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Encontro de Lygia Clark com psicotèrapeutas1

Clínica "Canto da Gávek”


Ri o de J a n e i r o , 1982

O texto apresentado a seguir é a transcrição de uma era vinte - uma nota que nenhum professor francês Como é que você começou a coletlvlza ?
conversa entre Lygia Clark e um grupo de terapeutas costuma dar porqpe se ele der vinte, Isso quer dizer
voltados para o estudo e o tratamento da psicose. Na que 0 aluno sabe tanto quanto ele; então o professor Você nunca pode explicar como é que você sal
época desse encontro, a artistajá vinha desenvolvendo não dá. Eu dava vinte de antemão para todo mundo de uma coisa e passa para outra. Seria uma coisa
a Estruturação do Self havia seis anos. O gravador foi e dizia aos alunos: "venham ou não venham" a priorl, e seria fraca se partisse do conceito. A
acionado alguns minutos depois do inicio do debate, - e eutvivia com as pessoas todas em volta de mim, passagem acontece naturalmente. Por exemplo, a
momento em que Lygia Clark evoca seu trabalho adorando fazer as experiências. Baba Antropofdgica em que a pessoa tira da boca
Caminhando.2 após a apresentação do documentário Eu ia duas vezes por semana, por três horas seguidas, a linha de um carretei, usando a língua, eu achava
O Mundo de Lygia Clark} Realizado em 1973 por seu e notei que com o tempo começaram a acontecer que era o conceito mais preciso do meu trabalho.
filho. Eduardo Clark, o filme documenta várias das coisas. Por exemplo: bissexuais passavam a ser Mário Pedrosa diz que era comunicação (...) Eu lhe
propostas da artista que envolvem o receptor em heterossexuais, heterossexuais passavam a ser dizia que a comunicação é uma palavra fraca para
sua experiência corporal desenvolvidas até aquele, bissexuais, homossexuais passavama ser bissexuais. designar o que eu faço. O que eu faço é: uma pessoa
momento, ou seja durante as quatro fases que Então, houve no grupo uma transformação pessoal vomita uma baba, os outros engolem essa baba,
antecedem a Estruturação do Self.4 .1 muito intensa e regiessões de tal ordem -tanto nas misturam com sua própria baba, e vomitam por
mulheres como no< homens que eu pude ouvir., sua vez - é uma troca de babas. E no fundo, essa
Lygia Clark: Eudava um parde tesouras a uma pessoa e a palavra nascendo o que eu não posso explicar a coisa de tirar da boca é muito Isso mesmo. Eu não
lhedizia: "faça você mesmo seu próprioCom/n/>on<ro"; vocês... é impossível Então eu vi que realmente era pensei em fazer a baba antes, mas a baba nasceu.
e aí ela cortava, cortava, cortava. Então a autoria era uma terapia de grupo, 0 que eu estava propondo e Não pensei no conceito antes do nascimento da
dela, eu já não era mais a autora, ela ficava no méu fazendo; eu não sabia que era uma terapia, mas o baba, o conceito vem depois do trabalho. Otrabalho
lugar. A estrutura é matemática e portanto também descobri. Eu trabalhei cinco anos, praticamente com é sempre mais Inteligente que 0 artista, é ele que
já não é minha. Acho que foi o momento em que eu 0 mesmo gri|po, que ia sempre aumentando, porque dá a direção, é ele que dá 0 conceito teórico da
mais me despojei de minha individualidade: era só eu çassava os alunos de ano, mas os que passavam coisa. No trabalho que eu estou fazendo no (.-), eu
uma proposta o que eu apresentava. Várias pessoas de ano queriam continuar acompanhando 0 não vejo teoria alguma, eu não consigo estabelecer
fizeram Isso durante todo um período, sempre na meu curso, então ficavam ligados comigo nesta teoria alguma. Eu posso contar coisas, mostrar
minha casa. Depois, por um acaso - como sempre experiência. A experiência era muito profunda materiais, contar 0 que acontece, que cada um vive
acontece mas que nunca é acaso-, eu quebrei o braço porque se repetia várias vezes e todo mundo criava uma mitologia maravilhosa quando acontece esse
num addente espetacular de carro, e colocaram junto. Eu vi coisas maravilhosas Inventadas por trabalho novo, mas não há teoria, é impossível fazçr
um saquinho plástico em meu pulso quebrado. Eu alunos no contexto do que eu fazia. uma teoria por hora, e talvez nunca a faça.
