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Novos diálogos revelam que Moro

orientava ilegalmente ações da Lava


Jato
Mensagens inéditas analisadas pela parceria entre
VEJA e o site The Intercept Brasil mostram que ele
cometeu, sim, irregularidades enquanto atuava
como juiz
Por Glenn Greenwald, Edoardo Ghirotto, Fernando Molica, Leandro
Resende e Roberta Paduan
access_time 5 jul 2019, 06h30

PARCERIA - Dallagnol e Moro: o ex-juiz pediu inclusão de provas nos processos e fez pressão
contrária a certas delações (Aílton de Freitas/Agência O Globo)

As manifestações do último dia 30 tiveram como principal objetivo a


defesa de Sergio Moro. Em Brasília, um enorme boneco de Super-
Homem com o seu rosto foi inflado na
frente do Congresso. Símbolo da
Lava-Jato, que representa um marco
na história da luta anticorrupção no
país, o ex-juiz vem sofrendo sérios
arranhões na imagem desde que os
diálogos entre ele e membros da
força-tarefa vieram a público
revelando bastidores da operação. As
conversas ocorridas no ambiente de
um sistema de comunicação privada
(o Telegram) e divulgadas pelo site
The Intercept Brasil mostraram que,
no papel de magistrado, Moro deixou
de lado a imparcialidade e atuou ao
lado da acusação. As revelações
enfraqueceram a imagem de correção
absoluta do atual ministro de Jair
Bolsonaro e podem até anular
sentenças.

No material que o Intercept diz ter


recebido de uma fonte anônima, há
quase 1 milhão de mensagens,
totalizando um arquivo com mais de
30 000 páginas. Só uma pequena
parte havia sido divulgada até agora
— e ela foi suficiente para causar uma
enorme polêmica. Em parceria com o
site, VEJA realizou o mais completo mergulho já feito nesse conteúdo.
Foram analisadas pela reportagem 649 551 mensagens. Palavra por
palavra, as comunicações examinadas pela equipe são verdadeiras e a
apuração mostra que o caso é ainda mais grave. Moro cometeu, sim,
irregularidades. Fora dos autos (e dentro do Telegram), o atual ministro
pediu à acusação que incluísse provas nos processos que chegariam
depois às suas mãos, mandou acelerar ou retardar operações e fez
pressão para que determinadas delações não andassem. Além disso,
revelam os diálogos, comportou-se como chefe do Ministério Público
Federal, posição incompatível com a neutralidade exigida de um
magistrado. Na privacidade dos chats, Moro revisou peças dos
procuradores e até dava bronca neles. “O juiz deve aplicar a lei porque na
terra quem manda é a lei. A justiça só existe no céu”, diz Eros Grau, ex-
ministro do Supremo Tribunal Federal, falando em tese sobre o papel de
um magistrado. “Quando o juiz perde a imparcialidade, deixa de ser juiz.”

GALHOFA - Fachin: “conversei 45 m com o Fachin. Aha uhu o Fachin é nosso.”


GALHOFA - Fachin: “conversei 45 m com o Fachin. Aha uhu o Fachin é nosso.” (Antonio
Cruz/Agência Brasil)

