Você está na página 1de 11

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL DA CULTURA

HERMENÊUTICA À LUZ DA ONTOLOGIA DE ESPINOSA

LUIZ ANTÔNIO ANDRADE OLIVEIRA

Trabalho de conclusão de
curso apresentado ao
professor Henrique Estrada
Rodrigues como requisito
para obtenção dos créditos
referentes à disciplina
História e Historiografia da
Cultura I.

RIO DE JANEIRO

JULHO/2013
Pretende-se com esta dissertação mensurar a importância do pensamento do
filósofo moderno Baruch de Espinosa na elaboração de uma ontologia, inscrita em sua
obra magistral Ethica More Geometrico Demonstrata, que mobilizará categorias de
temporalização das relações constitutivas do ser. Ter-se-á como escopo inscrever seu
método de análise da escritura sagrada, verificada na obra Tractatus Theologico-
Politicus, nos quadros de uma interpretação crítica à tradição metafísica e à luz da razão
natural requerida pelo filósofo. A analogia dos modos de interpretação da natureza e da
bíblia mostrar-nos-á a técnica metodológica de extração do sentido a partir da
explicitação das leis de produção da própria natureza, e, por conseguinte, da escritura. A
compreensão do processo de produção em Espinosa, que toma de empréstimo o método
geométrico euclidiano, revela-nos as leis pelas as quais as coisas são o que são.
Interessa-nos na ontologia espinosista a valorização do processo “histórico” na
constituição do ser, e seguiremos os desdobramentos deste pensamento imanente na
hermenêutica dos estudos bíblicos que tende a afastar a superstição no seio do próprio
mistério, conjurando qualquer possibilidade de apropriação política com fim de
dominação. Em suma, avaliaremos o método histórico de leitura dos textos sagrados a
partir da ontologia de Espinosa.

O cenário histórico moderno evidencia desde o século XVI a perda dos esteios
metafísicos que sempre afastara o ser de suas determinações. Pensara-se a vida, por
muitos séculos, alijando a multiplicidade de seu caráter autônomo e essencial
subordinando-a a unidade apriorística do “ser” ou qualquer outra categoria que lhe
conferisse anteparo ôntico (ideia, substância, consciência). A realidade fenomênica
sempre fora julgada, por um ou por outro, como aquilo que parece ser, mas não é. A
ascese filosófica deveria sempre conduzir as especulações para o exterior dos campos
relacionais salvaguardando a imutabilidade do real da força contingente e destruidora do
“devir”. A base filosófica das reflexões teológicas dos medievos apontava sempre para
um núcleo de estabilidade transcendente no qual a vida se conforma, se legitima e se explica:
Deus. Este quadro muda radicalmente com o renascimento cético moderno que aponta para a
necessidade de construir sobre novas bases epistemológicas o conhecimento do mundo e do
homem. Pergunta-se sobre o método pela qual o homem é capaz de conhecer, e suspende-se o
juízo desde então. Neste vácuo de incerteza ontológica que inscrevemos o pensamento de
Espinosa.
O método analítico adotado por Espinosa inverte o principio sintético cartesiano de
começar a filosofia pelas partes mais simples visando à totalidade. Inicia-se, tal qual Euclides,
pela definição de noções comuns (notiones communes) evidentes ao entendimento, deduzindo
por encadeamento lógico e necessário as partes subsequentes. As ideias matemáticas, por
exemplo, são evidentes em si, e não precisam de um correlato empírico para provar a sua
clareza e distinção. Não é a toa que o filosofo holandês toma a matemática como modelo
para conduzir o seu método que tem como primeira noção universal deus.

“(...) toda a realidade dos seres matemáticos se esgota na sua


possibilidade intrínseca concebida segundo o entendimento, que o
mesmo é dizer, na sua verdade1”.

O triângulo assim como deus existe em si e por si é concebido, o que significa


dizer que não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado 2. Embora não
deduzamos a existência do triângulo de sua essência, Espinosa nos impele a pensar deus
cuja essência envolve necessariamente a existência.

