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FOCO NARRATIVO NAS ADAPTAÇÕES

DE FRANKENSTEIN PARA OS QUADRINHOS

Felipe Lima Rodrigues


Ricardo Jorge de Lucena Lucas

Universidade Federal do Ceará (UFC)


Fortaleza - Brasil

RESUMO

A análise do foco narrativo nas adaptações de Frankenstein (1818), de Mary Shelley, para
as Histórias em Quadrinhos se apresenta como oportunidade singular de estudo desse
aspecto nas HQ. A obra literária adota o gênero dos romances epistolares, isto é, contado a
partir de cartas do narrador-protagonista para um personagem que assume a postura do
leitor. Nesse contexto, desenvolve também anacronismos, mudanças na ordem narrativa
coerentes com o ritmo e o desenvolvimento da trama no texto escrito. Estes recursos
narrativos são elaborados de diferentes formas nas adaptações para os quadrinhos, com
modificações, alterações, adições e exclusões. Além disso, as histórias em quadrinhos
contam não apenas com a figura do narrador, presente na literatura, mas também do
mostrador – aquela entidade que escolhe quais imagens serão enquadradas e apresentadas
ao leitor. A observação desses aspectos e da forma como eles se manifestam em diferentes
obras que têm em comum sua fonte, o livro, se faz relevante para o aprofundamento da
compreensão das capacidades narrativas das histórias em quadrinhos, suas peculiaridades e
limites. O fenômeno é abordado seguindo o pensamento de Linda Hutcheon, apresentado
em seu livro Uma Teoria da Adaptação (2011), que observa a adaptação como tradução
intersemiótica e mecanismo de evolução e permanência da narrativa na cultura. As análises
narrativas são conduzidas de acordo com a metodologia apresentada por Luiz Gonzaga
Motta em Análise Crítica da Narrativa (2013), que propõe técnicas de abordagem em
diferentes planos: do discurso, da história e da metanarrativa. Além disso, são utilizados
conceitos apresentados por Thierry Groensteen em O Sistema dos Quadrinhos (2015), que
aponta como indissociáveis as operações de condução da narrativa e gerenciamento do
espaço: o layout. Tais abordagens visam lançar luz ao fenômeno da adaptação, cada vez
mais presente em nossa cultura, sob a luz da análise narrativa.

Palavras-chave: Frankenstein; Histórias em Quadrinhos; Adaptação.

1. NARRATIVAS ENCAIXADAS EM FRANKENSTEIN


Frankenstein, de Mary Shelley, é uma obra literária singular. Publicado
anonimamente em 1818 e revisado pela própria autora, já assinado, em 1931, o livro
apresenta um relato fantástico que reúne elementos da ciência daquele século, mitologia e
horror gótico que chocou a sociedade da época, ao mesmo tempo em que virou referência
imediata na cultura e se faz presente, desde então, no imaginário popular.
O romance gótico conta a história de Robert Walton, explorador que viaja em uma
expedição científica ao pólo norte, a fim de pesquisar a força magnética da Terra. Sua busca
incessante pelo conhecimento arrasta seus companheiros para a perdição no ártico e o
motim é iminente. Nesse cenário, a tripulação resgata o moribundo Victor Frankenstein, à
beira da morte naquele ambiente hostil, um cientista que narra sua vida e seus conflitos com
um monstro que criara em seus experimentos. No relato, ele conta que, perseguido pela
criatura, teve parentes, amigos e até sua esposa mortos um após o outro pelo ser maligno, a
fim de lhe causar desespero e miséria. Assim, Victor jura vingança e persegue o monstro,
que o atrai para a morte no círculo polar ártico, local onde fora resgatado por Walton e seus
homens. A história é contada a partir de cartas do capitão à sua irmã, recurso que transmite
o relato do cientista ao leitor.
Frankenstein é composto por narrativas encaixadas, com uma história dentro de
outra história, como os contos de Scheherazade em As Mil e Uma Noites, segundo o
conceito de Yves Reuter. “Esse mecanismo é de fato muito freqüente e pode assumir
diversas formas. Pode ser pontual (uma personagem encontra um manuscrito e o lê; uma
personagem conta uma história) ou generalizado, como nas Mil e uma noites, no
Decameron ou no Heptamemon, de Marguerite de Navarre”. (REUTER, 2002, p. 85)
Para Reuter, esse recurso narrativo pode preencher funções diferentes, tais como
servir de matriz para geração de múltiplas histórias, criar digressão, revelar informações
fundamentais para a trama ou eliminar fronteiras entre o real e o imaginário. Isso ocorre,
por exemplo, em Drácula, de Bram Stocker, que é composto por diversas peças textuais,
como cartas, páginas de diário, notícias de jornal e até a transcrição de uma gravação
audiofônica.
Em Frankenstein, temos três níveis narrativos: as cartas de Walton para sua irmã; a
história contada por Frankenstein (núcleo central da história); e os diversos relatos contidos
na biografia do cientista, entre eles o do monstro. Os demais são cartas da noiva do cientista
e de seu pai, que revelam fatos que Victor não pôde presenciar, já que seu papel de narrador
em primeira pessoa só permite que ele narre o que presencia ou toma conhecimento. Os
capítulos 11 a 16, entretanto, são narrador pela própria criatura, que transmite para seu
criador tudo o que se passara desde que se separaram, na noite de sua criação.
O diagrama a seguir demonstra como os níveis narrativos, e seus respectivos
narradores, se alternam ao longo da trama de Frankenstein:

