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NÃO É MAIS UM CONTO DE FADAS by IVAN FREITAS in CONTOS DO CARGUEIRO (ED.

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“Papai, tem um monstro atrás da porta.”

O pai dela se afastou da cama, seguiu até a porta, abriu, deslizou o olhar para os dois lados do
corredor de quartos, virou-se para ela e disse:

“Tudo bem filha, a barra tá limpa.”

Ela sorriu, com os dois olhinhos saindo por debaixo do cobertor levantado até a altura do nariz
arrebitado. Às vezes ficava vermelha de vergonha. Já tinha dez anos de idade, se considerava
uma mulher crescida, não obstante, expunha seus medos infantis para seu paizão.

Richard educara a filha à moda dos alemães da idade-média, com livros de contos de fadas. Alice
era fascinada (“apaixonada” seria a palavra apropriada) pelos Contos dos Irmãos Grimm. E
dentro desse mundo de fantasia ela moldava sua realidade. Realidade sobre realidade –
impossível saber qual a mais verdadeira: a realidade que ela criava baseando-se em seus contos
favoritos ou a realidade em que vivia conforme sua própria idiossincrasia.

Antigamente, Alice tinha o poder de convencer seus pais a acamparem no espaçoso quintal da
mansão em que viviam. O jardim era enorme e cercado por grandes muros e cercas elétricas,
eles montavam barracas, faziam fogueiras e assavam marshmellows e queijos-coalhos. Seu pai
não sabia tocar violão ou qualquer outro instrumento, mas sabia contar historias. E sua mãe
sempre fora espirituosa, exibindo seu sincero interesse pelo que saía da boca do esposo. Richard
sabia encenar, mudar tonalidades de voz e se erguer e fazer sombras no tecido da cabana à luz
da fogueira. Alice sempre assistia hipnotizada.

Na maior parte do tempo Richard era ausente, sua filha podia fugir da realidade, ele não. Sua
competência e raízes familiares fizeram dele diretor de uma importante companhia de pasta de
dente. Atualmente, Richard lutava para comprar uma linha de escova-dental e fundi-la para com
a sua companhia e ampliar seu mercado.

Mas o que veio a seguir não estava nem em seus planos e nem nos planos de Alice.

Ela tinha um grande livro aberto em seu colo, de capa dura e folhas amareladas pelo tempo.
Lendo à luz do fogo na lareira, seu corpo assemelhava-se ao de uma pequena boneca de
porcelana comparado à imensa poltrona no qual estava sentada. O cheiro do guisado que sua
mãe fazia saía pela porta da cozinha e velejava pelo corredor seguindo até a sala. Alice sentia o
cheiro do guisado, que parecia ter saído das paginas do conto que lia e encarnado dentro de seu
nariz. Mas ela só se levantaria para comer quando o pai dela chegasse.

Como já citado anteriormente, o sr. Richard já não privilegiava o tempo livre de outrora. Os dias
se tornaram prolongados e trabalhosos. Ele chegou tarde, como de costume. Beijou a testa da
filha e a conduziu para a cozinha.

Jantaram em família, os três. A mesa de madeira era rígida e retangular – Alice sempre ficava na
ponta; sentia-se a chefe da família. Olhava para sua tigela de argila, a fumaça quente subindo, e
se lembrava da estória dos três ursos. Seus cabelos não tinham cachinhos, mas bem que
poderiam ter. Depois olhava para as tigelas dos próprios pais, enquanto ambos assopravam a
fumaça que acompanhava o guisado até a colher.

“Pai, vamos caçar ratos pela casa.”


“Hoje não filha, estou um pouco cansado.”

Ele tirou os óculos do rosto e esfregou os dedos entre os olhos. Sua esposa notou o cansaço dele
e tentou enviar a mensagem para Alice através do olhar.

Richard a colocou na cama. E Alice disse:

“Pai, atrás da porta...”

Antes que ela pudesse concluir a frase, ele se levantou, olhou para os dois lados do corredor, e
fez um sinal de ok com o indicador e o polegar, sorrindo. Um sorriso exausto. Ela devolveu o
sorriso, com o cobertor na altura do nariz. Então Richard se moveu para perto dela, agachou-se
e deu uma espiada debaixo da cama.

“Aqui também, a barra tá limpa.”

Alice apenas sorriu, satisfeita.