“Por causa de si entendo (...) aquilo cuja natureza não pode ser
concebida senão como existente3”.

Atestado a existência decorrente de sua essência a partir da proposição


supracitada, é necessário dizer que o deus de Espinosa passa ao largo das implicações
morais de um deus criacionista e transcendente da tradição religiosa dotado de vontade
pessoal em sua atividade produtiva. Refratário a qualquer pretensão antropomórfica, o
pensador mobiliza outros conceitos a fim de distinguir melhor o sentido requerido pelo
método analítico: Natureza, causa Sui, substancia4, eis alguns heterônimos da potência
infinita a indicar simplesmente o monismo da expressão divina que não reparte o mundo
em dicotomias metafísicas onde causa e efeito estão ontologicamente apartados. As
coisas do mundo são modos finitos da potencia infinita, portanto, partícipes da
substancia in-criada. Na tradição hegemônica do pensamento filosófico, tendo

1
Diogo P. Aurélio. “Introdução”. In: Baruch de Espinosa. Tratado teológico-político. Ed. Martins Fontes.
Pag. XXIX.
2
Espinosa, Baruch de. Ética. In:_ Os Pensadores. Editora Abril Cultural. 1973. Pag. 84.
3
Idem.
4
É necessário ressaltar as alterações conceituais que Espinosa opera sobre a tradição filosófica.
Enquanto na perspectiva aristotélica cada ente tem sua própria substância, o filósofo holandês expandiu
o conceito à condição de causa imanente, constitutiva, que dá inteligibilidade a todo real. Ver em VIERA,
Maurício. Marx com Espinosa: Em busca de uma teoria da emergência. In:__ Crítica Marxista. Nº 22,
2006. Pág. 35.
Parmênides de Eléia iniciado o grande culto ao SER 5, a verdade identitária fora
perseguida em demasia negando sobremaneira a pluralidade, o devir. A vida fora
humilhada a uma expressão subalterna de falta, o não-ser6. Fizera escola no andar
sôfrego da filosofia instaurando uma tradição condenatória do movimento que
percebemos, por exemplo, em Hegel o qual criticara Espinosa pela ausência de
negatividade dialética no trato do devir7. A causa de si, para o filosofo holandês, é
essência produtiva criadora e infinita, inocente em sua compulsão autopoetica de
expressão da diferença, na diferença e pela diferença. Para além do bem e do mal, a
potência criadora se exprime em seus atributos também infinitos, e se potencia em seus
modos finitos, nunca se afastando de si mesmo. Espinosa afirma um plano de imanência
absoluto8.

A partir das breves considerações acerca da ontologia espinosista, permitimo-nos


o seguinte comentário a respeito dos desdobramentos morais de tal pensamento. A vida,
em Espinosa, não precisa mais ser julgada, e sim assumida absolutamente como um
complexo relacional cuja consistência de sua perenidade depende exclusivamente dos
elementos que a constitui e a mantêm em um jogo frágil de sobreposição flexível de um
elemento sobre o outro. As configurações existenciais no interior deste complexo
relacional imanente são expressões das relações de poder dos princípios relacionais que
não podem ser pensados de modo algum como termos isolados que se encarnam no
movimento. Em suma, Espinosa antevê a prevalência do devir histórico sobre qualquer
formulação idealista a qual tem a tradição religiosa como critério de validade. Neste
aspecto, seu combate é direcionado ao homem do ressentimento9, ao sacerdote. Percebe
os efeitos no campo do poder da utilização política da religião enquanto estratégia de
dominação em sua desativação entre a causa e o efeito.