Capítulos Capítulos Capítulos Níveis


Cartas Cartas
1 a 10 11 a 16 17 a 24 Narrativos
Narrador → Walton Walton ← 1o
Narrador → Victor Victor ← 2o
Narrador → Monstro ← 3o

FIGURA 1 – Narrativas encaixadas em Frankenstein

Susan Tyler Hitchcock, em seu livro Frankenstein: as muitas faces de um monstro


(2010), descreve este romance como uma boneca russa, em que várias réplicas se encaixam
uma dentro da outra:
Ficamos sabendo da história vivida pelo monstro quando ele o narra a
Frankenstein na geleira; sabemos da história vivida por Frankenstein quando ele a
conta a outro personagem, Robert Walton, um marinheiro do ártico, cujas cartas à
irmã emolduram o romance na estrutura epistolar exemplificada em Pamela, de
Richardson, e outros romances da época. (HITCHCOCK, 2010, p. 75)

A pesquisadora observa que Shelley compôs sua história a partir do que chamou de
um protoromance, hoje perdido, mas que descreveria a cena em que a criatura ganha vida.
Em volta desse momento central da obra, são desenvolvidas as demais narrativas, a
envolvendo e dando corpo ao romance. “Partindo da cena da criação, ela projetou o texto de
dentro para fora, imaginando uma trama que levasse até aquele ponto, o envolvesse e
fluísse além da visão do sonho que a aterrorizava” (HITCHCOCK, 2010, p. 47).
O romance é iniciado com quatro cartas de Walton a sua irmã, nas quais ele descreve
os desafios de sua empreitada, seguidas pelos 24 capítulos que apresentam o relato de
Victor. A história é desenvolvida em primeira pessoa, tendo o cientista como narrador, à
exceção dos capítulos 11 ao 16, no qual o próprio monstro assume esse papel, e nas cartas
de Walton, nas quais ele conduz a narrativa. No desfecho, o capitão assume a história por
meio de suas cartas, relatando a morte de Frankenstein, sua decisão de abandonar sua busca
pelo Pólo Norte e o encontro final com o monstro criado por Victor.
Dessa forma, Frankenstein é também uma narrativa circular, na qual a história inicia
em um momento determinado no espaço e no tempo (no ártico, naquele instante no
passado) e retorna àquele mesmo ponto para sua conclusão. Os relatos de Victor e do
monstro são contados em analepse, ou anacronia por retrospecção, que interrompe o fluxo
narrativo presente para retomar fatos que ocorreram no passado. (REUTER, 2002, p. 95)
Tal estrutura narrativa implica em outros aspectos da história contada por Mary
Shelley. Os relatos encaixados de Walton, Victor e da criatura são, cada um, narrados em
primeira pessoa pelos próprios personagens. No conceito de Reuter, tratam-se de narradores
homodiegéticos, isto é, inseridos na história, com perspectiva passando pelo narrador. Essa
instância narrativa é caracterizada pelo narrador que não é onisciente, embora ele conte a
história no pretérito, já tendo conhecimento de seu desfecho. Dessa forma, ele é capaz de
antecipar fatos que ainda não se desenrolaram no fluxo narrativo, além de traçar avaliações
e expressar conclusões sobre os acontecimentos contados. Por outro lado, esses narratores
têm visão limitada dos acontecimentos, comprometidos por sua perspectiva, sua forma de
compreender os eventos e como os fatos chegam a ele, seja por testemunho, seja por
relatos. (REUTER, 2002, p. 81)
Essa instância narrativa não nos permite saber com certeza o que se passa (e que
se passou) na cabeça de outras personagens e restringe as mudanças de lugares ao
trajeto de vida da personagem que narra. Essa combinação pode às vezes tornar-se
poliscópica, quando, por exemplo, cada um por sua vez, um homem e uma
mulher contam a história de sua vida de casados. Ela traz o interesse psicológico
de levar o leitor a defender o ponto de vista de uma personagem e favorecer assim
a identificação (ou a rejeição radical se essa personagem é totalmente contrária
aos sentimentos e aos valores do leitor). (REUTER, 2002, p. 82-82)

