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A TEORIA ESTATAL DA MOEDA E SEUS DESDOBRAMENTOS

THE STATE THEORY OF MONEY AND ITS IMPLICATIONS

Nicole Julie Fobe1

RESUMO: O artigo tem por objetivo apresentar os principais expoentes e as linhas gerais da
doutrina que ficou conhecida como “Teoria Estatal da Moeda”, cujo fundador foi o alemão
Georg Friedrich Knapp. A partir do precedente criado por Knapp, juristas passaram a se
envolver com o fenômeno monetário e sua teoria – até então, o instituto “moeda” era visto
como objeto de estudo apenas por linhas de pensamento ligadas à economia. A evolução da
teoria econômica, no entanto, terminou por afastar os atuais teóricos monetários das ideias
defendidas por Knapp, o que resulta em um panorama bastante curioso: de uma linha fundada
por economistas, os próprios economistas terminaram por reconhecer que ela não era
suficiente para explicar toda a realidade, ao passo que os juristas seguiram a linha teórica
fundada pela obra de Knapp sem grandes atualizações nos seus principais elementos. A
Teoria Estatal da Moeda serve, até hoje, de embasamento teórico à concepção de moeda
adotada pelo direito monetário brasileiro, opção que tem implicações jurídicas, sociais e
econômicas.

PALAVRAS-CHAVE: Moeda – Direito Monetário – Teoria Estatal da Moeda – Knapp

ABSTRACT: This paper’s objective is to present the main theorists that developed the doctrine
known as “State Theory of Money”, as well as its general guidelines. The founder of this line
of thinking was Georg Friedrich Knapp, whose effort later encouraged several jurists to
involve themselves with the monetary phenomenon and its theory – up to that far the
institution “currency” had been considered an object of study solely by economists. The
evolution of the economic thinking, however, led to a detachment, by monetary theorists,
from Knapp’s ideas, which brings us to an interesting picture: from a line of thinking
founded by economists, economists themselves ended up acknowledging that it was not
capable of embracing reality as a whole, whereas jurists kept following Knapp’s theoretical
guidelines without significant modernization of its elements. The State Theory of Money is
still the theoretical basis adopted by the Brazilian Monetary Law while conceptualizing
currency. This has not only juridical implications, but also social and economical
consequences.

KEYWORDS: Currency – Monetary Law – State Theory of Money – Knapp

1
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo, mestranda em Direito e Desenvolvimento pela Faculdade
de Direito Getulio Vargas. Contato: nicole.fobe@fgv.br.
A theory must be pushed to extremes or it is valueless. The practical
man can, nay, must, content himself with half-truths. The theorist who stops
short at half-truths is lost. (KNAPP, 1905, p. viii).

“Money is a creature of law” – a moeda2 é uma criatura do direito. Essa é a frase de


abertura do livro de Georg Friedrich Knapp3, o principal expositor da linha de pensamento
que viria a ser conhecida como Teoria Estatal da Moeda.
Knapp foi um economista alemão ligado à Escola Historicista Alemã de Economia4,
um dos fundadores da Associação para a Política Social5 na Alemanha e o primeiro pensador
a sugerir que a moeda, por si só, não continha valor econômico – o seu valor, enquanto meio
amplamente aceito para intermediar transações econômicas, era dado única e exclusivamente
pela autoridade do Estado.6 Daí então o termo “Teoria Estatal da Moeda” (TEM),
apresentado no próprio título da obra que introduz sua teoria.7
A preocupação de Knapp, em um momento acadêmico regido pelo metalismo 8, foi a
de separar definitivamente (i) o valor do suporte metálico da moeda9 e (ii) sua validade – aqui

2
O termo “moeda”, neste trabalho, será utilizado como sinônimo de “dinheiro”. Conquanto, em inglês, também
haja duas palavras (currency e money) com cargas diversas, a tradução para o português termina por direcionar
ambas para o termo “moeda”. Assim, tem-se que “A State Theory of Money” é traduzido como “Uma Teoria
Estatal da Moeda”, estudos na área – tanto econômicos como jurídicos – abordem a questão a partir do termo
“moeda”, e assim sucessivamente. Nesse sentido, “Sempre considerei útil explicar a meus alunos que é pena
qualificarmos o dinheiro como substantivo, e que seria mais útil para a compreensão dos fenômenos monetários
se ‘dinheiro’ fosse um adjetivo descrevendo uma propriedade que diferentes objetos poderiam possuir, em graus
variados. ‘Moeda corrente’ é, por esse motivo, uma expressão mais adequada (...)”. (HAYEK, 1986, p. 49). O
“corrente” incluído por Hayek, ou seja, a qualidade, de uma moeda, de circular e ser aceita como forma de
pagamento, será considerado nas próximas seções.
Para uma discussão terminológica – e que também termina por aceitar a intercambialidade entre os termos
“moeda” e “dinheiro”, adotada neste trabalho, ver NUSSBAUM, 1950, pp. 21-22.
3
O livro em que Knapp expõe sua teoria foi publicado originalmente em 1905, com o título de “Staatliche
Theorie des Geldes”. Há uma tradução para o inglês, organizada por iniciativa de John Maynard Keynes, de
1924, intitulada “The State Theory of Money”. A segunda edição, de 1918, traz alguns acréscimos pontuais à
obra original. Para uma análise das inclusões, ver COHEN, Arthur. “Review” in FinanzArchiv / Public
Finance Analysis, 35. Jahrg., H. 2 (1918), pp. 430-432.
4
A Escola Historicista pregava uma crítica ao método clássico adotado pelo pensamento econômico nas
universidades alemãs, e defendia que os conceitos econômicos derivam, principalmente, de evoluções
encadeadas ao longo da história. A nova metodologia proposta pela Escola serviu de inspiração para outros
grandes nomes como Wilhelm Roscher e Max Weber.
5
A Verein für Sozialpolitik continua em atividade e reúne principalmente economistas do eixo Alemanha-
Áustria. Para mais informações, consultar a página oficial da organização: https://www.socialpolitik.de/De/der-
verein. Acesso em 11 de agosto de 2015.
6
Knapp é direto ao indicar que “A moeda não é mercadoria, não pode ser mercadoria. Ambas excluem-se
enquanto definição. A moeda vale (gelten), a mercadoria tem seu valor estabelecido (bewertet werden). A
moeda é responsabilidade do Estado e decorrência de sua autoridade, a mercadoria tem seu valor estabelecido
pelas relações do mercado. (KNAPP, 1905, p. 439). Tradução livre.
7
Ver nota 2 supra.
8
O principal argumento do metalismo é a conversibilidade interna. (A conversibilidade externa diz respeito às
regras de direito internacional positivo que diferem as moedas conversíveis das moedas não conversíveis (“São
conversíveis as moedas dos países que se subetemeram ao regime comum do art. VIII dos Estatutos do FMI”)
(MENDES, 1991, p. 40). Atualmente as moedas não conversíveis podem ser consultadas em Fundo Monetário
entendida tanto no sentido jurídico, ou seja, validade em relação a uma lei, como no sentido
econômico, ou seja, validade nas relações econômicas. Em última instância, a proposta
original da TEM foi a de desvincular o valor intrínseco da moeda de quaisquer conceitos
econômicos. Esse foi o principal motivo que levou à adoção do seu pensamento por parte da
doutrina monetária brasileira: em tempos de hiperinflação10, quando o direito foi chamado a
responder diversas questões complexas envolvendo a moeda, buscou-se um teórico que
atestasse a primazia da validade jurídica da moeda sobre o valor (ou falta dele) econômico. A
reconstrução da doutrina brasileira será feita em momento posterior ao longo desta seção.
A partir do precedente criado por Knapp, juristas passaram a se envolver com o
fenômeno monetário e sua teoria – até então, o instituto “moeda” era visto como objeto de
estudo apenas por linhas de pensamento ligadas à economia (HOLUB, 2005, pp. 221-222). A
evolução da teoria econômica, no entanto, terminou por afastar os atuais teóricos monetários
das ideias defendidas por Knapp11, o que resulta em um panorama bastante curioso: de uma

