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VOLUMES PUBLICADOS:
ADVERTÊNCIA AO LEITOR 1 Filosofia e Cosmovisão
2 Lógica e Dialéctica
Sem dúvida, para a Filosofia, o vocabulário é de 3 Psicologia
máxima importância e, sobretudo, o elemento etimoló 4 Teoria do Conhecimento
gico da composição dos termos. Como, na ortografia 5 Ontologia e Cosmologia
atual, são dispensadas certas consoantes, mudas, en 6 Tratado de Simbólica
7 Filosofia da Crise (Temática)
tretanto, na linguagem de hoje, nós as conservamos O Homem perante o Infinito (Teologia)
8
apenas quando contribuem para apontar étimos que 9 Noologia Geral
facilitem a melhor compreensão da formação histó 10 Filosofia Concreta I vol.
rica do termo empregado, e apenas quando julgamos 11 Filosofia Concreta II vol.
conveniente chamar a atenção do leitor para eles. ]2 . Filosofia Concreta III vol.
Fazemos esta observação somente para evitar a es 13 Filosofia Concreta dos Valores
tranheza que possa causar a conservação de tal grafia. 14 Sociologia Fundamental e Ética Fundamental
15 Pitágoras e o Tema do Número (Temática)
16 Aristóteles e as Mutações (Temática)
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
17 O Um e o Múltiplo em Platão (Temática)
18 Métodos Lógicos e Dialécticos I vol.
19 Métodos Lógicos e Dialécticos II vol.
20 Métodos Lógicos e Dialécticos III vol.
21 Filosofias da Afirmação e da Negação (Temática Dialéctica)
22 Tratado de Economia I vol.
23 Filosofia e História da Cultura I vol.
24 Filosofia e História da Cultura II vol.
25 Bilosofia e História da Cultura III vol.
26 Análise de Temas Sociais I vol.
27 Análise de Temas Sociais II vol.
28 Análise de Temas Sociais III vol.
29 i O Problema Social
NO PRELO:
30) Tratado de Esquematologia
31) As Três Críticas de Kant
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS 32) Problemática da Filosofia Concreta
A SAIR:
33» Temática e Problemática da Cosmologia Especulativa
341 Teoria Geral das Tensões I vol.
35) Teoria Geral das Tensões II vol.
36) Temática e Problemática da Criteriologia
37) Dicionário de Filosofia e de Ciências Culturais I vol.
38) Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais II vol.
39) Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais III vol.
40) Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais IV vol.
41) Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais V vol.
Os volumes subsequentes serão oportunamente anunciados. Í N D I C E
OUTRAS OBRAS DO MESMO AUTOR:
— «O Homem que Foi um Campo de Batalha» — Prólogo de «Von Especialismo e Generalismo 13
tade de Potência», de Nietzsche, ed. Globo — Esgotada
— «Curso de Oratória e Retórica» •— 89 ed. Introdução 23
— «O Homem que Nasceu Póstumo» — (Temas nietzscheanos) — O Acto Económico — Facto Económico 29
— «Assim Falava Zaratustra» — Texto de Nietzsche, com análise O Conhecimento Económico 33
simbólica — 3» ed.
-— «Técnica do Discurso Moderno» — 4» ed. Do Conhecimento Económico 37
■— «Se a esfinge falasse...» — Com o pseudónimo de Dan Andersen Os Métodos no Estudo da Economia 45
— Esgotada Universo de Discurso da Economia — Conceitos Fundamentais 48
— «Realidade do Homem» — Com o pseudónimo de Dan Andersen
— Esgotada Classificação das Utilidades e dos Bens 52
— «Análise Dialéctica do Marxismo» — Esgotada Condições Técnicas e Jurídicas da Producção 59
— «Curso de Integração Pessoal» — (Estudos caracterológicos) — Os Métodos na Economia "S
3» ed.
-— «Práticas de Oratória» — 2» ed. A Economia A Técnica e a História 70
■— «Assim Deus falou aos Homens» — 2* ed. O desenvolvimento da Técnica 81
— «Vida não é Argumento»
— «A Casa das Paredes Geladas» A Eotécnica 87
-— «Escutai em Silêncio» Paleotécnica 93
— «A Verdade e o Símbolo» Neotécnica 99
— «A Arte e a Vida»
— «A Luta dos Contrários» — 2» ed. Síntese Histórica dos Sistemas Económicos 104
— «Certas Subtilezas Humanas» — 2» ed.
— «Convite à Estética» A Formação do Capitalismo 119
— «Convite à Psicologia Prática» O Capitalismo Industrial 325
— «Convite à Filosofia»
As Estructuras Económicas 129
A PUBLICAR:
O Aspecto Estructural do Capitalismo Moderno 136
— «Hegel e a Dialéctica»
— «Dicionário de Símbolos e Sinais» Síntese do Pensamento Económico 144
■— «Discursos e Conferências» As Tendências Socialistas no Século XIX 151
— «Obras Completas de Platão» — comentadas — 12 vols.