estava em plena crise e, um dia, fiquei doente, então é assim que aconteceu a passagem: minha pintura
retirei aquele saquinho, soprei dentro dele e aquilo estando acabada, 0 corpo entrou e substituiu a Lygia, você coloca essa aproximação da psicologia
virou uma coisinha cheia. Coloquei em seguida uma obra de arte, em certo sentido. Como diria 0 Hélio como uma salda, não é? Uma saida ligada i
pedra na parte de fora do saquinho e comecei a Pellegrino, 0 que eu quero hoje é transformar 0 criatividade...
tocá-lo.s Nesse exato momento, aquilo me deu uma homem em uma obra de arte. Mas isso é 0 Hélio.
alegria enorme, porque eu disse a mim mesma: "é o Há multotempoqueeupensoqueasfrontelrastodas
corpo, a textural" - tudo pare :la 0 corpo, e eu vi que Lygia, essa ambientação do seu trabalho parece morreram. E hõjfe parece que há uma1constatação
fa entrar numa nova fase con pletamente diferente. estar mais ligaqa a um ambiente rural... muito curiosa, de que não são os matemáticos,
Uma fase muito regressiva, :ão regressiva que eu por exemplo, que fazem as maiores Invenções, que
cheguei quase na fronteira da esquizofrenia, porque Não, aqui ela foi feita assim.8 Na Sorbonne, eu captam coisas novas na matemática. Hoje há uma
comecei a decompor o corpo todo em pedaços, e dispunha de uma sala q«e era quarenta vezes isso tal dissolução de fronteiras, de categorias, que eu
isso era muito perigoso (eu tenho uma filha que aqui, imensa. Tinha um lapete no chão e também acabei propondo coisas de psicologia, que eu não
psicanalista, ela acaba de checar de Belo Horizgnte uma torneira com água. E eu usava muita água, chamaria nunca, jamais, de inconsciente, mas de
de me dizer que eu estou cada vez mais doida). Mas, era muito bonito por isso. Em certo momento, qualquer maneira eu faço meu trabalho com 0
depois, eu comecei a fazer coisas para duas pessoas quando todo mundo estava muito relaxado, eu Inconsciente. E, no entanto, eu não sou formada,
juntas, depois para três, e nessa coletivização eu abria a torneira e aquela água começavi a correr e nunca tive formação de psicóloga. Acabei nisso.
escapei dessa espécie de destruição que eu fazia dava aquela sonoridade lindíssima, aquela música Então, isso está acontecendo, não é?
cortando meu corpo em pedaços. nos ouvidos. Então eu trabalhava no oposto do que •,
Fiz plásticos enormes, fiz sacos de cebola para as você viu no filme: um lugar fechado, imenso, e com . Sua proposta de trabalho é uma proposta
pessoas enfiarem o pé dentro, passarem por cima aquele tapete no chão. Não era na natureza. Isso ■ terapêutica ou criativa?
da outra... sentirem. E fui nessa direção do corpo que vocês viram i um filme idealizado pelo meu
durante muito tempo. Chegando em Paris, fui dar filho que foi. inclusive, quem teve a idéia de fazer a Minha proposta de trabalho começou criativa, como
aula na Sorbonne.' E lá isso foi desenvolvido de experiência na natureza. sempre foi. Continua criativa e agora é tefapêutlca
uma maneira muito profunda, porque eu tinha As duas coisas.»
praticamente oitenta pessoas que queriam participar A tua experiência então não se dá na natureza?
desse trabalho. Colocaram-me na seção de Artes Como é que fica essa parte terapêutica no seu
Plásticas como professora de um curso cujo titulo Acho que uma experiência pode se dar em qualquer trabalho?