Internacional, Annual Report on Exchange Arrangements and Exchange Restrictions 2014, 2014, pp. 35-
40. Disponível em https://www.imf.org/external/pubs/nft/2014/areaers/ar2014.pdf.), ou seja, a identidade entre o
valor nominal expresso pela moeda e o valor de seu suporte físico. Com o fim do metalismo e o advento da
moeda fiduciária, perde-se a paridade de valor, e uma vez “Desaparecida a conversibilidade interna, com o que
o portador perdeu o direito de receber a soma que viesse especificada no instrumento, os bilhetes tornaram-se
meros títulos representativos de ‘dívida’ do Estado, na lição de Carvalho de Mendonça: ‘posto que tenha curso
forçado, o papel-moeda não é economicamente uma moeda e sim uma dívida do Estado que a emite e garante”.
(MENDES, 1991, p. 39). NUSSBAUM (1950, p. 3) aponta que o principal problema do metalismo está no fato
de ele não explicar como e por que certas coisas assumem o caráter de moeda. Para uma evolução histórica do
desenvolvimento monetário, com especial ênfase no momento da conversibilidade, ver MANN, 1992, pp. 40-43.
Para uma análise da evolução da discussão entre Knapp e os metalistas, ver METRI, 2007, pp. 24-42.
9
Essa desvinculação de conceitos – valor do metal x valor da moeda – fundou o cartalismo (o termo é utilizado
por Knapp: “Chartalismus” (1905, p. 77), noção de que o valor da moeda se dá pelo valor da carta, ou seja, do
documento oficial que a representa. São os símbolos atrelados ao Real (R$), como os dizeres impressos
“República Federativa do Brasil” que o tornam moeda válida no Brasil (e, mesmo quando o valor “econômico”
da moeda, ou seja, seu poder de compra, é reduzido pela inflação, uma nota de R$5 continua valendo,
juridicamente, R$5. Com o aumento de circulação da moeda escritural, a noção de cartalismo, que pressupõe a
presença de um documento físico, sofreu alterações. Hoje, a validade jurídica de uma moeda prescinde do
documento, relacionando-se antes à presença de um Estado e sua autoridade na emissão da moeda e regulação
do seu funcionamento. A essa nova concepção (um cartalismo 2.0, por assim dizer) convencionou-se chamar
nominalismo. Voltarei ao conceito ao longo desta seção.
10
Lembrando que, após o fim da I Guerra Mundial (década de 20), a Alemanha também viveria um processo
inflacionário extremamente cruel. Schumpeter aponta essa justificativa histórica como o principal motivo para a
“explosão” do pensamento de Knapp e para a sua adoção, em sua esmagadora maioria, por teóricos alemães.
Ver, nesse sentido, HOLUB, 2005, pp. 221-223.
11
Como se nota, por exemplo, nas falas: “This example, however, enables us to illustrate the most fundamental
characteristic of money: the fact that money is a social phenomenon. That is, not only does money exist because
humans are social beings and all their activities (including economic activity) take place within a social
framework, but, more important, it exists only within particular social and economic frameworks”. (HARRIS,
1981, p. 4); e “Mas a superstição de que é necessário que o governo (em geral denominado ‘Estado’, para que
soe melhor) declare o que deve funcionar como dinheiro, como se ele o tivesse criado, e como se o dinheiro não
pudesse existir sem ele, provavelmente teve origem na crença ingênua de que um instrumento tal como o
dinheiro deve ter sido ‘inventado’ e dado a nós por algum inventor original. Essa crença foi totalmente
derrubada no momento em que passamos a compreender o fenômeno da geração espontânea de instituições não
planejadas, através de um processo de evolução social, da qual o dinheiro, desde então, se tornou o paradigma
(...)”. (HAYEK, 1986, p. 30); e ainda “The reality is that monetary usage can derive from a wide range of
linha fundada por economistas, os próprios economistas terminaram por reconhecer que ela
não era suficiente para explicar toda a realidade (e que, em última análise, o “valor” de uma
moeda importa – e muito – para seus usuários), ao passo que os juristas seguiram a linha
teórica fundada pela obra de Knapp sem grandes atualizações nos seus principais
elementos.12
E quais são esses elementos?
Knapp, fazendo uso da metodologia histórica fundante da Escola13 à qual aderiu, nota
que os seres humanos sempre tenderam a utilizar uma mercadoria ou um material como meio
de pagamento14 (KNAPP, 1924, p. 25). O momento histórico de utilização de moedas-
mercadoria15 (que ainda apresenta resquícios na linguagem, como é o caso da palavra
“salário” – que remete ao sal utilizado como pagamento – e da palavra “pecúnia” – que, em
latim, remete a pecus, gado) foi gradualmente substituído pelo uso de metais (nobres ou não),
que eram, em última instância, mercadorias de alto “valor social agregado” – valorizadas pela
sociedade por algum motivo específico (escassez, estética, dificuldade na obtenção, e assim
sucessivamente).16 Nesse momento de moedas-mercadoria, os objetos utilizados nas
transações não prescindiam de uma validade atribuída por qualquer forma de autoridade. As

influences, private as well as public, and is ultimately social in origin. At its most fundamental, money is a
social institution, resting on the reciprocal faith of a critical mass of transactors (…). Confidence ultimately is
socially constructed, based implicitly or explicitly on an intersubjective understanding about an instrument’s
future usability and purchasing power, and may well reflect nothing more than a transactional network’s shared
values or the gradual accumulation of competitive market practice. Money is whatever people come to believe
will be accepted by others, for whatever reason.” (COHEN, 2004, p. 190). Grifou-se.
12
Mann também notou essa discrepância entre preferências por acadêmicos de ambos os campos: “The State
theory of money is opposed by those who believe that it is the usage of commercial life or the confidence of the
people that, at any rate in situations of crisis or emergency, have the power to make things money, ‘that in the
phenomenon of money the attitude of society, as distinguished from the State, is paramount’. This so-called
‘societary theory of money’, propounded mainly by economists, but also by some jurists, would be tenable in
law only if it could explain the relevance of crises for the legal definition of money, if it were reconcilable with
the undeniable monopoly of the modern State over currency, and if it could point to a single case where money
in the legal sense was created or lost its character by the will of the community against or without the will of the
supreme de jure or de facto authority.” (MANN, 1992, p. 22). Grifou-se. Um desses juristas, Arthur Nussbaum
– outro judeu-alemão forçado a emigrar por conta da ascensão do nazismo – criticou duramente a visão da
Teoria Estatal da Moeda. Para Nussbaum, cuja principal obra sobre moeda, “Money in the Law”, foi publicada
em 1939, as evidências empíricas desmentem os pressupostos da TEM. “Juridically, it has been mostly based on
the fact that it is the state that makes money ‘legal tender’. Still there is overwhelming evidence that money has
circulated in numerous, perhaps in all, countries, without being legal tender. Stronger support for the State
Theory may be found in the fact that modern law confers upon the government a monopoly of minting and of
the issuance of paper money. Yet experience shows that in emergency situations media of exchange not issued
by the government enter circulation and have then inescapably to be recognized in courts as money, be it only in
order to protect payments made bona fide with such media during the emergency period.” (NUSSBAUM, 1950,
p. 5). Grifou-se. Para um comentário geral acerca das posições de Nussbaum expostas na obra de 1939, ver
HOENIGER, Heinrich. “Review”, Weltwirtschaftliches Archiv, 24. Bd. (1926), pp. 211-213.
13
Ver nota supra 3.
14
Meio de pagamento, para Knapp, é um objeto móvel ao qual foi atribuído legalmente a qualidade de ser
portador da unidade de valor adotada por aquele ordenamento jurídico. (KNAPP, 1924, p. 7).
15
Ver NUSSBAUM, 1950, pp. 54 e seguintes.
16
Ver, no mesmo sentido, VIDIGAL, 1995, p. 3.
moedas possuíam, em si mesmas, valor – e como tal eram aceitas amplamente pelos
indivíduos.
Com o advento de poderes políticos concorrentes entre si, a moeda foi encarada como
uma forma de afirmação de autoridade. Era por meio de um selo ou carimbo em determinada
estrutura de metal (chapas, barras, moedas17) que um senhor de terras ou um governante
instituía seu poder sobre determinado território e, consequentemente, sobre as transações que
ali ocorriam. Importante salientar que, a partir do momento em que essa autoridade
“monetária” é constituída, ela chama para si também a responsabilidade sobre problemas nas
transações – assim, se entre dois indivíduos houvesse discordância acerca do valor a ser pago,
ou suspeita de má-fé, ou qualquer outra questão, a disputa era resolvida “publicamente” –
diante da autoridade emissora do meio de pagamento estipulado – e não mais privadamente,
entre os envolvidos.
A evolução ocorreu, a partir daí, no sentido de desvincular a confiança no suporte
físico da moeda para atrelá-la (a confiança) à autoridade emisora18 – a cunhagem, os
elementos de garantia incorporados a esse suporte físico, tornaram a quantidade de metal
menos relevante que a representação conferida pelo Poder emissor. 19 A essa moeda, cujo
valor não é expresso pelo suporte que a representa, dá-se o nome de moeda fiduciária.20
Knapp aponta que a discussão acerca da natureza dos meios de pagamento (isto é, dos
seus aspectos técnicos) não explica o fato de que a sua utilização possui uma significação

