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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

“Democracia liberal - conhecer para destruir”

Pesquisador responsável: Flávio José de Moraes Junior


Orientador: Wallace dos Santos de Moraes

Rio de Janeiro

2018
“A paixão pela destruição é também uma paixão criadora”
Mikhail Bakunin, 1842.
Resumo
Através de uma metodologia comparada, pretendemos analisar brevemente a ideia de
democracia para o pensamento liberal sob a luz de uma crítica anarquista. Em uma
abordagem cruzada, analisaremos tradições de pensamento e seu contexto histórico.

Elegemos o liberalismo como objeto de estudo pois sua base teórica inspirou, pelo
menos discursivamente, o atual modelo de democracia. Partindo de uma perspectiva
latino-americana, a democracia na qual vivemos foi inserida pelo modelo norte-
americano neoliberal (Perry, 1995) (Chomsky, 1999; 2002), inspirada em teóricos
como: Bentham, Stuart Mill, Shumpeter e Huntington dentre outros teóricos da
democracia que buscaram conciliar sistemas desiguais e o ideal democrático.

Nos é caro ressaltar que utilizaremos como base uma teoria anarquista. A teoria dentro
da pesquisa cientifica oferece uma determinada perspectiva, como uma lente. O nosso
foco são os governados, os que são submetidos por leis dais quais nunca decidiram
coisa alguma, em suma os que são considerados inaptos a tarefa de governar.
Utilizaremos a teoria anarquista pois seus escritos nos oferecem uma crítica à autoridade
e ao poder, sendo o principal referencial teórico da reivindicação da "democracia
direta", tão presente em diferentes movimentos sociais que eclodiram contra o ciclo de
neoliberalismo na América Latina.

1. APRESENTAÇÃO/JUSTIFICATIVA

O que é uma democracia? Como poderíamos responder essa pergunta? O termo


democracia tem sido objeto de estudo para historiadores, cientistas sociais, filósofos,
economistas dentre muitos outros pesquisadores. O dicionário nos diz: “1 - Governo em
que o povo exerce a soberania, direta ou indiretamente. 2 - Partido democrático. 3 - O
povo (em oposição a aristocracia) ”1, os professores de História não cansam de lembrar
a contradição na esperança de que alguém lembre o sentido etimológico dela: “Kratos”
– poder, “Demo”, povo (alguns alunos riem do fundo da sala). Os documentários dizem

1 AURELIO, O minidicionário da língua portuguesa. 4º edição revista e ampliada do minidicionário


Aurélio. 7º impressão- Rio de Janeiro, 2002

1
com sotaque inglês, em voz off, “começou na Grécia entre os séculos V e IV antes de
cristo”.

Um pensador crítico zombaria da pretensão de nossa pergunta.... mas supondo que ele
estivesse de bom humor, ele nos perguntaria: para quem? Se eu pergunto para um
economista Chicago boy2, ele me diria: Liberalismo, livre concorrência, eleições (quem
sabe?!), liberdade de imprensa e a privatização, talvez privatizem a água, mas isso é um
detalhe. Se eu pergunto para um marxista ele me diria: que? Você quis dizer Ditadura do
Proletariado? Ou me diria uma sociedade sem classes em que a classe dirigente do meu
partido comandaria! Se perguntarmos para os marxistas eleitoreiros e os sociais
democratas (a reposta deles costuma ser a mesma), eles diriam: Eleição, imprensa livre,
liberdade política de organização, meu partido eleito.... Se eu pergunto para um
anarquista ele me diria: uma assembleia interminável ou democracia direta...se
perguntarmos para uma trabalhadora/o brasileira/o ela/ele nos diria: uma vez o
Corinthians teve uma!3 Ou é uma piada ruim, tão ruim que poderia fazer parte de um
quadro do Zorra Total4.

Nos parece que realmente depende de para quem perguntamos. Mas há um consenso
diariamente fabricado e entregue em todos os meios de comunicação que afirma que a
democracia é algo em que vivemos, com alguns defeitos, mas ainda levando o glorioso
legado de Atenas. Será?

Primeiro: Por que recorrer a Grécia Antiga? Por que localizar o mito fundador nesse
recorte especifico? Há incontáveis agrupamentos humanos que há milênios tomam
decisões de forma igualitária por meio de consensos, reuniões ou assembleias. Nos
vendem a ideia de que a origem da democracia é algo ocidental, como se a própria
Grécia Antiga pudesse ser identificada como tal.

Talvez seja mais confortável historicamente para os liberais. Falar das sociedades que
vivem perfeitamente sem Estado até os dias de hoje, que inclusive inspiraram autores

2 Chicago boys ou em português “garotos de Chicago” foi o termo que nomeou um grupo de economistas
que colocaram em curso um plano econômico liberal no Chile de Pinochet. O termo faz alusão a escola de
econômica de Chicago, lar teórico de pensadores como Milton Friedman. Ver mais em Anderson, Perry. O
Balanço do Neoliberalismo In SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas
sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9-23.
3 A Democracia corinthiana foi um sistema de autogestão de um dos maiores clubes de futebol da
América Latina, o Corinthias. No período (1982), o Brasil vivia uma ditadura militar-empresarial, o que
torna o fato ainda mais significativo.
4 Programa de televisão de qualidade duvidosa exibido na Rede Globo de Televisão, emissora
hegemônica no Brasil desde a ditadura militar-empresarial.

2
anarquistas a pensarem um sistema igualitário, parece um tanto perigoso. Sam Mbah
(2000) aponta que o anarquismo não é nenhuma utopia na África, sociedades como os
Tiv, Kinkonba (África Ocidental), Dinka, Nuer e Lugbara (Africa Oriental) se
organizam sem Estado e sem estruturas centralizadas. Sociedades como os Igbo na
Nigéria, cuja população anterior ao processo de colonização ultrapassava sete milhões
de pessoas, haviam desenvolvido uma organização descentralizada altamente sofisticada
até sofrerem com a invasão europeia.

Flores Magón (2003) enxergava que o anarquismo estava presente nos indígenas
mexicanos muitos antes de existir o anarquismo, por exemplo. Essa alusão à Grécia
Antiga é também uma fuga para não precisar mencionar as guildas europeias no período
medieval, recorte histórico que muitas vezes é lido como idade das trevas, que segundo
Kropotkin (2000) representa para história europeia um período de relativa liberdade,
onde sociedades viviam de forma igualitária, sem Estado. E o que falar da Comuna de
Paris ou da Revolução Espanhola? Por que não mencionamos esses recortes como
períodos de democracia já que o critério é o povo no poder, no controle das decisões?

Existem muitas perspectivas a serem analisadas a respeito do que é democracia, ela é


um mecanismo jurídico? Uma ética política? Uma utopia? Diferentes pensadores
colocaram a questão ao longo da história. Embora tenhamos uma gama de diferentes
referências históricas democráticas, o atual modelo nos parece seguir uma definição
clássica: alternância de poder, eleições, representação, capitalismo, liberdade de
imprensa, liberdade de associação. Este modelo é referenciado numa tradição de
pensamento bem localizada historicamente que é o Liberalismo e seus aprofundamentos
como o Neoliberalismo. Quando nos deparamos com a materialidade da nossa
democracia e com as teorias que legitimaram e tentaram planejar seu funcionamento,
somos levados da fantasia da ágora e os filósofos da Grécia Antiga para escritórios e
uma elite econômica e intelectual. A democracia é como uma foto de uma propaganda
de fast food, notamos uma enorme diferença assim que nos deparamos com sua
realidade material. Poderíamos facilmente propor que a democracia na América Latina é
a MC democracy: exportada dos EUA, super exploradora dos trabalhadores,
hierárquica, cancerígena, tóxica para todo meio ambiente incluindo os humanos, adepta
ao livre mercado e sobrevive graças a propagandas milionárias.

3
Atualmente, a democracia eleitoral tem sofrido com uma crise institucional, o que não
significa que estamos afirmando que ela inevitavelmente cairá. A profecia do fim, do
apocalipse têm se mostrado frágil e caricata como aquelas figuras de senhores barbudos
com uma plaquinha dizendo “o fim está próximo”. Como afirmou subcomandante
Marcos: “a soberba costuma ser má conselheira em questões práticas e teóricas” 5, o
capitalismo parece ir bem em seu funcionamento, o que significa que essa crise faz
parte do pacote democrático ocidental, faz parte do arranjo institucional todo mundo
odiar as instituições, afinal de contas não dá para todo mundo participar ou ficar
reivindicando direitos.

Um bom exemplo é o atual governo do MDB 6, Michel Temer um dos presidentes mais
impopulares da História do país, tentou aprovar uma “reforma da previdência” que na
prática significava retirada de direitos essenciais como aposentadoria. O governo gastou
mais de 110 milhões de reais em menos de um ano apenas para a propaganda de uma
temática e mesmo assim fracassou no seu objetivo central.

O atual sistema é altamente dependente de propaganda. Para os insatisfeitos existem as


“relações públicas”, um pequeno eufemismo para propaganda ideológica, basta firmar
alguns consensos na opinião pública e defende-los cotidianamente como uma verdade.
Alguns fracassam, mas outros já firmaram como consensos da esquerda à direita, da
academia aos rádios e televisores: “o voto é o exercício da cidadania”, “vote
consciente”, “trabalhe”, “respeite as autoridades”, “obedeça”, tudo isso em nome do
bem da nação.

A democracia tal qual nós conhecemos tem bases no pensamento liberal, parte de
princípios éticos e políticos referenciados em teorias politicas desenvolvidas por pessoas
financiadas para isso. O avanço do neoliberalismo na América Latina tem um lastro
teórico que o legitima discursivamente, é parte da guerra construir discursos que
legitimem políticas predatórias como foi o caso dos EUA com a América Latina.

5 MARCOS, Subcomandante Insurgente. Nem o centro e nem a periferia – sobre cores, calendários e
geografias. Org. Erahsto Felício. Tradução: Coletivo Proutopia S.A. Porto Alegre: Deriva, 2008. Página
80
6 Partido de grande expressão na política institucional brasileira, originário da ditadura militar-
empresarial o significado de sua sigla, Movimento Democrático Brasileiro, pode facilmente provocar
risos em qualquer brasileiro.

