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Capítulo I

Roma e os Bárbaros

O regime1 feudal constituiu-se na Europa quando despontava a Idade Média,


tanto nos territórios que durante a Antiguidade tinham sido incorporados ao Império
Romano, como nas regiões situadas fora das suas fronteiras. Nos países que tinham
estado sob o domínio de Roma até o século V, o feudalismo resultou da fusão de duas
formações socioeconômicas: o antigo regime esclavagista e o regime de comunidade
primitiva das tribos bárbaras que tinham invadido as possessões romanas. Quando se
deram as invasões bárbaras e se assistiu à queda do Império Romano, estas duas
formações atravessavam uma crise profunda e estavam em desagregação. A sua
interação criou as condições necessárias para que os povos da Europa passassem a um
novo regime social, o feudalismo. Quais foram as premissas deste regime no Império
Romano e entre os Bárbaros? Será conveniente analisa-las antes de abordarmos o estudo
do processo da sua formação.

1. A crise do esclavagismo no Baixo Império Romano

O Império Romano dos séculos III-V foi o teatro de uma crise profunda, que se
agravava constantemente. A produção mercantil periclitava2 e tinha-se operado um
retorno parcial à economia natural3. Algumas províncias emancipavam-se. A população
diminuia, principalmente nas cidades, que atravessavam um período de regressão. A
exploração e pauperização das massas populares, privadas de quaisquer direitos,
acentuaram-se em proporções nunca vistas e exacerbaram4 a luta de classes e a oposição
ao poder. Eram constantes as disputas internas entre as diversas categorias e camadas
intermédias da classe dominante. O Império já não conseguia proteger as suas fronteiras
contra as incursões dos Bárbaros, que se tinham tornado senhores de algumas
províncias, embora ainda virtualmente a soldo dos imperadores. O declínio da cultura
antiga e a impopularidade crescente da ideologia da sociedade esclavagista foram os
sintomas mais evidentes da decadência da vida espiritual do Império. A crise atingiu o
seu paroxismo5 na zona Ocidental do Império Romano (em virtude das condições
particulares que existiam na “pars orientalis”, ver cap. V).

Contradições da economia esclavagista. A origem desta crise foi a desagregação


do modo de produção esclavagista, provocada por contradições que lhe eram inerentes.
Ao longo de toda a história da sociedade esclavagista, os escravos nunca tinham estado

1
Sistema político pelo qual é regido um país.
2
Estar em perigo; correr perigo; perigar.
3
Chama-se economia natural aquela em que os produtos do trabalho se destinam a ser consumidos dentro
da mesma unidade que os produz. (Gatovski p. 30).
4
Tornar-se mais intenso ou grave. Fazer ficar ou ficar mais áspero, violento. Irritar-se.
5
O mais alto grau de uma sensação, de um sentimento.
interessados em fazer frutificar a economia dos seus donos e a sua exploração só era
rentável porque o custo do seu labor era muito baixo. A produção nunca podia
progredir. Os donos de escravos, em vez e estimularem a sua iniciativa, reprimiam-na,
temerosos de que, adquirindo personalidade, os escravos se tornassem menos dóceis.
Segundo Paládio, escritor romano do século IV, um escravo preguiçoso, lento e
estúpido, era sempre preferível a um escravo activo, enérgico e empreendedor, porque
estas qualidades o incitavam a praticar o mal ao passo que a preguiça é irmã da
bonomia. Os autores de tratados de agronomia, no entanto, não podiam passar em claro
o prejuízo que os escravos causavam à agricultura: “Abandonamos a agricultura às
sevícias do mais incapaz dos escravos como se a entregássemos ao carrasco...”
(columelo). O escravo era obrigado a executar todos os trabalhos que o dono resolvesse
dar-lhe; a organização da produção e as preocupações com o seu progresso eram
apanágio exclusivo dos donos, ou dos intendentes dos domínios. Manter uma apertada
vigilância sobre os escravos e coagi-los a trabalhar, constituíam grandes dificuldades
para os proprietários e entravavam o desenvolvimento econômico. As técnicas
agrícolas, de nível medíocre, faziam com que a pequena exploração se perpetuasse.
Qualquer que fosse o número de escravos, o seu trabalho conservava, em geral, um
caráter individual: a simples cooperação só era aplicada em certos trabalhos. Os
melhores resultados não eram obtidos nos grandes “latifundia”, onde era difícil
organizar a vigilância, mas sim nas propriedades médias. Em resumo, o regime de
exploração dos escravos impedia o progresso que consistiria em passar para a produção
individual, o que implicava a existência de um proprietário independente.

O desenvolvimento das forças produtivas na sociedade antiga era demasiado


lento. A agricultura, no Império Romano, praticamente não progrediu durante séculos.
A divisão do trabalho não era ainda praticada no artesanato onde predominava a simples
reprodução. Só na pequena exploração se notava um certo desenvolvimento das forças
produtivas, porque tinha deixado de se basear no trabalho escravo, passando a
predominar a atividade de proprietários independentes, camponeses ou artesãos.

O excedente de produção fornecido pelo trabalho escravo não era utilizado para
rentabilizar a produção, visto que a parte de leão era delapidada improdutivamente:
acumulação de tesouros, construção de igrejas, palácios ou circos. Os escravos, bem
como todas as camadas exploradas, mantinham os donos e o volumoso aparelho de
Estado, incluindo o exército e um sem número de funcionários, sem contar com um
número cada vez maior de cidadãos desclassificados e improdutivos (o
lumpenproletariado) que exigiam “pão e circo”. A sobrevivência da sociedade baseada
na escravatura dependia do agravamento constante da exploração, o que contribuía para
acentuar ao máximo as contradições que lhe eram inerentes.

As origens da escravatura. A escravatura, pela sua própria essência, era uma


forma de exploração que não podia criar condições favoráveis para a reprodução da
mão de obra no quadro de uma economia. O escravo não tinha família. No entanto, os
proprietários facilitavam a concubinagem. Pensavam eles que os escravos de nascença
eram mais dóceis do que os que já tinham vivido em liberdade. A exploração
desenfreada desgastava a capacidade de trabalho e provocava uma morte precoce. A
penúria de mão-de-obra, por estes motivos, era uma constante na sociedade
esclavagista. As grandes fontes de abastecimento de escravos eram as guerras, a
pirataria e a troca por outras mercadorias. O funcionamento da economia baseada na
mão de obra servil dependia, em grande parte, do equilíbrio de forças entre o Império
Romano e os Bárbaros que se aglutinavam nas fronteiras. O envolvimento bárbaro era
essencial, neste sentido, à actividade econômica da sociedade esclavagista que, sem
ele, não teria podido subsistir.

Esta particularidade do modo de produção esclavagista criava uma nova


contradição: com o objetivo de garantir o desenvolvimento da economia baseada no
trabalho escravo, o Império era obrigado a praticar uma política activa de conquistas,
submeter os povos vizinhos e alargar cada vez mais as suas fronteiras. Esta política de
agressão não podia ser permanentemente vitoriosa. A hipertrofia territorial tornava cada
vez mais difícil defender as fronteiras e manter em respeito os povos conquistados. O
Estado estava minado por dentro. As incursões dos Bárbaros sucediam-se umas às
outras. O exército romano “barbarizava-se”, pois ia buscar os efectivos a esses mesmos
invasores. O Baixo Império deixou de conseguir satisfazer, como outrora, as suas
necessidades em força do trabalho. As guerras contra os povos vizinhos já não
forneciam um número suficiente de prisioneiros. Eram cada vez mais evidentes as
desvantagens da escravatura tradicional, ao mesmo tempo que diminuía o número de
escravos. O regime de escravatura, em vias de desaparecimento, acabou por constituir
um entrava ao progresso das forças produtivas. Durante o Baixo Império assiste-se à
diminuição das áreas cultivadas; os domínios são votados ao abandono. A penúria de
mão de obra é flagrante. Os proprietários rurais vêem-se obrigados a recorrer, cada vez
mais, a novas formas de utilização da força de trabalho.

