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‫ – למודי תנך מתקדמים‬ESTUDOS BÍBLICOS AVANÇADOS – O Ritual de Sotá

O ritual de Sotá

A permissão do marido ciumento de continuar com


sua esposa
A raiz Hebraica ‫א‬.‫נ‬.‫ק‬. “zêlo, ciúme” no capítulo sobre o ritual de Sotá
(Bamidbar 5) chama a atenção ao elemento-chave do ritual e sua Oferta
relacionada, quer dizer, a remoção dos efeitos do ciúme do marido, para
que permanecesse com sua mulher, sem culpa.

Figure 1: The Sotah ritual, Jan Luyken, 1703 – 1762


‫ – למודי תנך מתקדמים‬ESTUDOS BÍBLICOS AVANÇADOS – O Ritual de Sotá

Estudo baseado no texto da Professora, Dra Hanna Liss, do departamento de estudos Bíblicos e
Exegese Judaica da Universidade de Heidelberg, Alemanha, com o título: “Das Problem des
eifernden Mannes: Das Eifer-Ordal in der biblischen Überlieferung und in der jüdischen Tradition”
- O problema do homem ciumento: O conflito do zelo na tradição bíblica e judaica.

O Sêfer Bamidbar descreve um ritual de “águas amargas” o ritual de Sotá


(Bamidbar 5: 11 – 31), no qual, um marido que suspeita que sua esposa lhe
foi infiel, deveria trazê-la perante “o Elohim” i.e., ao Templo. O texto
apresenta então o elaborado ritual, fortemente imbuído com conotações
mágicas.

Uma vez que a mulher estivesse perante o Kohen (verso 15), ele tomaria as
águas sagradas, colocaria pó do chão do Mishkan (verso 17), traria a
mulher “perante o HaShem” e lhe descobriria o cabelo (verso 18).
Enquanto ela segurava a Oferta e a mistura, o Kohen a faria jurar que, ao
tomar da água; maus efeitos lhe ocorreriam se ela houvesse sido infiel e,
nada ocorreria; caso contrário. A mulher respondia “amen-amen” (versos
19 a 22).

O Kohen então, dissolvia o texto da maldição nas águas e ela beberia a


mistura (versos 23 e 24). Depois disso, a ideia seria que, ela teria um filho
– como sinal de sua inocência – ou, receberia a maldição (versos 27 e 28).

O Cancelamento Rabínico na
Prática
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A Mishná descreve como este ritual foi abolido (Mishná Sotá 9: 9)

‫משרבו המנאפים פסקו המים המרים ורבן יוחנן בן זכאי הפסיקן שנאמר לא‬
‫’אפקוד על בנותיכם כי תזנינה ועל כלותיכם כי תנאפנה כי הם וגו‬

Quando o adultério se tornou desenfreado, [o ritual] das águas amargas foi


descontinuado. E o rabino Iohanan ben-Zakai [foi quem] cancelou [sua
prática, baseado] no que está dito [Hoshea 4: 14]: “Eu não punirei suas
filhas pela fornicação, nem suas netas por cometerem adultério; pois, eles
mesmos...” [No Talmud, há apenas um registro deste ritual sendo
praticado, de fato].

A preocupação da Mishná aqui, pode ter sido, evitar a retaliação contra


mulheres, mesmo as que houvessem sido infiéis. Por outro lado, o Ramban
(o Rabino Moshe ben-Nachman, 1194-1270) ao comentar Bamidbar 5: 20,
diz que, o ritual parou de funcionar numa sociedade plena de pecadores:

‫ שהוא פלא ונס‬,‫והנה אין בכל משפטי התורה דבר תלוי בנס זולתי הענין הזה‬
‫קבוע שיעשה בישראל בהיותם רובם עושים רצונו של מקום… ולפיכך פסק הענין‬
‫הזה משעה שנתקלקלו בעבירות‬.

Agora, não há nada, dentre todas as ordenanças da Torá, que dependam de


milagres; exceto por este caso, que é um maravilhamento permanente e um
milagre, que ocorreria a Israel, quando a maioria do povo vivia de acordo
com a vontade de Deus… Portanto, este assunto [o ritual de Sotá] foi
descontinuado, desde o tempo em que o povo se tornou devasso com
pecados.