4
Todos sabemos que é uma mentira que vivemos em uma democracia, no entanto o
conhecimento erudito tem afirmado e reafirmado a fantástica jornada da democracia
grega até o nosso modelo atual.

Hoje, no Brasil, vivemos uma democracia que é consequência direta de um projeto de


poder norte-americano fundado em princípios neoliberais. O neoliberalismo tem sido a
marca do nosso tempo. Este modelo tem consolidado uma série de processos e políticas
que permitem que interesses de uma pequena minoria rica seja o principal objeto do
Estado. Incorporando princípios do liberalismo clássico, o neoliberalismo aprofundou
uma guerra contra os pobres, sob o lema de privatização de setores essenciais do Estado,
flexibilização trabalhista ou retirada de direitos trabalhistas, diminuição - se possível,
fim - de distintos benefícios sociais e, principalmente, total liberdade para corporações.

Temos atingindo recordes em termos de desigualdade social e econômica, uma


verdadeira catástrofe. Uma ONG de grande renome chamada Oxfam compilou dados do
banco Credit Suisse e a revista Forbes7 e apresentou dados assustadores sobre a
desigualdade social no mundo. Segundo o estudo, 1% da população mundial concentra
50% de toda riqueza do mundo. Estamos com os outros 99%, queremos compreender
quais são as bases teóricas que legitimam a vitória dos 1%.

Por outro lado, há um largo histórico de levantes no mundo inteiro como a Guerra da
Água na Bolívia, o levante da piqueteiros na Argentina, os zapatistas no México, Ação
Global dos Povos na Europa e Canadá, os indignados na Espanha, Occupy nos EUA, o
levante de 2013 no Brasil, dentre outros movimentos e ciclos de lutas políticas que
reivindicaram a chamada “Democracia Direta”, exigindo igualdade econômica, política
e social, denunciando a atual democracia como uma falsa democracia. Não trataremos
aqui desses movimentos diretamente, entretanto escolhemos a democracia como objeto
de estudo graças a ação desses movimentos políticos ao redor do globo. Eles indicam a
necessidade de estudar as bases teóricas que permitem uma democracia tão cínica.

Achamos que de algum modo temos que criar o hábito intelectual de ler e estudar os
referenciais teóricos da elite, afim de compreender quais sãos suas bases de pensamento
e sua justificativa discursiva. E a partir disso, construir uma crítica e um pensamento

7 Veja mais em:


https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf (Acessado
em 12/07/2018)

5
que ofereça uma arma discursiva e a possibilidade de uma prática mais estratégica
pautada no mapeamento ideológico dessa elite.

2. TEORIA E MÉTODO – REFLEXÃO E CRÍTICA

Há 6 anos, em 2012, no curso de Bacharelado de Ciências Sociais, em uma sala de uma


instituição empoeirada qualquer, um professor me fez um questionamento simples,
entretanto, intrigante: Você precisa ser governado?

Refleti muito sobre a questão no período e pude notar que se respondemos sim,
admitimos nossa incapacidade de gerir nossas próprias vidas, entregamos de bandeja
para qualquer grupo que seja as decisões de nossas vidas, famílias, coletivos, bairros e
cidade. Quando respondemos que não, reconhecemos que temos plenas capacidades
para gerir nossas próprias vidas e tomar decisões, seja na nossa família, grupo, bairro e
cidade. Nos parece demasiado arrogante que achemos que somos os únicos capazes de
governar a nós mesmos. Não que não seja comum ouvir: “eu sim, mas acho que a
maioria não”.

Caso você se considere capaz de tomar decisões por si só ou em consenso com os


demais, sem necessitar de uma regra ou conjunto de regras a priori, você basicamente
está defendendo um princípio anarquista.

De alguma forma, sempre notei que as próprias pessoas implicadas nas questões
políticas, econômicas e sociais resolviam e analisavam os problemas de maneira muito
mais objetiva, prática, inteligente e justa. De forma imediata pensamos: Imaginem se os
próprios funcionários do transporte público administrassem o funcionamento do serviço
ao invés dos empresários? Imaginem se os próprios alunos gerissem o ambiente
acadêmico /escolar ao invés de tecnocratas? Essa não é uma ideia nova, nem original,
não nasceu da concepção de uma tradição teórica chamada “anarquismo”, embora haja a
tradição de pensamento, o anarquismo não é apenas uma teoria.

É comum autores dentro da História e Ciências Sociais utilizarem o adjetivo “anarquia”


de modo pejorativo, como sinônimo de violência e desordem. Frequentemente, a mídia
faz analogia entre anarquismo e violência, colocando essa forma de pensamento como
produto da irracionalidade jovem. Embora haja uma rejeição ao anarquismo à priori,
consequência dessa contrapropaganda ideológica presente em variados espectros

6
políticos e ideológicos, acredito que boa parte da população comunga de princípios
anarquistas ou pelo menos os reconhece como positivos.

David Graeber em Fragmentos de Antropologia Anarquista (2010), afirma que o


anarquismo não se ocupou de criar uma base analítica, teórica sobre método e estratégia
revolucionária, o que lhe diferenciou do marxismo e suas muitas subdivisões. O
anarquismo se ocupa principalmente da ética e da prática revolucionária. Vejamos:

El anarquismo, en los relatos más comunes, se suele presentar como el pariente pobre
del marxismo, teóricamente un poco cojo, el cual se ve compensado, sin embargo, en el
plano ideológico por su pasión y sinceridad. Pero de hecho, la analogía es forzada, en el
mejor de los casos. Los «padres fundadores» decimonónicos nunca creyeron haber
inventado nada particularmente nuevo. Los principios básicos del anarquismo —
autoorganización, asociación voluntaria, ayuda mutua— se refieren a formas de
comportamiento humano que se consideraba habían formado parte de la humanidad
desde sus inicios. GRAEBER, D. 2011:10.

O que não significa que não exista uma teoria anarquista ou que seja incoerente
desenvolvê-la. Outros autores defendem que o anarquismo tem grandes contribuições
científicas. De fato, autores do século XIX, como Proudhon e Kropotkin, tiveram uma
grande relevância. Quem discordaria da importância científica do conceito de mais-
valia? O tradicional autor anarquista, Adolf Rocker, no manifesto “Porque sou
anarquista”, aborda a questão:

As observações críticas de Proudhon sobre a economia política e as


diversas tendências socialistas desdobraram ante Marx um mundo
novo, e foi principalmente a teoria da mais-valia, tal como a
desenvolveu o genial socialista francês, que causou maior impressão
no espírito de Marx. A origem da doutrina da mais-valia, essa
grandiosa “descoberta científica” de que tanto se orgulham os
marxistas, encontramola nos escritos de Proudhon. Graças a ele,
chegou Marx a conhecer essa teoria, que modificou maia tarde, depois
de haver estudado os socialistas ingleses Bray e Thompson.
(ROCKER, Rudolf. Porque sou anarquista. Ateneu Libertário de
Compostela; CNT de Compostela. 1998:06.)

Kropotkin também foi um grande cientista, geógrafo. Construiu uma teoria que
combateu fortemente o darwinismo social. Observando o comportamento e mapeando a
fauna da Sibéria, construiu uma das principais teorias que se opôs a ideia de competição
como critério de sobrevivência. O autor identificava justamente o oposto, via que os

7
animais sobreviviam por meio da ajuda mútua, assim como indica no livro A Conquista
do Pão (1892) (Woodcok, 2002).

Muitos acadêmicos afirmam que assumir uma postura política teórica desqualifica uma
pesquisa enquanto ciência. O que questionamos é: qual é a filiação teórica que permite
uma ideia tão improvável quanto a completa imparcialidade? Um jornalista chamado
Sergio Augusto nos ofereceu uma ajuda técnica inestimável, algo que deveria estar nos
manuais das câmeras: "imparcial só a câmera desligada". Pode parecer óbvio que
quando um cineasta filma, ele escolhe uma perspectiva, uma lente que permite um
enfoque especifico, por fim, variações de cor, escolhe uma parte especifica e monta um
quebra cabeça com trechos de cada filmagem, fazendo uma edição e montagem.
Conhecemos bem como o jornalismo hegemônico ama brincar com esse quebra-cabeça,
e tem feito com uma grande desonestidade isto, mas não estamos afirmando que toda
montagem seja desonesta. Afirmamos com toda convicção que toda montagem tem uma
perspectiva específica por mais que ela "se pinte" de imparcial. Saindo da "meia culpa”
para os meus amigos montadores e voltando aos cientistas neutros, por que não parece
óbvio que quando escrevemos, escolhemos o tema, o recorte, as fontes, a ordem na qual
os assuntos serão abordados na pesquisa cientifica estamos sendo parciais? Afinal de
contas estamos imbuídos de hipóteses, ideias, experiências e preconceitos que
inevitavelmente atravessam nossa escrita... e mais, (pasmem cientistas neutros) temos
posições políticas!

O liberalismo dentro da tradição weberiana firma a ideia da neutralidade axiológica


cientifica. Filha do positivismo, a ciência neutra, assim como o jornalismo neutro de
William Bonner, tem suas posições políticas vergonhosamente escondidas sob o véu da
pretensa imparcialidade.

Subcomandante Marcos, figura lendária do Exército Zapatista de Libertação Nacional,


aponta bem a questão quando afirma que os intelectuais acadêmicos, sobrecarregados
com metas esquizofrênicas de produção, se parecem cada vez mais com comissários e
censores. Subcomandante diz mais, a teoria é uma moda, "tendo as revistas
especializadas e nos livros os substitutos para as revistas da moda" 8, as palestras e
colóquios cumprem a função dos desfiles de moda, onde os intelectuais fazem o mesmo
que os/as modelos das grandes grifes, "isto é, exibem sua anorexia, nesse caso, a

8 MARCOS, 2008:39

8
magreza intelectual"9. E de fato o mundo acadêmico se estrutura numa geografia da
moda: Londres, Paris, Nova York, é chique citar Foucault, mesmo que esvaziando
politicamente seu pensamento.