17
Infelizmente, na língua portuguesa, os termos “coin” e “currency” são sinônimos, o que gera imprecisões
terminológicas diversas. Aqui, faz-se referência às moedas físicas, comumente redondas (coins, em inglês).
18
Nussbaum destaca como se dava o relacionamento entre senhores medievas e moeda: “Historically, the
societary theory can be traced back to medieval thought which required the consent of the people for valid
alterations of money. This view was enunciated in a decision by Pope Innocent IV (1243-54) and can be
considered the prevailing doctrine of the writers up to the Sixteenth Century. Generally, medieval thought was
far from conceding omnipotence in monetary matters to the rules. Thus Bartolus taught that money issued by the
ruler was to be deemed counterfeit (moneta falsta et adulterima) if it was lacking in weight and approved metal
content.” (NUSSBAUM, 1950, p. 10). A evolução ocorreu, segundo Hayek, no seguinte sentido: “Durante a
Idade Média, porém, surgiu a superstição de que era um ato governamental que conferia valor ao dinheiro.
Embora a experiência sempre tenha provado o contrário, a doutrina do valor impositus foi amplamente
assimilada pela doutrina legal e serviu, até certo ponto, como justificativa para os constantes e vãos esforços dos
príncipes no sentido de impor valor igual a moedas contendo quantidades inferiores dos metais preciosos”.
(HAYEK, 1986, p. 21).
19
“As moedas de metal só eram consideradas como dinheiro genuíno se apresentassem a efígie da autoridade
competente, cujo dever era entendido como o de assegurar que as moedas tivessem o peso e a pureza adequados
para conferir-lhes valor.” (HAYEK, 1986, p. 21).
20
“O instituto da cunhagem, acrescentando aos metais elementos de garantia e de responsabilidade do Poder que
cunhava – e de confiança nesse Poder – veiculou evolução das preferências pelas formas fiduciárias da moeda.
A estima geral, que presidia à escolha das mercadorias-moeda, cedeu gradualmente lugar à confiança
geral no Poder emissor, que atribui validade e valor às moedas fiduciárias.” (VIDIGAL, 1995, p. 3).
jurídica, ou seja, que a sua forma é regulada por lei.21 A essa correspondência entre meio
físico e significação jurídica, Knapp denomina morfismo22:

The means of payment at present in common use always have this


form, i. e. that of pieces in the legal sense. They are "morphic."
Morphic means of payment are, as we shall see, not always money,
but all money comes under the head of morphic means of payment.
Morphism23 is a necessary, but is not a far-reaching, condition for a system
of money. (KNAPP, 1924, p. 27).

No trecho, ele adianta que um sistema monetário não necessariamente precisa estar
fundado sobre uma lógica mórfica – a lógica mórfica significa, em última instância, que
determinado meio de pagamento goza de validade jurídica.24 O autilismo25, portanto, outro
conceito trazido por Knapp é, em sua essência, amórfico – ele se funda na importância do
material sobre o qual se constitui a moeda, e não no reconhecimento desse instrumento pelo
Direito.26 A crítica de Knapp a esse conceito – do autilismo – é que ele não explica alterações
de unidade de valor ensejadas pelo Estado27 e, indiretamente, a noção de nominalismo.28

21
Portanto, para Knapp, “a questão mais importante nunca foi a dos atributos e qualidades de determinada
mercadoria em relação às demais, mas, sim, a ação deliberada do poder político soberano para o reconhecimento
social da mercadoria como meio de pagamento.” (METRI, 2007, p. 25). No original: “The soul of currency is
not in the material of the pieces, but in the legal ordinances which regulate their use.” (KNAPP, 1924, p. 2).
Grifou-se.
22
Knapp cria uma série de denominações que ainda não foram traduzidas para o português. Outros estudos
(METRI, 2007) optaram por deixar os termos no original, já que algumas palavras sequer existem em nossa
língua (como authylism, por exemplo). Optei pela tradução para facilitar a apreensão posterior, por outros
acadêmicos, do pensamento de Knapp. Todas as palavras foram checadas tanto no alemão quanto no inglês. O
inglês é citado aqui como título de comparação por ser de mais fácil compreensão.
23
Do original “Morphismus”. KNAPP, 1905, p. 28.
24
Há, portanto, sistemas monetários em que o instrumento de pagamento utilizado pelos indivíduos prescinde da
existência de uma autoridade central e da sua validação desse instrumento. Knapp, no entanto, considera que um
instrumento de pagamento só pode ser alçado ao status de “moeda” com o reconhecimento correspondente por
parte do Direito.
25
Do original “Authylismus”. KNAPP, 1905, p. 29. Trata-se de uma forma de meio de pagamento fundada na
presença física de um material, qualquer que seja. Para Knapp, o metalismo é uma forma de autilismo – no qual,
por sua vez, um metal é utilizado como material.
26
“[Authylism] admits pieces which, technically considered, have forms and signs, but these forms and signs
have no significance in law. As soon as the forms and signs are significant for delimiting what is a means of
payment and what is not, we have morphism.” (KNAPP, 1924, p. 27).
27
É importante salientar que Knapp não usa o termo “Estado” no sentido de instituição política organizada, e
sim como “autoridade última”. (No mesmo sentido, METRI, 2007, p. 25).
Quanto às alterações de unidade de valor, vivenciadas repetidas vezes no contexto hiperinflacionário
brasileiro, foram influenciadas grandemente pela proposta de KNAPP, com a introdução do nominalismo. Ver,
por exemplo, PEDREIRA et al, Pareceres, 2004.
28
A explicação atribuída por KNAPP ao conceito de nominalismo, enunciada em “Each alteration of the means
of payment implies that the unit of value, at least at the moment of transition, should be regarded as "nominal".
The nominality of the unit of value (…) is compatible with any form of the means of payment, and is nothing
but the necessary condition for progress from one means of payment to another.” (KNAPP, 1924, p. 19) é
considerada uma das suas maiores contribuições à Teoria da Moeda. Nesse sentido, ver JANSEN, 1991, pp. 140
e seguintes, DE CHIARA, 1986, pp. 49 e seguintes e VIDIGAL, 1995, Introdução.
The nominality of debts does not lie in the fact that the State alters
the means of payment more or less often, but in the fact that such an
alteration is possible in principle, whether it is made or not. The nominality
of debts and of the unit of value is a necessary premise before money can
come into being. Money is a means of payment, but not necessarily a
material one. It is therefore in any case a differently constituted means of
payment from the purely material one of authylism. (KNAPP, 1924, p. 19).

“Nominalismo”, assim, nada mais é que a correspondência de unidades de valor,


atribuída e garantida pela figura de uma autoridade última, comumente o Estado. “A grande
importância teórica do nominalismo consiste em que foi ele que possibilitou desvendar-se a
distinção entre o conteúdo da moeda e o seu fundamento. Com ele aprendemos que o
fundamento da moeda não decorre do seu conteúdo, mas da autoridade política do governo
que a emite” (JANSEN, p. 141).29
Para Knapp, a compreensão do fenômeno “moeda” pode, assim, ser resumida na
seguinte frase: “Money always signifies a Chartal30 means of payment. Every Chartal means
of payment we call money. The definition of money is therefore ‘a Chartal means of
payment’.” (KNAPP, 1924, p. 38). Tem-se, no trecho, os principais conceitos essenciais à
Teoria Estatal da Moeda, tomando-se por base a circulação de um instrumento de pagamento
que necessita, para sua validade, dos atributos da carta: a existência de um Estado31, sua

29
“Consolidou-se, assim, com o passar dos séculos, o monopólio estatal da cunhagem e da emissão da moeda,
ao mesmo tempo em que se desenvolveu ao redor do Estado um complexo de normas jurídicas destinado a
assegurar ao Estado a ferrenha manutenção deste privilégio: restrições judiciais e legais à livre estipulação
monetária nos negócios privados; instituição legal do curso forçado da moeda; a supervalorização do conceito
de soberania monetária do Estado e a inexistência de meios jurídicos para coibir o abuso estatal da senhoriagem,
que resulta na irresponsabilidade monetária do Estado; a capitulação do crime de moeda falsa, do crime de
evasão de divisas, e outros crimes correlatos nas leis penais; as restrições cambiais; e outras mais.” (MENDES,
1991, p. 37). O “direito de senhoriagem” a que o autor faz referência diz respeito, em sua origem, ao tributo
pago ao soberano em troca do direito de cunhagem da moeda. Atualmente, o conceito faz referência à diferença
entre o valor real e o valor nominal da moeda. Senhoriagem, nos dias de hoje, equivale ao “custo da inflação
sofrido pelo público em benefício do Estado”. (MENDES, 1991, p. 53). No mesmo sentido, “A second well-
known benefit for government is seignioriage – the capacity a monetary monopoly gives governments to
augment public spending at will. (…) [It] can also be understood as an alternative source of revenue for the
state, beyond what can be raised via taxation or by borrowing from financial markets.” (COHEN, 2004, p. 18).
30
Sobre cartalismo, ver nota supra 8.
31
Ver, para a utilização, em Knapp, do termo “Estado”, a nota supra 26. “When, however, chartality has
developed, the description of the stamped pieces gives a new method of recognizing the means of payment, for
the State says that the pieces have such and such an appearance and that their validity is fixed by proclamation.”
(KNAPP, 1924, p. 36). Grifou-se.
capacidade de formular regras jurídicas e aplicá-las enquanto autoridade32 e o
reconhecimento, pela sociedade, da validade jurídica daquele título.33 O maior mérito de
Knapp foi trazer, a um contexto de intensa rivalidade política entre Estados nacionais, um
elemento adicional a reforçar sua soberania e estabelecer sua superioridade em relação aos
demais. Em um momento histórico no qual já estavam configurados povos distintos e já havia
territórios delineados, faltava apenas reforçar a prerrogativa de comando das diversas
autoridades políticas em competição.