Este comentário do Ramban, reflete sua visão, apresentada na introdução


ao Sefer Bamidbar, aonde ele diz que em contraste com as leis do Sefer
Vaicrá, a maior parte das regras em Bamidbar, procuravam atender
situações específicas no deserto:

‫ התחיל עתה לסדר בספר הזה‬,‫אחר שביאר תורת הקרבנות בספר השלישי‬
‫המצוות שנצטוו בענין אוהל מועד‬.
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Após ter explicado as leis das Ofertas no terceiro livro, ele começa a
apresentar neste livro, os mandamentos que eles [os filhos de Israel]
receberam com relação a Tenda do Encontro…

‫ ובניסים הנעשים‬.‫והספר הזה כולו במצוות שעה שנצטוו בהם בעמדם במדבר‬
‫ זולתי קצת מצוות בעניני הקרבנות‬,‫להם… ואין בספר הזה מצוות נוהגות לדורות‬
‫ והשלימן בספר הזה‬,‫ ולא נשלם שם‬,‫שהתחיל בהן בספר הכהנים‬.

Agora, todo este livro lida com aqueles mandamentos, que tinham a
intenção de ser apenas, por um tempo específico, sendo este o período de
quando os israelitas estiveram no deserto, e com os milagres que lhes
foram realizados… Não há mandamentos neste livro, que fossem
obrigatórios para todas as gerações, exceto alguns mandamentos sobre
Ofertas, os quais Ele havia começado, no Sefer HaKonahim. Portanto, ele
os terminou neste livro.

Então, de acordo com estas observações, a maior parte dos mandamentos


em Bamidbar, tinham a intenção de servir ao período do deserto apenas,
sendo a exceção disso, as leis relacionadas as Ofertas; especificamente,
Bamidbar 5: 5 a 10, Bamidbar 15 e Bamidbar 28 a 29. Apesar de o
Ramban não dizer que Sotá, também seria um destes rituais que só
deveriam ser realizados no deserto, ele argumenta mesmo assim, baseado
na passagem da Mishná, que é uma lei para uma época específica.

A preocupação desta passagem de Sotá, portanto, coloca que a suspeita


deve ser removida com um ritual, cuja eficácia seria baseada em mágica;
ou, como o Ramban escreve, intervenção miraculosa.

Olhando rituais mágicos no


contexto Histórico
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Numa perspectiva histórico religiosa, o uso de mágica para determinar a


culpa ou inocência de uma esposa, não era um conceito estranho, no
Oriente Médio antigo. Por exemplo, nas Leis de Hammurabi, lidando com
a questão é dito:

§132 – Se a esposa de um homem tiver um dedo apontado contra ela,


acusando-a de estar com outro homem, apesar de ela não ter se deitado
com outro homem, ela se submeterá a ordenação do rio divino, por seu
marido.

[da obra de Martha T. Roth – Law Collections from Mesopotamia and Asia
Minor, SBL Writing from Ancient World 6, página 106]

De acordo com esta lei, a culpa ou inocência da mulher seria comprovada


por um ritual de se pular num rio, que estava sob o controle do deus do rio,
Id. Se ela se afogasse, estaria comprovada sua culpa. Se ela sobrevivesse,
era considerada inocente. A sobrevivência ou não do risco de morte, não
era considerado como algo relacionado a sua capacidade de nadar; mas,
era considerado uma decisão do deus do rio.

Do mesmo modo, a passagem em Bamidbar, de acordo com a qual, ou


“suas partes íntimas atrofiariam e ventre distendido” ou, ela ficaria
grávida. Ficar grávida era entendido como reflexo do sucesso do ritual,
feito “perante o HaShem”.

Mesmo assim, o texto bíblico apresenta dificuldades para o entendimento,


especialmente do que diz respeito, a uma consequência vaga em seus
detalhes: O que, exatamente, significa que, se ela fosse culpada, ela teria
um “ventre distendido”? Isto se refere a prolapso uterino, ou quer dizer
outra coisa? E quando exatamente, o HaShem faria isto ocorrer?
Imediatamente ou, num prazo determinado no futuro?