A pequena propriedade. Entretanto, a concorrência da grande unidade


econômica, não impedia que, no mundo antigo, existisse a pequena exploração
individual. Na agricultura e no artesanato, os homens livres eram numerosos. Além do
trabalho escravo, os grandes domínios utilizavam pequenos rendeiros, clientes,
devedores, que deviam obrigações aos magnates. A comunidade rural, nas províncias
ocidentais do Império Romano, não tinha a estabilidade que foi característica da parte
oriental (particularmente no Egipto ou na Ásia Menor). O fato é que, nas regiões onde a
romanização foi parcial, onde o clã não tinha desaparecido completamente quando se
deu a submissão ao domínio romano, as comunidades rurais livres subsistiam ainda
durante a época imperial. Ao lado de cidades romanas na Gália e na Bretanha, existiam
aldeias celtas com comunidade de terras. Esta comunidade subsistia igualmente em
Espanha, na Ilíria e na Trácia. Encontraram-se também vestígios na Alta Itália, no
próprio coração do Império.

Como consequência das relações baseadas na escravatura e da pressão directa


dos magnates, a propriedade comunitária e tribal ia-se desfazendo. A diferenciação
entre os membros das comunidades começava a dividi-los em proprietários abastados e
empobrecidos. O aumento dos encargos fiscais acabava por arruinar os pequenos
agricultores.

Como testemunha Salviano, os agricultores livres da Gália do século V,


desapossados de todos os seus bens pela opressão fiscal e pelos abusos dos
funcionários, tornavam-se escravos ou colonos. Era frequente os camponeses deixarem
de ser proprietários dos seus lotes, embora continuassem a cultivá-los como rendeiros,
na dependência de um grande proprietário, que se tornava seu “protector”, ou então
recebiam dele parcelas de terreno ficando abrigados a pagar uma renda. A posse das
terras assumiu formas extremamente variadas no Baixo Império. Havia agora uma
grande maleabilidade quanto à interpretação até aí muito rígida, das leis romanas
relativas à propriedade rural. Com efeito, essas leis já não se podiam aplicar
(principalmente nas províncias do Império) a relações agrárias que já não
correspondiam aos princípios romanos de indivisibilidade e inalienabilidade da
propriedade rural. Surge assim a noção de divisibilidade do direito de propriedade de
uma e mesma terra. Tiveram uma certa difusão algumas formas novas de usufruto das
terras: enfiteuse (arrendamento a longo prazo ou hereditário), o precário (concessão em
usufruto, revogável por decisão do concessionário), e o colonato. A grande propriedade
e a pequena exploração coexistiam. Gradualmente, foi-se verificando que a segunda era
a única forma de exploração racional.

Colonos e outras categorias sujeitas a imposto. Neste processo socioeconômico,


o papel preponderante coube ao colonato. Nas províncias orientais – Egipto e Ásia
Menor – os precursores dos colonos foram os “agricultores reais” da época helenística.
O colonato desenvolveu-se, nas províncias ocidentais, à custa dos antigos rendeiros
fixados à terra e dos camponeses que não conseguiam conservar a propriedade das suas
parcelas, caindo na dependência dos grandes proprietários. Muitos bárbaros receberam
também terras em regime de colonato. Simultaneamente, havia proprietários que
recompensavam os seus escravos com um certo bem (o pecúlio) e com parcelas de terra,
de modo a interessa-los mais na produção. No século IV, a venda de escravos sem terra
proibida. Os colonos e os escravos, adscritos à terra, deviam fornecer uma parte do
produto do seu trabalho aos proprietários, e, por vezes, corveias (nas províncias norte-
africanas).

A situação jurídica dos colonos era diferente da dos escravos. Mas estas
diferenças foram desaparecendo à medida que o colonato se propagava. No século IV,
já os colonos estavam adscritos à gleba em todo o Império e o governo romano tentava,
assim, atrasar o abandono da agricultura pelos produtores directos, e a diminuição das
receitas fiscais. Um édito de Constantino I, datado do ano 332, mandava entregar os
colonos fugitivos, aos seus proprietários, pô-los a ferros. O colonato tornou-se a
condição hereditária do cultivador. Embora formalmente diferenciados dos escravos
rurais (servi rustici), os colonos eram, na prática, escravos da terra (servi terrae). O
colono deixa de ter o direito de abandonar o domínio do seu senhor e fica praticamente
em poder deste. O proprietário fornecia-lhe frequentemente os utensílios para lavras a
terra, bem como as sementes, e, por consequência, era dono dos meios de produção.
Facilitando a extensão do colonato o Estado esclavagista privava legislativamente os
colonos de qualquer direito sobre as suas explorações. Como indica um rescrito dos
imperadores Arcádio e Honório (fim do século IV), todos os bens do colono, e ele
próprio, eram propriedade do senhor. O colono não podia alienar fosse o que fosse sem
o seu acordo. Os juristas romanos, que aplicavam aos colonos as normas do direito
esclavagista, acentuavam que, tal como o escravo, o colono não estava autorizado a
possuir nada, e que o produto do seu trabalho pertencia, de direito ao senhor.

Os colonos não tinham qualquer estímulo para fazer frutificar a terra, tanto mais
que a quase completa ausência de direitos cívicos lhes retirava qualquer garantia de
conservar a posse das suas parcelas e os seus instrumentos de trabalho. A isto deve
ainda acresncentar-se o jugo implacável que pesava sobre eles, aplicado pelos
proprietários e pelo Estado esclavagista, em concorrência um com o outro. Os primeiros
extorquiam-lhe uma grande parte dos resultados do seu trabalho sob a forma de
múltiplas rendas. O segundo esmagava-o com impostos e obrigava-o a corveias
públicas. O colonato formou-se numa sociedade onde as pressões extraeconômicas
reduziam infalivelmente qualquer trabalhador à categoria de escravo. O colono
distinguia-se do escravo pela forma de exploração a que estava sujeito, mas ainda não
era o camponês servo da Idade Média, que já possuía a sua parcela de terra e os seus
meios de produção; além disso, era membro de uma comunidade, o que não só
condicionava a sua actividade produtiva como lhe permitia resistir aos grandes
proprietários agrícolas. Por outro lado, ao contrário dos camponeses da Idade Média,
cujas relações com o senhor feudal se regiam principalmente pelo direito privado, os
colonos romanos dos séculos IV e V, eram fixados à terra pelo Estado.

Não foram mais do que os “antecessores dos servos da Idade Média”. O Estado
não se limitava a fixar os agricultores à terra; imobilizava os artesãos na sua profissão,
ligava os comerciantes às suas agremiações, e os curiais (membros das cúrias das
cidades) aos seus locais de domicílio. Os curiais eram proprietários rurais de
envergadura média, mas com muitos escravos; eram responsáveis pela cobrança de
impostos nas circunscrições, cujos centros eram as cidades ou os municípios. Não
tinham o direito de abandonar a cidade, sob pena de castigo. A partir de então, parte dos
rurais ficou arruinada, ou quase. Para escapar a esta alternativa, alguns preferiam o
exército, ou procuravam refúgio nos mosteiros; alguns chegavam mesmo a esconder-se
nas florestas ou em locais afastados e tornavam-se colonos ou escravos de grandes
proprietários. O aparelho administrativo, cujo elo principal era o município, ia-se
desmoronando. A independência dos grandes proprietários de terras aumentava
constantemente.

Desenvolvimento da economia natural. Predomínio dos magnatas. A opressão fiscal, o


declínio das ligações comerciais e, enfim, a crise financeira que caracterizam esta
época, provocam o despovoamento das cidades e a regressão da produção artesanal.
Esta desloca-se da cidade para o campo: nos grandes domínios, as pessoas, dependentes,
executavam todos os trabalhos agrícolas e fabricavam os produtos industriais
indispensáveis. Na Gália, Bretanha e África do Norte, bem como nos domínios
pertencentes à Igreja, que se alargaram a partir do século IV, os artesãos dependentes
eram obrigados a extrair e trabalhar os metais, a confeccionar tecidos. Era corrente
existirem, nas cidades, oficinas bastante amplas. A expansão dos grande domínios,
economicamente autônomos, era sinal do reforço da economia natural no Baixo
Império.