Não seria um escândalo se um magistrado atuasse nas sombras


alertando um advogado de que uma prova importante para a defesa de
seu cliente havia ficado de fora dos autos? Pois isso aconteceu na Lava-
Jato, só que em favor da acusação. Uma conversa de 28 de abril de 2016
mostra que Moro orientou os procuradores a tornar mais robusta uma
peça. No diálogo, Deltan Dalla​gnol, chefe da força-tarefa em Curitiba,
avisa à procuradora Laura Tessler que
Moro o havia alertado sobre a falta de
uma informação na denúncia de um
réu — Zwi Skornicki, representante da
Keppel Fels, estaleiro que tinha
contratos com a Petrobras para a
construção de plataformas de
petróleo, e um dos principais
operadores de propina no esquema
de corrupção da Petrobras. Skornicki
tornou-se delator na Lava-​Jato e
confessou que pagou propinas a
vários funcionários da estatal, entre
eles Eduardo Musa, mencionado por
Dalla​gnol na conversa. “Laura no caso
do Zwi, Moro disse que tem um
depósito em favor do Musa e se for
por lapso que não foi incluído ele
disse que vai receber amanhã e da
tempo. Só é bom avisar ele”, diz.
(VEJA manteve os diálogos originais
com eventuais erros de digitação e
ortografia.) “Ih, vou ver”, responde a
procuradora. No dia seguinte, o MPF
incluiu um comprovante de depósito
de 80 000 dólares feito por Skornicki
a Musa. Moro aceita a denúncia
minutos depois do aditamento e, na
sua decisão, menciona o documento
que havia pedido. Ou seja: ele
claramente ajudou um dos lados do processo a fortalecer sua posição.
CONTRA - Cunha: Moro não queria a delação do ex-presidente da Câmara
CONTRA - Cunha: Moro não queria a delação do ex-presidente da Câmara (Guilherme
Artigas/Fotoarena/Estadão Conteúdo)

Em sua defesa após o estouro do escândalo das mensagens, o ministro


vem repetindo que atendia tanto os encarregados da acusação quanto
os da defesa no dia a dia e tinha conversas com eles, nenhuma delas
imprópria, na sua visão. De fato, está na rotina de um juiz receber as
partes envolvidas no processo, mas de maneira oficial, sempre com
registro, e não por meio de um sistema privado de comunicação. A
posição do ex-juiz fica ainda mais difícil de defender diante dos dados
analisados pela parceria VEJA/The Intercept. Não eram conversas
protocolares entre juiz e Ministério Público. Do conjunto, o que se
depreende, além de uma intimidade excessiva entre a magistratura e a
acusação, é uma evidente parceria na defesa de uma causa. Os
exemplos mais robustos vêm das conversas entre Moro e Dalla​gnol. Em 2
de fevereiro de 2016, por exemplo, o juiz escreve a ele: “A odebrecht
peticionou com aquela questao. Vou abrir prazo de tres dias para vcs se
manifestarem”. Dalla​gnol agradece o aviso. Moro se refere ao
questionamento da Odebrecht à Justiça da Suíça a respeito do
compartilhamento de dados, incluindo
extratos bancários, da empresa
naquele país. Grosso modo, a
empreiteira tentou impedir que o
Ministério Público suíço enviasse
dados à força-tarefa. Preocupado
com a história, Moro pede notícias a
Dalla​gnol no dia 3. “Quando sera a
manifestação do mpf?”, pergunta.
“Estou redigindo, mas quero fazer
bem feita, para já subsidiar os HCs
que virão. Imagino que amanhã, no
fim da tarde”, responde o procurador.
No dia seguinte, Dalla​gnol informa a
Moro que a peça estava quase pronta,
mas dependia ainda da revisão de
colegas. “Protocolamos amanha,
salvo se for importante que seja hoje.
Posso mandar, se preferir, versão
atual por aqui, para facilitar preparo
de decisão”, escreve. Moro tranquiliza
Dalla​gnol: “Pode ser amanha”. No dia
5, prazo final, por volta das 15 horas,
Dalla​gnol manda pelo Telegram ao juiz
a peça “quase pronta”. A situação é
completamente irregular. Em vez de
se comunicarem de forma
transparente pelos autos, juiz e
procurador usam o Telegram. Como
se não bastasse, o chefe da força-​-
tarefa ainda envia a Moro uma versão inacabada do trabalho para que o
juiz possa adiantar a sentença.
NÃO VI - Barra, da Andrade: Moro pediu à PF para retardar o envio de planilha
NÃO VI - Barra, da Andrade: Moro pediu à PF para retardar o envio de planilha (Junior
Pinheiro/Photopress/Estadão Conteúdo)

Dentro da relação estabelecida pela


dupla, chama atenção também o
momento em que Dalla​gnol dá dicas
ao “chefe” sobre argumentos para
garantir uma prisão. Isso aconteceu
em 17 de dezembro de 2015, quando
Moro informa que precisa de
manifestação do MPF no pedido de
revogação da prisão preventiva de
José Carlos Bumlai, pecuarista e
amigo de Lula. “Ate amanhã meio dia”,
escreve. Dalla​gnol garante que a ação
será feita e acrescenta: “Seguem
algumas decisões boas para
mencionar quando precisar prender
alguém…”. À luz do direito, é tão
constrangedor quanto se Cristiano
Zanin Martins fosse flagrado
passando a Moro argumentos para
embasar um habeas​-corpus a favor
de Lula.

