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Rui Algarvio - Over the branches of the Edge

“Nenhuma imagem substituirá a intuição da duração, mas muitas imagens diferentes, retiradas
das ordens de coisas muito diversas, poderão, concorrendo no seu movimento, dirigir a
consciência exactamente para o ponto em que a intuição se torna inteligível.”
(Henri Bergson)

"MY DEAR SIR, I think it is July in your green lane. At this season all the tall grasses are in
flower, bog-rush, bullrush, teazle. The white bindweed now hangs its flowers over the branches
of the hedge; the wild carrot and hemlock flower in banks of hedges, cow parsley, water plantain,
&c. ; the heath hills are purple at this season ; the rose-coloured persicaria in wet ditches is now
very pretty ; the catchfly graces the hedge-row, as also the ragged robin ; bramble is now in
flower, poppy, mallow, thistle, hop, &c." April 8t 1

“To take a stroll at the countryside.”

“To take a walk on the wild side.”

“Getting into the landscape.”

Um passeio na paisagem, estimando-a lá, nesse mesmo lugar onde se quer regressar
ou que se receia não tenha nunca existido. E a paisagem instituiu o movimento no caminhante,
tal como se se movesse – estando quieta em cada um dos centímetros ínfimos que a estipulam
concetualmente. A paisagem [a ser vista] repousa, disponível ao olhar do contemplador, do
caminhante, do espetador, ansiando ser celebrada na sua inexistência: presentifica-se como
obra de arte.
Na pintura, no desenho, a paisagem está no tempo, quer naquele que é suscetível a
ser medido, pois as lembranças o situam, quer o que naquele que supera a condição
mensurável: medir no tempo (Kronos), medir no espaço – kilómetro ou centímetro afora…
Nunca esqueci um final de tarde, essa caminhada para atravessar o Campus da
Universidade de Warwick ou seria em Reading? Eu tinha, finalmente, entrado na paisagem de
John Constable, Thomas Cole, John Ruskin e, de permeio com breves anotações a
representações zoomorfas, à maneira de George Stubb. O que, por sua vez, me lembrava a

1C. R. LESLIE, R.A., LIFE AND LETTERS OF JOHN CONSTABLE, R.A., LONDON: CHAPMAN AND HALL,
LD., 1896 , p- 188
ausência alentejana, povoada ao longo de caminhos e estradas por tranquilas manadas em
pastagens algo idílicas, ainda nos dias que correm. Em alguns recantos a contemplar, havia
mesmo algo que sugeria a obscuridade de Thomas Gainsborough.
Era Outono e reinavam os idos do séc. XX. Tudo se resumia a uma noção nostálgica de
crepúsculo súbito, onde se adensava a dimensão cinematográfica que nos acompanha ao
empreender um passeio sem consequências de maior.
O artista português circula, com muita frequência, em bicicleta, o que lhe proporciona
um ritmos de olhar diferente daquele que absorvemos ao caminhar ou ao circular numa
viatura. Ao deslizar sobre os caminhos e as estradas a velocidade é sensivelmente homogénea,
entrecortada por pausas e descansos na berma dos trajetos. A interrupção proporciona,
porventura, um saborear o que foi dado a ver e incita a uma gula de avançar, deambulando ou
não, sobre tudo aquilo que se possa estender, reconhecendo ou descobrindo. Essa dimensão
mais esconsa ou enigmática que se inscreve nas suas criações pode erigir-se em estratégias
técnicas que respondem aos princípios estéticos e artísticos que planeia ou ambiciona.