No livro, essa perspectiva fica evidente na impossibilidade do autor de relatar fatos


que o narrador em exercício não presencia. O assassinato do jovem William Frankenstein,
por exemplo, é apresentado ao leitor em princípio por meio de carta que Victor recebe de
Elizabeth. O mesmo evento é, depois, narrado de forma diferente pelo monstro, autor do
crime. Com efeito, a criatura assume a narrativa entre os capítulos 11 e 16 justamente para
apresentar sua história, algo que Victor é incapaz de fazer por não ter presenciado esses
eventos e por ser incapaz de transmitir ao leitor as sensações e pensamentos do monstro.
Corrêa (2006) observa que a estrutura narrativa de Frankenstein favorece a
exposição do ponto de vista de cada um dos personagens principais. Para a pesquisadora,
esse recurso permite que o leitor alterne sua simpatia entre o drama de Victor e o sofrimento
do monstro.
Ao mesmo tempo que amplia o distanciamento, esse sistema, contudo, deixa claro
o fato de que cada narrador tem seu próprio ponto de vista com relação aos fatos,
não necessariamente compactuando com os outros narradores. Fica mais simples
entender tal situação se tomarmos como exemplos as narrativas de Victor e do
monstro – Victor, mesmo ciente de seu grau de responsabilidade diante dos
acontecimentos, luta por vingança; ao mesmo tempo que pretende eliminar o mal,
aniquilando o monstro e o monstro busca pela vingança e pelo reconhecimento de
seu criador. Tal paralelo deixa o leitor ora simpatizante com os atos de Victor ora
compadecido com o sofrimento do monstro. Tal mudança de perspectiva somente
seria possível com esse esquema de narrativas. (CORRÊA, 2006, p. 61-62)