— «Obras Completas de Aristóteles» — comentadas •— 10 vols. A Economia Nacional e a Escola Histórica, na Alemanha . . . . 153
TRADUÇÕES: PARTE ANALÍTICA
— «Vontade de Potência», de Nietzsche
— «Além do Bem e do Mal», de Nietzsche O Factor Humano, Meio Natural e Técnica 159
■— «Aurora», de Nietzsche
— «Diário Intimo», de Amiel Os Bens 167
— «Saudação ao Mundo», de Walt Whitman Capital, Lucro, Poupança e Trabalho 173
12 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
3) A impossibilidade de a mente humana poder abran mente, só o estudo do cérebro da sanguessuga exige não uma
ger esse volume tão grande de conhecimentos levaria, quem vida, mas milhares de vidas.
desejasse possuir um conhecimento enciclopédico, apenas a
uma visão ínfima de cada ciência, tão restricta que seria um Por essa concepção, proclamar-se-ia, definitivamente, o
quase-nada. Dessa maneira, a tentativa de ter um conhe fim do conhecimento, porque tal atomização em intensidade,
cimento enciclopédico equivale a uma ignorância quase total. corresponderia à atomização em extensidade do enciclopédi
co, e do mesmo modo que este não seria mais capaz de
4) Um conhecimento tão mínimo da ciência, embora ligar os conhecimentos mínimos numa totalidade coerente e
abrangendo a totalidade, traria, como consequência, que o bem fundada, também o excessivo especialista estaria numa
grau de saber, em vez de aumentar, diminuiria de tal modo ilha isolada de todos os outros estudiosos e a comunicação
que ninguém, em nenhum sector, seria capaz de realizar coi entre os homens de saber tornar-se-ia impossível.
sa alguma.
Podem parecer extremadas estas nossas palavras, mas,
5) É preferível, pois, que se tenha um conhecimento inegavelmente, é onde nos levam se aceitarmos fundamento
maior num único sector, pelo qual possa o estudioso ser mais na tese dos defensores unilaterais do especialismo.
útil e competente, do que possuir um conhecimento enciclo
pédico, carente totalmente do mínimo indispensável. É pre De antemão, antes de respondermos aos sofísticos argu
ferível conhecer-se bem uma pequena região do conhecimen mentos acima expostos, queremos dizer que não somos ini
to do que desconhecer-se quase tudo. migos do especialismo. Somos sim adversários, e exporemos
nassas razões, desse modo de conceber o especialismo, de mo
6) Consequentemente, todo o ensino deve orientar-se do monstruoso, como monstruosa é também a maneira de
para a formação de especialistas e deve-se combater com avaliar o saber enciclopédico.
energia a tendência enciclopedista, que é um fantasma do
passado, anacrónico, intempestivo, ineficiente. Vejamos os argumentos. Tomemos de início o primei
ro. Este, como todos os outros, pecam de início por dois
Nesses seis argumentos estão compendiadas as princi defeitos fundamentais: olham o conhecimento apenas pelo
pais e "poderosas" razões dos defensores do especialismo. lado quantitativista e revelam a influência de um sentir
muito próprio da época mercantilista em que vivemos.
Antes de mostrar a deficiência que apresentam, deseja
ríamos avançar um pouco mais nos mesmos argumentos, le- Quanto à influência marcante do quantitativo nas nos
vando-os a todas as consequências que deles decorrem. sas apreciações é algo que já foi muito bem denunciado e
analisado por vários autores e que qualquer pessoa de me
Por tais razões, com o crescimento constante do conhe diana inteligência, se prestar a devida atenção, facilmente
cimento em todos os sectores do saber humano, pode-se desde captará a sua influência maléfica, que tem afastado uma
já, fundado no mesmo modo de pensar, dizer que é impossí avaliação mais justa e consentânea das grandes conquistas do
vel uma plena especialização em qualquer disciplina. Não conhecimento, do próprio homem e das suas coisas. Não
se pode mais falar, seguindo tal caminho, na especialidade sabe mais História quem conhece mais factos da História,
da Medicina, nem da da Física, nem da Sociologia. Essas quem sabe mais datas, quem pode relatar mais aconteci
especialidades devem cada vez atomizarem-se em outras es mentos, mas quem nela penetra com uma visão mais profun
pecialidades até alcançar-se ao especialismo de que falava da, e capta a significação dos factos, as razões das grandes
Nietzsche do "escrupuloso intelectual", que se dedicava ape correntes históricas, da motivação revelada pelas correla
nas ao estudo do cérebro da sanguessuga. Teremos fatal ções e analogias que ela apresenta. Acaso alguém que co
mente de chegar lá, se tal maneira de conceber é verdadeira. nheça Don Quixote de la Mancha todo decor, e que seja ca
Perder-nos-íamos, com o decorrer dos anos, numa ato paz de repetir uma por uma as passagens da obra, dar to
mização de especialismos dos mais estremes, porque, real- dos os personagens que nela penetram, enfim um "cervan-
m
TRATADO DE ECONOMIA 17
16 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
parsos. Nunca, como hoje, deveria preocupar tanto as men sos filosóficos e, depois de Kant, dizem, é impossível ter qual
tes dos que desejam contribuir para o progresso do conheci quer ilusão nesse terreno. Respondemos-lhe apenas o se
mento humano o problema ontológico, em vez de satisfa- guinte: em primeiro lugar tais "autoridades" revelam ape
zerem-se numa total ignorância dos grandes trabalhos que nas deficiência filosófica, porque o filosofismo não é Filoso
nesse sector realizaram os grandes filósofos do passado. fia, mas vício filosófico. Só há Filosofia onde há demons
trações rigorosas; o resto é exposição filosofista ao sabor
A escolástica realizou, no campo da Filosofia, a análise dos gostos estéticos e afectivos de cada um. Por outro lado
mais ampla em intensidade e extensidade, chegando alguns Kant não destruiu coisa nenhuma. Toda a sua argumenta
escolásticos menores a excessos realmente indesculpáveis, e ção é fundada em sofismas elementares, que qualquer estu
que serviram, posteriormente, de argumento contra o corpo
geral da obra realizada pelos medievalistas. Há uma analo dioso de Lógica, mesmo incipiente, é capaz de mostrar a in
gia e correspondência desse analitismo intensista e exten- validade, como o fazemos em "As Três Críticas de Kant".