era: "O corpo e 0 espaço". Na primeira aula eu tive lugar, 0 lugar não é importante. Uma vez, em Paris,
uma só aluna inscrita. Na semana seguinte, eu tinha sai para passar um fim de semana fora com um grupo Éevidente. Vocês não ouviram nada do que eu ouvi
cinco. Dez dias depois, eu já tinha vinte, trinta e foi e eu quis incorporar a árvore como elemento, numa durante 0 tempo que eu trabalhei na Sorbonne Por
aumentando, quarenta... No final eu tinha a Sorbonne situação em que as pessoas trabalhariam entre si.’ exemplo, nos oitenta alunos, eu tinha um preto
inteira. Porque^u não dava nota; não há como dar com 0 corpo, de tal modo que a árvore fizesse parte, .que era um africano muito feio. Porque o francês
nota para esse tipo de coisa. Eu os avisava que daria do corpo deles. Eu queya entrar num outro sentido e , adora preto, mas aquele era tão feio, que mnguèm
as notas melhores que se dava na Sorbonne, qije num outro tempo Edepois eu vim embora para cá queria trabalhar com ele. Entio ele começou a
Í|UC Cl*ava com * vesicula ruim, que nlo A terapia tem esse sentido do cliente melhorar? trabalho com ele e*em três meses, ele se r vestiu
podia trabalhar, que tinha que ficar de molho Ou seja, como é que ele leva a você os problemas? com a pele. A Inês achava que era um pec aço do
en ro do grupo, etc. e tal. Entio quando chegou a Como começa a terapia? corpo da mãe. e eu achava que era o envólucno dele
nora de enrolar alguém no jornal, eu o chamei, e lhe
que descolava e saía. E ele ficou complet, mente
»»e: olha, você ai vai ser enrolado hoje no Jornal, Eu vou dizer como é. Eu nio faço entrevista,’4 a bom, escreveu um livro e nunca mais teve n«
você n l° v»! fazer esforço nenhum, vlo te pessoa entra e quer contar a história. Eu digo:
carregar, você vai fazer a experiência".9 Entio, o se você soubesse a sua história, você nio estaria Essa experiência me parece um aceleramento de
pegamos, o enrolamos com multo cuidado, com aqui. Dlspa-se. deite e vamos começar o trabalho. terapia, de transferência. Porque num determinado
multo carinho, e o colocamos no ombro, e demos Entio, começa ai. A pessoa delta na cama, em momento, as coisas verbalizadas não dão conta.
uma grande volta com ele. O pessoal, em geral, geral sumariamente vestida: as mulheres ficam de Esse trabalho deve ser Interessante nio só com
soltava son» pela boca, entio ficava uma música calcinha - e pe sutil, quando nio querem tlrá-lo - e psicóticos, mas com psicóticos você deve conseguir
sem ter música, era multo bonito. Quando nós o os homens Ticam de sungulnha. Eu faço primeiro até mais resultados, nlo é?
colocamos de pê, ele deu uma bruta gargalhada, uma massagem no corpo Inteiro, começando pela
ainda todo envelopé,'0 todo cheio de Jornal. cabeça. Isso Já é o consultório. Com o borderline vocé consegue muita coisa
Quando tiraram o Jornal, ele sentou e eu perguntei: Um dia, eu começo a massagear uma determinada também, mas com o neurótico é terrível, porque
“por que você riu?". Ele disse: "eu rl pelo seguinte, cliente -e ninguém sabia qual era o problema que toca, fundamentalmente e diretamente, no
quando vocês me pegaram, eu pensei que vocês eu ia encontrar, eu nio sabia, ela nio sabia - e, no "defeito fundamental". A meu ver é isso. E com o
Iam me levar, você com a sua tribo" - porque ele momento que eu massageio, ela tem um longo verbal, já não se consegue, ao contrário, a gente se
Jogou para mim, ê evidente; ele tem a tribo dele. orgasmo, sente uma faixa enorme no corpo, aqui defende com o verbal, quando é tocado. O silêncio
africana, mas a minha é brasileira - "que vocês [Lygio Indico uma parte do corpo que nào i a cabeça), no momento da sessio em que deixo o cliente
Iam me degolar, Iam me comer, Iam fazer horrores comprimindo o corpo deli neste ponto, mas ela diz com os objetos, por exemplo, é multo importante.
