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A julgar pela maioria dos pontos de vista atuais desses cinemanovistas, o azar
da chanchada foi o Cinema Novo ter surgido no momento em que o imaginário
construído por ela ainda estava muito vivo na memória do público e das pessoas de
cinema e, também, ter sido pega no fogo cruzado da batalha ideológica entre as elites
brasileiras - burguesia e oligarquias x intelectuais de esquerda e setores nacionalistas.
A radicalidade do momento não permitiu ao Cinema Novo perceber aspectos positivos
contidos na chanchada, com isso não levando em conta os pontos de vista de dois dos
seus mestres mais respeitados. Alex Viany dizia que “mesmo nos mais
despretensiosos e desleixados filmusicais e chanchadas musicais poderão ser
encontrados elementos valiosos para a formação do núcleo de um gênero popular-
brasileiro capaz de agradar tanto aqui como no estrangeiro”
Neste ponto, isolado, o Cinema Novo volta-se para o Estado a procura de um
novo espaço que o movimento pudesse ocupar para tentar manter-se vivo. Tal como
as gerações de intelectuais que os precederam, os cinemanovistas almejavam não só
participar das elaborações das políticas estatais, como tomar o aparelho estatal. A
partir do golpe militar, esta segunda hipótese mostrou-se muito remota, mas eles não
desistiram da primeira (Ramos, 1983). Do Estado, o Cinema Novo esperava, entre
outras coisas, leis que lhe garantissem o acesso ao circuito exibidor e facilidades para
a produção. Essa foi a maneira encontrada para combater o cinema norte-americano
e tentar abocanhar uma fatia maior do mercado. Após o golpe de 1964, o movimento
viu-se obrigado a buscar apoio no Estado autoritário que censurava suas produções e
dificultava, não só a exibição, mas ainda a exportação dos filmes.
Em quatorze anos (1950/1964) formou-se no Brasil, mais intensamente no Rio
de Janeiro, uma geração cinematográfica. Oriunda, em sua maioria, dos meios
universitários, dedicou-se à crítica, à teoria cinematográfica e à produção de filmes,
na bitola que fosse possível. Desde o início era possível perceber-se em suas
discussões uma enorme vontade de “botar a mão na massa”, de produzir filmes
compromissados com a realidade cultural brasileira. Esse grupo utilizou todas as
armas disponíveis para alcançar seu intento. Sua grande união em torno de princípios
gerais - não se pode falar de um programa de ação devido à grande heterogeneidade
entre membros que compunham esse grupo - foi fundamental para o enfrentamento
dos “inimigos”, fossem eles parcelas da crítica nacional de cinema encasteladas na
grande imprensa ou representantes de um modelo de cinema que produzia os filmes
brasileiros de então: chanchadas e produções da Vera Cruz.
As críticas à Vera Cruz e à chanchada funcionaram como um instrumento de
retórica utilizado para marcar posição contra tudo o que fôra feito em cinema no
Brasil até então e para definir as linhas gerais que todos do Cinema Novo deveriam
seguir.
Nesses quatorze anos os cinemanovistas conseguiram criar um movimento que
contou com uma produção intelectual (livros, artigos etc.) e cinematográfica
constante. Obtiveram sucesso de crítica e conseguiram incluir a cinematografia
brasileira entre as mais importantes do mundo. Também foram reconhecidos como
um grupo social com voz ativa e com cacife para se tornar um importante interlocutor
do governo e de setores da burguesia brasileira.
Outro sucesso do Cinema Novo foi criar uma incipiente indústria cinematográfica
no país. Laboratórios cinematográficos foram montados ou modernizados; formou-se
uma mão de obra especializada, ainda que pequena, baseada numa autodidática de
grupo (os cinemanovistas praticavam o que liam nos livros enquanto faziam seus
filmes, uns ajudando os outros). Órgãos e instituições financeiras, estatais ou
privadas, que davam ajuda ao desenvolvimento da indústria cinematográfica no Brasil
surgiram graças às pressões e às articulações políticas desse grupo junto a setores
sociais influentes.
Outra vitória foi o desenvolvimento de uma linha de pesquisa de linguagem
cinematográfica que passou a influenciar, positiva ou negativamente, toda a produção
cinematográfica feita no Brasil após os anos 60. Segundo David Neves, influenciou até
os jovens cineastas alemães desse mesmo período (Neves, E, 1993).
Entretanto, alguns fatores prejudicaram o desenvolvimento do Cinema Novo. O
primeiro foi não ter conseguido desvencilhar-se da velha tradição messiânica do
intelectual nacionalista brasileiro que encara o povo como algo sem vontade própria e
que deve ser conduzido até a sua salvação. O Cinema Novo também se colocou como
o dono da verdade, como aquele que tinha as melhores propostas para o país, porque
fruto de um elaborado raciocínio intelectual, e as propostas mais sinceras, porque
autenticamente populares e nacionalistas. O povo era apenas um elemento a ser
moldado ou, como se dizia na época, conscientizado.
O segundo fator prejudicial foi não ter elaborado uma política de distribuição
para seu produto. Esse erro é tão mais importante porque foi o mesmo cometido pela
Vera Cruz e que já fôra diagnosticado por Alex Viany, um dos críticos e diretores de
cinema mais respeitados pelos cinemanovistas. Só depois, por volta de 1965, é que
eles se preocuparam de fato com esse problema e criaram a distribuidora de filmes
Difilm que, entretanto, teve vida curta.
Um terceiro fator foi o grupo ter encarado o grande público de uma maneira
“preconceituosa”. Embora os cinemanovistas tenham criado um pequeno público
próprio através dos cine-clubes, o grande público lhes permaneceu inacessível, até
este período, pelo menos. Muito por sua própria culpa já que se esqueceram,
também, de traçar uma política de atração de espectadores. Isso pode ser encarado
como uma outra influência da sua atuação messiânica: o povo deveria, apenas,
fornecer os elementos primários básicos que seriam retrabalhados por esses artistas.
Com isso, sua relação com o público tornou-se uma rua de mão única onde não havia
trocas e interações entre os cinemanovistas e o povo. Foi um relacionamento viciado.
Intelectuais “bondosos” faziam filmes para o povo, a quem só restava aceitá-los, ou
não. Se o grande público não gostasse dos filmes, o problema não estava na
linguagem, nem na estrutura de produção, distribuição e exibição, mas na pouca
conscientização política e no ínfimo desenvolvimento cultural dos espectadores.
Houve uma querela entre Flávio Moreira da Costa e David Neves, narrada pelo
primeiro, que ilustra bem essa dificuldade de relacionamento entre o Cinema Novo e o
público. Em um dos capítulos do seu livro, David Neves afirma que o grande
problema do Cinema Novo é o público (Neves, 1966). Flávio Moreira da Costa
retruca dizendo que era o contrário: o problema seria a conquista desse público
(Costa, E, 1993). De qualquer maneira, houve, de fato, uma grande lacuna entre o
Cinema Novo o público brasileiro.