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Superior Tribunal de Justiça

RECURSO ESPECIAL Nº 1.573.635 - RJ (2015/0167201-6)


RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : SARBG
RECORRENTE : A L T B C DA C
ADVOGADO : LAURO MÁRIO PERDIGÃO SCHUCH - RJ037500
RECORRIDO : JCBG
ADVOGADOS : CRISTINA DA MOTTA CARVALHO - RJ074959
MARCOS VALÉRIO DA SILVA NOLASCO DE CARVALHO E OUTRO(S) -
RJ095453
CARLOS EDUARDO MOTA FERRAZ E OUTRO(S) - RJ175848
ESPEDITO JOSÉ MOREIRA - RJ163558

RELATÓRIO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

Cuida-se de recurso especial interposto por S A R B G e A L T B C DA


C, com base na alínea “a” do permissivo constitucional, em face de acórdão do
TJ/RJ que, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso de apelação
interposto por J C B G.
Recurso especial interposto e m: 23/03/2015.
Atribuído ao gabinete e m: 25/08/2016.
Ação: de regulamentação de visitas do menor N T B G R.
Sentença: julgou improcedente o pedido, impedindo que o avô
paterno realizasse visitas periódicas ao neto (fls. 131/133, e-STJ).
Acórdão: por unanimidade, negou-se provimento ao recurso de
apelação, nos termos da seguinte ementa:

DIREITO DE FAMÍLIA. REGULAMENTAÇÃO DE VISITA AVOENGA.


AVÔ PATERNO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO POR ENTENDER
PELA EXISTÊNCIA DE GRANDE ANIMOSIDADE ENTRE O GENITOR DA CRIANÇA E
SEU AVÔ. INCONFORMISMO DO AUTOR.
Preliminar de cerceamento de defesa rejeitada. Desnecessidade
de produção de prova oral quando existem provas suficientes para o
convencimento do magistrado, inclusive relatos da testemunha citada pelo
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autor. Artigo 130 do CPC. Submissão do feito ao Núcleo de Mediação do
Tribunal que se mostrou infrutífero, exigindo a prolação de decisão judicial para o
caso. Regulamentação de Visitas dos pais à criança e ao adolescente estendida
aos avós pela Lei 12398/2011 (artigo 1594, parágrafo único do Código Civil)
como imperativo da lei natural da solidariedade familiar em que participam da
criação e formação dos netos com carinho e afeto que ultrapassam o círculo dos
genitores. O Estatuto da Criança e do Adolescente é o diploma legal
regulamentador da norma constitucional que prevê a proteção integral das
crianças e adolescentes recaindo tal obrigação à família, ao Estado e à sociedade,
nos termos do art. 227, caput, da Constituição Federal. No caso concreto,
apesar das desavenças entre os genitores da criança e o autor, não há nada que
desabone o comportamento do recorrente com o neto, motivo pelo qual se
encontra razoável e prudente a fixação de sua visitação de forma gradual a fim de
fomentar e solidificar a formação do vínculo do neto com o seu avô. Laudo
psicológico bem elaborado por profissional do núcleo de apoio às varas de
família deste Tribunal conclusivo pela visitação de forma gradual como ora
estabelecida. Parecer da douta Procuradoria de Justiça pelo parcial provimento
do recurso. Recurso a que se dá provimento em parte. Precedentes do TJRJ. (fls.
199/212, e-STJ).

1ºs embargos de declaração: opostos pelos recorrentes, foram,


por unanimidade, providos em parte, a fim de fixar a data de início da visitação ao
menor (fls. 219/223, e-STJ).
2ºs embargos de declaração: opostos pelos recorrentes, foram
rejeitados, por unanimidade (fls. 265/270, e-STJ).
Recurso especial: alega-se violação ao art. 1.589, parágrafo único,
do CC/2002 (fls. 276/287, e-STJ).
1ª petição sobre fato novo: informam os recorrentes que, após a
interposição do recurso especial, passaram a residir temporariamente em
Miami/EUA, ocasião em que o menor N T B G R foi diagnosticado com TEA –
Transtorno do Espectro do Autismo (fls. 506/628, e-STJ).
Tutela cautelar: foi atribuído efeito suspensivo ao recurso especial
por sua Exa., Min. João Otávio de Noronha, impedindo a continuidade do regime de
visitação determinado no acórdão recorrido, conforme decisão proferida na MC