comigo e, de repente, descobri que nlo aconteceu que a cabeça foi decapltacia. Primeira sessio. Aquele cliente, por exemplo, na última sessio, fez
nada disso e eu estou felicisslmo de ter tido essa Na segunda sessio, ela volta com o seguinte sonho: uma grande reflexão com uma só frase e depois ele
experiência e de ter saido inteiro dela". Você vê, ai, ela está no meio de uma floresta, com árvores dormiu. Ficamos uma hora, eu sentada no chão, ele
todo o caso da projeçlo dele contra o grupo, porque enormes, mas tinha uma que era gigantesca, maior dormindo, e não se falava nada. Vocé sabe que o
ele pensava que o grupo nlo queria trabalhar com que todas. Essa árVore cal e corta toda a vislo dela e silêncio costura a pessoa. Quando acaba, eu vou lá.
ele e, depois, ele pensa que o grupo vai agredi-lo a divide em dois. Todo o sp/it'* dela - afetivo e erótico tiro os objetos de cima dele, passo aquele colchão
- o que, evidentemente, é a parte agressiva -,deleque apareceu desde a massagem, é confirmado de bolinhas de isopor. pego no corpo dele todo, dou
Jogada em cima do grupo. Entio, às vezes, tinha no sonho. Equando eu pergunto a ela o que ela está o saco de plástico 7 para ele estourar e, depois, ele
esse tipo de verbal, onde você via claramente como fazendo, em desenho, ou em qualquer forma de se veste e vai embora. O silêncio é fundamental.
as coisas se passavam. expresslo, ela põe a mio na cabeça e diz: "Imagine
Havia uma garota, genialmente criativa, aue que eu estou fazendo superfícies de uma cor só, Cina - Eu queria completar lembrando que todos
tinha ficado Internada no hospício várias veies. divididas completamente pelo meio também". Dai nós temos esse núcleo psicótico e eu acho que essa
Cada vez que fazia a relaxaçlo." ela começlva você vê como as coisas caminham rápidas e Juntas. vivência que a Lygla traz possibilita que esse núcleo
a chorar, tinha uns surtos, começava a sentir a Entio eu Já sabia qual era o problema fundamental psicótico seja movimentado. E assim todos nós
"grande boca" e depois nlo sentia mais nada e dela. é muito bonito porque o problema, em geral, podemos deixar de ser um borderline...
ficava completamente paralisada. Isso acontecia aparece na primeira sessio.
a três por dois. Eu digo "surto" porque nlo tinha Eu tenho uns slides para mostrar a vocês, com a Deixar de ser um borderline, eu não sei. Mas eu
outra palavra, mas eu nlo admlto que vocês relaxaçlo da Sorborine. que já é mais próximo acho que, pelo menos, um borderline equjlibrado
digam que Isso é um surto, porquê é uma viagem daquilo que eu faço no consultório. E depois dentro de sua própria loucura. Sair dela, seria como
maravilhosa. De repente, um cara iesmaiava num tem alguns slides do consultório Individual, só o neurótico pois o que faz o neurótico? Ele bola um
canto, eu corria, botava no colo. en balava, pegava. que as pessoas estlo vestidas ainda, porque eu sistema, nio cria, nio muda a visão de mundo, não
Depois, a turma começou a nlo t *r mais medo e comecei trabalhandb com a| pessoas vestidas; faz nada. E o que faz o borderlinel ê o artista, é o
a fazer o meu papel - eles tiraram minha parte, com o tempo é que eu achei pue era importante criador, Então um borderline bem equillbrado-quer
que era multo bonita e eu ficav^ mais de longe. tocar no corpo todo e, portanto, tirar a roupa. dizer, dentro da possibilidade dele - ele vai fazer o
E sopravam a pessoa, falavam coisas no ouvido, ’ Entio, se vocês quiserem, a gente podia passar quê? Ele vai fazer literatura, ele muda o pensamento
passavam a mio em cima, faziam massagem, até a parte da relaxaçlo e, depois, alguns slides do mundo, a vislo do mundo, e modifica as coisas.
