JEAN BODIN:
POLÍTICA E SOBERANIA
“Embora Bodin tenha relativizado, no decurso das suas análises, o seu conceito
absoluto de soberania (passe a contradição de termos), a verdade é que
favoreceu, objectivamente, a marcha do regime monárquico francês para o
absolutismo” (Serra, História da filosofia do direito e do estado, 1990, p. 140).
6.2 SOBERANIA
Bodin preocupa-se em definir o que seja uma república (sinônimo de Estado), e o faz
com base na caracterização de alguns elementos primordiais para sua constituição. Sua
definição virá representando “o conjunto de famílias ou de colégios submetidos a uma só
e mesma autoridade” (Método para a fácil compreensão da história VI, p. 351 B).5
No entanto, dizer que a mera reunião de famílias e/ou colégios dá origem a uma
república não basta; o outro elemento caracterizador, apresentado na definição de Bodin,
não pode ser olvidado: as famílias e/ou colégios devem estar reunidos sob a mesma
autoridade, de modo que o poder aí já se identifica como uma regência centralizada dos
diversos grupos. Ajunte-se a isso o fato de que os grupos em convívio numa república
constituem seu espaço comum, e partilham de coisas comuns com vistas a certa utilidade
geral.6
Toda república é governada a partir da convivência harmônica de três espécies de
leis, a saber: a lei moral, cujo âmbito de aplicação e atuação é o foro íntimo de cada
indivíduo, governando suas decisões e posturas frente à vida e aos demais indivíduos; a
lei doméstica, cuja delimitação se circunscreve ao âmbito da casa, aplicada pelo chefe de
família sobre seus dependentes; a lei civil, que se aplica a todos os partícipes da sociedade
política, tendo por âmbito de aplicação as relações entre as famílias e os colégios.7
Com base na caracterização do espaço da sociedade, e de suas formas de se organizar
por leis, é que surge o mister de se identificar o quarto elemento de distinção da definição
bodiniana: a soberania. De fato, é ela definida com o seguinte destaque:
Ora, nesses termos, a soberania é o cimento das relações sociais, é o solo sobre o qual
se constroem os modos de vida e o convívio em sociedade;9 sem ela, torna-se impossível
a vida organizada politicamente, inviabilizando-se a ideia e o projeto de existência do
Estado. Por isso, sua ampla extensão e significação:
“O uso do adjetivo absoluto implica atribuir ao poder soberano as características
de superior, independente, incondicional e ilimitado. Ilimitado porque qualquer
limitação é incompatível com a própria ideia de um poder supremo: ‘A soberania
não é limitada, nem em poder, nem em obrigações, nem em relação ao tempo’
(República I, 8, p. 181). Incondicional na medida em que este poder deve estar
desvinculado de qualquer obrigação: ‘A soberania dada a um príncipe sob
condições e obrigações não é propriamente soberania nem poder absoluto’
(República I, 8, p. 187). Independente, pois seu detentor deve ter plena liberdade
de ação: ‘Assim como o papa não tem suas mãos atadas, como dizem os
canonistas tampouco o príncipe soberano pode ter suas mãos atadas, mesmo se
o desejar’ (República I, 8, p. 192). Superior porque aquele que possui o poder
soberano não pode estar submetido ou numa posição de igualdade em relação a
outros poderes: ‘É preciso que os soberanos não estejam submetidos aos
comandos de outrem’ (República I, 8, p. 191)” (Barros, A teoria da soberania de
Jean Bodin, 2001, p. 236).