O pensamento tradicionalmente produzido na academia serviu e serve para legitimar o


Estado, a polícia, o salário, a democracia oligárquica, enfim, o conhecimento produzido
por esta instituição é um pilar necessário para o controle e legitimação da sociedade. Os
conhecimentos produzidos sob o selo dessas instituições ganham o caráter de verdade,
enquanto o conhecimento popular é desprezado, o que Michel Foucault (1979) chamou
de estratégia de poder-saber.

Foucault (2014) afirma que a "ordem do discurso" estabelece os seus próprios critérios
de verdade para se legitimar e por outro lado deslegitimar os outros discursos. Para
Foucault, a noção da linguagem enquanto representação esconde sua dimensão material,
isto é, que ela deriva de uma relação de poder e carrega as marcas de uma guerra
vencida. Quando Descartes afirma "penso, logo existo", ele reafirma a ideia de
representação, a ideia de mente-sujeito, o sujeito que só existe porque pensa,
desconectado de seu corpo, de sua ação no mundo. O grande componente desta frase
está oculto que é o "Eu", o "eu" que pensa, que cria representações do real em sua mente
individualizada. Talvez por isso carreguemos a figura do cientista iluminado que criou
todo conhecimento sozinho... e principalmente estamos desconectados das ações.

Foucault (2002) afirma que ciência nunca correspondeu a imagem tranquila e


continuísta como normalmente a ela se referem. Sempre existiram mudanças brutas no
enunciado científico e o mais importante não é a modificação do conteúdo cientifico, da
refutação de erros ou da estrutura teórica, e sim, a modificação dos critérios que são
utilizados para determinar o que é um discurso científico e o que não é um discurso
científico. O mais importante para notar é que não existe verdade deslocada de uma
relação de poder, vejamos:

“O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...) A
verdade é deste mundo; ela é produzida graças a múltiplas coerções e nele produz
efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
”política geral” de verdade; isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar
como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir uns e outros;
as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o

9 IDEM

9
estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
(FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder/ Michel Foucault; organização e tradução
de Roberto Machado – Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. Página 12.)

Portanto, não é preciso uma briga pela apropriação da verdade em termos de


ciência/tecnologia, mas em marcos de verdade/poder. Existem condições econômicas e
políticas que influem diretamente nessa relação. Como colocado acima, temos enquanto
objetivo uma perspectiva teórica que privilegia o olhar dos governados (é importante
ressaltar que não buscamos falar em nome dos governados), nos colocamos em uma
posição específica nessa relação de poder, uma perspectiva contra todo tipo de governo.

David Graeber, em Fragmentos de uma antropología anarquista (2011), constata a


ausência de uma tradição acadêmica anarquista. E isso tem alguns motivos, uns dele é
que a universidade como conhecemos tem cumprido uma posição de poder e
dominação, assim como aponta Foucault. A universidade oferece uma estrutura política
extremamente hierarquizada, a última instituição ocidental junto a Igreja Católica de
origem medieval que está presente na modernidade (de onde vocês acham que vem o
cargo de "reitor"?). Um dos outros motivos apontados pelo autor é a ausência de uma
grande teoria anarquista. Kropotkin, Bakunin, Proudhon não se auto intitulam como
criadores de algo novo, pelo contrário, ressaltam que a auto-organização, associação
voluntária, a ajuda mútua e a rejeição ao Estado são traços de várias sociedades que
existiram ao longo da História.

O pensamento anarquista está profundamente preocupado com uma ética de ação,


princípios básicos como: "o poder corrompe", mais do que "o que fazer para gerar uma
revolução?". O conjunto de seus princípios éticos não combinam muito bem com um
ambiente hierarquizado e extremamente competitivo. Raramente ambientes como este
produzem pessoas abertas a trabalharem coletivamente, indivíduos capazes de construir
um mundo pautado na ajuda mútua. A universidade assim como a Igreja oferece suas
indulgências. Em uma sociedade que depende de títulos e cultua o Eu, a universidade se
agarra ao Eu do indivíduo e seu poder em diferenciá-lo dos demais na sociedade.
Foucault observa bem que os que detêm títulos acadêmicos sabem que aquele pedaço de
papel não os adiciona nada, neste sentido o diploma serve precisamente para quem não
tem. O intelectual em nossa sociedade cumpre uma função de poder e é frequentemente
cooptado pelo seu ego. Como um aluno que se comporta de maneira obediente pelos

10
adesivos de estrelinhas, o intelectual acadêmico se torna obediente por títulos e
condecorações.

O discurso científico e as instituições, como a universidade, produzem uma verdade que


tem seus critérios diretamente veiculados aos diferentes arranjos econômicos e políticos
de uma determinada sociedade. O Estado, por exemplo, tem sido colocado
historicamente na academia como uma verdade insuperável, o que Wallace Moraes
(2018) denominou de "Estadolatria". É a marca de uma guerra vencida pelo Estado, o
que não significa que anarquistas não tenham que produzir teoria e disputar esse
discurso.

Um amigo um dia me disse (sei que a ciência não suporta a ideia de que existem
pensamentos para além de livros) que o marketing e a propaganda são os maiores
inimigos da filosofia, porque eles também criam conceitos. O marketing e a propaganda
tomaram conta das ideias e os conceitos, fazendo uma releitura do mundo das ideias de
Platão (os marqueteiros adoram referências e releituras rasas) para o mercado das ideias.
Precisa de alguma teoria? Aqui o cliente sempre tem razão, neste embate, a realidade
sempre sai com altos descontos! O que o cientista do campo das humanidades não
abarca é que a realidade não cabe em salinhas de pós-graduação (mesmo com Feng
Shui). A assepsia das posições técnicas criam um mundo em guerra, onde os que estão
vencendo afirmam com toda veemência: "não existe guerra alguma, teoria da
conspiração!"

Como arautos que são, os indígenas zapatistas nos avisam: estamos no IV Guerra
Mundial! para eles, após a III Guerra Mundial (Guerra Fria), o neoliberalismo passou a
atacar seletivamente indivíduos, exterminando alguns, uma guerra de conquista de todos
os espaços e nichos sociais pelo mercado mundial. Não é brincadeira, estamos em
guerra e as teorias e tecnologias sociais são fundamentais para esta dominação.

Caberia muito bem aqui a Inversão do aforismo de Clausewitz realizada por Foucault: a
guerra é a política continuada por outros meios. Foucault no curso Em Defesa da
Sociedade (1975-1976) destaca a importância de um discurso histórico político que não
se perde pelo discurso jurídico filosófico. Para o autor, organizações, monarquias,
sociedades, estruturas jurídicas de poder não nasceram de rivalidades teóricas, e sim da
guerra, do sangue, de cidades incendiadas, dos “heróis do horror”. O que não significa
também que o estabelecimento de uma lei ou arranjo jurídico signifique o fim da guerra,

11
pelo ao contrário, a guerra é o que move as instituições de ordem e paz, “fazem
surdamente a guerra”. E os teóricos cumprem o papel de fabricar discursos que
justifique essa guerra surda, apresentando-a enquanto paz e ordem.

Em um programa de TV da GloboNews10 (tenho certeza que vocês não assistem esse


tipo de coisa), o ex-guerrilheiro Fernando Gabeira entrevistou o coronel que comandou
as tropas brasileiras no Haiti e na ocupação no complexo de favelas na Maré na cidade
do Rio de Janeiro. O coronel falou sobre seu livro cujo o tema principal é: as diferenças
de uma guerra tradicional e uma guerra moderna. O coronel constatava que após o fim
da guerra fria, isto é, com o fim da história 11, as guerras se direcionaram para o interior
dos países, tendo em vista a garantir o monopólio da força ao Estado. Em uma conversa
amistosa com o ex-guerrilheiro e hoje liberal, o coronel afirmou que como não é
possível bombardear sua própria população civil, a guerra se deslocou para um âmbito
da informação. Contava orgulhoso que quando comandava as tropas no Haiti, o exército
brasileiro tinha grande dificuldade de compreender como a resistência Haitiana se
organizava, mas solucionaram o problema contratando um antropólogo.12

A nova guerra é personalizada como seu celular. Uma teoria sobre uma sociedade de
redes é fundamental para pensar uma rede social, uma teoria que aponte a necessidade
de uma produção individualizada, o que alguns economistas denominaram como
toyotismo, influencia na concepção do consumo direcionado por algoritmos. O Tinder, o
Google, o Facebook são tecnologias que são produtos da IV Guerra Mundial. A
mercantilização abarca todas suas dimensões sociais, ele monetiza desde seu encontro
amoroso, sua relação com seus amigos e sua relação com o conhecimento. Assim como
um drone com reconhecimento facial permite uma guerra individualizada, as
tecnologias digitais permitem um controle social individualizado e ao mesmo tempo
macro. O avião de Santos Dumont e a bomba atômica de Einstein permitiram ao
capitalismo dar novos passos, e hoje essas novas tecnologias permitem a
mercantilização e o controle militar de instancias de nossas vidas que até pouco tempo
eram objetos de ficção cientifica.

10 GloboNews é um canal de televisão por assinatura brasileiro sediado no Rio de Janeiro, capital do
estado brasileiro homônimo e que transmite uma programação jornalística durante as 24 horas do dia
11 Francis Fukuyama concebeu que com o fim do fascismo e do socialismo da União Soviética, o
capitalismo e a democracia burguesa teria atingido o ápice da evolução, chegando ao fim da história.
12 As diferenças entre uma guerra tradicional e moderna -
https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6815738/ (Acessado em 12/07/2018)

12
Mas o que isso tudo tem relação com a democracia? As teorias sobre democracia, e
principalmente a legitimação do atual arranjo institucional passa pela academia e a
produção de um conhecimento teórico. Nós estamos inseridos no meio acadêmico e é
extremamente necessário afirmar que estamos plenamente conscientes que estamos
numa guerra epistemológica da qual tomamos partido de um lado especifico.