2. FRANKENSTEIN EM QUADRINHOS
É oportuno observar como a complexidade da estrutura narrativa de Frankenstein
tem sido reproduzida em suas adaptações em outras linguagens. Suas versões para teatro e
cinema, em muitos casos, alteram a instância narrativa pela exclusão da figura do narrador
homodiegético e desmontam sua estrutura de narrativas encaixadas e circular. O clássico
filme de Whale, de 1931, por exemplo, inicia sua história com o Dr. Frankenstein já
reunindo partes de corpos para montar sua criatura macabra, interpretada por Boris Karloff.
Além disso, o filme exclui os níveis narrativos, personagens como o capitão Walton e até
modifica o nome e o destino de personagens importantes, como o cientista, que passa a se
chamar Henry Frankenstein.
Infelizmente, recursos literários como as narrativas concêntricas ou os muitos
retrospectos do romance de Mary Shelley são extremamente difíceis de se
adaptarem ao cinema. Os roteiristas, assim, foram forçados a criar por sua conta,
usando ideias fragmentárias tiradas da concepção original. A estrutura básica do
homem fazendo papel de Deus e, para seu arrependimento posterior, criando um
homem (ou criatura) à sua própria semelhança, formou o pano de fundo das
produções filmadas, mas a motivação humanística engendrada no romance
original deu lugar a aberrações verdadeiramente monstruosas. O gentil médico-
cientista degenerou lentamente até o louco, e sua criatura meio intelectualizada,
articulada e trabalhada à mão foi aos poucos substituída por um grotesco e
desprezível monstro. (FLORESCU, 1998, p. 165)
Nos quadrinhos, as adaptações variam em fidelidade na reprodução das estruturas
narrativas do livro ao longo dos anos. Desde Frankenstein publicado em 1945 pela Classics
Illustrated até as edições mais recentes desenvolvidas como material paradidático para
jovens estudantes, é possível observar um aumento da presença da complexidade da trama
do livro nessas adaptações.
Para a edição 26 da Classics Illustrated, a editora Ruth Roche transformou a obra de
Mary Shelley em uma narrativa linear de 250 quadros ilustrada por Robert Hayward Webb
e Ann Brewster. Com o semblante semelhante ao de Boris Karloff, incluindo os eletrodos
utilizados para conferir-lhe vida, o monstro da Classics Illustrated diferenciava por ser
musculoso e andar descalço.
Esta adaptação apresenta, em princípio, um narrador heterodiegético onisciente, ao
contrário do livro. Ele fala ao leitor por meio de recordatórios. Além disso, o roteiro exclui
o primeiro nível narrativo – o capitão Walton só surge ao final da história e não assume a
postura de narrador. Somente quando narra a sua história a Victor é que o monstro assume o
papel de narrador em primeira pessoa.
Neste momento, sua fala se converte em recordatórios com bordas de nuvem e os
requadros também sofrem essa variação, indicando ao leitor que aqueles eventos consistem
em uma anacronia por retrospecção (figura 2). Essa narrativa encaixada se estende por
cinco páginas, nas quais o monstro conta os fatos apresentados nos requadros
correspondentes. Ao final do trecho, a fala do monstro volta a ser o balão com apêndice e o
requadro volta a ter suas linhas regulares. É o fim da anacronia.
Figura 2 – Frankenstein de Roche
Outras adaptações, como Frankenstein de Viney (2009), de Sierra (2009) e de
Wagner (2012), utilizam mudanças visuais em recordatórios para indicar a transição de
narrador e, também, de nível narrativo. Em Sierra e Viney (figura 3), o narrador da história
no primeiro nível, Capitão Walton, tem recordatórios de linhas onduladas e irregulares,
simulando pergaminho ou papel, uma vez que ele narra por meio de cartas. Já Victor tem
sua narrativa apresentada em retângulos regulares, de fundo branco – ele é o narrador
principal da história. Já o monstro, no terceiro nível narrativo, tem seu recordatório
desenhado de forma rústica, representando seu caráter distorcido e horrendo. Essa mesma
forma é reproduzida em seus balões de fala, criando um padrão visual para os sons emitidos
pelo monstro, seja por sua voz real ou em off.
Em Frankenstein de Wagner (2012), a diferenciação de narradores se dá por meio de
cores nos recordatórios. Walton tem suas caixas de texto brancas, enquanto as de Victor
recebem um discreto degradê vertical do branco para o azul, além do traço da borda azul.
Os do monstro são semelhantes aos de Victor, mas com a cor vermelha no degradê e na
borda – o mesmo tratamento dado aos balões de fala da criatura, recurso semelhante ao
utilizado nas adaptações de Viney e Sierra.
Wagner vai além e utiliza o tom sépia para o trecho narrado pelo monstro. Nas três
páginas em que a criatura assume a postura de narrador, os requadros recebem bordas
negras grossas e rústicas, enquanto a colorização é predominantemente de tonalidade sépia,
indicando que a história ali se passa em outro nível narrativo, em anacronia por
retrospecção.
Outras adaptações apresentam modificações na estrutura da história, tais como
supressão de níveis narrativos em Frankenstein de Roche (1945), de Ito (2018) e de Mousse
(2009). A primeira, como já apresentado, transforma a história em uma narrativa linear e
suprime a figura de Walton como narrador. Já o mangá de Junji Ito mantém a estrutura
circular da narrativa, mas sem a voz narrativa de Walton em recordatório. Assim,
permanecem os três níveis narrativos, sendo que no primeiro o narrador é silenciado.
Figura 3 – Frankenstein de Viney
No mangá, quando o monstro assume o papel de narrador, sua fala é apresentada por
meio de balões sem apêndice, recurso frequente nos quadrinhos japoneses para indicar
pensamento ou falas de personagens que não estão presentes no enquadramento. Trata-se de
uma alternativa ao recordatório formal, que nesta adaptação é reservada exclusivamente à
narração de Victor Frankenstein.
Frankenstein de Marion Mousse (2009) mantém os dois primeiros níveis narrativos:
Walton narra sua jornada e, dentro dessa narrativa, Victor Frankenstein tece sua biografia.
Ocorre que, nesta adaptação, o monstro não chega a assumir o papel de narrador. É o
próprio Victor que conta a Walton o que se passou com o monstro: “Só depois fiquei
sabendo o que aconteceu com minha criação. Vestida com meu melhor casado, ela
conseguiu saiur da cidade, aproveitando a tempestade, para se internar na imensa floresta
que havia em volta de Ingolstadt” (Mousse, 2002, p. 55).