Richard levantou-se, deu um beijo na testa da filha e saiu, fechando a porta do quarto. Alice não
se importava de dormir no escuro. Bastaria apenas seus pais deixarem a lâmpada do corredor
de quartos acesa – e eles sabiam disso. O tênue fio de luz que passava por baixo da porta era
mais que o suficiente.

Ela puxou o cobertor à altura do queixo e observou o céu pela fresta da cortina na janela. A lua
tinha o formato de um sorriso. Dessa vez ela não sorriu de volta. Talvez pela primeira vez na
vida, sentia o desperdiçar do tempo, que passava rápido e ela pouco se dava conta. Seu pai era
o objeto central dessas mudanças. Ele era o desperdício. Em algum momento ela cresceria e
seus pais envelheceriam e mal iria perceber. Era exatamente o que sentia, assim como numa
historia americana, muito antiga, de um sujeito que dorme em uma colônia inglesa leal ao rei
George III, e acorda velho, em um país independente, sob a presidência de George Washington.

Ela fechou os olhos e deixou seus sonhos lhe guiarem.

Alice não conseguia dormir. Principalmente após uma corrente de ar frio passar por baixo da
porta. Olhou para a lua e teve a impressão de ver o sorriso de outrora sangrar. Como um suor
escorregadio e vermelho. Venenoso.

Sim, ela teve essa visão durante dois segundos. Em seguida, seus ossos congelaram ao escutar
um uivar de lobo, tão real e presente quanto um toque de telefone no meio da madrugada. A
silvada desapareceu no ar silente da noite, dando lugar ao vento. Havia muitas arvores quintal
afora, e os galhos pareciam conversar entre si, em seu próprio idioma. O que seria o Lobo Mau
comparado a uma conspiração de galhos e folhas de arvores?

Um som diferente!

Veio do corredor de quartos. O ritmo soava como o de passos, mas diferente. Passos pesados e
abafados, precisos e sorrateiros. Alice ficou parada, perplexa. Cobriu-se completamente com o
cobertor, e como se não fosse o suficiente, fechou os olhos. Só então ela percebeu que seu
corpo tremia e seus dentes se chocavam com o movimento.

Controle-se Alice. Não há por que ter medo.

O barulho aumentava periodicamente. Aos poucos ela puxava a coberta abaixo dos olhos,
tentando segurar o coração dentro do peito. Observou a silhueta de luz contornando a porta.
Abaixo, uma sombra deslizou lentamente obscurecendo a tênue luminosa que vinha do
corredor. Era mais real do que nunca, alguém caminhava pelo corredor de quartos e tinha a vaga
intuição de que não era humano. Após esse instante interminável, escutou o ranger das
dobradiças do quarto dos pais, como se a porta fosse empurrada lentamente. Seus pais nunca
trancavam a porta.

Novamente um uivo, seguido de um grito feminino!

Houve um grito, um rosnar canino e rapidamente o silêncio.

Alice escutara tudo estupefata, o corpo completamente congelado. Suas mãozinhas espremiam
o cobertor com força. Seus lábios se contraíam.

Não chore. Não chore.

Ela encontrou forças para se levantar. Tinha de ter força. Sequer sabia o que acontecia.
Caminhou pelo quarto escuro e tentou abrir a porta sutilmente. Não compreendia o que estava
fazendo, mas eram seus pais no quarto ao lado. Fora o grito de sua mãe que escutara.

Olhou para os dois lados do corredor.

Nada.

Saiu do quarto e caminhou na ponta dos pés, para a porta semiaberta do quarto dos pais. Até o
momento, não havia nada de diferente.

Chegou à porta, a única luz dentro do quarto era a que entrava pelo corredor. Sua garganta
projetava-se pra cima e para baixo. Suava frio. Tentou enxergar através do escuro, e o que viu...

Era um lobo enorme, de uns dois metros. Os olhos de Alice se moveram das patas sobre a cama
box dos pais, subindo pelos grossos pêlos, o movimento respiratório do peito. Entre os dentes
estavam as vísceras de Richard, que o animal mastigava lentamente, como quem respeita os
métodos digestivos do próprio corpo. Alice contemplou paralisada o sangue de seu pai escorrer
por entre os dentes do lobo. Após engolir o alimento, a fera baixou o focinho de volta no corpo
trucidado de Richard na cama e seus dentes voltavam a arrancar as tripas ainda mornas. Assim
como fazem os lobos ao brincarem com a comida.