Dentre as lições desta história, duas destacam-se. A primeira é a de


que o problema da moeda agora está inteiramente ligado ao da economia, e
também com o da política (...). (GALBRAITH, 1977, p. 316).

Estabelecida a relação entre Moeda e Poder, (i) Estado, (ii) autoridade (os demais
teóricos da TEM substituirão o termo por “soberania”), e (iii) reconhecimento (que, no
desenvolvimento da teoria, será substituído pelo conceito de “confiança”34) passam a

32
“A proclamation is made that piece of such and such a description shall be valid as so many units of value
(…).” (KNAPP, 1924, p. 30). Grifou-se. E ainda: “The nominality of the unit of value is, as we have seen,
created by the State in its capacity as the guardian and maintainer of law.” (idem, p. 39). Grifou-se.
O conceito de autoridade é central para Knapp principalmente na sua concepção de hierarquia de um
sistema monetário, com a introdução do conceito de moeda valuta (KNAPP, 1924, p. 106), isto é, o instrumento
de pagamento “oficial” aceito pelo Estado no adimplemento das dívidas dos indivíduos (como tributos, por
exemplo): “An obligation expressed in marks, francs or rubles signifies an obligation to be performed in the
then existing valuta money of the countries concerned. (...) The means of payment which the creditor is
compelled to accept is always that which the State has put in the position of valuta.” (idem, p. 111). O aspecto
singular da moeda valuta é que ela não necessariamente é imposta pela via jurídica – ela depende, única e
exclusivamente, de uma opção política da autoridade última. “The laws do not decide what shall be valuta
money, they merely express a pious hope, for they are powerless against their creator, the State; the State in its
payments decides what is money and the laws Court follow suit. (…) Valuta money is the result of political
considerations (…).” (idem). Grifou-se. O elemento “autoridade”, portanto, é superior às leis e, por isso, foi
priorizado nesta seção.
33
“Here, therefore, it is not the statement of a specific material, but the description of the shaped pieces, which
makes the means of payment recognizable.” (idem, p. 37). Grifou-se. Em outros momentos, Knapp também usa
a palavra “aceitação” (idem, pp. vii, 82, 88, 95, 102, 177). NUSSBAUM, por sua vez, inverte a perspectiva ao
colocar o reconhecimento social como condição para a legalidade, e não a legalidade como condição para o
reconhecimento. “While thus money has emerged and may emerge again without official authorization, the
government, on the other hand, might be unable to force its issues upon the people (…). In conclusion we may
say that in the phenomenon of money the attitude of society, as distinguished from state, is paramount. It should
be added, as a matter of legal theory, that the societary process which gives life to money is not exactly a
process of ‘customary law’. It does not engender new canons of law. Similarly, as in the emergence of new
types of negotiable instruments the process only widens the range of things to which a pre-existing body of rules
– in this case of rules of monetary law – may be applied.” (NUSSBAUM, 1950, p. 8).
34
Como se lê em “Even more critical is the issue of trust: how to command confidence in any new form of
money. What is required is a degree of confidence akin to Peter Aykens’s (2002) concept of affective trust –
stable and unquestioning acceptability. Many believe that trust at this level can derive only from the sovereign
power of the state, as the German economist George Knapp contended nearly a century ago (KNAPP [1905]
1924). According to Knapp’s ‘state theory of money’, all money is a product of law and dependent for its
validity on formal ordinances, such as legal-tender laws and public-receivability provisions. Trust is a function
of political jurisdiction”. (COHEN, 2004, p. 189). Grifou-se. Percebe-se como, em Knapp, a palavra “trust”
poderia ser facilmente substituída por “recognition” – Knapp faz aí referência à ampla aceitação de uma moeda
configurar os três elementos principais da Teoria Estatal da Moeda. Consideremos agora
como se deu a sua evolução até a doutrina monetária brasileira em voga atualmente.
O principal sucessor de Georg Friedrich Knapp na doutrina da Teoria Estatal da
Moeda foi Frederick Alexander Mann, jurista judeu-alemão que, em decorrência do advento
do nacional-socialismo, foi forçado a emigrar para a Inglaterra. Mann tinha formação e
atuava na área do direito internacional35 – o que é importante para compreender o seu
conceito de Estado e, mais ainda, a sua utilização do termo “soberania”, conceito próprio à
Teoria Geral do Estado, ao invés do termo original “autoridade”, utilizado por Knapp. A
principal obra de Mann36, “The legal aspect of money: with special reference to comparative
and private international law”, publicada em 1938, preocupou-se principalmente com a
conciliação entre teoria econômica e teoria jurídica da moeda.37 Em outras palavras, uma vez
estabelecida a relação entre moeda – até então, um conceito majoritariamente econômico – e
Direito, por Knapp, nada mais coerente do que contribuir para a aproximação entre ambos os
campos do conhecimento.38 O primeiro esforço de Mann foi no sentido de demonstrar a
fraqueza de ambas as abordagens (econômica e jurídica) em relação ao fenômeno monetário.
A crítica à abordagem dos juristas é no sentido de que a designação de que “moeda é apenas
aquilo que o direito estipula como o sendo” é deveras reducionista.39 Nem todas as transações
econômicas são feitas com instrumentos de curso forçado (MANN, 1992, p. 6). No tocante
aos economistas, o fato de desconsiderar conceitos relevantes ao contrato – como o

por parte de indivíduos que reconhecem nela a validade imposta pelo Direito – ou seja, em última instância, que
confiam no Estado, na sua prerrogativa de emitir moeda, na validade atribuída pelo Estado à moeda e,
finalmente, à própria moeda.
35
Sendo, em 1980, inclusive agraciado com um posto honorário na Sociedade Americana de Direito
Internacional. A lista dos membros pode ser conferida na página da American Society of International Law:
http://www.asil.org/.
36
Na introdução do livro, Mann agradece a contribuição de Nussbaum (ver nota supra 12) ao seu pensamento.
Nussbaum, notadamente adepto da teoria social da moeda – ou, antes, do nominalismo, que ele defende não
serem posições excludentes (ver NUSSBAUM, 1950, p. 18) – fez severas críticas à posição de Knapp e algumas
incompletudes de sua teoria, que Mann procurou contornar ou responder em sua obra. Muito do que se
explicitará a seguir, portanto, decorre das observações feitas por Nussbaum. Quando este for o caso – e como o
objetivo aqui é discutir apenas a Teoria Estatal da Moeda –, o trecho correspondente da sua obra será
relacionado em nota de rodapé.
37
Em sua obra de 1950, Nussbaum criticaria a doutrina monetária alemã, que insistia na divisão entre os
campos: “German literature for the most part distinguishes between ‘money in the legal sense’ and ‘money in
the economic sense’, but there is only ‘one world’ monetarily”. (NUSSBAUM, 1950, p. 15).
38
A ideia de aproximar ambos os campos não era original. Savigny, em seu tratado sobre Obrigações (1853) já
utilizara a conceituação econômica para qualificar “moeda” (MANN, 1992, p. 28). Diz ele: “In the first place
money appears in the function of a mere instrument for measuring the value of individual parts of wealth. As
regards this function, money stands on the same basis as other instruments of measurement… But money also
appears in a second and higher function, viz. it embraces the value itself which is measured by it, and thus it
represents the value of all other items of wealth. Therefore ownership over money gives the same power which
assets measured thereby are able to give, and money thus appears to be an abstract means to dissolve all
property into mere quantities (…). (SAVIGNY apud MANN, 1992, p. 28). Grifou-se.
39
Ver NUSSBAUM, 1950, p. 5.
consentimento, por exemplo – é também uma simplificação bastante inocente das relações
econômicas. Sua argumentação, em síntese, desenvolve-se no sentido de aproximar as
linguagens utilizadas por ambos os campos do conhecimento, apontando suas falhas e
méritos.40
A principal contribuição de Mann aos três elementos da Teoria Estatal da Moeda
elencados anteriormente é a transição que ele faz do termo “autoridade” para o termo
“soberania”, aprofundando os seus limites e competências no tocante à moeda. Assim, na
introdução da obra, “It is suggested that, in law, the quality of money is to be attributed to all
chattels which, issued by the authority of the law and denominates with reference to a unit of
account, are meant to serve as universal means of exchange in the State of issue.” (MANN,
1992, p. 8). Grifou-se. Com a evolução do argumento, a mudança de termos pode ser
facilmente percebida na seguinte passagem:41