O liberalismo se apropriou da ideia de democracia e a transformou num produto


vendável e inofensivo, como os produtos de emagrecimento instantâneo ou miojo,
querem nos fazer crer que as soluções dos problemas políticos são resolvidos de forma
rápida e mágica, com um voto, um dia de eleição.

O conhecimento cientifico produziu um cenário em que os especialistas concentram o


poder de decisão de nossa sociedade e tutelam os governados. O termo Políticas
Públicas nos dá a pista necessária. O termo é uma negação da própria política e
pressupõe que o Estado na figura de grande administrador vai tomar as decisões pela
manada dos governados, tendo uma origem acadêmica, o termo tem como princípio que
as pessoas não são capazes de tomar suas decisões. Os especialistas tomam conta da
administração pública, enquanto os inaptos a governar assistem apáticos, o que Noam
Chomsky chamou de Democracia do Expectador.13

Em suma, cientistas sociais, historiadores criaram teorias que consolidaram e


legitimaram a atual democracia excludente na qual vivemos. Apesar de suas posições
políticas bem definidas em termos de classe, acreditam que defendem a verdade
cientifica em detrimento de “paixões”. Michel Foucault (1975-1976) construiu uma
teoria na qual podemos identificar que os “vencedores da Guerra” sempre ocultam a
guerra sob o discurso da paz, estabelecendo critérios de verdade na qual seus discursos
são colocados enquanto tal e dos inimigos são descartados enquanto saberes menores.
Tendo consciência desta batalha, pretendemos construir uma crítica a ideia hegemônica
de democracia no Brasil, que tem como matiz principal de legitimação discursiva os
autores liberais.

2.2 PEQUENOS APONTAMENTOS METODOLÓGICOS

13 CHOMSKY, Noam. Mídia: propaganda política e manipulação. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

13
Segundo Barros (2011), a teoria está diretamente associada ao modo de ver e interpretar
a realidade. Todo campo de saber envolve aspectos teóricos, conceitos, interpretações,
formas de argumentação, influenciando inclusive na escolha do método que a pesquisa
utilizará. Por exemplo, no século XIX e no início do século XX a profissão do
historiador estava fortemente vinculada com o Estado. Atrelados a concepção de uma
historiografia factual que visava enaltecer as glorias nacionalistas do seu respectivo
Estado, esses historiadores europeus privilegiavam uma história oficial, e como
consequência analisavam fontes oficiais, documentos estatais, memorandos, relatórios
produzidos pelo próprio Estado.

O Método está relacionado diretamente ao modo como os objetivos e hipóteses de uma


pesquisa serão comprovados ou não, o modo como uma pesquisa será feita, quais serão
suas fontes, qual será sua ação em relação a elas. Portanto, o método elege fontes
específicas e uma maneira de trata-las. Nesta pesquisa as barreiras entre teoria e método
se aproximam e invadem suas respectivas áreas. Nossa fonte principal é a própria teoria:
por meio de uma contextualização histórica pautada em autores como Macpherson
(1978), Luis Felipe Miguel (2002), David Graeber (2015) e Wallace Moraes (2018)
concluímos que estamos em uma democracia pautada na exclusão, que assim como
Perry Anderson (1995), Lemos (2014) e Macpherson (1978) apontam, a democracia tal
qual a conhecemos no Brasil (Eleição, livre concorrência, liberdade de imprensa,
propriedade privada, estrutura partidária dentre muitas outras características) está
historicamente vinculada as concepções teóricas fundadas sob a teoria liberal clássica e
suas premissas. Como veremos adiante, grupos neoliberais articularam sob diferentes
frentes estratégicas a disseminação do neoliberalismo, como Lemos (2014), Perry
Anderson (1995) e Chomsky (2002) apontam.

Pautado no levantamento histórico do pensamento de Macpherson (1978) sobre


democracia liberal e tendo como premissa de que o atual modelo é pautado no
neoliberalismo, elegemos como método uma análise qualitativa do discurso de
diferentes autores liberais, são eles:

1 - Jonh Stuart Mill – por ser um importante teórico da democracia representativa.


Segundo Macpherson, a geração de liberais que o autor fazia parte enfrentou o problema
da classe trabalhadora e as tensões políticas que o século XIX trazia, sendo Mill o

14
primeiro a elaborar um modelo democrático visando adaptar a democracia liberal aos
novos perigos que uma classe trabalhadora miserável poderia proporcionar.

2 – Joseph Shumpeter – por ser um teórico frequentemente citado e estudado,


influenciando diretamente as democracias ocidentais, fixando um modelo hegemônico:
a democracia concorrencial, confluindo positivamente com as elites do século XX, o
homem burguês e o mercado são suas bases de pensamento.

3 – Huntington – porque foi um dos principais articuladores da democracia no formato


norte-americano na América Latina, sendo um agente, pensador e articulador a abertura
democrática no Brasil.

Como vocês puderam ler, escolhemos os autores sob critérios de relevância acadêmica e
política, como também colocamos em uma ordem cronológica cada autor, há uma
progressão histórica baseada principalmente na pesquisa de Macpherson (1978). No
caso do Huntington, sua escolha se deu pelo o levantamento histórico feito por Lemos
(2014) que demonstra que o autor teve influência política direta na formação da
democracia no Brasil. Escolhidos os autores segundo relevância teórica, influencia e
ação política, analisaremos suas formulações teóricas a respeito da democracia sob o
ponto de vista anarquista, como também autores de outros campos teóricos.

Os conceitos assim como Paul Veyne (1982) apontam são ferramentas para uma
pesquisa que possibilitam diferentes trabalhos. Todo conceito é uma forma de
generalização, uma comparação. Por exemplo, o conceito de “Guerra”, a historiografia
normalmente define o que é uma guerra como: “conflito armado entre duas potências”,
esse conceito acumula a comparação entre boa parte das guerras que já ocorreram, mas
talvez não se encaixe em um determinado tempo histórico, como no caso da “Guerra
Fria” ou como no caso dos zapatistas que passaram a definir a Guerra Fria como a
terceira Guerra mundial e a IV como a guerra individualizada contra os pobres,
indígenas e negros. Os conceitos fazem parte de uma teoria e como tal expressam uma
visão de mundo, voltando ao nosso exemplo, o conceito de Guerra Fria pode esconder a
brutalidade de uma guerra com incontáveis vítimas, como a Guerra do Vietnam,
Correia, Guatemala, dentro muitos outros países que sofreram com seus
desdobramentos. Chama-la de IV Guerra Mundial atenta para o peso real da brutalidade
dos fatos desse conflito. O uso de um conceito ou não expressa uma visão de mundo e
possibilita diferentes analises politicas

15
Quando usam o conceito de “democracia” para definir o atual arranjo isso expressa uma
perspectiva de que um governo democrático é um governo comandado pelas elites,
naturalizando a dicotomia entre governantes e governados. A crítica na qual
construiremos à teoria democrática liberal será firmada na premissa de que a dicotomia
entre governantes e governados é negativa para a sociedade. Utilizaremos a construção
de um paradigma libertário de Wallace Moraes (2018) e dois conceitos principais: o
conceito de Plutocracia e o conceito de Estadolaria.

Como Moraes (2018) afirma, a história do pensamento anarquista tem refletido muito
sobre o problema coerção versus liberdade. Os fins para atingir uma sociedade
anarquista não podem ser coercitivos, obrigar as pessoas a cumprir um determinado
programa. O anarquismo etimologicamente é a junção de duas palavras gregas: an – que
significa “não” e aeké – que significa autoridade, sendo o anarquismo por princípio a
negação da autoridade. Atrelado à dois princípios básicos: liberdade e igualdade, o
anarquismo propõe a construção de uma sociedade sem Estado ou qualquer tipo de
hierarquia e autoridade justificada por instituições, leis ou coerção.

Os liberais por essência estão imbuídos de um pensamento que pressupõe o imperativo


da coerção social através da violência, das leis, das instituições para manutenção de uma
sociedade, em resumo a necessidade de um Estado para regular as relações entre as
pessoas. Diferentes teorias englobam pensadores estadolatricos, como aponta Moraes
(2018) “desde Maquiavel, passando por Hobbes, Locke, Montesquieu, Hegel e até
Marx”14 a estadolatria está fortemente presente. Embora os liberais apresentem uma
crítica ao Estado, eles criticam apenas o modelo de Estado, defendendo uma forma
ainda mais desigual. Vejamos:

“Eles defendem o Estado mínimo, composto prioritariamente e quase que


exclusivamente pelo judiciário e as policias, para garantir a propriedade, o lucro e a vida
dos proprietários. As demais questões como saúde e educação seriam compradas no
mercado. Esta concepção também é estadolatrica, pois não aponta para o fim do Estado,
mas, apenas, para um direcionamento de suas funções, com vistas a garantir o pleno
funcionamento da economia capitalista, sem possibilidade de qualquer papel mais
generoso para os governados” (MORAES, 2018:38)

Resumindo: a Estadolatria é o culto à autoridade do Estado, sua dominação e coerção


sobre a sociedade, sempre omitindo ou desconsiderando sociedades que vivem sem
Estado, esse tipo de pensamento acredita que sem o Estado não haveria uma sociedade
organizada.

14 MORAES, 2018:38

16
O outro conceito que vamos trabalhar é o de Plutocracia. O conceito vem do grego
Ploutos: riqueza, Kratos: poder, ou seja, um governo, um sistema de poder que é
comandado por quem detém a riqueza. Ele mostra o que toda população tem
conhecimento, que o atual modelo de Estado capitalista privilegia os que detém a
riqueza econômica. Um sistema oligárquico-representativo comandado por corporações,
empresas, banqueiros e instituições financeiras. O autor faz algumas subdivisões no
conceito de plutocracia, como o nosso objeto de estudo são os liberais, focaremos na
Plutocracia Liberal e Neoliberal, cuja as características principais são a propriedade
privada, o livre mercado. Nestas concepções os direitos sociais são vistos como
obstáculos para o sucesso econômico e social.