O corpo da mãe estava estatelado no chão, lívido e sem ferimentos, apenas com os olhos
dilatados e a boca escancarada, como se o coração tivesse parado apenas com o susto que levara
e o momento do choque permanecesse anexado no rosto.

Os olhos do carnívoro movimentaram-se para a esquerda, em direção de Alice; permaneceu


imóvel, com a carne ainda na boca, sua respiração saindo quente pela lateral dos dentes, o dorso
arqueado. Alice ficou plantada ao lado do batente, o coração tentando sair pra fora, os pulmões
explodindo, um medo diabólico percorrendo cada via sanguínea do seu corpo.

Olhos Grandes. Orelhas Enormes. Boca Larga.

Lobo Mau.

A garotinha caiu de joelhos. Seu corpo tremia violentamente, as lagrimas vertiam de seus olhos
e seus ombros pulavam a cada soluçada. Tentou ver o rosto do pai, mas só havia lençol e sangue.
O Lobo Mau se virou para a porta e pregou os olhos em Alice. A menina podia fitar o próprio
reflexo nos olhos do animal.
O lobo se moveu, desceu da cama e caminhou lentamente até Alice, seu focinho a dois metros
da menina assustada. Ele jogou a cabeça para cima e fez os restos das vísceras de Richard
descerem garganta abaixo. Voltou a fitar Alice com seus olhos enormes.

“Por favor... Não me coma” gaguejou Alice.

A voz sinistra do lobo saiu em resposta:

“Sim eu vou te comer, não importa o que você faça, não importa o quanto você peça, irei te
comer como se você fosse um belo dum porquinho.”

“Por favor... Eu te dou alguma coisa... Se você não me comer... Por favor...”

Ela dizia aos prantos, chorando como qualquer criança assustada, com seus olhinhos lutando
para se manterem abertos. Tentando se desfazer de todo o medo infantil.

“Chega!” ele gritou “não suporto ver meninas chorando, cale essa maldita boca!”

O narizinho arrebitado de Alice começou a escorrer, as lagrimas ganharam mais proporções, até
formarem poças no assoalho revestido de madeira.

“Tudo bem, eu tenho uma hora de digestão até a próxima refeição” continuou o lobo “Se até a
próxima refeição você descobrir meu nome, eu te poupo a vida; caso contrario, você será a
próxima refeição.”

***

Alice estava em frente à chama da lareira, que crepitava monótona e iluminava o seu rosto. Os
olhos inchados, mas ela não chorara mais. Observava o fogo dançando na sua frente,
mentalizando a charada que o lobo lançara em seu colo. Poderia confiar nele? E se pudesse,
como descobriria o misterioso nome do animal que devorou seu pai e fez o coração de sua mãe
interromper o ofício?

Lobo Mau. Ela sempre fora fascinada pelos lobos nas estórias. Alice era uma grande fã de lobos,
e não negaria que sempre teve aquela pequena vontade de ver o lobo devorar a Chapeuzinho
Vermelho ou jantar os três porquinhos. Ela tinha certeza que o animal que dormia no andar de
cima era o mesmo dos contos que lia. Certeza absoluta. Quanto a isso não havia o que discutir.

Ela observava a chama como se pudesse afundar seus olhos no passado, capturando os
pequenos momentos separados que juntos formavam um todo; ela lembrava um de cada vez,
aos poucos e fora de ordem: quando ia com sua mãe ao shopping, e gostava de comprar sapatos
de salto alto e vestidos e optava por segurar as próprias sacolas de compras nas mãos. Nesses
momentos deixavam de ser mãe e filha e passavam para companheiras de compras. Seu paizão
sempre fora o fertilizante do mundo fabuloso em que vivia. Ele a atendia quando ela o chamava
para procurar ratos pelos infindáveis corredores da mansão, mesmo sabendo que nunca
houvera ratos ali. Richard sempre a protegeu e lhe deu o que podia dar, seja financeiramente
ou imaginativamente.

Alice não choraria, prometera para si própria, mesmo de frente de tantas recordações. Então, o
odor do sangue lhe invadiu a memória, entrando em seu cérebro e descendo pelas narinas com
sabor de ferrugem.
Concluiu que estava perdendo tempo ali na sala, em frente à lareira. Devia se preocupar com o
nome do assassino peludo que prometera acordar em... Quanto tempo faltava-lhe? Uns
quarenta minutos talvez. Definitivamente desperdiçava tempo.