Only those chattels are money to which such character has been
attributed by law, i.e. by or with the authority of the State. This is the State
or Chartalist theory of money which in modern times has come to be
connected with the name of G. F. Knapp, to whose principal work it has
given the title. The State theory of money is the necessary consequence of the
sovereign power of the monopoly over currency which over a long period of
history the State has succeeded in assuming and which modern
constitutional law almost invariably establishes. (MANN, 1992, p. 14).
Grifou-se.

Aqui, Mann traz dois elementos que, para ele, são intrínsecos à soberania estatal no
que se refere à moeda: (i) o monopólio, por parte do Estado (que, em nota de rodapé na
mesma página, ele especifica como compreendendo não apenas o direito de emissão – ou de

40
Logo no início de sua exposição, Mann apresenta e diferencia as linguagens de ambos os campos. É o que se
nota no seguinte trecho: “As a rule, however, the economist’s view that everything is money that functions as
money is unacceptable to lawyers (…). In the absence of the creditor’s consent, express or implied, debts cannot
be discharged otherwise than by the payment of what the law considers as money, namely legal tender. Nor can
the important consequences of tender be achieved except by the offer of lawful money. Money is not the same
as credit. Nor is the law of money identical with the law of credit. Nor does the fact that ‘bank money’ largely
functions as money prove that in law it necessarily and invariably is money.” (MANN, 1992, pp. 5-6).
41
Importante salientar que Mann utiliza “autoridade” e “soberania” como sinônimos. Embora a sua preferência
recaia pelo último termo – dada, possivelmente, a sua atuação em Direito Internacional – em outros trechos ele
continuará a utilizar ambos como intercambiáveis. Por exemplo: “The State theory of money has a twofold
aspect. In the first place it means that circulating media of exchange in law constitute money only if they are
created by or with the authority of the State or such other supreme authority as may temporarily or de facto
exercise the sovereign power of the State; that supreme authority also confers upon the circulating media their
nominal value which is independent of the value of the material they are made of, their purchasing power and
their external value (…). (MANN, 1992, pp. 19-20).
autorizar a emissão – da moeda, mas também a sua regulação)42 e (ii) a previsão
constitucional, isto é, legal, jurídica, desse monopólio. O terceiro elemento essencial,
desenvolvido em passagem posterior, diz respeito à qualidade desse monopólio, ou seja, o
monopólio sobre a moeda tem de, necessariamente, refletir a realidade acerca da utilização
dessa moeda – ela tem de servir como meio de troca universal dentro do Estado em que é
emitida43: “Chattels which have been created by law and which are denominated by reference
to a unit of account are money if they are meant to serve as universal media of exchange in
the State of issue” (MANN, 1992, p. 24). Grifou-se. Portanto, há uma condição fática a ser
preenchida a fim de que um instrumento possa ser enquadrado, juridicamente, como moeda.44
Essa condição ultrapassa a teoria original, formulada por Knapp, à qual bastava unicamente o
mandamento legal acerca de um instrumento para que ele fosse considerado “monetário” – o
desenvolvimento do mercado e das formas de pagamento provavelmente colocou questões a
Mann que ainda não eram tão evidentes para o fundador da TEM.
Essa “concessão” a uma condição fática, que já havia sido proposta por diversos
economistas ao tempo da publicação da obra de Knapp45, aproxima o Direito da Economia46
e introduz diversos conceitos até então alheios ao mundo jurídico. “Mercadoria”, “unidade de

42
“Thus it extends to the introduction of exchange control, the abrogation of gold clauses, the decision to
revalorize or not to revalorize debts and so forth. Accordingly, customary international law recognizes the
sovereignty of the State in these matters.” (MANN, 1992, nota de rodapé 64, p. 14).
43
Afinal, “Usability for exchange is the motor of circulation, and the ending of circulation is the ending of
money.” (NUSSBAUM, 1950, p. 18) Nussbaum informa que essa condição já era amplamente aceita pelos
tribunais para caracterizar um instrumento monetário. Ver idem, p. 11. A doutrina brasileira também reconhece
a importância desse caráter universal: “A moeda corrente é, fundamentalmente, poder de compra. E tem
importância extrema na economia porque, como poder de compra, traz dois atributos fundamentais: o de
instrumento de liquidez e o de instrumento de procura efetiva.” (VIDIGAL, 1995, p. 7). No mesmo sentido,
PEDREIRA, José Luiz Bulhões, “Constitucionalidade do art. 38 da Lei nº 8.880, 27.05.94 (Plano Real)” in:
Pareceres, 2004, p. 93.
44
Mann insiste na insuficiência da lei para que um objeto seja utilizado como moeda: “a chattel cannot in law be
regarded as money if it represents anything else than the mere embodiment of a unit of account, its fraction or
multiple.” (MANN, 1992, p. 24). Ou seja, um instrumento que represente unicamente uma unidade de conta não
pode assumir o papel de moeda, ainda que o Direito imponha o contrário. E continua: “While denomination with
reference to a specific unit of account is necessary to confer upon a chattel the quality of money (…), not
everything that is so denominated is money. Treasury bills, for example, are expressed in terms of a unit of
account, but they represent merely claims to money, their reference to the unit of account is only indirect.”
(MANN, 1992, p. 24). Nesse caso (de notas bancárias), Mann defende que embora o instrumento não possa ser
classificado enquanto moeda, aplicam-se, a ele e às demais formas de moeda fiduciária, as regras
correspondentes à moeda de curso forçado, por analogia. “In 1820 it came to be said that the representation of
money which is made transferable by delivery only, must be subject to the same rules as the money which it
represents.” (MANN, 1992, p. 10).
45
Ver COHEN, nota supra 2.
46
A questão da aproximação da linguagem entre os dois campos do conhecimento, já ressaltada anteriormente,
acompanha o leitor ao longo de todo o texto. A título de exemplo: “Because money is the medium of exchange,
it is not an object of exchange or, in other words, it is not a commodity. Economic goods and money thus appear
as opposite concrete phenomena.” (MANN, 1992, p. 25). Aqui temos a utilização evidente de conceitos
jurídicos (“moeda”) e econômicos (“meio de troca”, “mercadoria”, “objeto de troca”).
conta” e “unidade de valor” passam, assim, a ser questões para as quais o Direito também
deve atentar e, dentro do possível, regular.
Outra diferenciação feita por Mann é entre “moeda corrente” e “moeda de curso
47
legal”. Em nova concessão feita a observações fáticas (países em que se usa e se aceita
moeda diferente daquela constitucionalmente estabelecida – caso da dolarização da economia
argentina, em 199148), Mann observa que importa ao sistema monetário de um país apenas
aquela moeda legalmente prevista49 – que carrega consigo o peso do curso forçado50 –
embora possam existir outras moedas, “correntes”51, não contempladas pelo mundo do
Direito. A relevância lógica dessa diferenciação é, para Mann, que alterações na identidade
da unidade de conta de um país (o que Knapp chamava de “demonetização”, como as
alterações feitas, no Brasil, de Cruzado para Cruzeiro, por exemplo) só podem ser feitas pelo
Estado. Ou seja, a inserção de uma nova moeda de curso forçado exige, necessariamente, a
existência de uma lei para tanto.52
A questão da unidade de conta introduz outra contribuição de Mann à Teoria Estatal
da Moeda, já referida anteriormente: o papel assumido pela soberania e a sua ligação com o
fenômeno monetário. No trecho:

47
Termo utilizado, por Mann, como sinônimo de “curso forçado”. O mesmo em: “Em seu sentido estritamente
jurídico, ‘curso legal’ significa apenas um tipo de dinheiro que um credor não pode recusar na liquidação de
uma dívida contraída na moeda emitida pelo governo.” (HAYEK, 1986, p. 29). DE CHIARA, em sentido
contrário, diferencia “curso forçado” de “curso legal”: “Distingue-se do curso forçado a imposição do curso
legal para as moedas, cujo efeito é a obrigatória aceitação da moeda nos pagamentos de débitos de qualquer
natureza. O curso legal constitui-se na disposição legal que, de forma indiscriminada, veda a recusa de
determinada moeda para pagamento de débito de qualquer natureza. O curso forçado distingue-se do curso legal,
pois, enquanto este toma a moeda na sua função de instrumento de troca e meio de pagamento conferindo-lhe
compulsoriedade na circulação, o curso forçado diz respeito ao próprio conteúdo de valor da unidade monetária,
fazendo prevalecer a expressão nominal do instrumento monetário, e impedindo a sua conversão em metal
precioso.” (1986, pp. 39-40). Grifou-se.
48
A utilização de moedas estrangeiras enquanto moeda corrente já havia sido levantada por Nussbaum como um
ponto não explicado por Knapp. “In countries with weak governments or backward economic conditions,
foreign money may become a major element of local currency without the will of the local government”.
(NUSSBAUM, 1950, p. 7).
49
A previsão legal continua, reforça-se, sendo o fator elementar à Teoria Estatal da Moeda: “In fact the Uniform
Commercial Code (1958) which applies almost everywhere in the United States of America expressly defines
money by the test of sanction of government: money is ‘a medium of exchange authorized or adopted’ by
government ‘as a part of its currency’. (MANN, 1992, p. 15).
50
Nesse sentido [curso forçado] ver MANN, 1992, p. 43. Ver também NUSSBAUM, 1950, pp. 45 e seguintes.
51
Mann não explica o que exatamente seriam moedas correntes, alegando que elas simplesmente não possuem o
respaldo legal do curso forçado (MANN, 1992, p. 42). Pode-se no entanto intuir que o monopólio monetário a
que ele se refere diz respeito apenas a uma única moeda de curso forçado, emitida e regulada pelo Estado
soberano. NUSSBAUM (1950, p. 55), já considerava que nem toda moeda corrente é “moeda” para fins do
Estado: “(...) it is easier to see that legal tender is not necessarily money.”
52
Conforme pode ser lido em “It follows from the State theory of money that, generally, extrinsic alterations of
currency can only be affected by legislative measures” (MANN, 1992, p. 52). Por “mudanças extrínsecas” Mann
entende aquelas que alteram a identidade da unidade de conta e, portanto, a identidade do sistema monetário
como um todo. E ainda: “The second consequence of the State theory of money is that in law money cannot lose
its character except by virtue of formal demonetization.” (MANN, 1992, p. 20).
Only those chattels issued by or on behalf of the State are money
which are denominated with reference to a distinct unit of account. Such unit
of account is peculiar to the State which creates it for the purpose of
denominating its currency and is therefore the characteristic feature of a
national currency system. (MANN, 1992, p. 23). Grifou-se.

percebe-se que a unidade de conta assume um traço até então não evidenciado53 – ela
tem o papel de diferenciar um sistema monetário de outro, ou seja, em última instância, a
unidade de conta diferencia um país – com sua unidade de conta respectiva – de outro.54 E é
aqui que a fixação de uma unidade de conta intrica-se com o conceito de soberania: é a
soberania que possibilita a prerrogativa da fixação, é a soberania que possibilita que um
Estado nacional se individualize por meio de sua moeda correspondente.55

It cannot be open to doubt that in this country [Inglaterra]


sovereignty at present exists and, accordingly, the State theory of money
rules. The right of coinage has for many centuries been recognized as part of
the Crown’s prerogative, and Blackstone went even so far as to say that ‘the
coining of money is in all states the act of sovereign power’. (MANN, 1992,
p. 16).

A Teoria Estatal da Moeda reconhece, com Mann, a relevância que a criação de uma
moeda de curso forçado assume em termos de poder para o Estado. 56 Trata-se de um ato de
autoridade – a apropriação do monopólio de emissão e regulamentação de uma moeda
53
Para Nussbaum, a existência de uma unidade de conta monetária é um fenômeno da psicologia social
(NUSSBAUM, 1950, p. 14), o que faz sentido se pensarmos em termos de diferenciação, individualidade e
identidade.
54
Nota-se aqui, ao colocar a questão de diferenciação entre sujeitos de Direito Intercional Público, novamente a
visão internacionalista de Mann. “In other words sovereignty is the prerequisite of money control in its widest
sense and of the issue of money in particular. In a federal State it is the federation that necessarily has the sole
power to issue ‘money’ or, to put it differently, where there is a single money, the constituent States cannot have
the independent right to issue it or to command in any way the wide area of domestic and, possibly, external
policy of which the issue of money in the legal sense is the visible emanation.” (MANN, 1992, pp. 15-16).
Grifou-se.
55
“The chattel issued by the State is only the external sign of the many aspects of sovereign power over money,
from which it is derived. That power involves much more than the mere issue of money in the legal sense. It
comprises the whole of monetary, credit, fiscal and budgetary policy as well as those measures which
economists tend to include in the concept of money, viz. its supply and use, the control of inflation, interest
rates, exchange control, and so forth. It should be obvious, therefore, that a particular currency is no more than
the consequence of political sovereignty.” (MANN, 1992, p. 15). Grifou-se.
56
Nesse sentido: “Portanto, a política monetária acabou tornando-se uma parte secundária da política econômica
como um todo. E a política econômica, por sua vez, tornou-se um aspecto da política – da questão de quem
exerce o poder, quem controla a distribuição de benefícios.” (GALBRAITH, 1977, p. 317). E ainda: “Though
seemingly technical in nature, the management of money in fact is anything but neutral in its implications for
the distribution of wealth and power across the globe. Whoever controls money gains access to real resources –
goods and services of all kinds – which in turn are key to attaining economic and political advantage. For the
citizens of any country, it matters greatly whether currency will be governed by recognized state authorities or
by others, by friend or by foe, at home or abroad.” (COHEN, 2004, xiii).
“oficial” – complexo e de difícil execução, que, desde a apresentação da teoria por Knapp,
casou perfeitamente com a importância crescente assumida pelos Estados nacionais.

***

Nothing demonstrates so clearly what a people is made of than how


it conducts its monetary policy. (HARRIS, 1951, p. 1).

A apropriação da Teoria Estatal da Moeda foi feita, no Brasil, por principalmente dois
nomes: Letácio Jansen57 (UFRJ), que já na década de 80 incorporou a TEM ao contexto
brasileiro, e Geraldo de Camargo Vidigal (FDUSP), que introduziu o estudo de Direito
Monetário no Largo São Francisco e aproximou o estudo da moeda no Brasil a conceitos
econômicos.58 Com o que já se expôs anteriormente, fica mais claro compreender por que a
doutrina brasileira foi buscar nos teóricos da TEM respaldo aos seus estudos – em tempos de
hiperinflação, momento em que o Direito Monetário passou a ter importância no país,
questões como “mudança de unidade de medida”, “demonetização”, “curso forçado”,
confusão entre Direito Público e Direito Privado, utilização de instrumentos “monetários”
paralelos, dentre outras, acabam exigindo respostas do Direito. No Brasil, portanto, a doutrina
de um Direito Monetário59 independente (isto é, separado de outros ramos mais tradicionais
da cultura jurídica) recrudesce na década de 70-80, quando da hiperinflação. Até então, a
moeda, embora considerada “fruto” e atribuição do Direito, era tratada como um ramo do
Direito Econômico.60
Com as distorções na sua qualidade de unidade de medida (devido às sucessivas
alterações no padrão monetário vigente) e na sua função de reserva de valor (com a corrosão