Mesmo entre parceiros com bastante


afinidade há momentos de tensão (e
que precisam ser resolvidos com uma
conversa ao vivo). Em um deles,
ocorrido em um chat de 17 de
novembro de 2015, Moro dá um
puxão de orelha em Dalla​gnol. O juiz
reclama de que está difícil entender
os motivos pelos quais o MPF
recorreu da sentença aplicada aos
delatores Augusto Ribeiro de
Mendonça Neto, Pedro José Barusco
Filho, Mário Frederico Mendonça
Góes e Júlio Gerin de Almeida
Camargo. Dalla​gnol tenta se justificar,
sem sucesso. “O mp está recorrendo
da fundamentação, sem qualquer
efeeito pratico”, critica o juiz. “Na
minha opinião estao provocando
confusão.” Para Moro, o efeito prático
do recurso apresentado pelo MPF
será “jogar para as calendas a
existência execução das penas dos colaboradores”, ou seja, postergará o
início do cumprimento da pena aplicada aos delatores citados. Mais uma
vez, tudo fora dos autos. Dalla​gnol, resignado, pede um encontro com
Moro para a manhã do dia seguinte: “25m seriam suficiente (sic)”.

Peças fundamentais na Lava-​Jato, as delações exigem também que o


juiz se comporte de forma imparcial e somente após as negociações,
conduzidas pelo MPF, pois ao fim do processo caberá a ele decidir se
aceita ou não a oferta. Nesse capítulo, Moro cruzou igualmente a linha, a
exemplo do caso do ex-deputado Eduardo Cunha. Na noite de 12 de
junho de 2017, Ronaldo Queiroz, procurador da força-tarefa da Lava-Jato
na PGR, cria um grupo no Telegram com Dalla​gnol para avisar que foi
procurado pelo advogado de Cunha para iniciar uma negociação de
delação premiada. Queiroz afirma que as revelações poderiam ser de
interesse dos procuradores de Curitiba, Rio de Janeiro e Natal, onde
corriam ações relacionadas ao político. Após membros do Rio de Janeiro
serem incluídos no grupo, Queiroz posta uma mensagem que dá uma
ideia de sua visão de mundo sobre a quantidade de honestos na Justiça
e na política (uma visão de mundo compartilhada por muitos de seus
colegas da Lava-Jato). Queiroz afirma esperar que Cunha entregue no
Rio de Janeiro, pelo menos, um terço do Ministério Público estadual, 95%
dos juízes do Tribunal da Justiça, 99% do Tribunal de Contas e 100% da
Assem​bleia Legislativa.

No dia 5 de julho, durante o período


da tarde, os procuradores concordam
em marcar uma reunião com o
advogado Délio Lins e Silva Júnior
para a terça-​feira seguinte (11 de
julho). Naquele mesmo dia, às 23h11,
em uma conversa privada, Moro
questiona Dalla​gnol sobre rumores de
uma delação de Cunha. “Espero que
não procedam”, diz. Dalla​gnol afirma
que tudo não passa de rumores. Ele
confirma ao juiz que está programado
apenas um encontro com o advogado
para que os procuradores tomem
conhecimento dos anexos.
“Acontecerá na próxima terça.
estaremos presentes e
acompanharemos tudo. Sempre que
quiser, vou te colocando a par”,
afirma. Moro, então, reitera seu
posicionamento. “Agradeço se me
manter (sic) informado. Sou contra,
como sabe.” Detalhe: isso sem saber
o conteúdo.