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25315/RJ e que foi publicada no DJe de 18/12/2015.
2ª petição sobre fato novo: informam os recorrentes que
retornaram ao Brasil em definitivo e que o menor N T B G R vinha apresentando
melhorias em seu quadro de saúde, mas que estaria o recorrido buscando
sucessivas e insistentes aproximações, a despeito da liminar deferida na medida
cautelar (fls. 669/694, e-STJ).
Decisão de conversão em diligência: diante da gravidade e da
singularidade das questões envolvidas na hipótese em exame, determinou-se a
realização de novo exame psicossocial “sobre a conveniência, para o menor, da
estipulação de visitas avoengas” (fl. 700, e-STJ).
Exame psicossocial: Em atenção à determinação de fl. 700 (e-STJ),
foram realizados estudo social (fls. 860/870, e-STJ) e estudo psicológico (fls.
1.063/1.071, e-STJ), que concluíram que a animosidade existente entre o pai e o
avô poderia ser nociva ao menor; instados a se manifestar sobre os estudos,
somente os recorrentes o fizeram, juntando, inclusive, novo parecer técnico
psicológico (fls. 1.077/1.108, e-STJ).
Ministério Público Federal: inicialmente, opinou pelo não
conhecimento do recurso especial (fls. 649/657, e-STJ); após a vista do exame
psicossocial, aditou e retificou seu parecer anterior, opinando pelo provimento do
recurso especial (fls. 1.112/1.114, e-STJ).
É o relatório.

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ADVOGADOS : CRISTINA DA MOTTA CARVALHO - RJ074959
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EMENTA

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITA


AVOENGA. RESTRIÇÃO OU SUPRESSÃO AO DIREITO DE VISITAÇÃO EXISTENTE
ENTRE AVÓS E NETOS. POSSIBILIDADE, EM CARÁTER EXCEPCIONAL, EM
OBSERVÂNCIA AO DEVER DE MÁXIMA PROTEÇÃO AO MENOR.
ANIMOSIDADE ENTRE PAIS E AVÓS. IRRELEVÂNCIA. EXAME DE VIABILIDADE
DO PEDIDO QUE SE SUBMETE EXCLUSIVAMENTE A EXISTÊNCIA DE
BENEFÍCIO OU PREJUÍZO AO MENOR. NETO DIAGNOSTICADO COM
TRANSTORNO PSIQUÍCO QUE NÃO RECOMENDA A EXPOSIÇÃO A AMBIENTES
DESEQUILIBRADOS, CONTURBADOS OU POTENCIALMENTE TRAUMÁTICOS.
OBSERVÂNCIA DO MELHOR INTERESSE DO MENOR.
1- Ação proposta em 28/11/2012. Recurso especial interposto em
23/03/2015 e atribuído à Relatora em 25/08/2016.
2- O propósito recursal consiste em definir se, ao fundamento de se proteger
integralmente e atender ao melhor interesse do menor, o direito de visita
que busca promover a convivência entre os avós e os netos pode ser
restringido ou, até mesmo, inteiramente suprimido.
3- O direito à visitação avoenga, reconhecido pela doutrina e pela
jurisprudência antes mesmo da entrada em vigor da Lei 12.398/2011,
constitui-se em um direito que visa o fortalecimento e desenvolvimento da
instituição familiar, admitindo restrições ou supressões, excepcionalmente,
quando houver conflito a respeito de seu exercício, mediante a
compatibilização de interesses que deverá ter como base e como ápice a
proteção ao menor.
4- As eventuais desavenças existentes entre os avós e os pais do menor não
são suficientes, por si sós, para restringir ou suprimir o exercício do direito à
visitação, devendo o exame acerca da viabilidade do pedido se limitar a
existência de benefício ou de prejuízo ao próprio menor.
5- Na hipótese, tendo sido o menor diagnosticado com TEA – Transtorno do
Espectro do Autismo, devidamente demonstrado por estudos psicossociais
que atestam as suas especialíssimas condições psíquicas e que recomenda a
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sua não exposição a ambientes desequilibrados, a situações conturbadas ou
a experiências traumáticas, sob pena de regressão em seu tratamento
psicológico, descabe ao Poder Judiciário, em atenção ao melhor interesse do
menor, impor a observância da regra que permite a visitação.
6- Recurso especial conhecido e provido, ficando prejudicado o efeito
suspensivo anteriormente deferido na MC 25315.