Alice empurrou uma cadeira até a estante de livros, subiu sobre e começou a puxá-los e atirá-
los no chão. Todos os livros de contos de fada e de fantasia. Nunca imaginou que o lobo poderia
ter nome, e ela não se arriscaria a ponderar que o nome do lobo fosse simplesmente Lobo Mau.
Deveria ter um nome comum. Sim, ele deveria. Se for para jogar o jogo então aceite as regras.

Na penumbra da sala, à luz da lareira – assim como estava habituada – ela folheou as paginas
de um livro grosso e de capa de couro, que possuía cheiro de coisa velha. Havia ilustrações
infantis do lobo da Chapeuzinho, mas ao correr os olhos pelo texto, nenhuma citação de nome
algum. Ela revirou os demais livros, nada encontrando.

Então lembrou-se de outro conto, que chegava a se assemelhar com a situação em que estava
envolvida. Não havia lobos e nem assassinatos, não obstante, se tratava da filha de um moleiro,
chorona, e de um duende que pretende roubar o bebê dela e cozinhá-lo numa fogueira, ao
menos, claro, que ela descubra seu nome. As condições eram as mesmas, uma vez que uma
historia fosse independente da outra. Como era mesmo o nome do homenzinho? Ela abriu um
livro fino, de capa mole, folheou inúmeras paginas, pulando alguns contos, até chegar ao
referente: Rumpelstiltskin.

Rumpelstiltskin! Mas como é que se fala isso?

Com certeza não seria do mesmo jeito que se escreve.

Quando o fogo da lareira baixava e o estalar da madeira diminuía, Alice podia escutar o som do
roncar do lobo, no andar acima. O barulho a transportava novamente para a realidade em que
estava vivendo, como se durante os segundos anteriores tivesse acordado do pesadelo.

A menina acreditava estar dentro de uma estória infantil, mais precisamente dentro de uma
confluência. Como se todos os contos que conhecesse fossem rios, todos originários de uma
mesma nascente e agora corriam ao contrario. Se assim fosse possível, então um conto estaria
interligado a outro. Era sua única esperança. Então, veio-lhe à mente: se ela estivesse enfiada
em um conto de fadas, haveria uma moral para a sua historia? Mesmo se ela fosse devorada,
haveria uma moral para isto? E alguém, algum dia, leria suas aventuras, mesmo que terminasse
numa carnificina?

Não queria pensar a respeito.

Caminhou pelos corredores escuros da casa, que anteriormente eram assustadores. Depois do
que ocorrera no quarto ao lado do seu, precisaria mais que escuridão e barulhinhos no meio da
noite para assustá-la. Provavelmente nem mesmo se um fantasma surgisse em sua frente ela se
amedrontaria. A partir de agora ela somente temeria coisas que mordem e arranham, e
conversam.

Rumpelstiltskin, sua melhor pista!

O vento entrava pela janela e sussurrava em seu ouvido, um frio miserável atrás de seu pescoço.
O corredor pelo qual andava era iluminado pela luz da lua que entrava pela fileira de janelas à
direita. Ela olhou para a esquerda e percebeu que sua sombra se movimentava por conta
própria, até se desprender de seu corpo e sair correndo.
“Ei, espere ai!” gritou para a sombra.

Alice correu, tentando não perdê-la de vista. A sombra virou o corredor e desceu um lance de
escada, parou no patamar com as mãos na cintura, esperando que Alice a alcançasse. Quando a
menina chegou perto, a sombra voltou a correr, dessa vez para o lado de fora da casa, pelo
jardim, passando pelas urtigas e adentrando a um jardim secreto.

A menina diminuiu o ritmo de velocidade. Ao seu redor havia orquídeas tão grandes quanto sua
cabeça, ela se aproximou e lambeu uma pétala, que tinha gosto de uva. Deixou sua língua
deslizar de uma pétala para a outra e se afastou. Ela voltou a caminhar, lentamente, passou pelo
alpendre do jardim, seguindo por um corredor de cercas-vivas, iluminado pelo clarão de
girassóis hasteados feito postes de luz. Alice continuou caminhando, cofusa e ao mesmo tempo
maravilhada pela mágica do lugar. Nunca estivera nesse jardim anteriormente. Atravessou uma
pequena ponte arqueada feita de pedra, sobre um riacho. Ela olhou para o fluxo de movimento
da água cristalina. Não enxergava onde o pequeno riacho começava e nem onde terminava.