a pessoa voltara sl. do consultório. Depois, eu gostaria que o Lula Entio, eu acho que o borderline é muito mais sadio
Uma vez eu tive um caso muito curioso, uma garota falasse, e a Gina também. Porque eu acho que a do que o neurótico. Eu duvido que o neurótico passe
| que fez uma viagem e nlo voltava. Entio o grupo parte mais Importante do trabalho hoje nio,está por minhas mãos, e volte a fazer o trabalho dele. Só
| Inteiro ficou comovido: eles sopravam, passavam a na minha mio, está na mio do Lula, porque o o borderline pode fazer isso.
mio. faziam massagem - e a garota, nada. A gente Lula estí aplicando a experiência com psicóticos Eu por exemplo,já passei por psicótica na minha vida
trabalhava descalço e, entio, por Intuiçio pura, eu de ambulatório e com um resultado muito e nlo fui internada por puro azar... ou pura sorte.
deitei no chio e colei os meus pés contra os pés grande. Essa experiência com os psicóticos do Agora, eu entendo qualquer "doido” (entre aspas),
dela Em dois segundos, ela estava em pé e dando ambulatório, eu acho que é mais importante. porque eu sou profundamente maluca tamíém.
o rapportu do que ela tinha vivido: ela disse que Uma maluca organizada, equilibrada, mas ma|uca.
estava num lugar completamente desestruturado Clna Ferreira - Poderiamos contar como você E eu duvido que uma pessoa certinha chamada
e que quando sentiu aquela coisa concreta debaixo interage a partir da necessidade do cliente, de como neurótica possa entender uma clinica dessas.
do pé, ela voltou a sl Imediatamente. Aconteciam surgiu, por exemplo, o uso da gota de mel...
coisas multo bonitas, dramáticas. Cina - A experiência com psicótico comigo não deu
Teve também uma doldlnha que apareceu lá, um Ah, sim, conte da gota de mel... certo, pela necessidade que ele tem do concreto.
dia, e quando viu todo mundo melo maluco, ela Entio vocé dá o saquinho cheio de ar, e ele entende
disse: "Eu nlo volto nio, eu moro no hospício, lá Cina - Uma cliente minha estava em colapso, com como seio; ele não con$.egue abstrair, ele quer o
acontecem coisas multo mais sensacionais do que uma falta de ar intensa, e ela nio me fala desta concreto... *
aqui. Eu nio volto para cá, nio." falta de ar, porque a coisa é muito mais interna; aí
sem saber do que estava acontecendo, eu coloquei Nós três estamos falando, cada um, com uma
O teu trabalho é terapêutico, ou você está a mio sobre o peito dela e pinguei umas gotas linguagem diferente e até com sentido diferente...
começando a descobrir um lugar, o sentido desse de mel nos lábloí, e a falta de ar entio cessou. O Eu, por exemplo, tenho experiência com muita
lugar? mel não fazia parte da "regra” da terapia, ou seja, gente que não simboliza mesmo, e é tão'clara a
foi uma coisa criativa, mas uma coisa criativa coisa em si, que não há necessidade de simbolizar,
Eu quero descobrir "o corpo". O que me interessa respondendo á necessidade da cliente. Porque eu porque a coisa em si é ela por inteiro. Isso é diferente
fundamentalmente é o corpo. E atualmente eu acho que essa interação é realmente profunda, é mesmo.
Já sei que é mais do que o corpo. Ontem, por quase de inconsciente a inconsciente.
exemplo, eu tive uma sessio individual belíssima Parece-me que, ta|vez, a diferença no caso da tua
com uma moça que fez uma operaçio de vesícula, é verdade. Isso também acontece muito comigo, técnica - e que é interessante para trabalhar com
há mais tempo, e começou a sentir um buraco de eu de repente começar a levantar e pegar numa psicóticos - é o suporte que você é para a pessoa,
enorme aqui (Lygla indico uma porte do corpo). parte do corpo da cliente, sem que ela tivesse pedido. nào'só fisicamente ali com ela, mas também com o
que nio é onde fica a vesícula E ontem ela viveu E quando ela levanta, me diz: “Naquele momento material que você usa. (
pela primeira vez o "grande buraco" (que eu que vocé levantou, voc^ colocou a mão exatamente
chamo de buraco, porque os clientes o chamam no lugar que eu queria que você colocasse, que era o Eu acho isso também. Na realidade, ep trabalho com
assim), e ela sentiu que nio era o órgio que necessário para mim", é a coisa pré-verbal. dois suportes: eu trabalho com minha pessoa que.