A autoridade privada dos magnates atingiu o máximo. Eram juízes, cobravam


impostos, tinham exércitos próprios e prisões. Gozavam de vários privilégios,
particularmente de prerrogativas fiscais. As casas de campo da alta nobreza eram
fortificadas. A lei fixava limites para as grandes propriedades, mas os proprietários
sabiam ladeá-la, e aproximavam-se de baldios situados em várias províncias.

A dissolução da sociedade esclavagista manifesta-se com o aparecimento de


uma hierarquia no seio da população livre, a qual se dividiu os “honestos” (honestiores)
e “humildes” (humiliores). As pessoas honestas eram os senadores, os cavaleiros, os
oficiais civis e militares; os humildes eram os colonos, os camponeses, os artesãos, uma
parte dos membros das cúrias (com excepção da camada superior), e o resto dos homens
livres. Todos se encontravam praticamente desprovidos de direitos jurídicos e muito
próximo dos escravos. Este processo reflectia a intensa desagregação da classe dos
esclavagistas, no seio da qual apenas os poderosos foram capazes de preservar a sua
supremacia, e mesmo de a consolidar. A expansão da grande propriedade rural esteve na
base das tendências separatistas da aristocracia de província, nada interessada em que se
mantivesse a unidade do Império.

O dominado. Partilha do Império. Os imperadores empreenderam a reanimação da vida


econômica e o seu ordenamento. Orientaram os seus esforços para o controle do
comércio, aplicação de taxas às mercadorias e salários e reforma monetária;
favoreceram também a revalorização das terras incultas, ligaram os artesãos e os
comerciantes às suas corporações, e os colonos aos domínios, tentaram proteger os
homens livres contra os notáveis, etc. Estas medidas não tiveram os efeitos desejados;
não bastavam para travar a dissolução da sociedade romana. A forma de governo
despótica (ou dominato), posta em vigor sob os reinados de Diocleciano e Constantino,
que devia tornar mais firme o regime esclavagista que se desfazia, baseava-se na
pilhagem de toda a população e esgotava os recursos econômicos e humanos dos países
que faziam parte do Império.

As modificações que se deram na base econômica do Império, e as tendências


separatistas de uma parte da classe dominante, evidenciaram a fraqueza de um Estado
heterogêneo. Os povos nele incorporados à força encontravam-se em diferentes estádios
da evolução econômica, social e cultural. A crise não foi uniforme nas províncias. Deu-
se um desmembramento temporário durante as convulsões do século III. Fazendo face à
realidade, Diocleciano dividiu o Império em quatro prefeituras. Em seguida,
Constantino transferiu a capital para o Oriente, para uma região mais rica e
desenvolvida. Fundou Constantinopla, no ano 330, no local de Bizâncio. Todas as
tentativas seguintes para restabelecer a unidade foram vãs. A partir de 395, o Ocidente e
o Oriente tinham cada um o seu imperador. No Império romano do Ocidente, o Estado
empobrecia, os domínios imperiais passavam para as mãos dos grandes proprietários
rurais. Alguns, segundo cálculos feitos por contemporâneos, tinham fortunas que iam
até um quarenta avos do rendimento global de todo o Estado. Os imperadores do século
V tinham-se transformado em fantoches dos chefes militares todo-poderosos, bárbaros
na sua maior parte.

O cristianismo durante o Baixo-Império. O alto clero cristão, cerca do ano 300,


tornara-se um corpo opulento e influente. Uma grande identidade de interesses políticos
e de classe mantinha-o ligado aos donos de escravos e aos grandes proprietários de
terras. Foi nesta conjuntura que o governo romano pôde renunciar à perseguição dos
cristãos. A reconciliação de Constantino com a Igreja colocou esta ao serviço do poder
imperial. Há muito que o cristianismo deixara de ser a religião dos escravos e dos
oprimidos. A classe dirigente já podia utilizar a doutrina da expiação no além e da
resignação durante a vida terrena, com o único objetivo de submeter as massas
laboriosas. Quando o cristianismo se tornou culto oficial, apareceram numerosas seitas e
heresias teológicas, que, muitas vezes, traduziam o descontentamento do povo pelas
suas miseráveis condições de vida. Contra a escravatura e a grande propriedade
agrícola, os membros dessas seitas pregavam a igualdade social, a comunidade dos bens
e o ascetismo.

Agravamento dos conflitos sociais. As exações do fisco, os abusos e chantagens


dos funcionários imperiais, a exploração sem limites dos trabalhadores, praticada pelos
grandes proprietários e donos de escravos, que um contemporâneo qualificou como
mais selvagens do que os próprios bárbaros, - tudo isso levou o povo ao desespero e à
revolta. Entre as revoltas populares que se desencadearam nas províncias ocidentais, as
mais importantes foram a dos “Bagaudas” (“combatentes”, na língua celta), que se
revoltaram por duas veze, no fim do século III e na primeira metade do século V, na
Gália e em Espanha, e a dos “Agonísticos” (“atletas”, em grego), nos séculos IV e V, na
África do Norte. Segundo uma crónica do tempo, o número de Bagaudas, que incluía
camponeses arruinados e colonos fugitivos, aumentou, sendo as suas hostes engrossadas
com “todos os escravos da Gália”. Os insurrectos assaltam as casas de campo dos
magnates e combatem a administração romana. Acendem-se focos de insurreição na
Bretanha. Não raras vezes, os revoltosos procuram o apoio dos Bárbaros, que
atravessam constantemente as fronteiras do Império. Salviano escrevia que “os pobres
procuram junto dos Bárbaros um pouco de humanidade romana, por não poderem
suportar a desumanidade bárbara dos Romanos”.

Os movimentos populares, alguns com características separatistas, eram


reprimidos com selvageria. Estas insurreições das massas exploradas da sociedade
romana não bastavam para suprimir a escravatura e substituí-la por uma ordem social
mais evoluída, mas o seu papel no desmoronamento da hegemonia de Roma está longe
de ser insignificante.
Consequências da crise da escravatura. Quando as invasões bárbaras
começaram, o tempo da escravatura, no Império Romano, estava praticamente
terminado. O trabalho servil, com um rendimento medíocre, tinha sido particularmente
substituído pelo trabalho dos colonos. Embora não sendo escravatura, o colonato era
grandemente condicionado e influenciado por ela: tal como o escravo, o colono não era
proprietário da sua exploração agrícola. A propriedade esclavagista manter-se-á até ao
fim como forma predominante de propriedade. Aplicava-se tanto aos meios de produção
e instrumentos de trabalho, como ao próprio produtor e à sua economia. O
revigoramento da pequena economia rural era entravado pela superestrutura
esclavagista utilizada pelas camadas superiores da classe dominante, nos séculos III a V,
com o objetivo de prolongarem a sua existência. A sociedade romana emaranhou-se em
contradições insolúveis: a crise do esclavagismo e a desagregação das duas classes em
oposição – proprietários de escravos e escravos – não gerava uma nova classe,
portadora de relações de produção mais evoluídas. Era essa a razão pela qual a luta de
classes no seio da sociedade esclavagista não podia desembocar numa revolução
econômico-social seguida da instauração do feudalismo. Foi necessário que se desse o
desmoronamento do Império Romano, sob a pressão dos invasores bárbaros, para que
ficasse aberta a via para a evolução da produção e da sociedade. Foi esta a conclusão
lógica e inevitável de toda a evolução anterior de Roma e das tribos e povos bárbaros.