57
Em seu mais recente livro, Jansen admite que “[e]stava, também, naquele período [década de 80], sob a
influência de KNAPP, autor da ’Teoria Estatal da Moeda’, fundador da doutrina nominalista (ou cartalista) (...)”.
(JANSEN, 2013, p. 1).
58
A obra que representa de forma emblemática essa aproximação, expondo conceitos econômicos e fazendo uso
majoritariamente de doutrinadores economistas, é a Tese de Doutorado de José Tadeu De Chiara, orientando de
Vidigal, defendida em 1986.
59
Na introdução do seu livro, Vidigal aponta que, para ele: “O Direito Monetário rege a essência, as formas e a
significação já das estipulações pecuniárias, já das obrigações dela decorrentes, já dos pagamentos respectivos.
Abrange quer as avenças, ou as situações, de que participem o Estado ou entes nos quais se desdobre, quer as
que se celebrem ou ocorram entre pessoas privadas”. (VIDIGAL, 1995, p. VII)
60
Para uma evolução do posicionamento teórico no Brasil acerca da moeda, ver VIDIGAL, 1995, pp. 93 e
seguintes.
inflacionária que acontecia diariamente)61, precisou o Direito desenvolver conceitos trazidos
pela TEM e aplicá-los coerentemente aos problemas que inevitavelmente surgiram.62
Três são os conceitos relevantes que foram aprimorados pela doutrina brasileira:
padrão monetário, ordem pública e confiança. Eles podem ser considerados uma nova versão
da primeira tríade Estado63-autoridade-confiança, moldados ao contexto do país e suscitados
por questões práticas atreladas à hiperinflação.
A noção de padrão monetário é desenvolvida por Vidigal já nas primeiras páginas de
seu manual. Para ele, o termo “padrão monetário” deriva de uma das funções da moeda, qual
seja, a de padrão de valor: “A formação da locução ‘padrão monetário’ está vinculada à
evocação da terceira das funções da moeda. Moeda é ‘padrão’, porque é padrão de valor.” E
continua: “Parece-me que devemos entendê-lo (...) como o conjunto dos princípios gerais de
direito e das normas legais que compõem o regime jurídico da moeda.” (VIDIGAL, 1995, pp.
X e XI). Grifou-se.
Padrão monetário é, assim, o regime jurídica da moeda, cujo estabelecimento é de
competência única do Estado.64 Não cabe aos particulares acordarem utilizar padrão diverso
daquele estipulado pelo ordenamento jurídico: os contratos celebrados no Brasil adotam,
necessariamente, o padrão monetário brasileiro.65
Há, então, uma hierarquização dos interesses públicos e dos interesses privados em
termos monetários, sendo limitada a livre iniciativa diante da noção de ordem pública.66 O

61
Ver, nesse sentido, VIDIGAL, 1995, p. 7.
62
Uma das respostas, por exemplo, foi a distinção doutrinária feita entre “moeda de conta” (ou seja, aquela que
permanece sendo o padrão de valor monetário no país) e “moeda de pagamento” (aquele utilizada correntemente
nas transações econômicas). Ver TEPEDINO, “A Incidência dos Planos Econômicos” in Pareceres, 2004, p.
131. E: “Num país sob intenso processo inflacionário, não será razoável a disciplina jurídica da moeda que não
estabeleça distinção entre moedas de conta – unidades de conta – e a moeda de pagamento (...)”. (VIDIGAL,
1995, p. 8). Para mais respostas jurídicas ao período hiperinflacionário e às sucessivas correções monetárias, ver
Pareceres, 2004 – principalmente os textos de PEDREIRA (sobre regulamentação legal da correção monetária),
TEPEDINO (quanto à retroatividade de leis monetárias, incidência de leis de ordem pública e a noção de direito
adquirido) e STURZENEGGER (principalmente quanto à noção de direito adquirido e de ato jurídico perfeito
no tocante às correções monetárias).
63
A existência de um Estado, diante dos conceitos de “padrão monetário” e “curso forçado” – que continua
sendo de extrema importância para o Direito – e a sua prerrogativa soberana de emitir e regular moeda é, no
século XX, pressuposta.
64
Ver, nesse sentido, VIDIGAL, 1995, p. XX e p. 14. No mesmo sentido, PEDREIRA, 2004, pp. 102 e 105.
65
Nesse sentido, “No Brasil, ressalvados contratos vinculados ao exterior, é vedada estipulação contratual de
pagamentos em qualquer moeda estrangeira. É vedado estipulá-los em moeda que um contratante imagine, em
moeda fantasiosa. Devem ser necessariamente estipulados os pagamentos contratuais em moeda nacional.”
(VIDIGAL, 1995, p. 14). Isso porque “O poder de contratar não pode ser colocado acima do poder de instituir
moeda” (VIDIGAL, 1995, p. 13).
66
DE CHIARA dedica seção inteira de sua Tese de Doutorado à descrição do que é “ordem”, como o Direito é
o instrumento mais eficiente para alcançá-la e como a moeda, ao depender, para o seu funcionamento, de ordem
(no sentido e organização), depende também do Direito. Ver DE CHIARA, 1986, pp. 8-22. Em trecho auto-
explicativo, o autor ressalta: “No âmbito dessa preocupação de busca da ordem, de o direito formular a ordem,
conceito de ordem pública67 surge em um contexto de diferenciação entre temas de Direito
Público e temas de Direito Privado, que abrangeu praticamente todos os campos jurídicos e
resultou na apropriação, pelo Direito Público, de noções ligadas ao Direito Monetário. 68
Mesmo feita a divisão acadêmica, é impossível negar que as regras de Direito
Monetário têm impacto profundo sobre as relações privadas69 – em se tratando de moeda, o
público e o privado estão intrinsecamente conectados70: se a obrigação do credor receber o
pagamento que lhe é devido na moeda de curso legal é, sem dúvida alguma, de Direito
Privado, a atribuição de curso legal à determinada moeda constitui um ato de soberania, e,
consequentemente, pertence à esfera do Direito Público.

O que se chama comumente de sistema monetário de um país


coincide em geral com este Direito Público Monetário – Direito
Constitucional, Administrativo ou Financeiro. A recíproca, no entanto, não
é verdadeira. Não existe Direito Monetário Privado sem mescla de Direito
Público. Os vínculos de Direito Monetário são triangulares, nos quais os
particulares nunca estão sós entre si, pois que o Estado sempre está
presente. (NUSSBAUM, 1950, p. 61).

Em se tratando de um ato de soberania, portanto, “[l]eis monetárias são de Ordem


Pública Financeira. São leis que definem o conteúdo de valor, nas moedas”. (VIDIGAL,
1995, p. XIX). Muito embora o comportamento do Estado em relação à sua política
monetária afete sobretudo as transações entre particulares sujeitos ao padrão monetário
daquele país, ao privado cabe apenas a aquiescência, o respeito à lei. A noção de ordem

de a norma jurídica ser a fórmula da ordem, a moeda situa-se no campo jurídico do conhecimento humano.”
(DE CHIARA, 1986, p. 11).
67
Para VIDIGAL, “(...) a ideia da Ordem Pública Econômica nasceu das indagações de Walras, de Wicksel, de
Schumpeter, de Keynes, que trouxeram à produção, ao consumo, às poupanças, ao investimento, ao
desenvolvimento, novas contribuições acadêmicas, facultando ao Direito, e exigindo dele, a disciplina cogente
do econômico, em função de novos esclarecimentos que esses estudos trouxeram à compreensão da economia.
Com as análises de Irving Fisher, de Keynes e dos pós-keynesianos, manifestou-se claramente uma nova espécie
de razões de Ordem Pública: é que a moeda, disciplinada até então em função de considerações de Ordem
Privada, quase sempre em seus aspectos micro, passou a ser encarada, com amparo em leis e em decisões dos
Tribunais, como um instrumento macro.” (1995, p. IX).
68
Nesse sentido, DE CHIARA: “O poder emissor é, com efeito, uma parcela do poder político, do poder do
Estado, atribuído àquele que cria o instrumento monetário de acordo com regras e especificações que fazem
deste instrumento monetário um elemento da ordem jurídica e que pode ser utilizado validamente no jogo dos
mercados. Não é qualquer instrumento cunhado que permite a liberação de vínculos obrigacionais, mas apenas e
tão somente o que se revista das características e condições reconhecidas socialmente e que, dessa maneira, é
livremente transacionado”. (1986, p. 19).
69
Nesse sentido, “Diríamos que a atribuição, pelo Direito Público interno, de curso legal a determinada moeda,
afeta acima de tudo o campo do Direito Privado”. (DOLINGER, 1973, p. 32).
70
Nussbaum é um dos teóricos que reforça a ideia de interdependência criada pelas normas monetárias nas
relações privadas e na esfera pública. Ver NUSSBAUM, 1950, p. 61.
pública traz a vontade do Estado – seu poder de autoridade, conferido pela soberania – ao
primeiro plano.71
Esse entendimento é compreensível se levarmos em consideração as diversas reformas
monetárias vividas pelo Brasil da década de 60 até a década de 80. Diante do caos entre
moedas de conta, moedas de pagamento, moedas correntes, moedas oficiais, moedas que
deixaram de ser oficiais e assim por diante, urgia aos doutrinadores legitimar o poder do
Estado em sua ação e interferência no sistema monetário nacional, bem como tentar resgatar
a confiança72 no padrão monetário vigente naquele momento – mesmo que ele pudesse sofrer
nova alteração no dia seguinte.
A Teoria Estatal da Moeda sempre tratou a confiança como algo relevante à moeda,
mas a verdadeira importância do conceito restava subentendida.73 O grande argumento da
TEM no tocante à confiança é que, em se tratando da larga utilização de um instrumento –
que a história mostrou instável – em detrimento de todos os outros, era necessário que
houvesse uma característica imaterial a norteá-la – sendo o Estado74 a única instituição capaz
de construir e garantir essa característica imaterial de forma eficiente (leia-se: estável).