faltava, nio era o buraco do órgio da vesfcula que Uma vez eu peguei um rapaz em crise - um caso num momento de fluir intenso em que o cliente me
havia sido retirado, é que quando se tirou o órgio, muito interessante, pré-psicótico. Ele sentia uma destrói, ele está com o Objeto Relacipnal na mão e
ela começou a sentir esse vazio aqui dentro, que bola imensa de plástico na cabeça e, ao mesmo nãòiestá. comigo; se ele destrói o Objeto Relacionai,
é fundamental em cada um de nós, que tem que tempo, como se toda |a pele dele do corpo saísse, eu pstou présente Inteira para desmentir que ele
ser trabalhado e preenchido. Entio eu me lembrei e ele sentia uma dor terrível pelo corpo inteiro, e de‘$,trúju realmente o objeto. Então eu trabalho com
do conceito do Ballnt, o "defeito fundamental , então ele corria pela cidade. Corria, corria, corria, dqjs súp >rtes: um é o objeto e eu soij o outro.
e ontem ela sentiu l*so, pela primeira vez. Entio corria. E ele foi me procurar. Eu fiquei com medo de r f . - ;
por trás da coisa corporal, é o que tem de mais ele ter disritmia temporal, e pedi para ele fazer os LulalWa iderley- Isso me faz pensar na memória
exames e não era isso. Entio eu comecei a fazer um docprpo I
profundo que me interessa
é. eu acho que o fundamental é o que existe na obra como plemento essencial. O ocontetlmento de (u>
de memória do corpo, que é exatamente como experlincla é a própria expressão da obra. que ganha assim
aquela cliente que pensa que não vai respirar mais. uma densidade viva na imanéncla do ato.
intelectualmente ela não sabe o que é, mas ela J O Mundo de lygia Clark, com direção de Eduardo Clark e
passou por aquilo quando nasceu. Você pega coisas criação musical de Nanl Vasconcelos Rio de Janeiro, «973.
com o corpo, que com a cabeça você não lembra 4 Nostalgia do Corpo (1966). A Casa é o Corpo («967-69). Corpo
- nem tem como lembrar, porque você não tem é a Casa (1968-70) e Corpo Coietlvo (»97J-75). f**« <lue » P»rtlr
memória, na ocasião. mas você registra estas coisas de 1974 é também chamada de Fantasmãtica do Corpo.
no seu corpo. Você registra quando tialançam, * Esta experiência, que aconteceu em 1966, deu origem ao
quando fazem uma queda mais brusca, quando você trabalho que lygia Clark chamou de Pedra e or. Ver Suety Roínik.
está com fome, quando você está molhada, quando "Breve descrição dos Objetos Relacionais* no presente catálogo.
você está seca - enfim, o corpo vai registrando tudo Lygia Clark refere-se 1 sua filha Elizabeth Plmentel Uns Clark
e vai se estruturando com aquilo. Isso aparece muito Ribeiro, falecida em 2002. Os outros dois filhos da artista são-,
no meu trabalho. Álvaro Edward Clark e Eduardo Uns Clark Ribeiro.