1. Tribos bárbaras da Europa os Germanos

Nas margens do Império romano, a Europa era povoada por tribos que viviam
em regime de comunidade primitiva e que constituíam, grosso modo, dois grupos
étnicos: Germânicos e Eslavos. Quanto aos Celtas da Gália e da Bretanha, a sua
organização em clãs tinha começado a desagregar-se mais cedo do que nas outras tribos;
a conquista da Gália pelos Romanos e, em seguida, da Bretanha, precipitou o
aparecimento da escravatura. A evolução das tribos germânicas e eslavas, que não
tinham ficado englobadas no Império Romano, e onde a formação das classes tinha
começado mais tarde, seguiu um caminho diferente (quanto aos Eslavos, ver cap. VI).

A Germânia e os Germanos. As condições naturais da Europa, há 1500 ou 2000


anos, era completamente diferentes das condições atuais. As regiões situadas a Norte
dos Alpes e do Danúbio e a Leste do Reno estavam cobertas por grandes florestas. Eram
banhadas à norte pelo mar do Norte e pelo Báltico e iam até à parte média do curso do
rio Labe (Elba) a leste. Este vasto território, a que os Gregos e Romanos chamavam
Germânia, parecia-lhes sombrio e pouco propício à vida. Estes meridionais
impressionavam-se com a rudeza do clima e a falta de fertilidade do solo, com as
florestas impenetráveis e os pântanos lamacentos, em contraste flagrante com a natureza
alegre da bacia mediterrânea. Os habitantes da Europa Central, privados de muitos
benefícios da civilização antiga, pareciam-lhes atrasados e selvagens. Por isso
chamavam bárbaros os habitantes da Germânia e outros povos que viviam fora do
mundo esclavagista. A palavra grega “bárbaro” significa “aquele que rosna” ou “que
fala uma língua incompreensível”, isto é, “estrangeiro”. Este termo adquiriu
rapidamente um sentido pejorativo na boca dos Gregos, que desprezavam os Bárbaros.

Os primeiros contatos dos Romanos com os Germanos datam do século II antes


da nossa era. A vida dos vizinhos setentrionais intrigava os escritores da Roma Antiga
que, entretanto, pouco sabiam a seu respeito. César, nos seus comentários sobre a guerra
das Gálias, menciona a confederação das tribos germânicas dos Suevos, que combateu
na Gália em meados do século I antes da nossa era. A História Natural de Plínio, o
Antigo (cerca de 77 antes da nossa era) contém muitas informações sobre a Germânia.

Tácito, por fim, relata a guerra de Roma contra os Germanos nas suas Histórias e
Anais, e no ano 98, escreveu a sua obra Costumes dos Germanos (frequentemente
intitulada Germânia), que constitui um estudo muito pormenorizado destes povos. Era-
lhes impossível, no entanto, compreenderem as particularidades de uma estrutura social
tão diferente da sua. Estes autores, salientando a natureza belicosa e ardente dos
Germanos – inimigos ferozes de Roma – confundiam-nos na realidade com nómadas,
ou pelo menos, tinham deles a ideia de povos para quem a agricultura desempenhava
um papel subsidiário. Além disso, esses escritores antigos aplicavam com frequência a
denominação de “Germanos” a povos que não eram germânicos, como, por exemplo, os
Eslados, seus vizinhos ocidentais.

As informações que as obras dos autores latinos contêm acerca dos Germanos
são do maior interesse, mas a sua autenticidade pode, por vezes, ser contestada. É
necessário, portanto, submetê-las a uma análise crítica profunda e a uma verificação
escrupulosa. Para se ter uma ideia mais objetiva sobre o regime social e sobretudo
econômico das populações da Europa Central e Setentrional na época romana, não basta
um estudo profundo das fontes escritas; é necessário tomar em consideração também os
dados da arqueologia, da linguística, da geografia histórica e de paleobotânica,
acumulados durante os últimos decénios.

A agricultura. A natureza austera da Germânia não era um obstáculo


intransponível para a agricultura sedentária. Nem todo o país estava “eriçado de
florestas e desfeado por pântanos”, como escrevia Tácito. Embora as regiões
montanhosas do Sul (Alpes, Floresta Negra Hartz) estivessem cobertas de florestas,
estas eram menos densas noutras regiões, e havia também vastas áreas de estepes-
florestas e de terras desarborizadas. As terras cultiváveis podiam entrar, às vezes, pelas
florestas dentro: arrancavam-se e queimavam-se os arbustos, e os animais domésticos
iam pastar para a orla dos bosques. Tácito observava que o solo da Germânia,
pretensamente impróprio para a cultura de jardins, era bom para cereais. A agricultura,
no começo da nossa era, estava longe de ser uma novidade para os habitantes da Europa
Central e Setentrional. Datava do neolítico, tinha progredido na Idade do Bronze e
desempenhava um papel bastante importante na vida destas populações. O primeiro
testemunho escrito sobre a agricultura data de meados do século IV antes da nossa era:
o grego Piteu conta que os habitantes do Norte cultivavam a terra e debulhavam o grão
em locais cobertos, em virtude da abundância de chuvas e da falta de sol, e que bebiam
um líquido preparado com cereais e mel.

As descobertas arqueológicas provam que o emprego do arado já se tinha


espalhado pela Europa Central e Setentrional na Idade do Bronze. A lavoura com arado
era feita duas vezes, no sentido do comprimento e da largura, como se verifica pelos
vestígios encontrados nos campos da Idade do Ferro pré-romana (últimos séculos antes
da nossa era). Estes vestígios, descobertos na Jutlândia, Gália, do Norte e na Bretanha,
testemunham que as parcelas de terra eram geralmente quadradas ou rectangulares. O
arado, atrelado a um ou dois bois, era utilizado principalmente nos solos pouco duros.

Com a generalização do emprego do ferro, a charrua de rodas, com relhas e


alveca ferro, que permitia a lavoura em profundidade, apareceu aqui e ali, na Germânia.
O seu emprego, no entanto, continuou a ser limitado. A observação dos vestígios
deixados nos campos antigos dá-nos a certeza de que eram submetidos a uma cultura
prolongada; isto é confirmado pelos pequenos muros, de terra ou pedras que os
rodeavam. O comentário de César, afirmando que os Suevos mudavam de terra todos os
anos, não pode, por isso, aplicar-se a todas as tribos germânicas, tanto mais que
encontrou os Suevos quando emigravam para a Gália, vendo-se obrigados a abandonar
provisoriamente a vida sedentária.

Os dados arqueológicos são categóricos e permitem afirmar que, no começo da nova


era, o cultivo dos campos era a principal ocupação das populações da maior parte da
Germânia, embora algumas tribos se encontrassem ainda num estádio inferior de
evolução. Tácito menciona a atrelagem de bois utilizada pelos Germanos para a lavoura,
mas as suas notas acerca das técnicas agrícolas, no capítulo 26 da Germânia, são de tal
modo imprecisas e fragmentadas, que se torna impossível uma interpretação válida.
“Para cultivar as terras, escreve Tácito, as aldeias apoderam-se de uma certa extensão de
terras, relacionada com o número de trabalhadores; estas terras são partilhadas, em
seguida, conforme a categoria de cada um; esta partilha é facilitada pela imensidão dos
campos. em cada ano tomam posse de outros campos (ou uma vez de tantos em tantos
anos), e a terra nunca lhes falta.” Para Tácito, os Germanos só conheciam a cultura de
lavoura e hortícola. Ora sabe-se que eles cultivavam trigo, centeio, cevada, aveia, milho
miúdo, favas e ervilhas, mas que desconheciam a horticultura e a viticultura, tão
florescentes entre os Romanos. A agricultura não era intensiva e parecia atrasada em
comparação com a de Itália. A afirmação de Tácito segundo a qual os Germanos
mudavam de campos todos os anos, ou uma vez de tantos em tantos anos, pode levar-
nos a pensar que arroteavam6 terras incultas. Esta interpretação é plausível7, mas não
exclusiva.