Por fim, recorreremos à autores clássicos do anarquismo como Bakunin, Kropotkin,


Flores Magón e seus textos sobre eleições, Murray Bookvhin sobre sua perspectiva em
relação aos partidos políticos, por fim atores como Chomsky, David Graeber, Luis
Felipe Miguel e Macpherson nos auxiliarão a contextualizar e apresentar diferentes
perspectivas de democracia.

3. A DEMOCRACIA LIBERAL – UMA RETROCPETIVA TEORICA

Nossa jornada pela teoria da democracia liberal se inicia em meados do século XIX.
Mudanças profundas ocorriam na Europa de Jonh Stuart Mill. Hobsbawm (1997)
concebe o período entre 1789 e 1848 como “A era das revoluções”, segundo o autor este
período da História foi marcado por duas revoluções: a revolução francesa de 1789 e a
revolução inglesa industrial no mesmo recorte temporal.

Inevitavelmente, visto que a dupla revolução ocorreu numa parte da Europa, e seus
efeitos mais imediatos e óbvios foram mais evidentes lá, a história de que trata este livro
é sobretudo regional. Também inevitavelmente, visto que a revolução mundial
espalhou-se para fora da dupla cratera da Inglaterra e da França, ela inicialmente tomou
a forma de uma expansão europeia e de conquista do resto do mundo. HOBBSBAWN,
1997:2

O período representou a vitória de um modelo de homem e sociedade. A partir de uma


dupla revolução o mundo colonial inglês e francês iniciou uma expansão sem
precedentes, dominando diversas regiões do planeta, desenvolvendo um mercado
capitalista forte que controlava o jugo governamental. O avanço tecnológico
proporcionou uma grande riqueza para os capitalistas e miséria não apenas para quem
sofria com a colonização, como também para própria classe trabalhadora. Macpherson

17
(1978) coloca que “a classe trabalhadora começava a ser perigosa”, suas “condições da
classe trabalhadora se tornavam tão ostensivamente desumanas” que até mesmo os
liberais se preocupavam a com situação.

Londres da metade do século tinha dois milhões e meio de habitantes e conservava uma
desigualdade econômica assustadora. Teóricos londrinos como Freeman-Williams
defendiam posturas como estas:

“Competindo no mercado de trabalho em condições desvantajosas com o imigrante, ele


percorre vários estágios antes de ser fisicamente eliminado: trabalho regular, biscates,
pocilgas, prostituição, caridade, desordem, protestos públicos e tumultos; eis algumas
das lutas desse moribundo londrino até que pague sua dívida à natureza, cujas leis não
têm capacidade para obedecer Freeman-Williams. The effect of town life on the general
health, 1890 apud BRESCIANI, 1982:30.

Por sua vez, o século XIX também apresenta as revoltas, o avanço da organização da
classe trabalhadora, ações anarquistas eclodem em toda Europa, pensadores como
Bakunin e Marx espalhavam seus pensamentos e escritos com grande velocidade.

Nesse contexto histórico Stuart Mill escreve um ensaio denominado de “O Governo


Representativo” (1861). O autor anuncia uma possível aliança entre os setores liberais e
conservadores, o poder do rei seria limitado, introduzindo uma democracia
representativa cujo o papel seria controlar o governo.

Mill (1981) estava dando continuidade a autores como Bentham, utilitarista que foi
definido por Macpherson (1978) como pré-liberal por ter sido um dos fundadores de
toda uma lógica de pensamento individualista que enaltecia a propriedade privada.

Ao meu ver uma das maiores contribuições da pesquisa de Macpherson (1978) é


demonstrar tão nitidamente que cada teoria tem uma concepção de ser humano
especifica, mesmo dentro da própria teoria, como no caso da liberal, temos algumas
variações. Bentham achava que os seres humanos eram naturalmente egoístas, que
buscavam a maior quantidade de prazer, sendo o principal meio para conseguir o prazer
o poder, e principalmente o poder de subjugar o outro. Para Bentham, a sociedade
deveria ser essa livre competição pelo prazer, o Estado não deveria prover subsistência
alguma, apenas oferecer motivos para impulsionar o trabalho, um deles era a fome e o
medo da morte (para classe trabalhadora).

Mill dá continuidade à tradição de pensamento, dando seguimento ao individualismo, a


defesa do livre mercado, da propriedade privada. Alegando que a democracia é um
procedimento para escolha de governantes.

18
Stuart Mill rompe com uma parte importante do pensamento de Bentham: sua
concepção de ser humano ou “homem”. Mill concebia a essência humana como a busca
pelo desenvolvimento de suas capacidades e forças. A boa sociedade para o autor era a
que permitia o desenvolvimento dessas forças e capacidades individuais. A raiz do
pensamento de Mill é a moralização da democracia representativa. Talvez pelas
emergências históricas que se colocavam a sua frente, o autor viu a necessidade de
tornar a multidão mais satisfeita com o estado das coisas existentes, como um bom
negociador colonial15, ofereceu um acordo desvantajoso, o efeito tranquilizador de
Stuart Mill foi a democracia representativa. O autor se preocupava com a função da
democracia enquanto “franquia protetora” da sociedade para com o governo, de garantir
a tão querida estabilidade liberal. Mas o que é novo em Mill é a função moral da
democracia de desenvolver as capacidades humanas. Quanto mais desenvolvidas essas
capacidades em homem mais importância política ele deve ter. E essas “capacidades
intelectuais” eram balizadas em riqueza e educação burguesa.

Mill reconhecia que a classe trabalhadora teria poucas chances de desenvolver suas
capacidades humanas, já que segundo o autor havia uma injusta distribuição de
propriedade originária dos tempos feudais onde a propriedade era determinada pela
força. Esse tipo de argumentação nos faz lembrar nossos políticos colocando culpa em
gestões anteriores aos seus mandatos. O autor também utilizou o argumento de que em
algum momento histórico as famílias ricas pouparam e as famílias pobres não. Mill não
reconhecia que o capitalismo e a propriedade privada dos meios de produção
reproduziam e aprofundavam a desigualdade econômica. Pelo contrário, o autor
acreditava que era mais que justo que o proprietário tivesse parte da riqueza gerada pelo
trabalho de outros mediante um contrato. Segundo Mill, o trabalho produziria cada vez
mais um volume maior de riqueza que proporcionaria o desenvolvimento que por sua
vez permitiria uma menor desigualdade e maior desenvolvimento humano. Mill propôs
como modelo democrático um mecanismo de eleger governos, neste sistema diferentes
classes teriam pesos diferentes, o proprietário dependendo de sua pose ou posição
intelectual teria até 4 votos, o homem que pagasse imposto direto, não fosse devedor e
que soubesse ler e escrever teria o direito a um voto, o autor também fazia uma
distinção entre a “natureza das ocupações”. Vejamos:

A única coisa que justifica o fato de a opinião de uma pessoa valer mais do que as outras
é a superioridade mental individual[...] Se existisse algo como uma educação realmente
15 Assim como seu pai, Stuart Mill foi funcionário da Companhia das Índias.

19
nacional, ou um sistema de aferição geral digno de confiança, a educação poderia ser
tomada como critério direto. Na falta desses meios, a natureza das ocupações das
pessoas é uma espécie de aferição. Um empregador geralmente é mais inteligente que
um trabalhador, uma vez que deve trabalhar com a cabeça[...] MILL, Jonh Stuart,
Considerações Sobre o Governo Representativo – Brasília, Editora Universidade de
Brasília - 1990, p.93)

Mill (1990) via com grande medo a possibilidade da ditadura de uma maioria. Ele
acreditava que caso a igualdade dos votos fosse garantida, permitiria que a classe
trabalhadora se apropriasse do governo, exigindo benefícios sociais intermináveis.

Jonh Stuart Mill influenciou fortemente a concepção de democracia liberal, a ideia de


representatividade, a superioridade intelectual dos “empregadores”, o perigo da ditadura
da maioria e sobretudo o método dedutivo para justificar a propriedade privada são
tradições do pensamento liberal que Mill deu seguimento de maneira exitosa.

Alguns apontamentos de Mill (1990), mostrara-se frágeis ou incompatíveis com a


sociedade de mercado, sua concepção de homem foi largamente abandonada, embora
fosse individualista não era coerente com o livre mercado, já que o mercado estimula a
competição. Outra questão foi o perigo do sufrágio universal, infelizmente Mill estava
equivocado. Onze anos depois da morte de Stuart Mill o sufrágio universal masculino
foi implementado na Inglaterra, mostrando que o autor estava errado quando achava que
o direito ao voto permitiria um avanço da classe trabalhadora.

O pensamento de Stuat Mill quando concilia as diferenças de classe por meio do


desenvolvimento do pensamento sobre a justiça e a cooperação entre as classes mediada
por um Estado garantidor dos contratos auxiliou discursivamente no que seria o antidoto
contra o avanço da classe trabalhadora: a implementação de um sistema partidário. O
sistema partidário cumpriu a função de conciliar as classes, diminuir as tensões e manter
como tudo estava em termos de classe apesar do sufrágio universal. A formação de
partidos centralizados, comandados por lideranças, e estruturado de forma
extremamente hierarquizada permitiu que países como a Inglaterra não sofressem
grandes mudanças com o sufrágio universal, as agendas dos partidos raramente se
alteravam por questões de sua base.

Tendo fracassado em parte a teoria de Mill, nos meados do século XX a democracia


liberal avança para outras concepções teóricas e retorna a algumas. O novo modelo
estaria principalmente preocupado com a estabilidade dos governos, afim de minimizar

20
possíveis conflitos violentos entre elites e incluir todos cidadãos num processo político
de escolha de governantes.