[Mesmo no tratado de Sotá 20a os rabinos não demonstram certeza sobre


isso. Uns diziam que dependia do mérito da mulher e, outros, que
poderiam ocorrer entre 1 a 3 anos]
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A consequência da inocência dela, é igualmente difícil de compreender:


Ela ficaria grávida como resultado direto do ritual? Ou, certo tempo
depois? E além disso, o texto alude a gravidez, ou, possivelmente descreve
um aborto?

Estes temas continuam obscuros até hoje.

A estranheza do ritual em geral nos faz prestar atenção a certos aspectos,


tal como os efeitos bizarros da poção no corpo da mulher, e a questão da
sua inocência ou culpa. Não obstante, este foco obscurece o tema central
do ritual: A necessidade de aplacar o ciúme do marido.

O Conceito de Ciúme - ‫ קנא‬- como


uma Temática distinta

As regras bíblicas mantiveram como constante, em suas declarações


condicionais (textos que começam com “se”...) que, o caso e sua descrição,
segue pela implementação de uma solução jurídica ou, caso judicial
específico da consequência (casos de Protasis e Apodosis, condição e
consequência). Um caso jurídico deveria ser claramente definido para que
pudesse ter consequências legais, caso a lei fosse violada. É crucial prestar
atenção a Bamidbar 5, aonde o caso jurídico que aparece, não só da
expressão “desviou-se” em relação a mulher, mas, também do “ciúme” do
marido. A “protasis” no texto, seria:

‫יג וְָׁש כַב ִאיׁש אֹ ָתּה‬:‫ ה‬.‫ּומעֲלָ ה בֹו ָמעַ ל‬ ָ ‫יב … ִאיׁש ִאיׁש ִּכ י ִתְׂש טֶ ה ִאְׁש ּתֹו‬:‫במדבר ה‬
‫ִׁש כְ בַ ת ז ֶַרע ְונ ְֶעלַ ם ֵמעֵ ינֵי ִאיָׁש ּה וְנִ ְסְּת ָרה ו ְִהיא נִ ְט ָמאָ ה וְעֵ ד אֵ ין ָּב ּה ו ְִהוא ל ֹא‬
‫יד וְעָ בַ ר עָ לָ יו רּוחַ ִקנְ אָ ה ו ְִקֵּנא אֶ ת ִאְׁש ּתֹו ו ְִהוא נִ ְט ָמאָ ה אֹו עָ בַ ר עָ לָ יו‬:‫ ה‬.‫נִ ְתָּפ ָׂש ה‬
‫רּוחַ ִקנְ אָ ה ו ְִקֵּנא אֶ ת ִאְׁש ּתֹו ו ְִהיא ל ֹא נִ ְט ָמאָ ה‬.
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...se a mulher de um homem se desviar e lhe for infiel; isto é, se outro


homem for para a cama com ela sem o conhecimento do marido, tornando-
se ela impura em segredo, e não houver testemunha contra ela, e ela não
for flagrada no ato; se um ‫ רוח‬de ciúme vier sobre o marido, e ele zelar
pela mulher, e ela se tiver tornado impura – ou, caso o ‫ רוח‬de ciúme lhe
sobrevenha, e ele sinta ciúme de sua mulher, e ela não se tiver tornado
impura...

Bamidbar 5: 12 a 14

A “apodosis” então, seria:

‫טו וְהֵ ִביא הָ ִאיׁש אֶ ת ִאְׁש ּתֹו אֶ ל הַ ֹּכהֵ ן‬:‫…ה‬

5:15 (então) ele levará sua mulher ao Kohen...

Os versos, 12 parte b e 13 parte a, declaram certos fatos requeridos, sobre


a mulher: Uma mulher que [de modo reincidente] trai o marido. Ele – e
isto é importante – sabe disso, ou, pelo menos acredita que sabe. Se ele
não souber, não há ritual para ser feito. Entretanto, ela não foi flagrada no
delito (verso 13), pois se houvesse, receberia pena capital juntamente com
o homem envolvido. Em vez disso, ela é trazida aos Kohanim, para
submeter-se ao ritual.