Continuou seguindo a sombra fujona por uma estrada de paralelepípedo. Estava assustada, não
com o lugar, mas com o relógio que não parava de se movimentar. Logo o lobo acordaria.
Aguçou o olhar além do corredor de cercas-vivas e avistou sua sombra correr para uma clareira,
onde havia uma casinha colorida, com uma chaminé expelindo fumaças que flutuavam céu
acima feito pequenas bombas de nuvens.

A casa cheirava a um misto de diversos doces misturados e fundidos um no outro. Subindo no


alpendre, a menina percebeu que a porta era uma grande barra de chocolate Hershey’s. Ela
girou a maçaneta de brigadeiro e a abriu. Deu de cara com uma velhinha sentada em uma
cadeira de balanço, no meio da sala. “Eu sei quem é você” disse Alice, e por incrível que pareça,
não sentia medo. A sala tinha cheiro de cocada e era iluminada apenas por um abajur de
caramelo atrás da velha.

A velha tricotava, cabisbaixa, absorta em seu trabalho.

“Eu não comi nenhum pedaço da sua casa, por isso você não pode me fazer nenhum mal”
continuou Alice, com os ombros erguidos “essas são as regras.”

“O que você sabe sobre regras?”

Disse a velha, alçando o olhar para a menina a sua frente, e sorriu, com seus dentes que mais
pareciam pontas de flechas bem gastas. O coração de Alice começou a bater mais forte.

“Você não tem muito tempo” disse a bruxa velha “logo, logo o seu amigo lobo irá acordar, ele
sentirá seu cheiro e virá a tua procura.”

“Você vai me ajudar, não vai? Vai me contar o nome dele, você conhece o nome dele, não?”

“E por que eu saberia, pequenina?” sorriu novamente, e apontou para o lado, onde havia uma
cesta “olhe dentro deste cesto.”

Alice obedeceu, foi até o cesto, que estava coberto por uma toalha de mesa xadrez, e viu o que
tinha dentro. Feijões mágicos, uma maçã bem vermelha e bem envenenada, e uma flauta
encantada.

“Escolha um desses, pequena, apenas um” disse com uma expressão mais resoluta, levantando
o indicador “o que você julgar mais adequado para sua aventura.”
A menina não tinha tempo para ficar em duvida. Olhou para cada um e sabia o que cada um
significava. O que os feijões mágicos poderiam fazer? Ela poderia escalar um pé de feijão, o que
não impediria o lobo de persegui-la. Talvez uma casa de tijolos fosse útil, mas não havia
nenhuma dentro do cesto. Então olhou para a maçã envenenada; ela poderia dar para o lobo
comer, e claro que o animal nunca aceitaria. Mesmo que os sentidos dele o traíssem e ele não
pudesse detectar o veneno, ainda assim continuava sendo um carnívoro. Então olhou para a
flauta encantada e teve uma ideia.

Faltavam cinco minutos. Alice estava no corredor de quartos, de frente para o Lobo Mau, com a
flauta bem posicionada em seus lábios, e como se conhecesse todas as notas existentes, se
engajou a tocar. O som saía lírico pelo instrumento, suave como a brisa do oceano, tão
refrescante quanto uma Coca-Cola gelada.

O lobo se ergueu, exatamente como os ratos se levantaram Hamelin, e ficou estagnado, com os
olhos fechados. Então, a pergunta saiu em forma de musica, deslizou em notas no ar e adentrou
aos ouvidos do animal. Durante um curto espaço de tempo o animal permaneceu parado,
enquanto as notas entravam e saíam de suas orelhas enormes, num fio musical dançante,
carregando a pergunta de Alice.

“Mefistófeles” disse o lobo “o nome que meu pai me concedeu, é Mefistófeles.”

Após soltar essas palavras, o lobo se deitou novamente, e terminou o seu um minuto e meio
restante de digestão. Levantou-se novamente, com os olhos abertos e brilhantes, observando a
menina que o encarava. Sua língua salivou de uma ponta de seus lábios à outra – os olhos
serrados. Alice aprumou-se, estufando o peito e direcionando um olhar resoluto a seu
antagonista. Ela podia sentir a respiração fedorenta do lobo chegando até seu rosto.

“Então, diga, qual é meu nome?”

“Se eu disser, que garantia tenho de que você irá manter sua palavra?’

“Garantia, eu preciso de garantia? Você acha que sou o quê, homem?”

Ela fechou os olhos e disse:

“Mefistófeles.”