Em tempos de doutrina nominalista [para Mendes, sinônimo de


“doutrina estatal”], vive-se a “confiança no governo” como padrão

71
No mesmo sentido, “Leis destinadas a garantir o monopólio da emissão e o controle de circulação da moeda
nacional ou moedas estrangeiras são normas de ordem pública, de direito cogente.” (MENDES, 1991, p. 40).
Grifou-se. E ainda: “As normas da espécie e os arestos apreciando litígios nessa esfera não visaram
dominantemente à orientação das relações individuais, mas sim a que o conjunto dos atos de pagamento, o
conjunto das transações em pecúnia, atuem, nos mercados financeiros – os mercados de dinheiro e de capital –
de forma a que a universalidade das avenças e dos pagamentos se integre, para propiciar, a benefício do país e
de toda a população, comportamento ótimo desses mercados.” (VIDIGAL, 1995, p. IX). Ver também DE
CHIARA, 1986, pp. 74 e seguintes.
72
Expondo de forma bastante clara a questão da confiança: “Por esta razão é indispensável a confiança do
público no governo para que, em determinado momento, na consciência social, a ideia do valor de uma moeda
se separe de maneira espontânea de sua substância física, independentemente da imposição legal do curso
forçado. Trata-se aí de um fenômeno da psicologia social que explica o valor da moeda pela confiança que o
público deposita no governo”. Grifos no original. (MENDES, 1991, p. 38).
73
Nesse sentido: “Even more critical is the issue of trust: how to command confidence in any new form of
money. What is required is (…) – stable and unquestioning acceptability. Many believe that trust at this level
can derive only from the sovereign power of the state, as the German economist George Knapp contended
nearly a century ago (KNAPP [1905] 1924). According to Knapp’s ‘state theory of money’, all money is a
product of law and dependent for its validity on formal ordinances, such as legal-tender laws and public-
receivability provisions. Trust is a function of political jurisdiction.” (COHEN, 2004, p. 189). Grifou-se.
74
Ao diferenciar a Teoria Estatal da Moeda da Teoria Social da Moeda, MENDES também coloca o foco, de
forma bastante clara, na confiança enquanto padrão norteador da utilização de uma moeda: “É certo, contudo,
que esta concepção estatal da moeda pode entrar em conflito com a concepção social da moeda, que é
fenômeno da sociologia jurídica, e não mais do direito positivo. Explique-se: no fenômeno jurídico da moeda, a
atitude da sociedade, que é diferente da atitude do Estado, é de fundamental importância. Na verdade, é a
atitude da sociedade que dá ‘vida’ à moeda: se o público tiver confiança na moeda sua atitude será de retê-la,
conservá-la; se, ao contrário, o público não tiver confiança na moeda sua atitude será de recolocá-la o mais
rapidamente possível em circulação contra a aquisição de ativo reais ou de outra moeda que seja confiável.”
Grifos no original. (MENDES, 1991, p. 38).
monetário, assumindo portanto a confiança o papel de lastro das moedas.
(...) Isto significa que ao falecer a confiança do público portador no governo
emitente da moeda, isto é, no devedor, a moeda se torna ruim (...).75
(MENDES, 1991, p. 39). Grifou-se.

Com o fim do metalismo, portanto, e a consequente desvinculação do valor da moeda


a uma garantia física, assume o Estado o “lastro” da moeda76 – por meio do estabelecimento,
na relação triangular relatada por Nussbaum, da confiança no padrão monetário. Daí decorre
também que a qualidade do Estado enquanto autoridade última se retroalimenta nessa crença
de que só ele, enquanto instituição, pode gerar essa garantia imaterial77: o Estado é soberano
porque institui confiança e é porque o Estado gera confiança que sua soberania permite a
apropriação do monopólio de emissão e regulamentação da moeda. A sua condição de
autoridade complementa a noção de que, ao deter o poder de polícia – o poder de sanção aos
particulares que eventualmente desafiem essa confiança – o Estado de Direito reforça a
existência de uma ordem pública e a sua posição última na hierarquia estabelecida, por ele
mesmo, dentro de um sistema monetário.78
***

A história da moeda revela: (...) em geral, as comunidades mais


antigas mostram-se menos dispostas à experimentação monetárias do que as
comunidades mais novas. (GALBRAITH, 1977, p. 61).

By no means does the societary theory of money deny the fact that
normally the modern state exercises full power over the currency. But legal

75
A substituição, no mercado, de uma moeda “ruim”, isto é, sem suporte de confiança, por uma moeda “boa”,
configura inclusive uma lei da economia, denominada Lei de Gresham (“bad money drives out of circulation
good money”). Isso porque as pessoas procurarão adquirir a moeda forte e ver-se livres da moeda fraca,
retirando a moeda “boa” de circulação. Ver MANN, 1953, p. 18, DE CHIARA, 1986, p. 36 e COHEN, 2004, p.
4.
76
Assim, “O instituto da cunhagem, acrescentando aos metais elementos de garantia e de responsabilidade do
Poder que cunhava – e de confiança nesse Poder – veiculou evolução das preferências pelas formas fiduciárias
da moeda. A estima geral, que presidia à escolha das mercadorias-moeda, cedeu gradualmente lugar à confiança
geral no Poder emissor, que atribui validade e valor às moedas fiduciárias.” (VIDIGAL, 1995, p. 3). Grifou-se
77
Em sentido contrário, “The reality is that monetary usage can derive from a wide range of influences, private
as well as public, and is ultimately social in origin. At its most fundamental, money is a social institution,
resting on the reciprocal faith of a critical mass of transactors (…). Confidence ultimately is socially
constructed, based implicitly or explicitly on an intersubjective understanding about an instrument’s future
usability and purchasing power, and may well reflect nothing more than a transactional network’s shared values
or the gradual accumulation of competitive market practice. Money is whatever people come to believe will be
accepted by others, for whatever reason.” (COHEN, 2004, p. 190). Grifou-se.
78
Nesse sentido, “Foi o intuito das razões dessa Ordem Pública Financeira que determinou, em passado remoto,
o veto às emissões de moeda por bancos privados e a reserva das moedas nacionais para as instituições do curso
forçado e do poder liberatório. Só a decifração acadêmica dos fluxos de moeda, porém, e de suas consequências
macro, para estabilização ou desestabilização das economias, viria a permitir formulações econômicas, e
jurídico-econômicas, visando à adequada composição dos regramentos, frente aos macro-interesses das
coletividades e das nações.” (VIDIGAL, 1995, p. IX)
theory has to take care also (and in a sense primarily) of abnormal and
controversial situations. This test the State Theory of money cannot stand.
(NUSSBAUM, 1950, p. 8).

Uma vez apresentada a evolução da tríade de conceitos indispensável à Teoria Estatal


da Moeda, cumpre retomar a frase de KNAPP que inaugurou esta seção: “A theory must be
pushed to extremes or it is valueless.” O caso que se expõe a seguir [Bitcoin] é um extremo.
Trata-se de uma “moeda”79 de emissão privada (ou seja, sem a presença de uma autoridade
última a garantir sua validade), que atua como meio de pagamento, unidade de conta e
reserva de valor – preenchendo, portanto, os requisitos econômicos à configuração de uma
moeda. Não há autoridade central a regular seu desenvolvimento. Sua criação e manutenção
estão intrinsecamente ligadas ao uso crescente da tecnologia. Será esta uma nova condição
fática à qual a teoria terá de se adaptar – como os ajustes feitos por Mann à obra de Knapp –
ou será que ela encontra aqui o seu limite e se torna, nas palavras de Knapp, sem valor?

79
A denominação, neste trabalho, do Bitcoin enquanto moeda segue a conceituação apresentada por DE
CHIARA (1986, p. 49), para quem “A noção comum de moeda é correlacionada a um instrumento físico
utilizado na intermediação de trocas e na liberação de vínculos obrigacionais.” Portanto, ao atuar como meio de
pagamento, intermediando trocas e liberando sujeitos de seus vínculos obrigacionais, o Bitcoin atua como
moeda. Claramente, em termos de Teoria Estatal da Moeda, ele não pode ser considerado moeda com curso
legal ou curso forçado, mas suas especificidades serão tratadas mais detidamente a seguir. Por enquanto, para
não utilizar o termo “moeda” entre aspas, trataremos “meio de pagamento que libera vínculos obrigacionais”
como sinônimo de moeda e, quando for o caso de qualificar essa moeda – como “oficial” ou “corrente”, por
exemplo, o termo correspondente virá entre aspas.
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