Como a proposta de delação atingia


políticos com foro privilegiado, a
palavra final para assinar um acordo
de delação com Cunha passou para a
PGR. A homologação competia ao
ministro Luiz Edson Fachin, relator da
Lava​-Jato no STF. O ex-deputado
corria na época para fechar um
acordo antes de o doleiro Lúcio
Bolonha Funaro assinar os termos de
sua delação. Os procuradores
envolvidos nas negociações diziam
que a dupla falava sobre os mesmos
temas, o que tornaria desnecessária a
aprovação das duas colaborações. No
dia 28 de julho, já com os anexos de
Cunha em mãos, Ronaldo Queiroz diz
que a ideia é analisá-​los em conjunto
com os colegas para tomar uma
decisão sobre aceitar ou rejeitar a
delação. Em 30 de julho, Queiroz diz
que o material é fraco. No dia
seguinte, uma mensagem do
procurador Orlando SP,
provavelmente Orlando Martello
Júnior, traz o posicionamento de
Curitiba — o mesmo de Moro:
“Achamos que o acordo deve ser
negado de imediato”.

O papel de líder da Lava-Jato em


Curitiba é exercido em diversas oportunidades pelo ex-juiz. Em mais de
uma ocasião, Moro aparece nos chats do Telegram interferindo na
agenda dos procuradores da força-tarefa, outra atitude que gera a
suspeição de qualquer magistrado. Em 7 de julho de 2015, por exemplo,
um membro da força-tarefa, que a reportagem de VEJA identificou ser o
procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, escreve o seguinte: “Igor.
O Russo (Moro) sugeriu a operação do professor para a semana do dia
20”. Igor (o delegado da Polícia Federal Igor Romário) responde: “Opa…
beleza… Vou começar a me organizar”. De acordo com a apuração da
revista, o “professor” era o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, da
Eletronuclear. Ele acabou sendo preso no dia 28. Em outro episódio,
Moro não apenas sugere uma data para a operação como também já fala
em receber a denúncia. O caso em questão aparece em um diálogo
ocorrido em 13 de outubro de 2015. Nele, o procurador Paulo Galvão, o
PG, alerta Roberson Pozzobon, seu colega da força-​tarefa, sobre uma
orientação do juiz. “Estava lembrando aqui que uma operação tem que
sair no máximo até por volta de 13/11, em razão do recesso e do pedido
do russo (Moro) para que a denúncia não saia na última semana”, escreve
PG. “Após isso, vai ficar muito apertado para denunciar.” Pozzobon
concorda com PG e acrescenta: “uma grande operação por volta desta
data seria o ideal. Ainda é próximo da proclamação da república. rsrs”.

A partir de um levantamento das operações ocorridas em novembro e


das denúncias oferecidas em dezembro de 2015, chega-se à conclusão
de que o diálogo trata da Operação Passe Livre, que prendeu José
Carlos Bumlai. Ele atuou como laranja do PT, intermediando um
empréstimo de 12 milhões de reais do Banco Schahin ao partido em
2004. O pedido de Moro comentado na conversa entre PG e Pozzobon
acabou cumprido à risca. Bumlai foi preso em 24 de novembro e
denunciado em 14 de dezembro — na última semana antes do recesso
da Justiça Federal do Paraná. No dia seguinte, Moro recebeu a denúncia,
a tempo de impedir que os crimes prescrevessem no fim de 2015.
Dentro de uma visão simplista, a estratégia parece um golpe de mestre
do juiz para não deixar um bandido escapar da Justiça. Mas o argumento
de que os fins justificam os meios não pode prosperar numa sociedade
desenvolvida. Tal postura de Moro viola o devido processo legal, pondo
em risco o estado de direito. “Nesse caso, a sociedade pode aplaudir o
juiz, por acreditar que ele está tentando ser justo. Mas ele está
infringindo as leis do processo, que o impedem de imiscuir-se em uma
das partes e colaborar com ela, e é uma das garantias para que todos
sejam julgados da mesma forma”, afirma um juiz, que pediu para não ser
identificado. “Imagine que todos os magistrados atuem da mesma forma,
infringindo uma regra aqui e outra ali para alcançar seus objetivos. Um
pode se aliar à defesa para soltar um criminoso; outro pode se aliar à
acusação para perseguir um inimigo e, aí, o céu é o limite”, conclui.