O animal permaneceu indiferente. Os olhos colados em Alice, e sorriu.

“Sim, você acertou.”

Alice suspirou aliviada, sorrindo para si mesma. Um tipo estranho de felicidade. O lobo
continuou sorrindo, com os pêlos eriçados. Alice não compreendia por que o animal ria, e não
se importava, pois, de um jeito ou de outro, ela viveria. Depois devia ter de agradecer a velhinha
da casa feita de doces, passou pela sua cabeça. Para ferir o silêncio, com sua voz sinistra o lobo
disse:

“Tudo bem, você descobriu meu nome e eu nem perguntarei como, embora isso apenas me
impeça de comê-la, mas não me impede de arrancar seu braço e deixá-la sangrar até a morte.”

Alice escutou atônita, mas manteve-se com a expressão destemida.

“E que vantagem você iria tirar disso?” ela indagou.

“Eu poderia beber do seu sangue.”


A garganta dela ribombou. Mefistófeles soltou um sorriso demoníaco, que até então não
demonstrara. Ela ficou parada, suando frio, sem abalar-se, serrando seus pequenos punhos. O
lobo olhou ao lado, no quarto dos pais dela e com um menear de cabeça a mandou entrar. Alice
foi andando devagar, sem desviar o olhar do lobo, seus joelhinhos fraquejavam.

O lobo a seguiu. Na penumbra do quarto, Alice se aproximou da cama dos pais, onde o corpo de
Richard se decompunha, coberto pelo sangue grená que coagulava numa massa pegajosa. O
animal se aproximou do corpo intocável da mãe paralisado no chão; ele sacou uma de suas
unhas e rabiscou o ventre da mãe. O sangue brotou da abertura e transbordou aguado.

“Pegue aquele copo sobre o criado-mudo, e encha-o de sangue” ele disse para Alice.

Ela tremia, segurando as lagrimas conforme o sangue transbordava de sua mãezinha querida.
Foi ao criado-mudo, pegou o copo e o levou à barriga da mãe, o enfiou através da carne aberta
e tirou o máximo de sangue que conseguiu. Levantou o copo na direção do lobo, com a outra
mão na boca, como quem se esforça para segurar o vômito. O Lobo Mau sorriu, e disse:

“Viu como ainda está quente? Agora você pode beber.”

Ela olhou para o copo cheio de sangue e depois para o lobo. Seus olhos marejavam.

Não chore, não chore!

“Beba” sussurrou o lobo.

Alice virou o copo na boca, deixando o sangue descer garganta abaixo. Seus olhos crisparam, e
sua garganta era rasgada por dentro. Sim, o sangue ainda estava quente. Ela empurrou o copo
para longe da boca, com uma sequencia áspera de tosse e engasgo. Apoiou as duas mãos no
chão, com a cabeça vergada, e virou o olhar de esguelha para a mãe deitada, percebendo que o
peito dela ainda se movia respirando imperceptivelmente.

Com suas duas mãozinhas, Alice empurrou as bordas abertas no ventre da mãe e enfiou a boca
lá dentro, bebericando todo sangue que seus lábios alcançavam; em seguida, puxou com os
dentes o intestino delgado, com grande esforço, tentando mastigá-lo e mandá-lo para dentro.
Seus lábios e queixo estavam banhados de sangue, e havia uma gota vermelha na ponta de seu
nariz arrebitado. Repentinamente, a mãe dela despertou com um grito horripilante, que ecoou
por todos os corredores da imensa mansão.

Segurando as tripas na boca, Alice fitou o semblante horrorizado da própria mãe, olhou ao redor,
o lobo não estava mais presente. A mãe não interrompia os gritos, com dois olhos perplexos e a
voz estridente descarrilando do fundo da garganta. Alice viu uma faca de cozinha a seu lado,
então percebeu, finalmente: não existia lobo, não existia um jardim secreto com uma casinha
feita de doces no final dele, e nem existiam sombras vivas e flautas encantadas. Nem contos de
fadas encarnados. Fora ela o tempo todo e usara a imaginação para fazê-lo. Ela matou e se
alimentou do pai e fazia o mesmo com a mãe. Retinha as lembranças da família de como se
lembrava, assim seus pais não envelheceriam e seriam digeridos para sempre dentro dela.

O grito aterrorizado da mãe continuava ecoando.

Do lado de fora, ao suspiro do vento, os galhos e as folhas das arvores continuavam seu conluio,
em seu próprio idioma.

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