As peças tridimensionais que Rui Algarvio concebeu para o projeto, agora apresentado
na Quase Galeria posicionam-se em seis prateleiras, colocadas em frente ao janelão que
determina a nossa perceção. A partir de meados da tarde, na primavera, o conflito entre o sol
e a sua dissolução progressiva, deixam-nos um rasto de sombras que quase se assemelham a
paisagens lunares. Simultaneamente, está-se perante uma visão que é dobrada pelo jogo da
descoberta dos materiais usados. Pois estas esculturas que se oferecem numa “bandeja”
resultam da manipulação de tinta a óleo saída de tubos. O artista manipula a espessura e
densidade bruta da pasta que, ao longo, de meses e anos secou, desafiando o tempo e a
espera. A gordura da pasta alastrou pelo aglomerado de madeira da placa onde cada uma das
peças foi colocada, deixando-lhe vestígios de organismo mole, visceral mesmo. A matéria
usada para pintar é transposta para uma funcionalidade substantiva que a converte em
tridimensional. É também uma aposta conceptual que o visitante haverá de presenciar e
desvendar.
As paisagens são muito inconvenientes na sua permanência, pois contrariam o
movimento do mundo. Seja em suportes tridimensionais ou plasmadas numa
bidimensionalidade, esses vislumbres paisagísticos instigam a efemeridade da cativação de um
olhar transitório que circule no espaço natural ou urbano. Sobrepõem tempos e espaços que
nós, caminhantes e observadores, não somos capazes de domesticar. Nada é igual nunca.
Talvez por disso ter consciência, Alain Roger escreveu um Breve Tratado da Paisagem, nunca
um grande ou exaustivo Tratado, e após A Teoria da Paisagem em França – 1974-1994. Como
referia logo no início, obras emblemáticas haviam já assinalado a invenção do “campo” [Piero
Camporesi in Le belle contrade: nascita del paesaggio italiano], do “mar” [Alain Courbin] e da
“montanha” [John Grand-Carteret].
O alongamento do olhar que alastra sobre os bordos da pintura, parece capaz de nos
transpor para o outro lado das telas, como que reorganizando a continuidade de um percurso
desejado sem fim próximo. Nas telas existe um eixo transversal que divide a composição: na
parte superior acelera-se ou tranquiliza-se uma concatenação de arbustos baixos, vegetação
rasteira de onde emerge uma sequência de árvores ou se posiciona uma mais erma. Na secção
inferior, o carimbo impregnado em diferentes cores – tela a tela – é um outro lado de um
espelho que não reflete o mesmo, antes o outro. Trata-se de um carimbo, uma marca
identitária, que garante a identidade e a autoria, é uma assinatura mediada entre o
sentimento e a razão. Atendendo às palavras de Rui Algarvio, a sinuosidade dos contornos que
sustentam a massa de tinta, são a linha de uma cordilheira imaginária colocada em posição
invertida. Vemos os dois hemisférios do mundo, em traçados lineares, que induzem a
indeterminada via com que a existência de cada pessoa se cumpre.
A condição de reconhecer a paisagem colabora para estar num mundo mais
convincente mas indócil, domesticado pela sua adesão ou ir-reconhecimento mais íntimo que
o olhar poético e artístico propiciam.

“O olhar artístico teve primeiro de superar-se até ao ponto de ver, também no horrível e no
aparentemente repulsivo, apenas o que é válido como tudo o que mais é.”2
Em França, sabe-se que, por ação de alguns pintores da Escola de Barbizon, foi
instituída a primeira reserva natural por Decreto de 13 de agosto de 1861, durante o 2º
Império. E como refere Roger, no início do séc. XX, houve a preocupação em identificar os
critérios para definir qual a paisagem que deveria ser preservada. Ou seja, estabelecer quais as
condições que deviam fundamentar a estipulação a constituir em lei, subsumida a termos que
denotassem uma consignação estética eivada pelo sentido do humano: “…uma parte da
natureza que apresenta um carácter estético pela disparidade das suas linhas, das suas formas
e das suas cores.”3

Aquilo que se designa por Natureza tem implicações temendas. Carece uma
explanação teórica, que se ajuste à concetualização que o artista e o pensador lhe atribua.
Compõe-se de elementos que emergem sob controle de ninguém ou pela sua convicação
ingénua de domínio. A curvatura de um galho, o maciço que informaliza o arbusto ou o
acumulo de folhas que o vento atirou e depois reuniu, são tópicos constitutivos de uma
poética não sustentada pelo humano mas deixada a seu bel-rpazer. Cabe ao artista afastar-se

2Rainer Maria Rilke, Da Natureza, da Arte e da Linguagem, Largebooks, 2009, p. 41


3Françoise Dagognet (Ed.), Mort du paysage – Philosophie et esthétique du Paysage, Paris, Ed. Champ-Vallon,
1982, pp. 7-8
do visto, assegurando a invenção da sua ordem da visão interna a demonstrar a sua força
sobre o que afinal não é apenas da Natureza, mas da ordem da Paisagem. É a sua natura
naturans, não tanto a sua natura naturata? Como já sublinhei em outras ocasiões: a paisagem
inscreve-se no que se deliberou ser o território, o que requer a absorção expandida da
natureza “natural”. Assim, se retoma a problemática antiga da metafísica, recordando a
ordenação escolástica de “natura naturans” e de “natura naturata”, cabendo dierenciar o
significado dos termos latinos:
“Natura naturans” > a natureza a fazer o que lhe advém; natureza que é causa in se, princípio
ativo; aquilo que é em si;
“Natura naturata” > a natureza na sua aceção, condição passiva, sendo na causalidade do
Cosmos, princípio passivo, portanto aquilo que é a partir de outro, decorre de vontade e ação
que não procede de si mesmo. É a natureza criadora.
À semelhança da natureza criadora, o artista gera fragmentos do mundo idealizado,
não necessariamente subsumido à convicção da beleza, quiça dispondo da liberdade de oscilar
entre o pitoresco e o sublime da/na paisagem.
O que é a paisadem? Qual a sua origem? Quais as suas implicações na Natureza, qual a
sua repercussão e cnsequências, além da Arte e da Estética?