POR POUCO - Bumlai: pressão no MPF para que denúncia fosse antes do recesso
POR POUCO - Bumlai: pressão no MPF para que denúncia fosse antes do recesso (Vagner
Rosario/VEJA)

Uma das obsessões de Moro envolvia manter os casos da Lava-Jato em


seu poder em Curitiba, a exemplo dos processos de Lula do tríplex do
Guarujá e do sítio de Atibaia. Nesse
esforço, o magistrado mentiu a um
ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) ou, na hipótese mais benigna,
ocultou dele uma prova importante,
conforme mostra um dos diálogos. A
conversa em questão se refere ao caso
de Flávio David Barra, preso em 28 de
julho de 2015, quando presidia a AG
Energia, do grupo Andrade Gutierrez. Sua
detenção ocorreu na Operação
Radioatividade, relacionada a
pagamentos de propina feitos por
empreiteiras, entre elas a Andrade
Gutierrez, a Othon Luiz Pinheiro da Silva,
da Eletronuclear, responsável pela
construção da usina nuclear Angra 3. Em
25 de agosto, a defesa de Barra pede ao
ministro do STF Teori Zavascki a
suspensão do processo tocado pela 13ª
Vara de Curitiba, alegando que Moro não
tinha competência para julgar o caso por
haver indício de envolvimento de
parlamentares, entre eles o então
senador Edison Lobão (MDB-MA).

Diante da reclamação, Zavascki cobra


explicações de Moro, que diz não saber
nada sobre o envolvimento de
parlamentares. Mesmo assim, com base
nas informações da defesa, o ministro do
STF suspende em 2 de outubro as investigações, o que força o então juiz
a remeter o caso de Curitiba para Brasília três dias depois. Seu
comportamento perante Zavascki foi impróprio, como evidencia um
diálogo registrado no Telegram dezoito dias depois entre o procurador
Athayde Ribeiro Costa e a delegada Erika Marena, da Polícia Federal.
Costa diz precisar com urgência de uma “planilha/agenda” apreendida
com Barra que descreve pagamentos a diversos políticos. Marena
responde que, por orientação de “russo” (Moro), não tinha tido pressa
em “eprocar” a planilha (tradução: protocolar o documento no sistema
eletrônico da Justiça). “Acabei esquecendo de eprocar”, disse. “Vou
fazer isso logo”, completa.

Na pior das hipóteses, Moro já sabia da existência da planilha quando foi


inquirido por Zavascki e mentiu ao ministro. Em um segundo possível
cenário, igualmente comprometedor, Moro teria tomado conhecimento
da planilha depois da inquirição de Zavascki e pediu à delegada para
“não ter pressa” em protocolar o documento. Tudo indica que a manobra
tinha como objetivo manter o caso em Curitiba. “Um juiz não pode
ocultar provas, e, se o diálogo tiver a autenticidade comprovada,
estamos diante de uma conduta bastante problemática”, afirma o
advogado Gustavo Badaró, professor de processo penal da USP, que
analisou a pedido de VEJA o episódio. Na primeira leva de mensagens
divulgadas pelo Intercept no mês passado, Moro já aparecia reclamando
de um delegado da PF que havia incluído rápido demais todos os
elementos da investigação no sistema eletrônico, o que obrigaria o juiz a
enviar parte do processo ao STF.