Começaremos aqui nossa breve analise sobre teoria de Joseph Shumpeter, que através
do seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942) influenciou grande parte das
democracias ocidentais. Shumpeter (1985) definia a democracia como um procedimento
para escolher e alternar elites no poder. O papel da democracia para o autor é autorizar
e produzir governos, Shumpeter (1985) rompe a com moralização de Mill, retornando
aos utilitaristas. A grande lição do sistema partidário é um alicerce da teoria de
Shumpeter (1985), o que garantiria um sistema democrático entre as elites, tendo em
vista que o que reforçou sua teoria foram inúmeros estudos empíricos que
demonstravam que os governos eram pouco sensíveis as demandas dos eleitores,
produzindo pouca interferência nas agendas de governo.

Ao ler Shumpeter (1985) é impossível não ver nossa democracia. Sua teoria tem o
grande mérito de ser realista quanto as condições das democracias ocidentais. O autor
retorna à concepção de homem dos utilitaristas: competitivo e egoísta, sempre em busca
dos lucros. Os arquétipos principais são os consumidores e empresários no habitat do
mercado livre, a eleição seria o mercado livre, os eleitores os consumidores e os
empresários os partidos políticos dominados por elites. Vamos confessar que é louvável
sua sinceridade. Ele esvazia o conteúdo moral colocado antes por Stuart Mill. Não há
mais desenvolvimento de capacidades humanas ou qualquer outra moral. Seu objetivo é
produzir um revezamento de elites no poder, decido pelo voto dos consumidores, ops!
Eleitores.

Segundo Shumpeter (1985) a participação de muitos eleitores seria prejudicial a


democracia e criaria instabilidade política, possivelmente prejudicando a fonte de
democracia que é o mercado. Como os indivíduos tem muitas demandas, cada um
exigindo diferentes bens públicos, o Estado não estaria pronto para atender essa enorme
gama. A solução para o autor seria estabelecer algumas elites que ofereceriam ao povo
diferentes pacotes de bens públicos e eles escolheriam os melhores.

“Se não fosse assim, seria impossível que diferentes partidos adotassem exatamente ou
quase exatamente o mesmo programa. Entretanto, isso acontece, como todos sabem.
Partido e máquina política são simplesmente a resposta ao fato de a massa eleitoral ser
incapaz de qualquer ação que não seja o “estouro da boiada” e constituem uma tentativa
de regular a competição política que é exatamente semelhantes às práticas
correspondentes de uma associação comercial.” (SHUMPETER, 1985: 353.)

21
Shumpeter (1985) pensou a democracia liberal como o mercado, para ele não havia
muitas diferenças. Talvez esse seja seu ponto forte, ele descreve de fato como as
democracias ocidentais operam. O aspecto fraco da teoria de sua argumentação é de que
é o único governo possível, fazendo uma profecia que se auto cumpre, ele criou uma
teoria que justificava a desigualdade e se preocupou com a estabilidade do mercado para
afirmar que ela é a única possível. Como o Dom Quixote liberal combateu piamente o
seu moinho de vento chamado “democracia clássica” que seria um misto de argumentos
de Jefferson e Rosseau (Macpherson, 1978).

Josep Shumpeter é o principal autor da democracia concorrencial, os valores de


estabilidade de mercado, propriedade privada, a essência do homem enquanto
competidor, o individualismo, a preocupação e a construção de soluções quanto ao
velho problema da “ditadura da maioria” aqui estão solucionados por uma estrutura
partidária competitiva. Shumpeter dá continuidade e oferece soluções convenientes as
elites, valorizando a educação burguesa e a capacidade de “liderança”.

Um dos pensadores que mais se apropriou dos seus pensamentos foi Samuel
Huntington. Professor em Havard assim como Shumpeter, Huntington foi um
importante pensador para transição democrática no Brasil.

Assim como aponta Lemos (2014) a universidade de Havard estava inserida em


“conexões financeiras e ideológicas com grandes corporações e com o Estado norte-
americano. Parece natural que o investimento de um Estado em instituições se reverta
em pesquisas e estudos que o auxilie em sua empreitada. No caso de Huntington seu
objeto de estudo eram as democracias, principalmente no terceiro mundo, a transição
das ditaduras que o próprio governo norte-americano financiou para democracias no
formato concorrencial.

Samuel Huntington exerceu um trabalho de agente americano, escrevendo relatórios que


orientaram a ação diplomática no Brasil, inclusive que influenciaram no golpe de 1964.
O que o autor indicava era que o terceiro mundo vivia uma grande turbulência,
necessitando de estabilidade política, conforme o relatório IDA.16

16 Ver “Ordem política em sociedades em mudança Clement e Tech: 2003, 355-356 apud LEMOS,
Renato Luís do Couto Neto e. A conexão Harvard e a política de descompressão: sobre as origens da
transição política no Brasil pós 64. Revista Tempos Históricos, volume 18, 2º semestre de 2014. Página
559-590.

22
Como aponta Chmosky, “o governo é um conjunto de instituições sombrias” 17, o Fundo
Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio,
segundo o autor estão elaborando um governo mundial de fato. Um exemplo que
Chomsky dá é a Comissão Trilateral. Uma subdivisão criada por David Rockerfeller
dentro da comissão em 1973 produziu um interessante relatório em 1975 denominado
de “The crisis of democracy”. Trilateral significava Estados Unidos, Europa e Japão, a
crise apontada por esse documento era a “agitação” de grupos políticos querendo se
inserir na política, demandando diferentes pautas (aquele grande medo de Shumpeter).
E quem era o relator americano? Isso mesmo, Samuel Huntington, amigo de Geisel e
Delfim Neto, o intelectual orgânico de Wall Street foi um articulador sem precedentes.

Huntington não escondeu sua conexão direta com pesquisas financiadas pelas forças
armadas norte-americanas. O autor participou da Rand Corporation, “criada com o fim
princípio de viabilizar esse tipo de parceria” 18. O que movia os EUA no período era a
disputa por zonas de influência, tendo em vista a Guerra Fria e o caso de Cuba, a
política externa americana não poderia negligenciar a América Latina.

Em seu livro Huntington (1975) diz que não importa tanto a forma de um governo, o
mais importante é que o governo governe... sei que parece aquelas piadas de mal gosto,
mas essa afirmação traz um fato político importante. Huntington está preocupado com a
estabilidade dos governos, para eles tanto nos EUA, na URSS e na Grã-Bretanha
existem “instituições fortes, adaptáveis e coesas: burocracias eficientes, partidos
políticos bem organizados”19 e isso é o importante, um governo que suporte choques
políticos e controle seu povo.

Huntington (1975) escreve com a visão de uma cruzada civilizacional, ele via com
grande temor “a incidência numérica de violência e desordem política” 20 nos países do
terceiro mundo. A causa para estes problemas políticos seria o rápido desenvolvimento
econômico que estes países tinham vivido, como no caso do milagre econômico
brasileiro (1969-1973), confira:

“A instabilidade política na Ásia, África e América Latina decorre precisamente do


insucesso em preencher essa condição: a igualdade de participação política está
crescendo muito mais rapidamente do que a arte da associação. As mudanças social e
econômica – urbanização, aumento da alfabetização e da educação, industrialização e

17 CHOMSKY, 1999:38
18 LEMOS, 2014: 564
19 HUNTINGTON, 1978: 13
20 HUNTINGTON, 1978: 14

23
expansão dos meios de massa- estendem a consciência política, multiplicação de
demandas politicas ampliam a participação política. Essas mudanças minam as fontes
tradicionais de autoridade política.” (HUNTINGTON, 1975:17.)

O autor afirma que os EUA se preocuparam em criar sistemas econômicos em


desenvolvimento nessas áreas para resolver o hiato econômico dessas regiões, mas não
se preocuparam em construir governos com capacidade de governança, no sentido de
estabilidade política. O autor chega a citar a chama “Aliança para o progresso”, que
segundo ele teria aplicado algumas reformas e medidas assistências que reduziram as
tensões do fidelismo na América Latina.

Em toda a extensão de sua teoria a maior preocupação que vemos é a da estabilidade,


aquilo que podemos ver em Bentham, Mill e Shumpeter. O verdadeiro desafio não seria
derrubar ou tomar governos com golpes e sim mantê-los e para isso é preciso
legitimidade e uma estrutura complexa capaz de amenizar os conflitos. O que a
estabilidade demanda? Para Huntington uma comunidade política madura demanda a
institucionalização. O autor evoca Madison em The Federalist nº 51:

“(..)na formação de um governo que ser administrado por homens sobre homens”, (...), a
grande dificuldade consiste no seguinte: deve-se primeiro habilitar o governo a
controlar os governados e, em seguida, obriga-lo a controlar-se” (HUNTINGTON,
1978: 19.)

O autor continua: “o problema fundamental não é liberdade, mas a criação de uma


ordem legitima”. Segundo este liberal sincero, o homem pode ter ordem sem liberdade,
mas liberdade sem ordem não. Sendo necessária a autoridade.