“O grande segredo do regime monárquico e seu profundo interesse


consistem em enganar os homens, dissimulando, sob o nome de

5
Extraímos tal tese do pensamento de Friedrich Nietzsche acerca dos Pré-Platônicos. Ver NIETZSCHE,
Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Edições 70. Páginas 57 a 67.
6
Poema de Parmênides. In: _ Os Pensadores: Os Pré Socráticos. Editora Abril, 2000.
7
“A critica que Hegel fará a Espinosa, de ter ignorado o negativo e a sua potência, é a glória e potência de
Espinosa, a sua própria descoberta. Em um mundo corroído pelo negativo ele ainda tem bastante
confiança na vida, na potência da vida, para questionar a morte, o apetite mortífero dos homens, as
regras do bem e do mal, do justo e do injusto”. Ver : DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia Prática. Editora
Escuta. 2002. Pág.18.
8
Orientamo-nos, em parte, pela importante contribuição de Gilles Deleuze em sua análise da filosofia de
Espinosa. Ver em: DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia Prática. Editora Escuta. 2002.
9
Idem. Pag. 31.
religião, o temor ao qual se quer acorrentá-lo; de forma que eles
combatem por sua servidão como se fosse sua salvação 10”.

No prefácio do Tratado Teológico-Político, Espinosa atribui à contingência do


mundo como produtora da necessidade da crença. A superstição vigora no ambiente
onde os males e a expectativa de bens futuros faz o homem comum, ignorante das
causas e suscetível às paixões, buscar na religião a matização do devir. Para aplacar a
dúvida e o medo do fatalismo das contingências, refugia-se em devaneios ensandecidos
de crenças abstrusas cuja sustentação prende-se numa perspectiva de negar a
positividade da vida. Na religião revelada os fenômenos são desígnios de deus
traduzidos pelos profetas, e cabem a estes garantir sob a tutela de uma causa
transcendente a inteligibilidade deste mundo, e por efeito, a estabilidade tão requerida
do vulgo. Não obstante, como aponta Marilena Chauí11, a superstição não garante o
apaziguamento das forças do real, e nas religiões reveladas faz-se uso da razão para
acalmar o devir, ou seja, institui-se a teologia como se não houvesse contradição no
convívio da razão natural com a luz divina. Busca-se a certeza das proposições lógicas
na confirmação racional dos dogmas irrefletidos a fim de converter os ímpios das
verdades transcendentes da religião12. Como fruto da imaginação, as crenças religiosas
não devem sem julgadas no tribunal da epistemologia na diferenciação do certo e do
errado. Uma vez que a função da imaginação não é o conhecimento, a sua ordem,
portanto, não é do verdadeiro e do falso. Não podemos, então, conforme Espinosa,
instrumentalizarmos a razão com um fim que ultrapasse os seus limites, ou seja, de
comprovar ideias que não são da ordem do entendimento, embora esta ordem possa ser
refletida numa teoria imaginativa da contingência13 para fins práticos.

“Ainda que as ideias da imaginação nunca derivem da atividade do


entendimento, dado resultarem do encontro acidentais entre os
corpos, há um certo tipo de imaginação através do qual o homem
tenta organizar essa contingência em função do que lhe é útil. No
fundo é sempre o temor ou a esperança, quer dizer, a situação real
do ser humano perante os outros seres, o que se traduz na
imaginação. Todavia, porque é destinada a preservação do ser, esta

10
Idem.
11
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. Ed. Companhia das Letras. 2003.
12
A elaboração do argumento ontológico de Santo Anselmo no século XI que propôs a prova racional da
existência de deus, por exemplo, segue justamente este propósito.
13
CHAUÍ, Op. Cit. Pag. 9.
tradução pode revestir a forma de um projeto e modular-se numa
sistema de representações coerente, exatamente como acontece no
entendimento. Daí ser possível aplicar a ilusão teológica o mesmo
método que se segue na ciência, prolongando assim a ciência do
ser numa espécie de ciência de ficção14”.

