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Aspectos do vazio
Auto-retrato em duas dimensões. Kazimir Malevich, óleo sobre tela, 1915 Disponível em:
<https://www.stedelijk.nl/en/collection/6264-kazimir-malevich-zelfportret-in-twee-dimensies>
Um ponto por si só, por mais irreal que seja, não quer dizer nem representa nada. É a partir da
delimitação de um plano ao seu redor que relações são estabelecidas, transformando tal ponto
de uma abstração à uma potência expressiva.
Para a teoria abstracionista de Kandinsky, ao posicionar dentro de um plano retangular, por
exemplo, um ponto próximo ao seu centro e uma linha à margem, obtemos diversas
ressonâncias visuais, não apenas àquelas dos elementos pictóricos, mas das relações entre
ambos, assim como deles com os limites do plano. De maneira análoga podemos analisar os
fenômenos sonoros ao serem dispostos em uma linha temporal.
O silêncio como percebemos, ou seja, como a ausência completa de sons, é uma projeção do
aspecto sonoro da ideia do vazio. Logo, deixa de existir com a presença de um receptor, que
produz sons involuntariamente, simplesmente ao coexistir, até mesmo dentro de um espaço
selado, tal qual as câmaras anecoicas, salas vedadas e isoladas de ruídos externos.
Para Metzer (2006), por mais que o silêncio puro não exista, como John Cage provou com sua
peça 4’33”, evocações simbólicas podem ser utilizadas para, paradoxalmente, remeter ao
estado do silêncio. Para tanto, suas características são exploradas para ressaltar o ideal do vazio,
tal qual “imobilidade, quietude e fragilidade” (METZER, p.334).
Logo, uma série de qualidades podem ser relacionadas a esse silêncio representado, ou silêncio
artificial, fazendo um paralelo com o Infinito Artificial proposto por Edmund Burke (1998). Ao
discorrer sobre o sublime, aponta que o infinito gera uma espécie de grandeza que opera de
maneira semelhante ao terror na nossa mente, ou seja, toma-a de suas faculdades e estimula
nossa imaginação, excitando as paixões. Elucida que sucessões uniformes remetem ao infinito,
utilizando o interior de mesquitas como exemplificação visual.
Mesquita de Córdoba (https://www.lonelyplanet.com/spain/cordoba/attractions/mezquita/a/poi-
sig/1189075/360732)
A repetição gera uma expectativa no receptor, que acumula tal processo de forma aditiva,
gerando acréscimos na tensão, semelhante ao acorde para Kandinsky. Tais adições podem atuar
como figuras retóricas relacionadas à perda, como visto nas três últimas notas repetidas da
Lamentation faite sur la mort très douloureuse de Sa Majesté Impériale, Ferdinand le
troisième, de J. J. Froberger, remetendo ao toque do sino, como também nos ostinatos, pequenos
trechos melódicos repetidos em sequência, que evocam a inércia e a frieza.
Versos finais de O, Death Rock me Asleep, com poema atribuído à Ana Bolena. A repetição de “Eu morro” faz
alusão à imobilidade da morte. Disponível em:
<https://imslp.org/wiki/O_Death_Rock_Me_to_Sleep_(Boleyn%2C_Anne)>
Linha do Baixo Contínuo da segunda parte de Lamento della Ninfa, do Oitavo Livro de Madrigais de Claudio
Monteverdi. Disponível em: <https://imslp.org/wiki/Madrigals,_Book_8,_SV_146–167_(Monteverdi,_Claudio)>
Desvinculando a repetição do âmbito retórico, tal sentimento de fixidez pode ser amplificado
com a utilização de dinâmicas suaves e baixas amplitudes, recorrendo a mudanças tímbricas
para manter o momentum do discurso, que permanece num estado de maior estaticidade:
Redução para dois pianos feita por A.Webern da terceira das Cinco Peças para Orquestra, Op.16 de A.