O facto de o capítulo pecar por uma certa falta de clareza é devido provavelmente a
Tácito não poder analisar o problema com toda a clareza necessária. A sua descrição

6
Agr. Desmatar, preparar (terreno) para posterior plantação. 2. Agr. Fazer o primeiro cultivo; lavrar pela
primeira vez.
7
1. Que se pode aceita como válido ou razoável. 2. Digno de aplauso ou aprovação.
dos costumes dos Germanos não se baseou em qualquer experiência pessoal; foi buscar
informações a fontes literárias, interessou-se por relatos feitos por soldados romanos, ou
por mercadores que voltavam da Germânia, por escravos ou cativos germânicos.
Mesmo supondo que as populações de que fala Tácito tivessem praticado o
desbravamento de terras incultas, é difícil aplicar esta conclusão a toda a Germânia, à
luz das recentes descobertas arqueológicas. As condições naturais e climáticas dessas
vastas áreas eram diferentes de região para região; é natural que as tribos que as
povoavam se encontrassem em estádios diferentes de evolução econômica. A economia
agrícola praticada entre os (Frísios), por exemplo, era ignorada pelos Chaucos, também
instalados no litoral do mar do Norte. Há a certeza de que pelo menos uma parte dos
Germanos sabia cultivar o solo de maneira a não provocar o seu esgotamento demasiado
rápido e que podiam utilizar um único e mesmo terreno durante um período bastante
longo.

Ora os Germanos, com os instrumentos rudimentares de que dispunham,


desbravavam preferivelmente solos leves e, com o aumento da população, podia chegar
um momento em que a tribo tivesse falta de terras cultiváveis. Foi assim que os Suevos
descritos por César foram para a Gália, à procura de novas terras férteis. Foi por esta
mesma razão que, mais tarde, se desencadeou a migração das tribos bárbaras dentro do
Império.

O habitat. O sedentarismo dos antigos Germanos é confirmado ainda pelas


características do seu habitat. Habitavam geralmente em grandes casas compridas, de
madeira ou pedra (no Norte), com uma parte reservada para o gado. Cada casa podia
atingir várias dezenas de metros de comprimento e compreendia vários compartimentos.
Estas casas não eram habitadas por famílias isoladas, mas sim por “grandes famílias” ou
grandes comunidades familiares. Uma grande família podia ser composta de dezenas de
pessoas, ou seja, em geral, três gerações de parentes próximos. O habitat dos Germanos
dependia das condições naturas. As buscas puseram a descoberto vestígios de ocupação
em várias casas compridas. Existiam igualmente aglomerações de pequenas casas de
madeira, ou choupanas redondas, construídas com terra ou ramagens. Os autores antigos
mencionam a existência de aldeias dispersas e distantes umas das outras. Tácito
descreve as divisões subterrâneas que os Germanos preparavam para guardar provisões
durante as estações frias. Os Bárbaros não construíam cidades, mas erigiam paliçadas de
madeira ou de terra como defesa contra eventuais ataques dos inimigos.

A pecuária. A pecuária desempenhava um papel importante entre os Germanos. Mas


a identificação, feita pelo historiador grego Estrabão, entre Germanos e nómadas, é
destituída de qualquer fundamento. O gênero de vida nómada, num meio de florestas
muito densas, entrecortadas de estepes-florestas, era impensável. O próprio César, que
achava que os Suevos “não tinham gosto pela agricultura”, observava que eles
mudavam todos os anos de terras aráveis e estava longe de considerar os Germanos
como nómadas (com efeito, os nómadas são obrigados a mudar de pastagens mais do
que uma vez por ano). O gado era a riqueza dos Germanos, o seu principal alimento e a
força de tração utilizada na agricultura. Em pleno reino da economia natural, e com a
inexistência de trocas monetárias entre a maior parte das tribos, o gado era utilizado
como unidade de pagamento; os acordos para resolver pleitos, resultantes de homicídios
ou outros delitos, também envolviam pagamentos com gado.

Os Germanos eram caçadores e pescadores, mas, para a maior parte das tribos, estas
atividades eram subsidiárias8. No entanto, a importância desta ou daquela ocupação
variava conforme as condições naturais.

A economia natural. O artesanato dos Germanos era incipiente. Cada família


fabricava os instrumentos de trabalho, armas e utensílios domésticos para seu uso
pessoal. Tácito afirmava que os Germanos tinham pouco ferro. Ora eles sabiam obtê-lo,
desde os tempos mais recuados, através da redução directa do minério extraído dos
pântanos e lagos (da Baviera à Escandinávia). Utilizavam-se bocados de ferro como
objetos de troca. O ferro servia principalmente para o fabrico de armas. As descobertas
arqueológicas provam que os Germanos trabalhavam com regularidade a prata, o cobre,
o estanho (na Boémia e na Turíngia). Mas a verdade é que o uso de instrumentos
metálicos, nessa época, foi relativamente restrito.

As tribos fixadas nas costas do mar do Norte e do Báltico construíram navios e iam
para o alto mar. Os Suíones da península escandinava e os Frísios da Germânia
setentrional eram navegadores experimentados. As buscas de Schleswig permitiram
descobrir um navio que teria sido construído, segundo os arqueólogos, no século I antes
da nossa era; mas navios análogos apareciam já nas pinturas rupestres da Europa
Setentrional desde fins da Idade do Bronze. A olaria atingiu um nível elevado. A
tecelagem era uma das principais ocupações das mulheres; os Germanos sabiam utilizar
várias substâncias vegetais para tingir o vestuário. O sal desempenhava um papel
importante no comércio. Os habitantes das terras à beira-mar apanhavam o âmbar, tão
apreciado pelos Bárbaros e pelos povos vizinhos.

A fraca divisão social do trabalho, com o artesanato não separado da agricultura e


um comércio primitivo são outros tantos testemunhos de como a economia natual
imperava entre os Bárbaros.

O clã. Princípio da sua dissolução. Quando os germanos surgem na arena da


história, ainda viviam em regime de comunidade primitiva. O clã, que agrupava os
parentes da mesma linhagem, entre os quais era obrigatória a assistência mútua e a
proteção, continuava a desempenhar um papel relevante. A vingança era também uma
prática ainda em uso, embora já parcialmente substituída por acordos pecuniários.
Quando se desencadeavam as hostilidades, as famílias e os clãs forneciam os efectivos
das tropas. Os anciãos gozavam de grande estima e exerciam muita influência na
sociedade. Cada tribo ocupava o seu território; tinha um nome, um dialecto, rituais
religiosos e usos, direito baseado nos costumes, e administração (assembleias populares,
conselhos de anciãos, chefe de tribo). Todos os membros de uma mesma tribo eram

8
1. Diz-se de um fator ou elemento secundário, que converge para um elemento de maior importância e o
reforça. 2. De menor importância.
livres e iguais em direitos. Quando um jovem atingia a maioridade, recebia solenemente
as suas armas das mãos dos pais ou dos anciãos. Passava então a poder tomar parte nos
assuntos de interesse comum: guerra, assembleia popular onde os anciãos eram
escolhidos, julgamento dos criminosos, debate dos problemas de maior importância
para todos os membros da tribo.

Os Germanos ainda não conheciam a propriedade individual da terra, principal


meio de produção. Esta particularidade não podia deixar de chamar a atenção de César.
Com efeito, ao descrever os costumes dos Suevos, observava: “ninguém, no seu país,
tem campos com limites, nem domínio que lhe pertença individualmente.” César
acrescenta ainda que as terras eram atribuídas “aos clãs e grupos de parentes que vivem
juntos”. Devemos procurar aqui uma indicação da sobrevivência, entre os Suevos, da
comunidade de clã como colectividade de produção? Não podemos afirma-lo. o que
sabemos é que, no tempo de Tácito, já não existia entre os Germanos a comunidade de
clã, com os membros respectivos trabalhando numa exploração comum. Embora
continuando a desempenhar um papel importante como unidade social, o clã tinha
deixado de ser a célula de base da vida econômica.