A relação entre Moro e Dalla​gnol era tão próxima que abre espaço para
que eles comemorem nas conversas o sucesso de algumas etapas da
Lava​-Jato, como se fossem companheiros de trabalho festejando metas
alcançadas. Em 14 de dezembro de 2016, Dallagnol escreve ao parceiro
para contar que a denúncia de Lula seria protocolada em breve,
enquanto a de Sérgio Cabral já seria registrada no dia seguinte (o que de
fato ocorreu). Moro responde com um emoticon de felicidade, ao lado da
frase: “ um bom dia afinal”. A proximidade rendeu ainda lances curiosos.
Em 9 de julho de 2015, Dallagnol saúda o colega: “bem vindo ao
telegram!!”. Cinco meses depois, dá dicas ao juiz de como usar o
programa no desktop, enviando no chat um link para o download. “Se
puder me mandar no e-mail, agradeço. O tico e o teco da informática
aqui não são muito espertos”, responde Moro. Em março de 2017,
Dallagnol escreve ao juiz para tirar uma dúvida: ele assina o primeiro
nome com ou sem acento? O motivo é que o procurador estava
revisando um livro sobre Moro. “Não uso normalmente o acento”,
responde o juiz. Em julho de 2018, Dallagnol atua como assessor de
imprensa, perguntando a Eduardo El Hage, um colega do Ministério
Público Federal no Rio, detalhes de um pedido de participação de Moro
em um programa do canal fechado HBO: “Eles contataram o Moro aqui e
ele queria ter o contexto e informações que possam ser úteis pra ele
decidir se atende”. Em um dos períodos mais tensos da operação, o que
se seguiu à ação do juiz que torna público o famoso trecho do grampo
telefônico em que Dilma Rousseff envia o “Bessias” para entregar a Lula
o termo de posse em seu ministério, Dallagnol combina em um dos chats
com procuradores uma nota de apoio a Moro e repassa ao grupo uma
sugestão do próprio juiz para o texto. Na mesma época, Moro também
recebe um afago e conselho de um interlocutor no Telegram (tudo indica,
o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima). “O movimento seria nas
sombras, como você mesmo disse”, escreve, referindo-se ao convite de
Dilma para Lula. “O seu capital junto à população vai proteger durante
um tempo. As coisas se transformam muito rápido.”
PROFESSOR - O almirante Othon: data de prisão foi sugerida por Moro
PROFESSOR - O almirante Othon: data de prisão foi sugerida por Moro (Fernando
Frazão/Agência Brasil)

As conversas entre membros do Ministério Público Federal assumem


várias vezes o tom de arquibancada, com os membros da força-tarefa
vibrando e torcendo a cada lance da batalha contra os inimigos. Em 13
de julho de 2015, Dallagnol sai exultante de um encontro com o ministro
Edson Fachin e comenta com os colegas de MPF: “Caros, conversei 45
m com o Fachin. Aha uhu o Fachin é nosso”. A preocupação da força-
tarefa com a comunicação para a opinião pública era constante. Em 7 de
maio de 2016, Moro comenta com Dalla​gnol que havia sido procurado
pelo apresentador Fausto Silva. Segundo o relato do juiz, o apresentador
o cumprimentou pelo trabalho na Lava-Jato, mas deu um conselho: “Ele
disse que vcs nas entrevistas ou nas coletivas precisam usar uma
linguagem mais simples. Para todo mundo entender. Para o povão. Disse
que transmitiria o recado. Conselho de quem está a (sic) 28/anos na TV.
Pensem nisso”. Procurado por VEJA, Fausto Silva confirmou o encontro e
o teor da conversa entre ele e Moro.
Curiosidades dos bastidores à parte,
o que vai definir mesmo o destino de
Moro à luz das revelações dos chats
são os trechos nos quais fica evidente
seu papel duplo de juiz e assistente
de acusação. A Lava-Jato foi
assumidamente inspirada na Mani
Pulite, a Mãos Limpas da Itália, que
desbaratou um gigantesco esquema
de corrupção na década de 90,
resultando em 2 993 mandados de
prisão nos dois primeiros anos de
operação. No caso do sistema de
Justiça do país europeu há a figura do
magistrado que trabalha no Ministério
Público — mas ele não atua nos
julgamentos. A melhor explicação
para o comportamento irregular do
atual ministro é que ele tenha se
inspirado nessa figura para pautar
suas ações na Lava-Jato. “O Moro
confundiu totalmente os papéis”,
afirma o jurista Wálter Fanganiello
Maiero​vitch. “O magistrado que
investiga nunca é o que julga, nem na
Itália nem em nenhuma outra
democracia do planeta.”

No Brasil, o papel duplo do juiz viola o


artigo 254 do Código de Processo
Penal, que proíbe que o magistrado aconselhe uma das partes ou tenha
interesse em favor da acusação ou da defesa. Essa atuação pode, de
fato, provocar a revisão de atos de Moro. No caso da condenação de
Lula, por exemplo, o STF adiou a discussão para agosto. Será uma
decisão complexa e delicada para a Suprema Corte. Ali, mesmo que
alguns ministros já tenham criticado excessos da Lava-Jato, é difícil
qualquer prognóstico. Um dado, porém, é certo. Fiscalizar o que Moro
fez enquanto juiz não significa pôr em risco os avanços contra a
corrupção no Brasil, como sugerem as manifestações recentes nas ruas
das cidades do país. A sociedade brasileira não vai abrir mão do
processo que resultou, pela primeira vez na história, na prisão de
políticos e empresários poderosos.