Schoenberg. Disponível em:
<https://imslp.org/wiki/5_Pieces_for_Orchestra%2C_Op.16_(Schoenberg%2C_Arnold)>
Juntamente às repetições e/ou sons sustentados em baixas amplitudes, podemos reparar ainda
outro aspecto que de forma quase que contraditória remete ao silêncio: “coleções cromáticas
tocadas de maneira suave e padronagens sustentadas ou repetidas” (METZER, p.340). Ao
moldar tal massa que por si só promove uma saturação sonora proveniente da sobreposição em
dinâmicas inferiores à piano (p), não só a obscuridade sublime de Burke é evocada, mas como
também é delimitado um “plano de fundo contra os quais outros sons irão emergir” (METZER,
p.339).
Excerto da terceira peça orquestral da Op.10 de A.Webern Disponível em:
<https://imslp.org/wiki/5_Pieces_for_Orchestra%2C_Op.10_(Webern%2C_Anton)>
Sendo assim, é configurado um limite de amplitudes, que passa a agir como referencial para
todos os demais sons que seguirão, operando de forma similar à delimitação de um plano na
abstração kandinskyana. Logo, o silêncio artificial pode agir tanto como plano delimitador
como espaço preenchido pelo vazio, uma espécie de espaço negativo que, por mais que não
tenha elementos dentro de si, compõe o todo pictórico ou sonoro, sendo ele, além de uma tabula
rasa recheada de eventuais potências, um gerador de tensões e ressonâncias.
O Rio Tamagawa na Província Musashi (— 武州玉川), das 36 Vistas do Monte Fuji. Katsushika Hokusai,
ukiyo-e Disponível em: <http://www.jaodb.com/db/ItemDetail.asp?item=28860>
A figuração rítmica nas cordas abafadas do piano nos compassos oito e nove de Andma
Shajarat al-Hayah tanmow fi al-Sahra Yahi, de Catanzaro, é repetida ao longo da peça, por
vezes com modificações, entretanto, em sua última recapitulação, nos compassos 61 e 62, ela
não é seguida por impulsos que propulsionam o fluxo musical, mas sim por uma estaticidade
nas linhas melódicas, que se tornam um amálgama sonoro que retorna ao vazio.
Preto no marrom. Mark Rothko, óleo, acrílica e têmpera sobre tela, 1959. Disponível em <
https://www.tate.org.uk/art/artworks/rothko-black-on-maroon-t01164>
Conclusão
O silêncio, ou melhor dizendo, a fronteira entre o som e o não-som apresenta uma problemática
que, quem sabe, jamais será sistematizada. Na tentativa de racionalizar tal passagem,
teorizamos sobre três silêncios diferentes: o silêncio puro ou abstrato; o silêncio retórico; e o
silêncio artificial ou representado.
O porquê de uma questão tão aparentemente trivial como a não-forma gerou e ainda gera tantas
discussões está além de meu alcance formalizar. O tópico que aqui levanto se trata, certamente,
de como a composição musical gera uma tentativa de resolução dessa problemática, ou seja,
das possibilidades de articulação no plano material de um percepto ou objeto ainda inexistente,
gerando métodos de representações e evocações desse vazio.
Stravinsky em suas palestras diz que a poética abrange o estudo de uma obra a ser feita, ou
seja, da organização do material e da estrutura. Logo, trata-se de uma ferramenta que auxilia na
ordenação da matéria com os materiais ou objetos em uma linha temporal, portanto, em um
discurso que busca a coerência, não de forma estrutural, mas dialética, na forma como o receptor
apreende e internaliza as singularidades sonoras que percebe.
Bibliografia
BURKE, Edmund. A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and
Beautiful. Nova Ioruqe: Oxford University Press Inc., 1998
BUSONI, Ferruccio. Sketch of a New Esthetic of Music. Tradução de Dr. Th. Baker. Nova
Iorque: G. Schirmer, 1911
KANDINSKY, Wasily. Ponto e Linha sobre o Plano: Contribuições à análise dos elementos
da pintura. Trdução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2012
METZER, David. Modern Silence. The Journal of Musicology v. 23, no. 3, pp. 331-374.
University of California Press, 2006
STRAVINSKY, Igor. Poética musical em 6 lições. Tradução de Luiz Paulo Horta. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1996
THOMAS, Gavin. The Poetics of Extremity. Gavin Thomas Introduces the Remarkable Music
of Salvatore Sciarrino. The Musical Times, v. 134, n. 1802, p. 193-196, 1993