Só os parentes próximo, membros da grande família, cultivavam o solo em comum.


A comunidade era constituída por um grupo de explorações domésticas localizadas num
mesmo território. Era a chamada comunidade agrária, cujos membros estavam ligados
entre si pela propriedade colectiva da terra. O usufruto das parcelas, no entanto, era
individual. Florestas, pastagens, terras incultas e outros bens, continuavam a ser
indivisos, para uso de todos. A passagem da comunidade do clã, em que todos os
membros geriam em comum uma exploração primitiva, para a comunidade agrária,
composta por um grupo de explorações, em lotes que lhes tinham sido atribuídos, e
geridas separadamente pelas grandes famílias, atesta a desagregação da organização
gentílica. A propriedade individual da terra ainda não existia, mas os bens móveis –
gado, armas, instrumentos de trabalho e escravos – já eram propriedade pessoal.

A escravatura patriarcal. Os Germanos, com efeito, já tinham escravos. As suas


forças produtivas, embora primitivas aos olhos dos Romanos, tinham atingido um grau
de desenvolvimento que permitia a obtenção de um excedente de produtos, de que se
apropriava o proprietário de escravos. Entre os Germanos, a escravatura era diferente da
escravatura clássica. Para Tácito, os escravos dos Germanos eram comparáveis aos
colonos romanos (lembremos que no século I, na época de Tácito, os colonos de Itália
eram homens livres, que alugavam, mediante contrato, terras que não lhes pertenciam):
“Cada um possui a sua habitação e governa o seu lar como entende. O dono obriga-o,
como ao colono, a uma prestação quer de pão, quer de gado, quer de vestuário. A sua
servidão limita-se a isso”. Os escravos não trabalhavam na casa do dono. Tácito notou
também, além disso, que não havia, entre os Germanos, castigos severos, comparáveis
aos que eram infligidos aos escravos de Roma: uma forma diferente de exploração do
escravo, em que era permitido que ele possuísse uma parcela de terra e uma família,
criava outras formas de dependência, mais patriarcais. Os pagamentos eram em
produtos que eram exigidos aos escravos nunca constituíam senão uma parte mínima
dos rendimentos de uma grande família, que compreendia um número elevado de
trabalhadores livres. Mesmo quando uma fracção das terras da comunidade doméstica
era cultivada por várias famílias de escravos, o trabalho destes desempenhava apenas
um papel acessório. E um belo dia, os escravos da Germânia apareceram no mercado de
Roma.

Gênese da desigualdade social. Os grandes. O desenvolvimento das forças


produtivas, a consolidação econômica das grandes famílias, a extensão da propriedade
individual de bens móveis, ao mesmo tempo que o aparecimento da escravatura e as
guerras constantes, tudo isto gerava a desigualdade. A propriedade privada minava o
regime de comunidade primitiva. A nobreza de clã enriquecia e consolidava as suas
posições. Tinha deixado de haver igualdade entre os clãs que faziam parte da mesma
tribo: algumas famílias e clãs tinham-se elevado acima das outras; transformadas em
nobres, passaram a goza de maior influência. Eram as famílias dos chefes, dos anciãos e
dos guerreiros mais intrépidos, e que se tinham distinguido. O apreço particular de que
eram objeto, tornava-se extensivo aos parentes e descendentes. Para acender à dignidade
de chefe de tribo ou “rei” (rex), como lhe chamavam os autores da Antiguidade, era
preciso ser-se representante de um clã nobre: o chefe militar (dux) era geralmente o
guerreiro que se tinha evidenciado. O conselho dos anciãos discutia todos os problemas
relacionados com a vida da tribo e submetia-os depois á aprovação da assembleia
popular, a que presidiam o chefe da tribo e os anciãos. Os outros membros da
assembleia aprovavam a decisão proposta agitando as lanças, ou rejeitavam-na
murmurando. Os anciãos julgavam os processos nos distritos e aldeias.

A nobreza de clã exercia uma influência considerável na administração popular.


Controlava, com efeito, todas as atividades, e os Germanos nunca se lançavam em
qualquer empreendimento sem obter a sua participação. Embora salientando a
severidade do regime matrimonial em vigor entre os Germanos (que eram
monogâmicos), Tácito observava que os notáveis praticavam a poligamia “porque, dizia
ele, em virtude da sua nobreza, são assediados por grande número de proposta de
casamento”. Durante o regime de comunidade primitiva, o poder real não era um poder
de Estado, o “rei” era apenas o chefe de uma tribo, ou de uma confederação de tribos.
Engels qualifica a organização política dos Germanos como uma “democracia militar”.
Em certas tribos, como os Suíones, o poder real era mais forte e estável, enquanto
noutras (os Catos) era praticamente inexistente.

O séquito9 armado. O chefe tinha sob as suas ordens um séquito armado, constituído
por jovens com espírito combativo e por guerreiros valorosos. A acreditarmos em
César, qualquer notável podia reunir tropas e correr o risco de uma operação militar. A
guerra, segundo Tácito, tornou-se a única ocupação dos companheiros de armas. As
suas explorações agrícolas eram geridas por membros das suas famílias e por
prisioneiros de guerra que se tinham tornado escravos. O chefe do séquito armado
fornecia aos guerreiros as armas e cavalos de combate, partilhava com eles os despojos
9
[Do lat. sequitu.] S.m. 1. Conjunto de pessoas que acompanham outra(s) por obrigação ou cortesia;
comitiva, acompanhamento, cortejo.
e organizava os festins. Como a manutenção de uma tropa era dispendiosa, o chefe era
obrigado a fazer guerra, mesmo quando os interesses da tribo o não aconselhavam. A
guerra e as expedições de rapina fortaleciam o poder do chefe e constituíam o principal
meio de fazer fortuna. A tropa estava ao serviço do chefe e não da tribo. Considerava-se
uma ignomínia10, e um opróbrio para um guerreiro, voltar são e salvo de um combate
em que tivesse perecido o chefe, a quem ele jurara fidelidade. Quanto maior e mais
aguerrido era um séquido, maior era a influência do chefe, não só dentro da sua própria
tribo, mas também perante os vizinhos. O chefe consolidava o poder apoiando-se nos
companheiros de armas. Em certas tribos, escrevia Tácito, há “o costume de fazer
oferendas voluntárias aos chefes e todos lhes trazem uma certa quantidade de gado, ou
de produtos da terra”... Não é possível imaginar, naturalmente, que uma tribo inteira, ou
qualquer dos seus membros, recusasse fazer este donativo ao chefe todo-poderoso. Era
inevitável que, com o tempo, as ofertas perdessem o seu caráter voluntário. Assim, os
chefes e seus camaradas já viviam parcialmente á custa do trabalho dos outros membros
da tribo. Engels considera o séquito armado como “o germe da ruína da antiga liberdade
popular”.

A aristocracia gentílica adquiriu privilégios econômicos em relação às outras


famílias e clãs da tribo. As parcelas de terras aráveis nas aldeias não partilhadas
igualmente entre todos, mas sim segundo o “mérito”, isto é, segundo a categoria e os
outros notáveis (nobiles) eram os mais favorecidos e recebiam terras melhores ou mais
extensas do que os outros interessados na partilha. Este uso provinha naturalmente do
papel que os nobres e guerreiros desempenhavam na vida da tribo. Eram eles que
partiam à conquista de novos territórios, os primeiros a possuírem escravos e grandes
rebanhos e, por fim, não participavam pessoalmente, no trabalho produtivo, absorvidos
como estavam pela guerra e pela administração. Os grandes, possuindo mais terras,
empregavam escravos e exigiam prestações. Tácito menciona “os campos e as villa” de
Civilis, chefe dos Batávios. Seria errado, no entanto, considerar as possessões dos
chefes e notáveis como verdadeiros domínios e confundi-los com grandes propriedades
rurais. Tácito verifica que as terras dos chefes e guerreiros germânicos eram cultivadas
por toda a gente da sua casa. Somos obrigados a concluir que ainda não lhes era
possível fazer com que o trabalho dos escravos constituísse a fonte principal dos seus
rendimentos. A propriedade individual da terra ainda não existia, e as famílias
independentes, em virtude das partilhas periódicas, ainda não podiam conservar a sua
exploração exclusiva. O facto de a camada superior receber os melhores bocados ainda
não bastava para fazer dela uma classe particular da sociedade, embora concentrasse
bens móveis nas suas mãos, enriquecesse, e alargasse a sua influência pública. Quando
morria um chefe, colocava-lhe ao lado, no túmulo, as armas, o cavalo de combate,
vários utensílios e alimentos, em resumo, tudo aquilo de que podia ter necessidade.
Forma encontrados, em túmulos do século I da nossa era, entre outros objetos, artigos
romanos ornamentados a ouro e prata.