“Situo-me, pois, a meio caminho entre os que acreditam que a paisagem existe – um naturalismo
ingénuo que a história das representações coletivas não deixa de desmentir, (…) e os que
imaginam que “tantas belezas sobre a terra” não podem explicar-se senão por alguma
intervenção divina – velha argumentação físico-teológica desmantelada por Kant (…)”4
Delimita-se visualmente o que é um excerto de paisagem, depois de ter perscrutado a
lonjura do que está para ser visto pelos olhos e pensado. Enquadra-se, sem excessos ou pena,
o que ficar fora do foco privilegiado por essa assunção nocional de paisagem estética e
antropológica em processo de transformação e reinventada.

“Paysages. Les tableaux qui représentent la campagne, et où les figures ne sont que comme des
accessoires, s'appellent paysages, et ceux qui s'appliquent particulièrement à ce travail
s'appellent Paysagistes.”5

A paisagem deve ser cheirada, saboreada, tocada, ouvida e não somente vista. A
representação distanciada, afastada da sua efetiva coisificação gera inúmeras potencialidades
que são “arrumadas” de acordo aos pressupostos de cada autor. Por seu lado, aquele que
presencia a imagem das componentes naturais ou culturais convertidas em paisagens também
irá interpretar e impor-se uma assunção estética própria.
Comprova-se, quando perante a obra de Rui Algarvio que se pode “emoldurar” a
paisagem, configurá-la numa composição tridimensional em cima de um plinto ou rete-la num
ecrã imaginário. O diálogo entre tão diferentes registos e suportes, para asseverar paisagens,

4Alain Roger, Breve tratado da Paisagem, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 2007, p. 14
5André Félibien, Des Principes de l’Architecture, de la Sculpture, de la Peinture, et des autres Arts qui en
de'pendent. Avec un dictionnaire des Termes propres a chacun de ces Arts, Paris, Jean-Baptiste Coignard, 1676
em fragmentos e frases iconográficas, ou numa visão quase panorâmica, resulta num volume
grandioso de verdades que atravessam os tempos e geram incessantes possibilidades sem
perda, antes ganho e acúmulo lúcido.
A paisagem nunca pode ser a mesma, nem tampouco “parecida” como fechamento e
cópia, pois nem o tempo cronológico, nem o meteorológico são repetíveis. Aquilo que se vê
nunca é igual (nem mesmo idêntico), acompanhando os movimentos que transformam as
pessoas, mesmo aquelas que não querem mudar-se a si mesmas. As pequenas alterações que
germinam na natureza – mesmo quando é assumida como paisagem - sob formas
impercetíveis, asseveram ser certas e irrevogáveis diferenças. Daí, a recorrência na
verbalização de tantas analogias que se conheçam aproximando os dinamismos orgânicos
entre pessoas e paisagens – umas e outras são figuras e são figuráveis.

Qual a velocidade da paisagem? Aquela que levamos no corpo e no pensamento, para


além daquela que lhe é intrínseca. Relembrem-se os emaranhados de ideias expressas por
Fernando Pessoa quando escreveu: “E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência,
porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. “6

Sobretudo no instante em que o vento de Outubro


vem com os dedos de geada flagelar os meus cabelos
e eu, preso pelas garras d sol, caminho sobre as chamas
e estendo sobre a terra uma garra sombria…7

Na pintura de Rui Algarvio existe uma condição de grande visibilidade de campo.


Reafirmando o que Bernardo de Carvalho escreveu: “A paisagem na arte contemporânea é
uma memória de estar no mundo.”8 Pois que: “O mais que há no mundo é paisagem, molduras
que enquadram sensações nossas, encadernações do que pensamos.”9

Maria de Fátima Lambert

6
Fernando Pessoa - “Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna...” (1913?)
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Lisboa, Ática, 1966, p.156
7 Dylan Thomas, “Sobretudo no instante em que o vento de outubro”, A mão ao assinar este papel, Lisboa, Assírio &

Alvim, 1998, p.25


8 Bernardo de Carvalho, Mongólia, Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2003, p.26
9 Bernardo Soares, Livro do Desassossego, vol. II, Lisboa, Ed. Ática, 1982, p. 37

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