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VOTO

A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):

O propósito recursal consiste em definir se, ao fundamento de se


proteger integralmente e atender ao melhor interesse do menor, o direito de visita
que busca promover a convivência entre os avós e os netos pode ser restringido
ou, até mesmo, inteiramente suprimido.

1. IMPOSSIBILIDADE DE CONVIVÊNCIA ENTRE NETOS E AVÓS


EM VIRTUDE DE ANIMOSIDADES ENTRE FAMILIARES. ALEGADA
VIOLAÇÃO AO ART. 1.589, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CC/2002.
Inicialmente, é preciso examinar o art. 1.589, parágrafo único, do
CC/2002, que se alega teria sido incorretamente aplicado pelo acórdão recorrido:

Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos,


poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o
outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e
educação.
Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer
dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou
do adolescente.

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A esse respeito, anote-se desde logo que a regra do art. 1.589,
parágrafo único, introduzido no CC/2002 por intermédio da Lei 12.398/2011, não
encontra correspondência normativa no CC/1916.
O direito à visitação existente entre avós e netos, contudo, não é uma
verdadeira inovação no direito brasileiro, na medida em que a jurisprudência e a
doutrina há muito já reconheciam a existência dessa figura, conforme se colhe de
julgados relatados por Flamínio de Resende e por Serpa Lopes, ainda ao final
da década de 4 0, e de parecer lavrado em 1950 pelo então 1º Subprocurador da
República, João Coelho Branco, que opinava pelo reconhecimento do direito à
visitação com base no art. 394 do CC/1916, mediante arguta construção assentada
no abuso do pátrio poder. Extrai-se de seu emblemático parecer:

Não pode, pois, o pai, sem motivo justo, opor-se ao


direito de visita dos avós aos netos, sob pena de incidir em abuso do
pátrio poder, passível de intervenção judicial.
Não é apenas um direito natural, um direito moral, como
lhe chama Josserand, porque tem fundamento na lei, na ordem jurídica positiva,
principalmente no direito brasileiro, em que exercem os avós função
marcantemente, preponderante na hierarquia familiar, o estatuto civil
impõe-lhes, precipuamente, o munus publicum da tutela, em que lhes cabe
reger a pessoa dos netos, velar por eles, administrar-lhes os bens e dirigir-lhes a
educação: imputa-lhes a obrigação alimentícia e estabelece-lhes limites à libertas
testandi, reconhecendo nos seus netos seus herdeiros necessários.
(...)
Não poderia, portanto, negar-lhes o mínimo dos
mínimos direitos, in e s t, o de manter relações com os descendentes.
É, outrossim, expressão do respeito que o neto, devendo aos genitores (art.
384, VII), deve aos avós, seus eventuais representantes legais.
Sociologicamente, cresce de ponto a necessidade do
reconhecimento desse direito elementar, em face, de um lado, do relaxar
da vida familiar, principalmente nas grandes cidades, e, de outro lado, do
aumento das dificuldades econômicas, que obrigam ambos os cônjuges
a lutar pela mantença da prole fora do lar. Surgem, então os avós,
nobres, generosos, desprendidos, antecipando-se, ainda em vida dos pais, no
sacerdócio que a lei lhes quis confiar. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
Jurisprudência Mineira, Belo Horizonte, v. 3, n. 3/4, p. 413, mar./abr. 1951).

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É induvidoso que se constata ter havido uma profunda modificação
social desde as lições anteriormente reproduzidas foram concebidas, o que exige
do intérprete a necessária contextualização e adequação das premissas para a
realidade social vivida neste momento histórico, o que se faz mediante uma
indispensável releitura de conceitos como o de pátrio poder e o de hierarquia
familiar.
Esse fato, contudo, não retira do texto a sua própria essência e
atualidade, no sentido de que há um direito natural (como reiterado, em 1980,
em lapidar acórdão de relatoria de Galeno Lacerda), claramente dissociado e
superior ao direito positivo, de que efetivamente se promova a saudável
convivência entre os avós e os netos, quer seja como uma espécie de
mecanismo de retribuição de todos os deveres que aos primeiros são
impostos, quer seja para que haja o fortalecimento da instituição familiar e a
transmissão das experiências vividas pelos ancestrais e que eventualmente
sejam benéficas aos netos.
Diante disso, é possível extrair uma primeira conclusão: ao positivar
esse instituto, o legislador fixou a possibilidade de exercício do direito de visitação
entre avós e netos como uma regra geral, o que, consequentemente, resulta no
fato de que eventuais restrições ou supressões desse direito devem ser
interpretadas como excepcionais, sempre condicionadas, nos termos da lei, à
constatação judicial de que essa medida atenderá aos interesses da criança ou do
adolescente.
De outro lado, é correto afirmar que o direito à visitação insculpido no
art. 1.589, parágrafo único, do CC/2002, não é uma prerrogativa exclusiva dos avós,
nem tampouco é um direito exercitável potestativamente pelos netos, de modo
que o seu regular exercício, especialmente em situações de conflito, depende de
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uma compatibilização de interesses que terá, sempre, como base e como
ápice, a proteção ao menor.
A esse respeito, leciona Rosa Maria Barreto Borrielo de Andrade
Nery:

Mas o direito de visita não é uma situação jurídica elementar.


Traduz-se como situação jurídica complexa, atribuindo posições jurídicas de
vantagens e de desvantagens para todas as pessoas que o tomam
como direito que pode ser exigido, em face daquelas que resistem ao
exercício pretendido, porque, curiosamente, no contexto da problemática
jurídica da família, pode-se dar o paradoxo de a vantagem do exercício de
um direito por alguém ser causa direta de grande afronta para aquele
que se supõe beneficiário do comando da lei e, por isso, justificar a aplicação
da lei de maneira diversa daquela que, em condições normais, seria de se
esperar.
Na eventualidade de os genitores do pai da criança postularem
em juízo direito de visita aos seus netos, que se encontram sob a guarda da mãe,
por exemplo, a abrangência da disputa poderá ensejar numerosas questões,
todas elas passíveis de análise ampla perante o Judiciário, com necessário
acompanhamento psicossocial e respeito extremo pelos direitos da
criança, ou do adolescente, e atenção plena para as benesses e/ou
prejuízos que o convívio almejado pode redundar para a formação da
criança, nos contornos de seu espaço socioeconômico e afetivo.
Ainda que deva ser realçada a importância que as diferenças
possam contribuir de maneira positiva para a formação melhor da
criança e do adolescente, tudo deverá ser devidamente considerado: as
diferenças culturais, o ambiente onde as visitas terão lugar; as condições
econômicas das partes, o grau de amizade, ou de animosidade entre os
que buscam o direito de visita e os que resistem a ele, suas razões
conflitantes e, principalmente, as consequências que do deferimento
da pretensão dos avós advirão para a criança, no ambiente onde se
entendeu como melhor para ela estar.
Repita-se: o direito de visita dos avós não tem um único aspecto.
Ele é multifacetado na medida em que revela direitos e deveres
recíprocos de avós e netos. A experiência aponta para o fato de que a
tendência do intérprete, nesses casos, e a de reconhecer o direito dos
avós na medida em que, paralela e proporcionalmente, também se
reconhece os direitos do neto incapaz. As características do
relacionamento humano familiar não permitiriam que o exercício de um direito
pudesse ser a causa direta de perda, ou comprometimento, do direito de
outrem, de igual magnitude e qualidade. (NERY, Rosa Maria Barreto Borrielo de
Andrade. Poder familiar, tutela, curatela e guarda de incapazes e o direito dos
avós de visita aos netos: aspectos abrangentes da Lei 12.398/2011 in Revista
dos Tribunais: RT, v. 100, nº 907, p. 26/27, maio 2011).
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Estabelecidas essas premissas essenciais à compreensão da matéria,


passa-se ao exame da hipótese que é objeto do presente recurso especial.
De início, a sentença e o acórdão recorrido registram que há, entre os
recorrentes e recorrido, respectivamente pais e avô paterno do menor, um clima
de verdadeira belicosidade, com alegações recíprocas e sucessivas de
arrogância e de prepotência que teriam como causa, segundo narra o
recorrente S A R B G, o fato de que o recorrido seria uma pessoa descontrolada e
truculenta, que teria lhe aplicado diversas surras com cinto, fivela, chinelo e cabo
de vassoura, criando-lhe fundado pavor de que tais situações pudessem ser
revividas, agora na figura de seu filho.
Diante desse cenário, fato é que, independentemente do resultado
que se anunciará mais adiante, não há vencedores neste processo. O
esgarçamento das relações familiares havidas entre recorrentes e recorrido é
evidente e, como já dizia o saudoso José Carlos Barbosa Moreira, “nem todos
os tecidos deixam costurar-se de tal arte que a cicatriz desapareça por inteiro”, de
modo que a decisão que se adotar, seja ela qual for, resultará em perdas que,
infelizmente, não se sabe se serão minimamente recompostas no futuro.
De outro lado, descabe enfocar a problemática em exame sob a
ótica da relação paterno-filial entre recorrente e recorrido, na medida em
que não sabe seguramente o que de fato desencadeou esse grave conflito entre
pai e filho. As versões apresentadas por ambos são conflituosas e os fatos
ocorreram há mais de 30 anos, sendo insuscetíveis, portanto, de adequada
reconstrução.
E o Poder Judiciário, nesse contexto, não pode, por meio de uma
decisão judicial, determinar que sejam restabelecidos os laços amorosos que se