3. NARRADOR E PERSPECTIVA
Destacam-se dois aspectos referentes à instância narrativa nas adaptações de
Frankenstein em quadrinhos. O primeiro diz respeito à indicação visual da mudança de
nível narrativo e de personagem narrador. Enquanto no livro isso se dá de forma instantânea
na mudança de capítulo, justificada na forma de um relato que é sequência de uma fala
anterior, nas histórias em quadrinhos há a mudança não apenas do texto verbal, mas das
características dos elementos gráficos vinculados àquela sequência narrativa.
Se no livro cabe apenas ao narrador evidenciar essa mudança, por meio da utilização
de tempos verbais e outros elementos textuais, nos quadrinhos isso pode ser indicado ao
leitor por meio do narrador (em recordatórios, por exemplo) ou do mostrador (em alterações
nos elementos visuais, tais como linhas, cores etc.). Conforme apresentado nas adaptações
de Frankenstein, isso ocorre de forma articulada nas narrativas. Mas quem define essas
mudanças é o narrador ou o mostrador?
Lucas (2013), observa que o narrador, elemento obrigatório em algumas linguagens
narrativas, é uma figura dispensável nas histórias em quadrinhos.
Uma narrativa, ficcional ou factual, deve mobilizar um enunciador (narrador)
responsável por sua materialização semiótica. Para nós, a noção de narrador só se
aplica aos quadrinhos na forma opcional de um personagem, presente em
recordatórios (se for heterodiegético) ou através de balões de fala ou recursos
similares (se homodiegético), e não como instância enunciativa necessária, pois
há obras sem narrador. Ou seja: o narrador é uma possibilidade diegética, não um
imperativo enunciativo. (LUCAS, 2013, p. 4)