O verso 15 começam a apodosis, com o caso do marido trazendo ela como


consequência dele acreditar no crime. É a isto que se refere o marido ser
sido acometido de um ‫רוח‬de ciúme. Este é, na sua sintaxe, um verso que já
faz parte da protasis. E de fato, é a sentença no caso jurídico, desde que,
não há testemunhas para comprovar ter havido ato sexual proibido (como
em Vaicrá 20: 10 e Devarim 22: 21, 22). Em outras palavras, o caso não
consiste de suspeita de traição per-se, tendo no ciúme a explicação do
motivo do marido trazer o caso. Em vez disso, o caso é o de se lidar com o
ciúme e lidar com a acusação!
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A Importância dada ao ciúme e enfatizada pelo modo que o texto usa o


verbo ‫ קנא‬como se fosse um lema, uma palavra cuja raiz é repetida na
descrição do caso, da vítima e a caracterização final do ritual ( ‫זאת תורת‬
‫)…ה‬, o termo-chave que está no texto, é que tudo gira em torno do
“ciúme”: ‫ רוח קנאה‬e o dever se trazer a “oferta de ciúme” ‫מנחת קנאות‬
bem como, todo o ensino é chamado de ‫" תורת הקנאות‬Torá do ciúme”.

Por qual motivo, o divórcio não é trazido como opção?

A escolha em sujeitar sua esposa ao ritual, contrasta e, até mesmo conflita,


com a descrição de como um marido infeliz deveria agir, conforme isso
aparece em Devarim. Lá é dito que, ele deve lhe dar a carta de divórcio (
‫ ;ספר כריתת‬Devarim 24:1, 3).

‫ּובעָ לָ ּה וְהָ יָה ִאם ל ֹא ִת ְמצָ א חֵ ן ְּב עֵ ינָיו ִּכ י ָמצָ א בָ ּה‬ ְ ‫א ִּכ י יִַּק ח ִאיׁש ִאָּׁש ה‬:‫דברים כד‬
‫עֶ ְרוַת ָּד בָ ר ְוכ ַָתב לָ ּה סֵ פֶ ר ְּכ ִריתֻ ת ְונ ַָתן ְּב י ָָדּה וְִׁש ְּל חָ ּה ִמֵּב יתֹו‬.

Se um homem tomar uma mulher e com ela consumar o casamento, e


depois passar a não se agradar mais dela, por ela lhe ter feito alguma coisa
ofensiva, ele escreverá para ela uma carta de divórcio, dará a ela e a
mandará embora de sua casa.

Devarim 24: 1

Claramente, o caso relatado em Devarim 24, que lida com uma


“indecência” não especificada, mas, nada criminoso, deve ser resolvido
com divórcio.

De acordo com isso então, em Bamidbar 5, aonde o marido tem suspeitas


mas, não tem evidências; poderíamos esperar que a lei exigisse que, aquilo
fosse concluído com divórcio. Mas, em vez de escrever uma “carta de
divórcio” ele a leva ao Kohen para fazer o ritual.
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Um ritual para salvar o casamento

Deste modo, em Bamidbar 5, devemos compreender que, não estamos


diante de um caso, tal qual o apresentado em Devarim 24. Se o marido não
deseja se divorciar de sua mulher, e tem o problema de estar casado com
uma mulher que lhe seria proibida. Isto se encaixa no entendimento dos
sábios, que entendem tal ritual, como um modo de ele ser autorizado a
conviver com sua mulher. Por exemplo, quando o Rashi comenta
Bamidbar 5: 31:

‫ שהסוטה אסורה לבעלה‬,‫משישקנה תהיה אצלו בהיתר ונקה מעון‬

Uma vez que ele a fizesse beber, ela se tornava permitida para ele. Ele,
então, estava livre de qualquer pecado, pois, a Sotá é proibida a seu
marido.

É digno de nota que, em vez da raiz ‫" נאף‬adultério”, que não aparece no
texto [aparece em Shemot 20: 14 – Vaicrá 20: 10 – Devarim 5: 18, Ieheskel
16: 32, 23: 37, 45]. A Mulher é descrita como impura ou, literalmente,
“tornada impura” [e que se note que, o termo não está sendo usado para
expressar a ideia de impureza ritual da própria sexualidade, como em
Vaicrá 15: 18, aonde, como consequência e totalmente permitida da
relação, ambos se tornam “impuros” até a tarde…] da raiz ‫טמא‬.