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romperam em um dado momento histórico, embora se possa afirmar que o
caminho para tanto, se assim quiserem as partes oportunamente, estará sempre
em algum lugar entre o perdão, a compaixão, a tolerância e o reconhecimento
de que o ser humano é, essencialmente, um ser errante, e de que os pais de
hoje possivelmente serão os avós de amanhã.
Desse modo, a questão deve ser examinada, exclusivamente, sob a
ótica do eventual benefício ou prejuízo que as visitas do avô paterno
poderão causar ao menor que recentemente completou 08 (oito) anos de
idade.
Nesse sentido, anote-se que, após a interposição do recurso especial,
comunicou-se nos autos que o menor foi diagnosticado com TEA – Transtorno do
Espectro do Autismo e, por se tratar de afirmação contida em laudo unilateral
produzido nos Estados Unidos da América por ocasião da temporária residência do
menor naquele país, determinei fossem atualizados os estudos psicossociais
que haviam sido realizados em 1º grau, providência indispensável para a tomada da
decisão diante do referido fato novo associado ao distanciamento temporal
daqueles primeiros estudos em relação ao momento atual.
A esse respeito, consta do estudo e parecer social, mais
precisamente às fls. 866/867 (e-STJ):

Os dados apurados nos atendimentos e no contato direto desta


subscritora com N exprimem a complexidade da lide, que, em última análise,
abrange intricado litígio entre o avô paterno e os pais da criança.
Para subsidiar o presente parecer social, requisitamos o relatório
elaborado pela terapeuta ocupacional, Dra. L O, em agosto de 2017, a última
avaliação psicológica do menino com a Dra. A F K, realizada em novembro de
2017, nos Estados Unidos, e o atestado neuropsiquiátrico da Dra. I G S DE S,
datado de 27.04.2018.
O conjunto das provas técnicas corrobora a singularidade do
estado de saúde do infante, que ostenta os múltiplos critérios para o
diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista, (TEA), em combinação

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com o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), o
Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e o Transtorno do
Desenvolvimento da Coordenação (TDC).
A riqueza das análises feitas pelos profissionais que o assistem
contraindica a adoção de medidas judiciais que possam comprometer a imagem
de N, sujeito de direitos, e colocá-lo vulnerável a possíveis prejuízos físicos,
sociais, morais e emocionais.
No caso vertente, o pressuposto de receio de dano irreparável ou
de difícil reparação faz-se explícito, haja vista os elementos irrefutáveis
sobre o tratamento diferenciado que a criança requisita para crescer
em condições seguras e dignas de existência.
A Sra. A L e o Sr. S A, detentores do poder familiar, vêm
cumprindo com esmero os deveres e responsabilidades parentais. A
parceria, o empenho, a reciprocidade e o companheirismo do casal
constituem os pilares para que N possa superar os limites impostos
pelos seus transtornos e alcançar uma melhora em seu
desenvolvimento global.
Decerto, os genitores travam um aprendizado cotidiano para
lidar com as reações da criança, em diferentes contextos sociais.
Precisaram pesquisar, estudar e aprofundar conhecimentos acerca do
autismo, bem como sobre as especificidades que perpassam o
quadro de N.
Decerto, é difícil, doloroso e extenuante criar e educar um
filho com distúrbio raro, crônico e incurável.
Para além do preconceito e do estigma social, os pais
exercitam a resiliência para suportar o sofrimento do filho com as
crises depressivas e de ansiedade generalizada; que, conforme
observado anteriormente, culminam em atos de autoflagelação e de ideias
suicidas.
A incapacidade de N para se adaptar a situações
inusitadas e ao mundo circundante o eleva a alçada de um ser
humano especial. De tal sorte, em que pesem os argumentos lançados pelo
avô paterno para postular a regulamentação das visitas, opinamos pela primazia
da proteção integral à criança e pelo consequente indeferimento do pleito
judicial.