7 Ver notas 9 e Í4 de Suety Rolnik, 'Uma terapêutica para
Seu trabalho não deve fun :ionar para neuróticos tempos despiovfcjos de poesia', no presente catálogo.
obsessivos... A pergunta refere-se ao filme O Mundo de Lygio Clark, que
Inclui documentaçJo de alguns trabalhos desenvolvidos na
Eu sou tão ignorante que, neurótico obsessivo,!eu Sorbonne (da fase *Corpol coletivo* ou "Fantasmltka do
não sei quando é, fóbico também não sei quando corpo*). Estes eram em geral feitos em sala fechada, embora
é_. Eu trabalho com aquilo <Jue eu vejo, com aquilo muitas vezes as propostas extrapolassem 0 espaço da dasse.
que eu sinto, com aquilo quê aparece. e tomassem as escadarias e outros recintos da faculdade,
expandindo-se para a rue St. Charles, onde se localizava a *
Mas acho que não dá com neuróticos... escola, ou 0 Boulevard Brune onde se situava olatellé de Lygia
Clark, freqüentado nos finais de semana por seus alunos.
Não, dá sim, mas eu acho o neurótico péssimo. Retomados especialmente para 0 filme, os trabalhos foram
Em um ano, um ano e meio. três anos. sete anos efetivamente realizados ao ar livre, em melo Ü natureza, nas
falando em papai e mamãe, minha tia, meu tio, meu proximidades do Rio de Janeiro, durante uma das vindas de
Irmão - Deus me livrei Nio, esse negócio de papal Lygia Clark ao Brasil, em 1973.
e mamãe não dã não. Pra mim, ficar remetendo 9 Viagem i o nome que <ok dado por Vygla CVatk a esta
tudo ãs relações com papai e mamãe, ou com meu proposta.
Irmão, minha tia. minha vizinha», me dá tédio, eu 0 f nveloppé.em francês no original, significa, neste contexto,
não trabalho com neurótico porque morro de tédio. 'embrulhado*.
O neurótico, em geral, até gosta de trabalhar com Io O que Lygia Clark chama de "relaxaçJo". numa versio
corpo, mas é num sentido completamente diferentfc: afrancesada de 'relaxamento*, consiste num método
é porque ele gosta de ser tocado, ele gosta de sír criado por Michel Saplr (psiquiatra e psicanalista francês, da
paparicado, e no trabalho com o corpo ele é tocado, International Psychanalltlcal Sodety • IPA), o qual ele chamou
ele é paparicado.» de 'relaxamento de sentido analítico* ou 'relaxamento de
O que eu acho que me interessaria é reabrir um abordagem pslcanalítlca’ no inido e. mais tarde, de “indução
grupo um dia. Tem uma menina que se Interessa varlivei*. Sapir começou este trabalho logo depois da Segunda
por isso: ela está trabalhando com uma autista, lha Guerra Mundial, no serviço de nefroiogla do Hospital Rotshleld
de um rapaz, amigo meu. Ela podia pegar esse r teu com doentes portadores de hipertensão grave. O psicanalista
trabalho de grupo, em que o espaço intermedl irio francês trabalhou em colaboração com Balint - psicanalista
entre uma pessoa e outra é preenchido por húngaro, próximo da tradição ferenesiana de quem
plástico: eu acho que isso, por exemplo, com aut sta absorveu a concepção de rektçôo e a importãnda atribuída
deve ser multo bom. Eu tinha vontade de faze ssa a ela. Sapir era um dos grandes amigos de Fédlda. também
experiência, mas agora eu não me atrevo, p seu colaborador na pesquisa sobre o corpo. Foi Fédlda - com
eu fui ler um livro sobre o autismo que diz ; im: quem a artista fez análise de 1972 a 74 que a encaminhou
cada um de nós acaba com bolsões autistas E 'eu para o trabalho corporal, em 1974. Michel Sapir indicou para
descobri que eu era .o próprio bolsão {risos). intão a artista uma profissional de seu grupo, Monique Karllcow.
não posso, senão vou ter um troço, você enti :nde? aom quem Lygia fez alguns meses de terapia corporal. Lygia
Mas eu ensinei para a menina a fazer toda aquela incorporou esse método em suas propostas na Sorbonne e.