MANIFESTAÇÃO - Passeata em Brasília: Moro virou Super-Homem


MANIFESTAÇÃO - Passeata em Brasília: Moro virou Super-Homem (Luciano Freire/Futura
Press)

Embora as conversas mostrem que Moro cometeu infrações, os crimes


punidos ao longo da Lava-Jato gozam de vasta coleção de provas
materiais e orais. A maioria esmagadora das sentenças, aliás, acabou
confirmada em outras instâncias da Justiça. Graças ao esforço dos
procuradores de Curitiba, descobriu-se também o Setor de Operações
Estruturadas da Odebrecht, desenvolvido exclusivamente para
administrar o pagamento de propinas efetuado pela empresa no Brasil e
no exterior. O resultado prático e sua importância são incontestes.
Diversos políticos que se locupletaram nos últimos anos ainda estão
presos. Entre eles, Lula, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha… O próprio Lula,
mesmo que a suspeição de Moro seja confirmada, pode permanecer
preso. Ele já foi condenado em primeira instância pelo sítio em Atibaia,
sentença proferida pela juíza Gabriela Hardt, e o caso aguarda apenas a
decisão do TRF4 (provavelmente favorável à sua condenação). Portanto,
não se trata aqui de uma defesa do Lula Livre nem de estar contra a
Lava-Jato. Mas, sim, do direito inexorável que todos os cidadãos têm de
um julgamento justo.

Na terça 2, Moro (que, por sinal, não faz mais parte da Lava-Jato) ficou
sete horas no Congresso respondendo a parlamentares sobre o caso.
Repetiu o que tem dito nas últimas semanas: os diálogos divulgados
foram fruto de um roubo, podem ter sido editados e, mesmo verdadeiros,
não apontam nenhum tipo de desvio. A cada nova revelação, fica mais
difícil sustentar esse discurso. Na sentença em que condenou Lula, o
ex​-juiz anotou que “não importa quão alto você esteja, a lei ainda está
acima de você”. A frase cabe agora perfeitamente em sua situação atual.
Levado ao Ministério da Justiça para funcionar como uma espécie de
esteio moral da gestão Bolsonaro, ele ainda goza de grande
popularidade, mas hoje depende do apoio do presidente para se manter
no cargo. Independentemente do seu destino, o caso dos diálogos
vazados representa uma oportunidade para que o país discuta os
excessos da Justiça e o fortalecimento dos direitos do cidadão. Um país
onde as instituições funcionam não precisa de nenhum Super-Homem.

Nota da redação: procurados por VEJA, Deltan Dalla​gnol e Sergio Moro


não quiseram receber a reportagem. Ambos gostariam que os arquivos
fossem enviados a eles de forma virtual, mas, alegando compromissos
de agenda, recusaram-se a recebê-​los pessoalmente, uma condição
estabelecida por VEJA. Mesmo sem saber o conteúdo das mensagens, a
assessoria do Ministério da Justiça enviou a seguinte nota: “A revista
Veja se recusou a enviar previamente as informações publicadas na
reportagem, não sendo possível manifestação a respeito do assunto
tratado. Mesmo assim, cabe ressaltar que o ministro da Justiça e
Segurança Pública não reconhece a autenticidade de supostas
mensagens obtidas por meios criminosos, que podem ter sido
adulteradas total ou parcialmente e que configuram violação da
privacidade de agentes da lei com o objetivo de anular condenações
criminais e impedir novas investigações. Reitera-​se que o ministro
sempre pautou sua atuação pela legalidade”.

Colaboraram Leandro Demori, Victor Pougy, Nonato Viegas e Bruna de


Lara

Publicado em VEJA de 10 de julho de 2019, edição nº 2642

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