A ideia então, é que continuar tal união, com a mulher impura, poderia
afetar o homem; que seria impurificado por suas relações com ela. Esta
raiz é a mesma usada para explicar o motivo pelo qual, o homem que se
divorcia não pode voltar a se casar com a mulher divorciada:

‫ד ל ֹא יּוכַל ַּב ְעלָ ּה הָ ִראׁשֹון אֲ ֶׁש ר ִׁש ְּל חָ ּה לָ ׁשּוב ְל ַק ְחָּת ּה ִל ְהיֹות לֹו ְל ִאָּׁש ה אַ חֲ ֵרי‬:‫כד‬
‫אֲ ֶׁש ר הֻ ַּט ָּמ אָ ה ִּכ י תֹועֵ בָ ה ִהוא ִל ְפנֵי‬.
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O primeiro marido, que a mandou embora, não poderá recebê-la outra vez
como sua mulher, pois ela está maculada. Isso seria detestável para o
HaShem.

Devarim 24: 4

O termo aqui para “maculada” é ‫הטמאה‬, que tem conotações de uma


possível contaminação do marido também, desde que, a mácula em
questão, seria algo que pode passar de uma pessoa para outra, pelo ato
sexual.

Se com isso em mente, voltamos ao caso da Sotá, quando o marido traz


sua esposa para o Kohen, ele tem ciência de que, continuando com ela, ele
pode estar sujeito a tal mácula. Além disso, ele deve reconhecer que já está
maculado, posto que, deve ter sido relações com ela, após sua suspeita de
adultério.

O tal do ‫ רוח‬de ciúme, que lhe sobreveio, expressa este estado: Um homem
que acredita que sua mulher cometeu adultério e que, ainda quer continuar
com ela; mas, teme as consequências de tal decisão.

Assim, ele se volta ao ritual, não como um modo de descobrir se ela estava
mesmo sendo infiel, mas, como um meio de provar sua inocência.

E mais especificamente, o ritual remove a proibição que, acredita-se,


existiu no período bíblico, que continuar casado com uma mulher que
tivesse sido infiel.

Ieheskel: A divindade satisfaz seu ciúme antes de se reconciliar com Israel

O tema do ‫ רוח‬de ciúme, de um marido, surge nos dois capítulos do


Profeta Ieheskel; usando como tema a questão da mulher infiel, como um
eufemismo para o culto idólatra; no qual HaShem faz o papel do marido
ciumento, um conceito que reflete a linguagem religiosa, tanto de
Bamidbar 25: 11 como Devarim 29: 19 e, algo muito utilizado na
construção da literatura profética.

Ieheskel 16
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Neste trecho, a Divindade diz que Israel está sendo infiel e, por isso,
seriam punidos severamente, com a permissão de sua destruição por seus
antigos amantes:

:‫ טז‬.‫לח ּוְׁש פַ ְטִּת יְך ִמְׁש ְּפ טֵ י נֹאֲ פֹות וְֹׁש ְפכֹת ָּד ם ּונְ ַתִּת יְך ַּד ם חֵ ָמה ו ְִקנְ אָ ה‬:‫יחזקאל טז‬
‫אֹותְך ְּב י ָָדם‬
ָ ‫לט ְונ ַָתִּת י‬.

Eu pronunciarei para você a sentença que se aplica às mulheres que


cometem adultério e assassinato; trarei sobre você a morte, de meu ciúme
e fúria. Sim, entregarei você a eles; e eles vão tornar seus altares em
ruínas, destruir seus santuários, despir você de suas roupas, levar suas joias
e deixar você nua e exposta.

Ieheskel 16: 38, 39

‫מב וַהֲ נִ חֹ ִתי חֲ ָמ ִתי ָּב ְך וְסָ ָרה ִקנְ אָ ִתי ִמֵּמ ְך וְָׁש ַק ְטִּת י וְל ֹא אֶ כְ עַ ס עֹוד‬:‫טז‬.

Sim, farei abrandar minha ira contra você. No entanto, depois disso, não
terei mais ciúme de você. Ficarei tranquilo e não terei mais ira.