10
[Do lat. ignominia.] S.f. Grande desonra; opróbrio, infâmia.
A religião. As forças da natureza (o Sol, a Lua, o fogo), eram divindades para os
antigos Germanos. Adoravam principalmente Wotan, Donar e Tuvaz. Mais tarde,
Wotan assumiu o papel de divindade superior, Donar tornou-se o deus do raio, e Tuvaz
o deus da guerra. Os Germanos não construíam templos nem representavam os deuses
em efígie. Celebravam os cultos e faziam os sacrifícios (incluindo sacrifícios humanos)
nos bosques sagrados ou no cimo das montanhas. Cada tribo tinha os seus deuses
protectores; alguns eram adorados em comum por várias tribos. As adivinhadoras eram
muito veneradas pelos germanos, que davam grande importância às suas profecias e
práticas mágicas.

Os Germanos e Roma até ao fim do século I da nossa era. Os primeiros choques


entre os Germanos e Roma datam do século II antes da nossa era: as tribos de Cimbrios
e Teutões invadiram a Gália e a Itália do Norte entre 113 e 101, mas foram derrotadas e
quase totalmente aniquiladas por Mário. As tentativas dos Suevos para se apoderarem
das terras da Gália Oriental também fracassaram. Durante os anos 50 antes da nossa era,
César expulsou os Suevos da Gália e lançou-se em expedições para lá do Reno. As
tribos germânicas tornam-se alvo da política agressiva de Roma; os generais romanos
partem em campanha para conquistar a Germânia. Os chefes das tribos germânicas
viram-se obrigados, durante um certo tempo, a reconhecer a supremacia do Imperador
romano sobre todo o território compreendido entre o Reno e o Elba. Mas a resistência
firme dos Germanos impediu a anexação das suas terras ao Império Romano.

Faltavam ainda as condições necessárias para a formação de um Estado e a formação


de organização mais elevada que os Germanos puderam realizar foi a confederação
militar. Nasceu uma grande confederação de tribos, em fins do século I antes da nossa
era, na Boémia. Foi a união dos Marcomanos com os Suevos. O chefe dos Marcomanos,
Marbod, com o acordo dos Romanos, tomou o título de rei. Mas esta união
desmembrou-se em virtude de discórdias internas. Estes acontecimentos deram-se após
a famosa batalha da floresta de Teutberg no ano 9 da nossa era. Os queruscos,
estabelecidos na parte média do curso do Weser, vibraram aí um golpe decisivo na
dominação romana da Germânia. Dirigidos por Armínio, destruíram três legiões
romanas comandadas por Varo. Os Romanos foram repelidos para lá do Reno, e a sua
preocupação principal passou a ser a de consolidarem as fronteiras com a Germânia.
Construíram uma cadeia de praças fortes e uma vala fronteiriça ao longo do Reno e do
Danúbio (Limes Romanus). Na margem direita do Reno, os Romanos só puderam
manter as suas posições no litoral do mar do Norte. Entretanto, as tribos localizadas nas
províncias renanas estavam longe de se resignar. Os Romanos tiveram dificuldade em
dominar a revolta dos Batávios, dirigida por Civilis, desencadeada cerca do ano 70.

O comércio entre Roma e os Germanos. Não havia só relações hostis entre Roma e
os Bárbaros, Havia também um comércio particularmente ativo. Os estabelecimentos
romanos do Reno (nomeadamente Augusta Treverorum, hoje [Trèves]; Colonia
Agrippina, hoje Colónia) e do Danúbio (Augusta Vindelicorum, que veio a ser
Augsburgo, ou Castra Regina, mais tarde Regensburgo, etc.) eram simultaneamente
praças fortes e centros de comércio com os Germanos. Pode avaliar-se o
desenvolvimento do comércio, nesta época, pelo grande número de obras de arquitetura
que os Romanos realizaram nas suas cidades-fronteiras. As regiões fronteiriças
cobriram-se de estradas. Tácito escreveu que a moeda só era conhecida pelas tribos
estabelecidas nas proximidades das fronteiras romanas e que no interior da Germânia se
praticava a troca. Mas os mercadores procedentes do Império começaram rapidamente a
penetrar no país. Os chefes bárbaros atraíam os mercadores e artesãos às suas casas.
Descobriram-se moedas romanas datando da época imperial em toda a Europa Central e
Setentrional. Os Germanos não utilizavam as moedas de ouro e prata apenas como
moeda, mas como adorno. Também as enterravam, guardando-as como tesouro. As
rotas comerciais seguiam o Oder, o Elba, o Reno e o Danúbio. Os Germanos
comerciavam com os povos que viviam a norte do mar Negro e os seus barcos sulcavam
os mares do Norte e o Báltico.

Os germanos compravam aos Romanos vasos de bronze, objetos de vidro,


ornamentos de bronze, ouro e prata, armas, instrumentos de trabalho, e vinho, que lhes
era desconhecido antes dos contatos com os Romanos. As buscas arqueológicas
puseram a descoberto, nas sepulturas dos notáveis, diversas joias fabricadas pelos
Romanos, as quais, de resto, na sua maior parte, não tinham sido compradas e eram
provenientes de despojos de guerra, ou de ofertas feitas por dirigentes romanos aos
chefes germanos. A Gália romana fornecia aos Germanos cavalos e objetos de cerâmica.
O Império importava escravos da Germânia; gado, sal, peixe, âmbar, corantes vegetais,
couros e peles, tinham grande procura. Em certa altura, espalhou-se em Roma a moda
de trazer calças como as dos Germanos, e cabeleiras postiças feitas com longos cabelos
loiros das mulheres germânicas.

Infiltrações bárbaras no Império. A pressão aos Bárbaros sobre as fronteiras do Império


continuou a aumentar durante os séculos II e III. A guerra dos Marcomanos
intensificou-se entre 165 e 180. As hordas bárbaras (Marcomanos, Vândalos, Quadros,
Hermúnduros, etc.) forçaram a fronteira, perto do Danúbio e saquearam várias
províncias: a Rétia, a Nórica, a Panónia, a Dácia e a Ilíria. Os seus destacamentos
atingiram a Itália do Norte. O Imperador Marco Aurélio conseguiu repelir esta incursão
e submeter os Marcomanos. No século III, porém, Roma teve que se empenhar na
defesa contra os Germanos. As linhas de defesa romanas e as muralhas construídas em
torno das cidades gaulesas já não estavam em condições de conter os Bárbaros. As
riquezas de Roma e as terras férteis das suas províncias, atraíam os Bárbaros, cujas
tribos se agrupavam em poderosas alianças militares. A escola das legiões romanas
tinha sido útil aos Germanos, que se tinham familiarizado com a tática militar e
aprendido a manejar as armas. Se os Germanos tinham sido obrigados, no princípio das
suas relações com Roma, a fornecer os efetivos armados e mesmo a pagar tributo, a
situação era agora inversa: o governo romano viu-se obrigado a pagar somas
importantes para tentar opôr-se às invasões. Cedendo à pressão das tribos germânicas,
os imperadores autorizavam-nas a estabelecer-se nas províncias do Império, a título de
“aliados” ou mercenários. Roma enfrentava não só tribos isoladas mas também uniões
de tribos aparentadas entre si e ligadas por intercâmbio econômico e cultural cada vez
maior. Era o caso, por exemplo, da Confederação dos Francos, na qual estavam
incluídas as tribos renanas: Chamavos, Aturianos, Brúcteros, Usípetes, Tencteros, e
tantos outros. A Confederação dos Alamanos, que incluía os Semnos e os Jutongos,
estabeleceu-se, no século III, entre a parte superior e média dos cursos do Reno e do
Alto Danúbio. A Oeste do Elba formou-se a Confederação das tribos saxónicas
(Queruscos, Chaucos, Angrivareianos, etc.). Os Bárbaros ocupavam as terras férteis ao
longo do Danúbio, nos Balcãs e na Gália. Instalavam-se geralmente em terras incultas e
não adotavam o habitat romano; ignoravam as cidades. Germanos e proprietários
romanos coexistiam frequentemente. O governo romano, preocupado com a diminuição
da população das províncias e com o aumento da superfície de terras abandonadas,
favorecia o seu povoamento por agricultores germânicos. Os Bárbaros recebiam
parcelas de terra e escravos que lhes eram entregues pelas populações locais.

