar a adaptação como um lado
criador, ativo, positivo, e a hereditariedade como algo que ofere-
ce resistência, passividade, como uma atividade negativa (Engels,
Dialética da natureza, t. XIV, p. 433).

Vigotski não compreende o estudo marxista-leninista do meio e ig-


nora o papel do homem na transformação do meio. No papel dado ao
todo poderoso meio, revela-se a “teoria” espontaneísta menchevista, a
“teoria” de direita e oportunista de autofluxo. Na pedagogia, a negação
do papel da personalidade, a compreensão espontaneísta do meio levou à
subestimação do processo de ensino e de educação e do papel do profes-
sor. É nisso que consiste a base da “teoria” antileninista de morte gradual
da escola. Sabe-se que os fundadores do marxismo sempre lutaram de
forma muito enérgica contra o espontaneísmo, independentemente da
forma e do campo de manifestação.
A compreensão materialista da história apresentada por Marx e
Engels destaca o papel criador da personalidade. Marx e Engels, Lenin
e Stalin, várias vezes, mostraram que a circunstância econômica não é o
único fator no curso da história; junto com ele agem outros, o homem
em primeiro lugar.
“Na história da sociedade agem pessoas dotadas de consciência,
agem de forma pensada ou pela paixão, pondo determinados objetivos
para si mesmas” (Marx, Obras escolhidas, t. I, p. 354). Em A ideologia
alemã, Marx e Engels afirmam que as circunstâncias “criam o homem,
na mesma medida que ele as cria”.
O camarada Stalin, em conversa com Em. Ludwig, destacou a com-
preensão marxista do papel ativo da personalidade. “São exatamente as
pessoas, mas apenas quando compreendem corretamente as condições
que já encontraram de forma pronta, e apenas porque compreendem
como mudar essas condições, que fazem a história” (conversa do camara-
da Stalin com Em. Ludwig, p. 4).

Sete aulas de L.S. Vigotski sobre os fundamentos da Pedologia 175


A aprovação da Constituição stalinista, este grandioso documento
da nossa época, sintetizou as lutas e as vitórias do socialismo e, ao mes-
mo tempo, desvendou as perspectivas de novas vitórias e conquistas. Ele
manifesta com relevância a estranheza e a hostilidade contra a “lei” fata-
lista de predestinação das crianças pelos fatores hereditários e sociais em
relação à ciência marxista e nossa construção socialista.
A íntima e inquebrantável relação entre a principal “lei” da pedologia
contemporânea, de predestinação das crianças pelos fatores hereditários
e sociais, e a “teoria” antileninista de morte gradual da escola se expressa
de forma clara nos pontos de vista de Vigotski.
A breve análise da concepção de Vigotski mostra sua anticientificida-
de, seu equívoco e sua nocividade para a escola.
A crítica dos trabalhos de Vigotski é atual e não pode ser adiada,
pois uma parte de seus seguidores, ainda hoje, não se desarmou (Luria,
Leontiev, Chif e outros).
A resolução do CC do PCR(b), de 4 de julho de 1936, “Sobre as
deturpações pedológicas no sistema dos Narcompros”, exige que todas
as teorias semelhantes sejam desmascaradas e desenraizadas como uma
condição obrigatória para um trabalho exitoso da escola soviética.

176 As falsas ideias de L. S. Vigotski na pedologia

Você também pode gostar