A teologia, portanto, não se inscreve no quadro cognitivo da distinção racional


do verdadeiro e do falso, como já mencionado, pois é oriunda de devaneios que insistem
na sistematização fantástica do mundo. A supressão da ilusão teológica, como
requer Espinosa, não extingue a própria teologia. O filósofo, por conseguinte, ao
empreender um método de análise da bíblia, não pretende refutar ou comprovar os
enunciados dos profetas, estes imbuídos de uma imaginação vivaz. Refere-se
unicamente às consequências práticas da apropriação teológica dos ditos proféticos no
terreno político, e empenha-se em restituir um sentido “originário” através de um modo
de interpretação imanente no qual a liberdade de pensamento se impõe enquanto
condição da efetivação dos universais das escrituras: O amor a deus e a si mesmo.
Destarte, Espinosa persegue a justificação para o livre pensar untando tal liberdade aos
fins requeridos pela religião e pela política que são a garantia da paz social e da
piedade15, ameaçados justamente pela a apropriação indevida da bíblia pelos teólogos, e
pela interdição a autodeterminação do pensamento. Propõe, assim, a desarraigamento da
política da teologia.

“A teologia e a filosofia são reinos separados: a última é verdade e


sabedoria, a primeira a piedade e a obediência. Disso resulta que a
aplicação da teologia às questões políticas tem como consequência
desenvolver o espírito de submissão em detrimento do espírito de
liberdade16”.

Uma vez explicitado o empenho de Espinosa em separar o joio do trigo num


esforço extraordinário de secularização do pensamento e do poder em pleno século
XVII, deparemo-nos com seu método de interpretação da bíblia num contexto histórico
de radicalização da dúvida cética. A suspensão dos juízos não recai sobre os enunciados
dos profetas, mas sobre a interpretação particularista dos teólogos a coagir o livre

14
Diogo P. Aurélio. “Introdução”. In: Baruch de Espinosa. Tratado teológico-político. Ed. Martins Fontes.
Pag. XCII.
15
Idem. Pag. 8.
16
CHÂTELET, François (org.). História das Ideias Políticas. Editora Zahar. 1985. Pág. 52.
pensar. Com Espinosa, chegamos ao ponto confluente das tendências de historicização
das relações constitutivas do real, percebidas desde o Renascimento. Emancipando o
devir histórico das cadeias metafísicas as quais o encerravam no interior de uma lógica
biunívoca, condenatória do movimento, a ontologia espinosista rompe o liame que
derivava o mundo de uma causa transcendental. A afirmação plena do monismo
substancial provedora dos modos finitos, suturando os efeitos a sua causa imanente,
estará presente na elaboração da exegese bíblica através de técnicas interpretativas de
extração do sentido do texto circunscrito a ele mesmo. O recurso à luz divina assim
como à luz natural da razão, mobilizados pelos teólogos, não prestam o serviço de
anunciar o sentido imanente do texto. Tais luzes buscavam a veracidade dos enunciados
dos profetas movidos por paixões reativas e preconceitos infindos 17, recusados de saída
por Espinosa. No Tratado Teológico-Político, propõe a aplicação de um método
histórico análogo ao more geométrico proposto à natureza.

“(...) O método de interpretar a escritura não difere em nada do


método de interpretar a natureza; concorda até inteiramente com
ele. Na realidade, assim como o método para interpretar a natureza
consiste essencialmente em descrever a história da mesma natureza
e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas
naturais, também para interpretar a escritura é necessário elaborar a
sua história autêntica e, depois, com base em dados e princípios
certos, deduzir daí como legítima consequência o pensamento de
seus autores18”.

O filósofo holandês anuncia a via reta para interpretar a escritura, a mesma


imposta para o mundo fenomênico o qual retira do modo de produção dos entes as leis
que explicam a sua essência. Na expressividade de seus modos finitos, assentados numa
totalidade que lhes conferem consistência ontológica, deduzem-se os particulares do
universal. Na perseguição dos universais contidos nos ensinamentos dos profetas19
perseguem-se os desdobramentos lógicos necessários a fim de explicitar o sentido
imanente à própria bíblia, ou seja, os ensinamentos não derivativos dos humores dos
sacerdotes, e sim aqueles conclusivos após a aplicação da exegese cuja validade é
perene.