Depois de se instalarem em território do Império, os Germanos ficavam sob a


influência dos costumes romanos e adotavam, em parte, um modo de vista civilizado.
Aprenderam a servir-se de novos utensílios, copiaram dos Romanos grande parte do
artesanato e aprenderam o cultivo das hortas e das vinhas. A organização comunitária
das tribos que tinham atravessado as fronteiras do Império desmoronava-se mais
rapidamente do que a das populações que não se tinham deslocado. Os Germanos do
Império começavam a adotar a propriedade individual da terra, origem da divisão da
sociedade em classes.

Concomitantemente, a massa dos Bárbaros que afluía ao Império provocava neste


modificações profundas da estrutura econômico-social. A camada de pequenos
proprietários rurais aumentava. O trabalho servil não era utilizado, mantendo-se apenas,
nalguns casos sob formas tradicionalmente germânicas. Os Germanos continuavam a
ser agricultores, embora servissem nos exércitos imperiais. Um contemporâneo de
Constantino I descreveu os Bárbaros que se tinham instalado nas suas terras da seguinte
forma: “São o Chamado e o Frísio que trabalham agora as minhas terras; o vagabundo
ou o salteador ocupam-se dos trabalhos dos campos, são eles quem leva o gado ao
mercado e fazem baixar os preços, e depois disto tudo, regressam, e deixam-se ensinar e
repreender; mais do que isso, ficam contentes por servir como soldados.” O direito
romano também se ressentia da influência dos Bárbaros. Os usos comunitários, em
certas províncias, difundiram-se mais do que anteriormente. O próprio exército se
modificava. A política do governo romano sofria uma influência cada vez maior dos
chefes militares de origem bárbara. No século IV, e mais ainda no século V, chegaram a
nomear e a destituir imperadores. A romanização dos Bárbaros fazia-se, assim, ao
mesmo tempo que a barbarização do Império Romano. A ordem social dos Germanos
influía na ordem social dos povos do Império, e vice-versa.

Os Germanos dos séculos IV e V, suas relações sociais. A ordem social dos


Germanos sofreu importantes modificações nos séculos IV e V. Numerosas descobertas
arqueológicas constituem outros tantos testemunhos de um grande desenvolvimento da
civilização. Encontraram-se objetos de uso corrente, armas, adornos de ferro, ouro e
prata, ou bronze nas ricas sepulturas dos chefes germanos. Os objetos trabalhados são,
cada vez ais, de origem germânica. A arte das tribos germânicas atingiu um nível de
desenvolvimento bastante elevado: os broques, pingentes, contas, braceletes, cornos
cinzelados, vasos ornamentados com figuras de animais e de guerreiros, têm um
acabamento bastante aperfeiçoado. A construção naval e a navegação marítima
continuaram a desenvolver-se entre as tribos costeiras ( a partir do século III, a pirataria
tornou-se um flagelo para as possessões romanas da Gália e da Inglaterra). A charrua de
rodas, com o cutelo e alveca de ferro generalizou-se, e aumentou o rendimento do
trabalho: o amanho das terras pelos processos de antanho deixou de ser praticado.

O aparecimento da escrita rúnica confirma o desenvolvimento cultural dos


Germanos. As inscrições rúnicas mais antigas datam do século III. Os caracteres eram
gravados em madeira, cunhados em metal (medalhas, armas), ou entalhados nas estelas
funerárias. A escrita rúnica espalhou-se principalmente entre as tribos germânicas que
povoavam a península escandinava. A palavra “run” significa “segredo” em língua
escandinava. Os Germanos foram buscar a ideia das runas ao alfabeto dos seus vizinhos
meridionais. Utilizavam estes caracteres na feitiçaria, nas fórmulas mágicas e nas
predições; pensava-se que os raros privilegiados que os sabiam ler eram detentores de
um poder mágico. As inscrições rúnicas deixadas pelos sacerdotes, chefes e várias
personalidades influentes, constituem uma prova do seu poder crescente.

Não ficou praticamente nenhum vestígio dos séculos IV e V que permite emitir uma
opinião sobre as relações sociais das tribos germânicas. Só o estudo das Leis bárbaras de
uma época recente tornou possível uma reconstituição parcial. Estas Leis constituíram
as primeiras versões do direito germânico e foram redigidas por algumas tribos, no
período após as invasões, ou seja, desde o século V até ao século IX. Codificavam em
parte os costumes populares elaborados ao longo de séculos e aplicados muito antes de
serem reduzidos a escrito. Trazem, evidentemente, a marca das novas relações, nascidas
com a conquista do Império, com o desenvolvimento da divisão da sociedade em
classes, do aumento do poder real e da influência romana. O estudo destas fontes
permite esclarecer alguns aspectos característicos do regime social das tribos
germânicas dos séculos III e IV.

As Leis bárbaras, caracterizadas por um arcaísmo particular, são um testemunho de


como se mantiveram os usos herdados da comunidade primitiva. Expõem o sistema de
indenizações a pagar pelo assassínio de um homem livre: o Wergeld (“preço do
homem”) devia ser pago pelo assassino, ou pelos pais, aos membros da família da
vítima, ou aos seus colaterais. O Wergeld, que protegia a vida dos membros livres das
tribos, que gozava de todos os direitos, era muito elevado. Entre os Francos, por
exemplo, o assassino de um homem livre tinha de pagar um rebanho de cerca de 100
cabeças de gado grosso, ou qualquer outro bem de valor equivalente. Só os grupos
numerosos de parentes estavam em condições de efetuar pagamentos tão elevados. Os
membros de cada família prestavam assistência mútua entre si, não só nestas, mas
também em várias outras situações, e tinham igualmente em comum o direito de herdar
bens dos defuntos.
As explorações ainda eram geridas pelas grandes famílias do tipo patriarcal
(comunidades domésticas). A Lei dos Alamanos designava a grande família com o
nome de “genealogia”. Os membros de cada grande família eram proprietários em
comum do mesmo lote de terra e exploravam-no também em comum. Segundo a Lei
Sálica, coletânea dos costumes de uma das tribos francas, quando morria o chefe da
família, todos os filhos continuavam a cultivar a terra em comum. As mulheres não
podiam herdar, para que a família com a mesma ascendência paterna não perdesse a
terra, quando uma filha se casava. Por consequência, a terra era inalienável. O terreno
de que dispunha uma família, em certas tribos, chamava-se um “alódio”. O homem livre
não era propriamente dono da sua parcela, mas explorava-a por pertencer a uma
comunidade agrária que era proprietária de todas as terras que constituíam o seu
território. Se desapareciam todos os homens de uma família, a terra voltava à
comunidade. Quanto à admissão de novos membros, dependia do acordo de todos.

Diferenciação social. Página 50

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