Outro ponto que nos chama a atenção que está diretamente relacionado com o a
perspectiva histórica que traçamos aqui é a questão partidária. Neste ponto o autor
expõe a necessidade da criação de grupos partidários que sejam capazes de conciliar
diferentes classes e demandas, um partido de sucesso nesta democracia é aquele que
consegue abarcar diferentes nichos sociais, que consegue mudar de eleitorado. Para o
autor o Estado não pode ser composto, assim como os marxistas veem o Estado
capitalista, como um comitê da burguesia e sim uma confluência que englobe de alguma
forma distintos grupos e classes para atingir a estabilidade necessária, para que em
momentos de crise da democracia, ou seja, em momentos onde pessoas excluídas do
sistema se organizarem para participação política, instituições estejam esperando essas
pessoas, que absorvam essas pessoas em sua máquina política, “o sistema possui dentro
de si mesmo os meios necessários para sua própria renovação e adaptação”21

21 HUNTINGTON, 1978: 31

24
Nos finalizaremos essa breve analise de Huntington (1975) com uma citação que nos
oferece uma grande lucidez sobre os partidos políticos e organizações. Principalmente
os partidos políticos que foram criadas no sistema democrático liberal/neoliberal.
Considero esta citação não só importante como necessária para compreender o sistema
democrático no qual vivemos depende de legitimidade e da capacidade de organizações
hierarquizadas absorvam ideias e grupos afim de transforma-los em simples partes do
sistema:

“(...) a autonomia do sistema é resguardada por mecanismos que restringem e atenuam


o impacto de novos grupos. Esses mecanismos tornam mais lento o ingresso dos novos
grupos na política ou, através de um processo de socialização política, estimulam as
mudanças de atitude e comportamento dos membros politicamente mais ativos do novo
grupo. Num sistema político altamente institucionalizado, as posições mais importantes
de liderança normalmente só podem ser alcançadas pelos que passaram por um estágio
de aprendizado em posições menos importantes. A complexidade de um sistema político
contribui para sua autonomia, proporcionando uma diversidade de organizações e
posições em que indivíduos são preparados para os postos mais altos. De certa forma, as
posições mais elevadas de liderança constituem a própria essência do sistema político:
as posições menos importantes, as organizações periféricas e as organizações
semipolíticas são o filtro pelos quais devem passar os que desejam ter acesso ao cerne
do sistema. Assim, o sistema o político assimila novas forças sociais e novos membros,
sem sacrificar sua integridade institucional. Num sistema político a que faltem tais
defesas, novos membros, novos pontos de vista e novos grupos sociais podem
substituir-se uns aos outros, no cerne do sistema, com desconcertante rapidez.”
(HUNTINGTON, 1978:34)

4. CONCLUSÃO

Mais uma eleição se aproxima no Brasil e mais uma vez os anarquistas não irão votar.
Serão acusados de “fazer o jogo da direita” e beneficiar políticas liberais com ausência
de sua atividade cívica do voto. Os partidários da base argumentam: é preciso competir,
lutar para conseguir cargos políticos e promover uma revolução de dentro do Estado.

É muito interessante notar que a solução de Stuart Mill (1981) para o medo da classe
trabalhadora se apropriar do Estado foi prontamente solucionada com uma estrutura
partidária cujo o objetivo é confluir e absorver interesses de classes e grupos distintos. A
crise da democracia, assim como aponta Chomsky (1999), é o ímpeto de outros grupos
participarem da política. A maior preocupação de Huntington (1975) era criar
instituições e organizações capazes de absorver grupos e classes (inclusive com ideias
anti-sistêmicas) numa institucionalidade hierarquizada, afim de tornar as lideranças
desses grupos/classes adaptáveis ao sistema político, não só protegendo ele, mas
oferecendo uma renovação do sistema. Os que não se adaptam simplesmente não
ascendem para o poder da cúpula. Entretanto, os que são rejeitados, permanecem no

25
jogo político fazendo o trabalho de base, tendo a ilusão de que suas ideias são
importantes para a direção partidária, que na esmagadora maioria das vezes agem de
forma extremamente distanciada das concepções políticas de militantes que
permaneceram na base por conta dos filtros institucionais.

Isso explica porque vemos com naturalidade que grupos da base de certos partidos
políticos no Brasil estejam discursando sobre uma revolução socialista enquanto suas
cúpulas aplicam políticas neoliberais. O jornalista brasileiro Cubero (2016) aponta bem
a questão:

“A burguesia sabe que os partidos operários são seus melhores aliados, o aliado
silencioso, o aliado indireto. Com suas agitações eleitorais eles dão vazão às forças do
proletariado, aos seus desejos de rebeldia e mudanças. É uma forma de desviar esses
impulsos, tão perigosos, para fins muito mais interessantes aos senhores do mundo”
(CUBERO, 2016:30)

Em suma, o partido político tem se estruturado na forma de um mini Estado,


hierarquizado por uma elite intelectual e econômica. De alguma forma, sempre paira a
ilusão de que a escolha é possível. Neste artigo pudemos conferir que a atual
democracia brasileira sofreu forte influência do modelo norte-americano de democracia
concorrencial. Chomsky, em seu livro O lucro ou as pessoas, mostra um grande leque
de atrocidades dos EUA na América Latina e seu forte projeto político de democracia. É
interessante notar que disputar a democracia por meio da concorrência institucional é
estar incluso em um jogo em que os diplomatas e os teóricos liberais escolheram as
regras e procedimentos. É preciso ter em mente que este atual modelo é baseado em um
sistema político que alterna elites no poder.

Estudos como o de Karl Polanyi (2000) demonstram empiricamente que os sociais-


democratas precisam dos liberais e os liberais dos sociais-democratas para manutenção
do capitalismo, sendo um mecanismo necessário para lidar com os ciclos do mercado.
Chomsky cita um trecho do livro de Huntington chamado American politics na qual o
autor afirma:

“Os arquitetos do poder nos Estados Unidos devem criar uma força que possa ser
sentida, mas não vista. O poder se mantém forte quando permanece à sombra; exposto à
luz do sol ele começa a evaporar” (CHOMSKY, 2002:75.)

Não há dúvida de que o projeto de Huntington obteve enorme êxito. O poder está na
sombra, enquanto acreditarmos na democracia concorrencial estaremos negligenciando
que o poder já foi decido antes de qualquer consulta. O que a autora americana Emma
Goldamm tratou com grande simplicidade: “Se votar mudasse algo, seria proibido”.

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Enquanto anarquistas, nossa tarefa deve ser colocar esse poder ao sol para que o mesmo
evapore o quanto antes, que evaporem as ilusões sufragistas que imobilizam toda reação
política real. É preciso afirmar que a política não é a arte de gerir Estados, que não
somos consumidores em uma “loja de 1,99” em busca de ideias políticas. A arte de gerir
o Estado consiste numa prática de dominação elitista, como afirma Murray Bookchin:

“A arte de gerir o Estado consiste em operações que engajam o Estado: o exercício de


seu monopólio de violência, o controle dos aparelhos de regulação da sociedade por
meio da fabricação de leis e regras, a governança da sociedade por intermédio de
magistrados profissionais, do exército, das forças da polícia e da burocracia.”
(BOOKCHIN, 2003:17/18)

“Há uma única paixão humana, a mais vil, a mais abjeta de todas que não seja colocada
em jogo num dia de eleição?”22, assinala o autor Kropotkin (2016). O que é requerido
aos “caros eleitores”? A escolha de um homem que decidirá e irá legislar sobre assuntos
de enorme importância: seus direitos, seus filhos, seu trabalho. Em suma, legitimar,
delegar poderes a homens e mulheres dos quais nem mesmo se pode conhecer ou
revogar o poder posteriormente. Em uma instituição cujo o objetivo principal é a guerra
e a manutenção das desigualdades econômicas, o parlamentar irá decidir sobre assuntos
que variam da engorda dos porcos à construção de pontes sem o mínimo conhecimento
de causa. Decidirão seus votos segundo as disputas mesquinhas do partido sem qualquer
contato com a sociedade e o mundo real – isto é, aquele fora dos gabinetes.

Nós firmamos nossa crítica no princípio fundamental do anarquismo de que o poder


corrompe. Bakunin (2016) aponta bem, quando afirma que a questão não é de ordem
pessoal, não é de ordem moral. Frequentemente, vemos na história política as traições,
os opositores que se tornaram a mesma coisa da qual criticavam quando não estavam no
poder. Assim como o liberal Huntington aponta, o Estado tem seus interesses próprios.
Os indivíduos que chegam ao poder “não podem considerar a sociedade de forma
diferente daquela de um tutor considera um pupilo”23, os que são dominados não gostam
de tal fato e lutarão contra o poder político, os que estão no poder terão que os reprimir
para permanecer em suas posições privilegiadas.

“Tal é a História do poder político desde que foi estabelecido no mundo. É o que explica
também por que e de que maneira homens que foram os democratas mais vermelhos, os
revoltados mais furiosos quando se encontravam na massa dos governados, tornam-se
conservadores excessivamente moderados a partir do momento que chegam ao poder.
Atribui-se ordinariamente palinódias à traição. É um erro; elas têm como causa
principal a mudança de perspectiva e posição; e jamais esqueçamos que as posições e

22 KROPOTKIN, 2016: 32
23

27
necessidades que elas impõem são sempre mais poderosas do que o ódio ou a má
vontade dos indivíduos.” (BAKUNIN, 2016:64)

A teoria liberal explica o porquê o ato de exigir uma democracia se tornou conservador.
Hoje vemos a ascensão da reivindicação da democracia direta. O termo “democracia
direta” nos é caro para compreender a contradição do abuso do uso do termo
democracia. Em primeiro lugar, porque tem sido reivindicado por diferentes correntes
teóricas, movimentos sociais, organizações e até mesmo por partidos políticos
institucionalizados, num espectro que vai do anarquismo, marxismo até a
socialdemocracia. Em segundo, porque o termo “Democracia Direta”, no sentido
etimológico, é um pleonasmo.

No clássico Dicionário de Ciência Política de Nobert Bobbio (1998) o termo


“democracia direta” aparece 24 vezes, dentre elas relacionada com Anarquismo,
Conciliarismo, Constitucionalismo, Democracia e Liberalismo, Democracia e
Socialismo, Leninismo, Rosseau, Plebiscito e Referendum, dentre uma enorme gama de
teorias políticas, autores, arranjos e mecanismos jurídicos. Ora próximo, ora distante, o
termo parece não ter nenhuma filiação política ou definição especifica, ocorrendo o
mesmo que se deu com o próprio termo Democracia, uma vastidão de definições.

Sob o ponto de vista da teoria libertária, seria um pleonasmo afirmar que um sistema
democrático é direto, ou seja, que conta com a participação de forma direta de todos, já
que um dos pressupostos libertários é o rompimento com a dicotomia entre governantes
e governados, o que Castoriadis (1992) chamou de autoinstituição O termo “democracia
direta” surgiu pela necessidade de distinguir-se da democracia representativa liberal.
Uma vez que o termo democracia foi largamente sequestrado por liberais e tecnocratas,
pedir pela mesma nas ruas se tornou um ato conservador, criando, assim, uma
necessidade de distinção. O que nos leva a outro ponto relevante, o oposto da
democracia direta, o curioso termo democracia indireta. Uma antidemocracia em seus
próprios termos.