17
ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Ed. Martins Fontes, 2003. Pág. 115.
18
Idem. Pág. 116.
19
Idem. Pág. 120.
(...) A escritura não dá definições das coisas de que fala, da mesma
forma que a natureza também as não dá. Por isso, tal como temos
de concluir as definições das coisas naturais a partir de diversas
ações da natureza, assim também é necessário extraí-las das
diversas narrações que a escritura apresenta de cada fato. Donde, a
regra universal a seguir na sua interpretação é a de não lhe atribuir
outros ensinamentos além dos que tenhamos claramente concluído
pela sua história20”.

Tendo como axioma “O conhecimento dos livros da bíblia tem de extrair-se todo ele
unicamente dos livros da bíblia21”, Espinosa mobilizará técnicas de interpretação para
retirar os ensinamentos universais do devir histórico do texto. A primeira delas é a
filologia, ou seja, o estudo da língua em que os autores escreveram examinando todos os
sentidos que cada frase pode ter. O estudo da língua hebraica torna-se condição sine qua
non para a exegese bíblica assim como o procedimento comparativo de opiniões acerca
do mesmo assunto no esforço de reduzir as ambiguidades e as contradições. É
necessário ainda descrever o contexto histórico da produção de todos os livros
enfatizando a vida, os costumes, o estudo de cada um dos autores em referência a época
que viveu, e a língua que escrevia. Por fim, o entendimento do destinatário dos livros, e
do seu próprio destino histórico é essencial para destacar os ensinamentos eternos
daqueles válidos para um determinado grupo num tempo específico22. Eis as técnicas
enumeradas na busca do sentido imanente, ou seja, dos ensinamentos universais
purificados das mãos sacrílegas dos homens que adulteram ao seu bel prazer à escritura
sagrada23. O trecho abaixo revela a importância da historicização da leitura.

“Quando lemos um livro em que vêm coisas inacreditáveis ou


incompreensíveis, ou um livro que está escrito em termos
extremamente obscuros, se não sabemos que é seu autor, em que
época e em que ocasião foi escrito, debalde tentaremos saber ao
certo o seu verdadeiro sentido24”.

Cabe ressaltar que o procedimento analítico de extração do sentido universal em


consideração ao processo temporal de produção do próprio documento encontra-se,

20
Idem. Pág. 117.
21
Idem. Pág. 119.
22
Idem. Pág. 120.
23
Idem. Pág. 115.
24
Idem. Pág. 129.
segundo Espinosa, limitado pelas razões que escapam a natureza do próprio método. É
pela diligência dos homens, que não foram capazes de conduzir o livre exame através
das técnicas enunciadas, que os limites tornam-se evidenciados impossibilitando, assim,
a explicitação do verdadeiro significado das palavras sagradas. Espinosa, sob influência
de Descartes, afirma que todos os homens, que querem se ver livre dos preconceitos,
podem encontrar o sentido da escritura contanto que utilizem com clareza o método
correto de interpretação fiando-se apenas em sua luz natural, negando-se a recorrer a
argumentos externos de origem transcendental25. O bom senso é da ordem humana,
umas das coisas mais bem distribuídas pela natureza, e se os homens não pensam de
forma clara e distinta é tão somente responsabilidade de seus próprios vícios, como
afirmara Descartes no Discurso do Método26.