Ieheskel 16: 42

E tal discurso culmina na promessa do HaShem de reconciliação, ao final


do capítulo:

‫מֹותי לָ ְך ְּב ִרית עֹולָ ם‬


ִ ‫עּוריְִך וַהֲ ִק‬
ָ ְ‫ימי נ‬
ֵ ‫אֹותְך ִּב‬
ָ ‫יתי‬
ִ ‫ס ְו ָזכ ְַרִּת י אֲ נִ י אֶ ת ְּב ִר‬:‫יחזקאל טז‬.

Todavia, eu me lembrarei a aliança feita com você quando era uma


menina, e estabelecerei uma aliança perpétua com você.

Ieheskel 16 : 60
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O uso do conceito em Ieheskel 23

No capítulo 23, Ieheskel usa a parábola das duas irmãs, Ohola e Oholiba,
para explicar a destruição de Shomrom e Jerusalém; as respectivas capitais
de Israel e Iehudá. Cada uma delas, traiu seu marido – o HaShem – com
amantes estrangeiros, várias vezes. A punição era a destruição, por seus
próprios amantes. Isso estariam em paralelo com o ciúme do HaShem:

‫יתְך‬
ֵ ‫אֹותְך ְּב חֵ ָמה אַ ֵּפ ְך וְאָ זְ ַניְִך י ִָסירּו וְאַ חֲ ִר‬
ָ ‫כה ְונ ַָתִּת י ִקנְ אָ ִתי ָּב ְך וְעָ ׂשּו‬:‫יחזקאל כג‬
‫יתְך ֵּת אָ כֵל ָּב אֵ ׁש‬
ֵ ‫נֹותיְִך יִָּק חּו וְאַ חֲ ִר‬
ַ ‫ּוב‬ ְ ‫ַּב חֶ ֶרב ִּת ּפֹול הֵ ָּמ ה ָּב ַניְִך‬.

Vou direcionar meu ciúme contra você, de maneira que eles vão lidar com
você em fúria – eles cortarão seu nariz e orelhas, e o que restar de você
será morto à espada; eles definharão seus filhos e filhas, e aqueles que
sobrarem serão consumidos pelo fogo.

Ieheskel 23: 25

E apesar deste capítulo não discutir a reconciliação de modo claro, a ideia


de que o HaShem e Israel/Iehudá teriam um futuro juntos, está implícita:

‫נּותְך ֵמאֶ ֶרץ ִמצְ ָריִם וְל ֹא ִתְׂש ִאי עֵ י ַניְִך‬


ֵ ְ‫כז ו ְִהְׁש ַּב ִּת י זִ ָּמ ֵתְך ִמֵּמ ְך וְאֶ ת ז‬:‫יחזקאל כג‬
‫ּומצְ ַריִם ל ֹא ִתזְ ְּכ ִרי עֹוד‬ ִ ‫אֲ לֵ יהֶ ם‬.

Deste modo, porei fim à sua lascívia e à sua fornicação trazidas da terra do
Egito, de modo que você não mais levantará seus olhos em direção a eles
nem se lembrará mais do Egito.

Ieheskel 23: 27

Então, apesar de Ieheskel discutir adultério e um marido ciumento, ele está


tentando cobrir a questão sobre a Divindade e sua oposição a idolatria.
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Por desviarem-se da Tradição, procurando deuses de outros povos, Israel


havia se maculado em relação a Divindade, ao Templo e a Terra. Ieheskel
usa a raiz ‫ טמא‬seis vezes, enfatizando isso, no capítulo 23. Como
resultado, o HaShem aplicaria sobre Israel a punição resultante, mas, não
para aniquilação completa da nação. Apenas para remover a mácula e
remover o ciúme a ela relacionado.

Em outras palavras, o HaShem mesmo ficaria maculado, pela infidelidade


de Israel, em sua procura por deuses e seus rituais. Haveria a necessidade
de se purificar por meio das punições. Uma vez que isto houvesse
ocorrido, o HaShem mesmo estaria livre para ser o Elohim de Israel, sem o
temor de uma mácula posterior. Com isso se vê a concepção de que, a
punição da mulher tinha o objetivo de alcançar a purificação para
continuar com ela.