Se utilizarmos o critério da práxis, qual ação de governo pode ser indiretamente


democrática? Excluir os governados da tomada de decisões que interferem nas suas
vidas e nem mesmo ouvi-los, apartar todas e todos que são espoliados, assassinados,
deportados, presos, que tem suas casas removidas, previdências sociais cortadas, sua
saúde e existência negada no hospital público, sua vida sugada em horas de trabalho que
nos fim das contas é roubado pelo proprietário, em suma, excluir das decisões todo

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aquele que sofre com as consequências das ações de governo, não pode ser em nada
relacionado com qualquer ação democrática. A democracia representativa é um termo
“enfeitado” para a legitimação de uma minoria aristocrática no poder. O que Wallace
Moraes (2018) denominou como Plutocracia (governo dos ricos).

Como afirmou o revolucionário anarquista Flores Magón (2003), em plena revolução


mexicana, o governo, independente dos representantes políticos está sempre a serviço
do Capital:

Um governo: isso é tudo o que pedem os capitalistas, tanto mexicanos quanto os de todo
mundo, porque sabem muito bem que governo é tirania; porque eles - os capitalistas -
são os verdadeiros governantes; pois os governantes, sejam presidentes ou reis, não são
outra coisa senão cães de guarda do Capital. (MAGÓN, 2003:85)

Graeber (2015) aponta que a democracia enquanto um valor ocidental, foi


artificialmente criado, assim como a própria ideia de que existe uma “civilização
ocidental”. A concepção de que a democracia é um conjunto de instituições baseadas no
voto, que foi inventada na Grécia Antiga, e passou por Roma, Inglaterra, e fundou sua
tradição no Atlântico Norte é uma criação, um “slogan” de propaganda norte-
americano.

Graeber (2015) afirma que a democracia não surgiu a partir de nenhuma tradição
intelectual, nem mesmo é um modo de governo, ou arranjo jurídico. “Em essência, ela é
apenas a crença de que os seres humanos são fundamentalmente iguais” 24 e que devem
tomar decisões coletivamente de maneira igualitária, e esteve presente em incontáveis
agrupamentos humanos ao longo da História. A palavra democracia tem origem grega,
mas o sistema político grego não era democrático, nem mesmo podemos identificar
autores gregos que defendam a chamada democracia. A democracia só existe enquanto
uma concepção filosófica de que a igualdade política, social e econômica é o melhor
para o funcionamento de uma sociedade, e principalmente, uma democracia só pode ser
classificada como tal se tem ações democráticas.

O voto, como aponta Graeber (2015), não remete a democracia no seu sentido
etimológico, isto é, “governo do povo”. O voto em si, surge de uma necessidade
produzida pela própria desigualdade política, imaginemos, por exemplo, uma sociedade
onde não existe violência física enquanto coerção para o estabelecimento de regras e
leis, uma sociedade igualitária, qual mecanismo parece mais razoável para uma ação
coletiva: o voto ou o consenso?
24 Graeber, 2015. P. 184

29
O voto estimula a competição e a divisão, criando um grupo perdedor e outro vencedor.
Se considerarmos um contexto onde todos têm os mesmos direitos, e que as pessoas não
são obrigadas pela violência física a cumprir determinadas ações, a votação se mostra
ineficiente. Observemos um caso hipotético de em uma eleição por maioria: 49% do
agrupamento poderiam ter seus interesses completamente negados e os outros 51%
teriam de convencer a outra parcela a adotar, apesar da oposição, as decisões tomadas
pela maioria. Não seria democrático, já que os 49% teriam suas opiniões e posições
negadas, nem tão pouco seria funcional, já que teria grande chance de perder a
capacidade de ação coletiva. O consenso mostra-se como a via muito mais potente para
ações coletivas e descentralizadas.

Miguel (2002) compartilha da mesma reflexão teórica. Segundo o autor, o termo


“Democracia” foi “sequestrado” do seu sentido etimológico, passando a ser associado à
realização de eleições periódicas e livres - num sentido de livre concorrência, sem
“restrições legais” ou “violência física”, não sendo mais relacionado com a participação
popular. O autor aponta que eleições, desde a Antiguidade ao século XVIII foram
opostas à democracia, sendo a democracia, na época, associada ao sorteio como forma
de escolha de governantes.

Tal “confusão” não se deu acidentalmente, segundo o Miguel, os regimes democráticos


contemporâneos estão imbuídos dos pressupostos de uma corrente teórica “que nasceu
para afirmar a impossibilidade das democracias: a chamada “teoria das elites”. Autores
como Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto, Robert Michels fundaram uma corrente que
buscava acima de tudo provar que o governo de todos é impossível, que a desigualdade
é natural, sendo a eleição uma forma de revezamento de poder entre as elites aptas a
exercer a tarefa de governar, legitimando uma minoria governante. Autores como
Joseph Schumpeter fizeram uso do termo democracia não só esvaziando seu principal
pressuposto que é a participação popular, como invertendo seu sentido, quanto mais
participação, menos democrático.

O sentido Grego de democracia enquanto “governo do povo” muitas vezes evocado


dentro da nossa democracia contemporânea, está muito longe de significar o poder de
voto em um representante. Em primeiro lugar é preciso ressaltar que na Grécia antiga a
sua “democracia” excluía mulheres e escravos. Miguel (2002) não busca resgatar tal
modelo, e sim mostrar que a origem grega da democracia, da igualdade entre estes

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homens era baseada em um “conjunto especifico de instituições”, destinado a incluir a
participação direta (das pessoas consideradas como cidadãos) na tomada de decisões.
Segundo o autor, nenhum cidadão “estava condenado a ser liderado”, pois todos
(cidadãos) tinham o direito de serem ouvidos dentro da ágora (Miguel, 2002).

A atual democracia longe de ouvir a todos ou dar voz, centraliza o direito a fala e
sobretudo o direito de tomar decisões. Na democracia liberal, as decisões mais
importantes são tomadas na parte oculta do poder, onde a população, o eleitorado, não
se faz presente, nem mesmo tem o conhecimento das mesmas.

Portanto, como vimos acima, sob diferentes perspectivas, a atual democracia é uma
falsa democracia, uma vez que exclui o povo (demo) de seu governo, incluindo o
mesmo apenas como a massa dos governados. Os termos democracia indireta e
democracia direta, as eleições como critério de democracia, são indícios do sequestro
(de autoria liberal) do termo democracia. Podemos concluir através das reflexões acima
que a democracia não é exercida pelo povo, nem tão pouco somos governados apenas
pelos representantes eleitos, fica uma questão: por quem somos governados?

Vimos nos aspectos teóricos metodológicos os conceitos de Plutocracia e Estadolatria


cunhados por Wallace Moraes (2018). Os dois conceitos descrevem bem a teoria
democrática liberal. O Estado como um uma instituição necessária para regular a
sociedade e estabelecer ordem e obediência dos governados. Concluímos também que o
termo plutocracia é muito mais verosímil para nos referirmos ao modelo democrático
vigente e teorizado pelos liberais.

“Sob o regime representativo, o papel destinado aos governados, pensado pelos


governantes, fundamenta-se apenas no direito ao voto: a escolha daqueles que vão lhes
governar, sob um sistema privilegiado, de tempos em tempos. A governança política é
praticamente vedada (insulada) aos governados, enquanto é absolutamente aberta aos
lobbies dos setores economicamente mais fortes. A desigualdade, portanto, de acesso
aos governantes políticos é patente e determinada pelo poder financeiro do agente.”
(MORAES, 2018:60)

A governança política, segundo Moraes (2018), é ocupada por diferentes atores como
presidentes, reis, ditadores, prefeitos, vereadores, dentre outros cargos políticos que se
apropriam do poder estatal. Sob o regime representativo o poder econômico estabelece
seus critérios como os principais.

Concluímos, portanto, que a democracia liberal é o governo dos ricos. Afirmamos que
essa conclusão não é nem de longe nossa. É a conclusão que qualquer pessoa que nunca

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leu uma linha de teoria política pode notar. Entretendo é necessário que estudemos a
teórica democrática liberal para construirmos uma estratégia política que conheça bem o
inimigo que estamos combatendo. Ao analisar os teóricos que aqui abordamos,
percebemos algumas fragilidades desse sistema: Primeiro a dependência de
organizações e instituições que absorvam ideias políticas contrarias ao Estado e as
elites, caso haja um desmascaramento dessas instituições e organizações o sistema tende
a entrar em crise. Outro ponto é a hierarquia, caso ela passe a ser questionada, o
sistema também é exposto. Em terceiro, vemos a necessidade do sistema da
propaganda ideológica, a venda da ilusão da eleição depende de todo um espetáculo
em torno de “conjuntos de bens políticos” e figuras que na prática não fazem tanta
diferença assim, um sistema de contrapropaganda poderia muito bem colapsar o
sistema. Por fim, a apatia política é o elemento base do controle das elites, uma
mobilização política que reivindique a política enquanto uma ação orgânica, e sobretudo
enquanto uma ação direta no mundo, modificando as relações cotidianas e organizando
horizontalmente soluções e projetos políticos reais ameaçam em muito a democracia
liberal.

Finalizamos nossa pesquisa com a citação do anarquista revolucionário mexicano Flores


Magón:

“O capitalismo ri quando o trabalhador emprega o voto para conquistar sua liberdade


econômica; todavia, treme quando o trabalhador faz em pedaços, indignado as cédulas
dos votos, que só servem para nomear parasitas, e empunha o rifle para arrancar
resolutamente das mãos dos ricos o bem-estar e a liberdade. Ri o capitalismo ante as
massas operárias que votam, porque bem sabe que o governo é o instrumento dos que
possuem bens materiais e o natural inimigo dos deserdados, por mais socialista que seja;
mas sua risada torna-se convulsão de terror, quando, perdida a confiança e a fé no
paternalismo dos governos, o trabalhador põe o corpo ereto, pisoteia a lei, tem confiança
em seus punhos, rompe suas cadeias e abre, com estas, o crânio das autoridades e dos
ricos...” (MAGÓN, 2003:84)

5. REFERÊNCIAS

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