Assim sendo, Lucas evoca a figura elaborada por Groensteen do artrólogo, uma
entidade narrativa que articula narrador, se presente, e mostrador, no sentido de produzir
enunciados. Para ele, tal conceito é pertinente visto que Groensteen sugere a articulação
enunciativa entre diferentes posturas do recitante e do mostrador. Da mesma forma, fica
evidente a distinção entre o responsável pela enunciação nos quadrinhos e a personagem
diegética que narra dentro de uma história.
Temos, portanto, nas adaptações de Frankenstein, narradores que se alternam
(Walton, Victor e o monstro), mostrador (que apresenta os elementos visuais que conduzem
a trama) e o artrólogo (que compõe todos os elementos presentes no sentido de produzir
enunciados, isto é, contar a história).
O segundo aspecto a se destacar nas adaptações de Frankenstein diz respeito à
perspectiva, isto é, ao ponto de vista do personagem que assume a história. O narrador
homodiegético com perspectiva passando pelo narrador possui, conforme já demonstrado,
visão e compreensão limitada dos eventos. Mesmo nos quadrinhos, o leitor costuma
acompanhá-lo ao longo de toda a história e a interpretação que esse personagem dá dos
fatos narrados levam em conta seus próprios sentimentos, seu ponto de vista e sua visão de
mundo. Dessa forma, não é raro que o público se identifique com tal personagem, mesmo
que ele possua valores diferentes.
Assim, quando Mary Shelley permite que Victor narre sua própria história, ela abre
espaço para que ele se defenda de seus crimes e justifique suas ações e omissões. Da mesma
forma, quando o monstro assume a postura de narrador, é sua vez de apresentar defesa.
Portanto, elevar um personagem ao patamar de narrador implica em dar-lhe voz, permitir
que interaja com o leitor e, talvez, trazê-lo para seu lado.
Figura 4 – Frankenstein de Mousse
Ocorre, entretanto, que nas adaptações de Roche (1945) e Ito (2018), Walton não
assume a função de narrador e em Frankenstein de Mousse (2009) é o próprio monstro que
deixa de ter voz, já que Victor relata os passos da criatura, fatos que somente em um
momento posterior ele tomara conhecimento. Embora a solução narrativa atenda ao
interesse do autor de intercalar os relatos, a consequência é que o monstro perde o direito de
contar a própria história e sua defesa é desenvolvida justamente por seu antagonista, seu
criador (figura 4).
A supressão de Walton como narrador também traz consequências. Shelley traça um
paralelo entre a história do navegador e a de Victor – ambos são cientistas vaidosos cuja
busca desenfreada pelo conhecimento arrasta a si mesmos e seus próximos à ruína e morte.
O relato de Victor é, portanto, para o capitão, uma lição que o faz abandonar sua obsessão e
retornar para seus entes queridos. Sem esse paralelo, Walton é transformado em um
personagem de valor reduzido e Frankenstein perde poder como ensinamento moral e se
aproxima das histórias de horror e violência sem profundidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente análise aborda, na classificação de Motta (2013), o plano da história.
Neste nível, ficam em evidência as estruturas narrativas, com destaque para as ações, a
intriga, as sequências de cada versão da história, bem como a distinção e hierarquização dos
personagens. Em estudos mais aprofundados, outros aspectos podem ser abordados, como
os modos narrativos (falas dos personagens, escolhas de perspectivas, funções do narrador),
as vozes narrativas (relação entre o narrador e a história que ele conta) e o tempo da
narração (momento, velocidade, frequência e ordem).
Esta análise comparativa demonstra, entretanto, a relevância da estrutura narrativa
na composição da história. Pequenos ajustes, adições e exclusões de elementos dessa
estrutura provocam efeitos significativos, modificando sua compreensão e gerando novos
significados.
Observa-se que a obra de Shelley apresenta um equilíbrio tênue entre os
personagens antagonistas, que disputam a simpatia do leitor. Conforme apresentado,
adaptações que suprimem níveis narrativos e excluem a participação de personagens como
narradores em primeira pessoa ferem esse equilíbrio, tornando Victor vítima das
circunstâncias e o monstro um vilão horrendo. De forma semelhante, aspectos visuais como
o semblante de personagens, enquadramentos, perspectivas das cenas e até a colorização
também podem humanizar a figura do monstro e atenuar sua culpa.
O estudo das obras evidencia ainda o potencial das histórias em quadrinhos em
reproduzir e reforçar recursos narrativos presentes em livros, tais como a mudança de foco e
de perspectiva, a presença simultânea de múltiplos narradores e a condução de anacronias.
A variedade de elementos gráficos apresenta um leque de ferramentas para os autores
adaptarem mesmo obras complexas como o romance gótico de Mary Shelley.

REFERÊNCIAS
CORRÊA, Lilian Cristina. O foco narrativo em Frankenstein. Revista Literatura,
Todas as Letras I, volume 8, n.1, p. 58-65, 2006.
FLORESCU, Radu. Em busca de Frankenstein: O monstro de Mary Shelley e seus
mitos. Trad. Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Mercuryo, 1998.
GROENSTEEN, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Nova Iguaçu, RJ: Marsupial Editora,
2015.
HITCHCOCK, Susan Tyler. Frankenstein: as muitas faces de um monstro. Tradução:
Henrique A. R. Monteiro. São Paulo: Larousse, 2010.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Editora UFSC, 2011.
LUCAS, Ricardo Jorge de Lucena. Narratologia e Hqs: mostrador ou artrólogo? Um
estudo a partir de adaptações literárias em quadrinhos. In: Anais Eletrônicos das I
Jornadas Internacionais de Quadrinhos. São Paulo: ECA/USP, 2013. Disponível em
http://www2.eca.usp.br/anais2ajornada/anais2asjornadas/anais/13 - ARTIGO - RICARDO JORGE
DE LUCENA LUCAS - HQ E LINGUAGEM.pdf
MACDONALD, Fiona. Frankenstein. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise Crítica da Narrativa. Brasília: Editora UNB, 2013.
MOUSSE, Marion. Frankenstein. São Paulo: Salamandra, 2009.
REUTER, Yves. Análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro:
DIFEL, 2002.
ROCHE, Ann Ruth. Frankenstein. In: Classic Comics. Nova Iorque: Gilberton
Publications. Disponível em http://www.comicscodes.com/2018/07/classics-illustrated-1-
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SIERRA, Sergio A. Frankenstein. São Paulo: Editora Arx, 2009.
VINEY, Brigit. Frankenstein: the ELT graphic novel. Londres: Cengage Learning, 2009.
WAGNER, Lloyd S. Frankenstein. São Paulo: Farol HQ, 2012.

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