Como consequência disso, quem exerce o poder absoluto, quem exerce a soberania,
quem lhe confere existência atual e funcionamento prático não pode estar restrito,
constrangido, limitado, castrado, em sua atuação.11 Ocorre que, para Bodin, ser a
representação de um poder absoluto é poder agir com a máxima liberdade possível no
sentido de fazer cumprir as metas do Estado, o que se torna inviável se, por exemplo, as
leis se antepõem a essas intenções do exercente do poder soberano. Em tais condições:
“É preciso que os soberanos possam dar a lei aos súditos e anular ou revogar as
leis inúteis para fazer outras; o que não pode ser feito por aquele que está
submetido às leis ou por aquele que está sob o comando de outrem” (República I,
8, p. 191).12
Assim, o soberano vive na legalidade, não porque se submete às leis, mas porque
confere leis à sociedade. A sociedade sem leis, sem ordem, é o caos, é a anarquia e a
bandalheira generalizada. O Estado distingue-se por governar-se a partir de leis que se
estabelecem sobre os poderes das famílias e dos colégios. Assim, o soberano confere leis
ao povo, para que a sociedade possa cumprir suas metas e fins. Nesse poder de fazer as
leis, de dar leis ao povo, também está compreendido o poder de modificá-las, alterá-las,
corrigi-las, emendá-las, conforme a necessidade. Essas necessidades repousam sobre a
ideia de conveniência do soberano, ou, ainda, na ideia de vontade do soberano, pois é ele
o princípio, o meio e o fim das determinações sociais.13 Nas palavras de Bodin:
Com base na noção de soberania é que se forma a tripartição de formas pelas quais
ela pode ser exercida.16 Ela é sempre una, indivisível e incontrastável, porém os modos
pelos quais pode ganhar conformação e ser exercida é que possibilitam essa divisão, aliás
muito semelhante à das formas de governo aristotélicas, em três:
Outro argumento vem da autoridade tanto dos grandes pensadores quanto das leis de
Deus:
“Se procurarmos a autoridade, encontraremos as mais altas personalidades
afirmando que a monarquia é a melhor forma de estado [...] e mesmo na lei de
Deus é dito: quando o povo faz um rei, como os outros povos, não toma um
estrangeiro; está bem demonstrado que Deus aprova a monarquia, dando lições
ao rei de como deve governar; assim também os outros povos daquele tempo não
tinham senão monarcas (República VI, 4, p. 189)” (Barros, A teoria da
soberania de Jean Bodin, 2001, p. 321).
No entanto, o argumento definitivo, e que pesa como nenhum, é este dado por Bodin:
Foi tratado do tema da soberania e do poder absoluto. Analisou-se quais seriam essas
características distintivas e que conferem singularidade do poder conferido ao soberano,
dando-se autonomia política e de ação ao Estado, na pessoa de seu(s) governante(s). Pela
impressão primeira que se tem da definição de soberania, nada há que se possa opor a ela,
e, então, ela não possuiria limites. De fato, a impressão não é falsa, mas há algo que a ela
se antepõe: são as leis naturais e as leis divinas.21 Veja-se:
“Se o soberano tem seu campo de ação demarcado pelas leis divinas e naturais,
algumas leis humanas comuns a todos os povos e pelas fundamentais da
República, o que os súditos devem fazer quando forem transgredidos esses
limites: obedecer passivamente ou resistir aos comandos do soberano? Se a
resistência é legítima, de que maneira ela pode se realizar? A questão da
obrigação política tornou-se uma das mais relevantes no debate teórico francês
da Segunda metade do século XVI, principalmente em razão do agravamento das
guerras de religião, envolvendo católicos e huguenotes” (Barros, A teoria da
soberania de Jean Bodin, 2001, p. 268).
Os limites ao poder soberano estão aí. Não são dados por homens, por instituições,
por classes sociais, nem por poderes eclesiásticos. São dados pelas leis, anteriores ao
soberano, existentes na natureza e criadas por Deus:
No entanto, a contradição, numa teoria desse naipe, haveria de surgir. De fato, apesar
de o soberano ter limites e dever respeitá-los, ainda assim, em caso de infração à lei divina
e à lei natural, não será jamais o povo o julgador de seus procedimentos, de suas condutas.
Disso decorre a total impossibilidade de facultar-se ao povo a desobediência sob pretexto
de descumprimento das referidas leis. Isso, para Bodin, criaria a instabilidade do poder:22
Não há autoridade que possa julgar o soberano por sua conduta, pois isso seria
mesmo uma afronta à própria soberania. A esse que afronta tal poder, a sentença é uma
só, a morte:
“Se o súdito deseja tomar ou violar o estado de seu rei, por qualquer meio que
seja, ou deseja, num estado popular ou aristocrático, de companheiro tornar-se
senhor, ele merece a morte” (República II, 5, p. 70).23
Bodin está numa encruzilhada, e, entre optar por conceder direitos de resistência e
oposição ao povo, ou mesmo às autoridades eclesiásticas,24 sua escolha é pela
manutenção do poder soberano, causa e sentido da ordem social:
CONCLUSÕES