coisa com o plástico e os sacos de cebola que tem ao voltar ao Brasil, e começar a atender individualmente, ela
que botar no pé de um lado, passar por cima do 0 utilizou nos primeiros tempos. Mas, rapidamente, ela foi
outro, etc. Eu gostaria de formar gente para fazer recriando o método, explorando cada vez mais o trabalho com
isso. Fazer um grupo eu gostaria também, muito... os Objetos fteiodonois e acabou afastando-se totalmente da
proposta de Sapir. Dois Interessantes depoimentos acerca do
E d i ç A o d e t i x t o e n o t a s k >* S u u y R o l n i k universo de Saplr e de sua relação com o trabalho de Fédlda
podem ser encontrados nas seguintes entrevistas filmadas no
contexto do projeto de documentação 'Lygia Clark, do objeto
ao acontecimentf*: a psiquiatra e psicanalista Simone Cohen,
viúva e colaboradora de Sapir, e Catherlne Vlngtrignler, uma
1 A gravação desta conversa nos foi oferecida por Gina das alunas que participaram do grupo de formação que Sapir
„ Ferreira e Lula Wanderley, por ocasião da filmagem da e Fédlda fizeram em parceria, no Inicio dos anos 70.
entrevista com Lula para o projeto "Lygia Clark, do objeto 12 Rapport, em francês no original, significa aqui relato.
ao acontecimento'. Ambos são terapeutas a quem Lygia 13 O que Lygia chama de 'defeito fundamental' é umia
transmitiu os princípios operatórios de sua Estruturação tradução afrancesada do conceito de 'falta básica* (em
do Self. com o Intuito de que a desenvolvessem em terreno francês? difautfondamental) de Mkhaél Balint cujo trabalho 1
clínico, sobretudo no tratamento da psicose. Clna Ferreira Lygia Clark certamente conheceu graças a seu convMo com
dava supervisão na clinica Canto da Gávea, na época em que Fédida e com 0 universo de Michel Sapir. Este último n io só
foi organizado o encontro aqui transcrito. colaborou com Balint mas também privilegiou seu conceito'
2 Em 1963. a partir de um estudo em papel para um de seus de 'falta bislca”, em seu método de relixamento.
Bichos. Lygia Clark cria Caminhando. A proposta consiste em ’4 Lygia Clark refere-se à série de entrevistas que. em muitas
' oferecer ao espectador uma tira de um papel qualquer, um correntes. 0 terapeuta faz com 0 paciente, antes de Iniciar 0
par de tesouras e cola. Os objetos vêm acompanhados de trabalho terapêutico propriamente dito.
instruções de uso: colar as extremidades da tira. torcendo Split, que significa dissociação, clivagem, é um termo do'
u ma delas de modo a unir 0 avesso de uma ao direito da outra jargão pslcanalltico. geralmente usado em inglês.
e formar uma só superficie. bidimensional, como uma fita de Lygia Clark refere-se a Inés Besouchet psicanalista que a
Moeblus; em seguida, cortar a tira no sentido longitudinal, Incentivou a começar a desenvolver seu trabalho em sessfies
evitando apenas Incidir sobre o ponto Inicial do corte a individuais, quando ela chegou de Paris, em 1976. Formada
cada vez que se completa uma volta na superficie. O corte por Kemper e. depois, re-analisada em Paris por Sacha Nacht.
vai gerando formas espiraladas e entrelaçadas, enquanto Besouchet constituiu com colegas, filósofos, artistas e uma:
deixa a tira cada vez mais estreita até que a tesoura nJcj psicodramatista. o Centro de Estudos de 'Antropologia-
possa mais evitar o ponto inicial. Nesse momento, a obra Clinica*, no Rio de Janeiro Uma das raras psicanalista^
se encerra. O espectador experimenta um espaço sem que se interessaram pela Estruturação do Self. ela foi ur^àj
avesso ou direito, frente ou verso, antes ou depois. A obra se Ihlerloculora privilegiada da artista no desenvolvlmenjp
realiza nesta experiência, ou seja na temporalidade do gesto desse seu último trabalho 3 '*
daquele que dejxa definitivamente de reduzir-se 4 condição 1 Lygia refere-se ao Objeto Relacionai. Saco plástico cheio d f
de "espectador' frente a um objeto, supostamente neutro, or. Ver Suely Rolnik. "Breve descriçio dos Objetos Relacionais’;
situado em sua exteriorldade Ele torna-se ativo e é envolvido no presente catilogo

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