Operando a partir do estudo da língua hebraica e sua historicidade, da história


daqueles que escreveram e selecionaram os textos bíblicos, e de sua destinação
temporal, Espinosa, em manejo maestro do método que escolhera, imputa um processo
de dessacralização da palavra sagrada no interior da religião assim como fizera com a
natureza. Sem muito alarde, evidente, para não despertar a fúria daqueles que denuncia.
Inventa uma arte de escrever mostrando-se nas dobras do escrito o não dito num jogo de
clarificação e ocultação expresso em níveis de leituras plurais 27. Podemos, talvez,
forçosamente inscrever o filósofo dentro da verve satírica do gênero literário do
pseudos tão comum aos humanistas modernos. Talvez, pela contundência do Prefácio do
Tratado, e pela recepção raivosa expressa na má compreensão de seus contemporâneos,
que o acusara de ateísmo, não exista intenção alguma de “disfarce” mencionado por
Diogo Pires Aurélio28. A despeito desta controvérsia, o que nos parece evidente é que o
método elaborado está ancorado na perspectiva ontológica monista descrita na Ética.
Concordamos aqui com a tese de Antonio Negri 29 que aponta a dimensão “metafísica”
do Tratado Teológico-Político não o limitando a um simples manual metodológico de
leitura laica da bíblia. O laicismo do filósofo não está simplesmente na ordem

25
Idem. Pág.127.
26
DESCARTES, René. O discurso do método. In_ Os Pensadores. Editora Nova Cultural, 2004. Pág. 35.
27
Diogo P. Aurélio. Op. Cit. Pag. XXIV e XXV.
28
Idem.
29
Cabe ressaltar que a tese indicada está parcialmente exposta no texto “E Deus estava no mundo” de
Diogo Pires Aurélio. Fica aqui o desafio futuro de uma leitura mais pormenorizada dos trabalhos de
Antonio Negri acerca de Espinosa, sobretudo, do clássico “Anomalia Selvagem” para o aprofundamento
do problema. Ver em Diogo P. Aurélio. “Introdução”. In: Baruch de Espinosa. Tratado teológico-político.
Ed. Martins Fontes. Pág. XXI.
epistemológica, mas, sobretudo é a expressão ontológica de sua teoria da natureza a
qual se inscreve transversalmente em seu tratado.

A contribuição de Espinosa na temporalização das relações constitutivas do real


num processo radical de historicização expresso nas abordagens dos vários aspectos da
realidade (ontologia, ética, epistemologia, política, etc.) fez-se presente na constituição
do pensamento filosófico posterior, não obstante o juízo negativo atribuído a sua
filosofia. Ultrajado em vida e em morte, o “homem bêbado de deus 30”, segundo o poeta
romântico Novalis, nos brindou com a autonomia afirmadora do devir, e mesmo Hegel
em sua Filosofia da História reconhecera a potência criadora de sua obra. Dizia, “Para
ser filósofo, é preciso, primeiro, ser espinosista 31”. Nietzsche – espinosista – afirmara,
em denúncia a filosofia dogmática, que “a falta de sentido histórico é o defeito
hereditário de todos os filósofos32”. Baruch de Espinosa não sofrera deste mal, e legou a
posteridade um modo histórico no trato da vida.

30
DURANT, Will. A História da Filosofia. Editora Nova Cultural. 2000. Pág. 195.
31
Idem.
32
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Ed. Companhia de Bolso. 2000. Pág. 16.
BIBLIOGRAFIA:

ESPINOSA, Baruch de. Ética. In:_ Os Pensadores. Editora Abril Cultural, 1973.

___________________. Tratado Teológico-Político. Editora Martins Fontes, 2003

DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia Prática. Editora Escuta, 2002.

DESCARTES, René. O discurso do método. In_ Os Pensadores. Editora Nova Cultural,


2004.

DURANT, Will. A História da Filosofia. Editora Nova Cultural, 2000.

CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. Editora Companhia das Letras, 2003.

CHÂTELET, François (org.). História das Ideias Políticas. Editora Zahar, 1985.

NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Edições 70.

____________________. Humano, demasiado humano. Editora. Companhia de Bolso,


2000.

Os Pensadores: Os Pré Socráticos. Editora Abril, 2000

VIERA, Maurício. Marx com Espinosa: Em busca de uma teoria da emergência. In:__
Crítica Marxista. Nº 22, 2006.

Você também pode gostar