A Oferta do ciúme

A necessidade de se remover o ciúme do marido, fica ainda mais clara, na


descrição da Oferta da mulher, que acompanha o ritual:

‫טו וְהֵ ִביא אֶ ת ָק ְרָּב נָּה עָ לֶ יהָ עֲִׂש ִירת הָ אֵ יפָ ה ֶק ַמח ְׂש עֹ ִרים ל ֹא ִיצֹק עָ לָ יו‬:‫במדבר ה‬
‫ֶּכרת עָ ֹ‍ון‬
ֶ ְ‫ֶׁש ֶמן וְל ֹא יִֵּת ן עָ לָ יו ְל ֹבנָה ִּכ י ִמנְ חַ ת ְקנָאֹ ת הּוא ִמנְ חַ ת זִ ָּכרֹון ַמז‬.

Ele levará a mulher ao Kohen, com uma Oferta por ela – 2 litros de farinha
de cevada sobre os quais não derramará azeite de oliva nem colocará
incenso, pois, trata-se de uma Oferta de grãos por ciúme, uma Oferta de
grão para recordar, para trazer a culpa à mente.

Bamidbar 5: 15
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Como uma Oferta, a oferta do ciúme, distinguia-se bastante das ofertas de


alimentos normais. Não continha azeite nem incenso, e exigia farinha de
cevada em vez de, de trigo. O rabino Avraham Ibn-Ezra (1089-1167)
comenta que, a oferta tinha tais características porque lembrava que ela
estava trazendo a oferta – possivelmente – havendo cometido um pecado.

O Ramban complementa, dizendo que, a simplicidade da Oferta a marcava


como “oferta de punição” (‫ )מנחת עונש‬para a mulher. Seja como for, a
oferta era um símbolo que, focava no pecado, mas, não na sua expiação.

Esta era a única Oferta que, era compartilhada entre marido e esposa. Por
outro lado, a oferta era dela, e era a mão dela que deveria dar a oferta ao
Kohen (verso 25). Por outro lado, o texto começa dizendo que ele traz a
oferta com sua esposa em favor dela, mas, não em “seu benefício”.

Enquanto esta oferta poderia funcionar como um lembrete do pecado da


mulher, não chegava a expiar por isto, mas, lidar com o problema do ciúme
apenas. De fato, a forma plural do termo “‫ ”מנחת קנאות‬Oferta de ciúmes,
mostra esta dupla característica do ciúme aqui. O ciúme do homem estava
sendo símbolo do ciúme de Deus. Ela profanar seu marido – era símbolo
de Israel profanar a Torá. O pecado ali, era contra um marido, fosse o
marido de fato ou Deus.

O Rashi, ao comentar Bamidbar 5: 15 (conferir Sifrei Bamidbar 8)


observa:

‫ קנאת המקום וקנאת הבעל‬,‫מעוררת עליה שתי קנאות‬

Isto trazia sobre ela os dois ciúmes, o ciúme de Deus e o ciúme do marido.

Que a oferta e o ritual como um todo, tinha intenção de aplacar o ciúme, é


expresso em Bamidbar 5: 31 claramente:

‫לא וְנִ ָּק ה הָ ִאיׁש ֵמעָ ֹ‍ון וְהָ ִאָּׁש ה הַ ִהוא ִּת ָּׂש א אֶ ת עֲֹ‍ונָּה‬:‫במדבר ה‬.

O marido estará livre da culpa, e a mulher suportará as consequências de


sua culpa.
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Em suma, a oferta deve ser entendida em relação a ele e seu ciúme, não em
relação a ela e sua suspeita de pecado.

A culpa que é associada a ela nunca é expiada – mas, a dele é

Se esta reflexão está correta, a culpa descrita em Bamidbar 5 não é sobre o


suposto adultério, per se, mas; uma culpa criada pela profanação do
marido pelo ciúme contra sua parceira. De fato, a culpa dela – se cometeu
adultério – nunca é tratada, nos termos de expiação. Se ela fosse culpada,
ela teria que “carregar sua culpa” (verso 31). O ritual apenas livra o
marido, da culpa do ciúme por ela.

Portanto, a ‫ מנחת קנאות‬Oferta “dos ciúmes” não serve como conceito de


se condenar uma mulher por adultério, mas, como um meio de reunir o
casal.

A. Bentzion

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