De outro lado, consta do estudo psicológico, mais especificamente


às fls. 1.067/1.069 (e-STJ):

Tentamos conversar também com N T B R, 7 anos, a criança em


questão. Ele mostrou-se bastante arredio, ao entrar em nossa sala de
atendimento, permanecendo todo o tempo agarrado à mãe,
escondendo o rostinho e nem, ao menos, querendo nos olhar.
N foi diagnosticado com TEA, Transtorno do Espectro Autista,
para o que faz acompanhamento multidisciplinar, conforme atestado médico em
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anexo (anexo 02).
Em nosso encontro, apesar de nosso muito pouco tempo de
observação, N demonstrou, nitidamente, grande dificuldade de
interação social.
Com base em nosso estudo, percebemos que a relação
conturbada que o Sr. S alega ter com seu pai, o autor desta, deva ser o
norteador para que uma visitação do Sr. J C ao neto não seja permitida.
Em função da problemática de saúde da criança, uma visitação do
avô, com quem N não tem contato, implicaria, provavelmente, em vínculos
entre o Sr. S e seu pai, o que não é do agrado do réu.
(...)
O autor deseja retomar a visitação ao neto, que ele chegou a
conseguir, mas que perdeu há três anos, de quem ele alega sentir falta e com
quem deseja ter contato e acompanhar seu crescimento.
N, a criança em questão, foi diagnosticada com TEA – Transtorno
do Espectro Autista, necessitando de tratamento e cuidados
compatíveis com suas necessidades e não tem contato com o avô
paterno há três a n o s.
Os pais de N alegam que a criança fica nervosa e ansiosa na
presença de pessoas estranhas, o que não faz bem à. criança.
Em função de nosso estudo, não identificamos que o
contato com o avô paterno possa ser prejudicial ao desenvolvimento
de N, apesar de sua questão de saúde.
Outrossim, identificamos grande animosidade entre o Sr. S e o
autor, seu pai, o que acreditamos ser o impedimento maior para um convívio
entre o autor e seu neto.
Sendo assim, acreditamos que, por conta do quadro clínico de N,
se a visitação de seu avô paterno for permitida judicialmente, esta deva ser
acompanhada de uma pessoa do convívio da criança, mas que seja neutra na
relação com o autor.

De fato, é verdade que os estudos realizados concluíram que o


recorrido não representa, por si só, uma ameaça ao neto.
Todavia, não é menos verdade que as especialíssimas condições
psíquicas do menor e o seu quadro clínico muito singular, que demandam
extremo zelo e um ambiente absolutamente equilibrado e controlado,
indicam que uma reaproximação entre avô e neto não poderia ocorrer de forma
impositiva e obrigatória, o que torna absolutamente inviável a ingerência do
Estado-Juiz em uma questão tão sensível e particular.

Documento: 89326668 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 13 de 14


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Não se olvida, evidentemente, a angústia vivida pelo avô que
pretendia acompanhar de perto o crescimento de seu neto, compartilhar com ele
a sua experiência e sua história e, com isso, talvez até mesmo ter a chance de, a
partir dessa relação, reparar os eventuais erros cometidos no passado. Se a
hipótese não fosse de tal maneira singular, possivelmente esse seria o caminho,
até porque, como bem acentuou Edgard de Moura Bittencourt, “a afeição dos
avós pelos netos é a última etapa das paixões puras do homem; é a maior delícia
de viver a velhice” (BITTENCOURT, Edgar de Moura apud MADALENO, Rolf. Direito
de família. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 473).
Entretanto, a insistente negativa dos recorrentes em viabilizar esse
convívio se revela justificável na hipótese, pois o menor, diante do complicado
quadro psíquico que enfrenta, deve ser preservado ao máximo, impedindo-se, o
quanto possível, que seja ele exposto a experiências traumáticas e,
consequentemente, nocivas ao seu contínuo tratamento.
Em síntese, independentemente de culpados, é preciso que a dor
maior seja dada àquele que aparenta ter melhor condição de suportá-la, não
sem antes rogar a todos os envolvidos que procurem o caminho da paz, pelo bem
deste menor.

2. CONCLUSÃO.
Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso
especial, a fim de julgar improcedente o pedido de regulamentação de visitas do
avô paterno, invertendo-se a sucumbência.
Provido o recurso especial, fica prejudicada a tutela cautelar deferida
por meio de decisão publicada no DJe de 18/12/2015, proferida na MC 25315/RJ.

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