sista, realizado nos séculos XII ao XVII, com os cinco sé É verdade que para alcançar-se o generalismo capaz de
culos da história grega, que vão desde os fisiólogos a Pitágo dar a base transimanente e fundamental ao espacialismo é
ras, Platão, Aristóteles até os sofistas, correspondendo a
especialização destes com a que se verifica no período actual mister um método. A Matemática e a Lógica têm sido as
de domínio quantitativista no ocidente. disciplinas auxiliares do conhecimento, e graças a elas somos
capazes de alcançar generalidades que dispensam o exame
Contudo, a análise intensista realizada era acompanha do vário e do heterogéneo, o que nos permitem construir
da de uma intensista análise da Ontologia, porque era im as leis, as constantes, os invariantes, as normas gerais, que
possível deixar-se de fundá-la em campos determinados e formam a estructura superior de um conhecimento. Pode
vários, sem que houvesse uma preocupação mais profunda alguém ter a maior soma de conhecimentos físicos, mas se
da positividade, do afirmativo, porque tudo isso, quanto há desconhecer as leis da física, seu conhecimento será apenas
aí, não pode ser apenas uma ficção, um grande nada, poi£ um brique-a-braque de notícias. Pois bem, tanto a Mate
que nada é nada, e o que há deve ter um fundamento posi mática como a Lógica são indispensáveis ao conhecimento
tivo. O exame das características do ser e dos modos de hodierno. Mas, enquanto falamos em Lógica não faiamos
ser, o correlacionamento e a transcendência que realizavam apenas nos conhecimentos elementares da Lógica Menor,
a conexio dos elementos dispersos em unidades estructurais, mas nos mais elevados da Lógica Demonstrativa e da Dia
e estas na grande unidade suprema, impediam que as aná léctica bem orientada. Graças a essas matérias, quando bem
lises dispersas se tornassem abissalmente separadas umas das conhecidas, e não são muitos os que as conhecem e bem poucos
outras e criassem diástemas irreductíveis entre os diversos os que as sabem aplicar, chegaremos, então, a possuir os
sectores do conhecimento. métodos capazes de dar a visão geral, não de uma, mas de
Para que se institua um generalismo capaz de dar o con muitas especialidades e com mais sólidos fundamentos do
teúdo transcendente ao conhecimento, é mister que tenha que a mera acumulação de notícias e mais notícias e mais
êle bases fundamentalmente ontológicas e razões baseadas notícias, de himalaias de dados, de pesquisas, de fontes, de
em argumentos e demonstrações apodíticas, cuja validez não polémicas, de divergências.
possa ser posta em dúvida por qualquer sofista de segunda
Para finalizar, queremos apenas dizer o que se segue:
classe.
a mania especialista passará como passaram muitas outras
Muitos que leiam estas palavras poderão sorrir e afir manias. Também há de se verificar que se cometeu aí um
mar que tal é impossível. A actual situação da Filosofia, OITO que se iguala a muitos erros cometidos no passado.
dizem, demonstra que nada obtemos neste sector. Inúmeros Ilá ainda de chegar a hora de se compreender que o especia-
homens de grande valor negam qualquer validez aos proces- lismo não é esse monstro voraz que ameaça tragar o conhe-
20 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 21
um grave erro, muito peculiar à nossa época, julgar-se que proposições que ofenderam um princípio ontológico não se
aquele que pode discorrer mais sobre tais minúcias, que se sustentaram nem se sustentarão.
embrenha mais tempo pelos caminhos dispersos dos factos Inegavelmente, o filosofismo fêz tanto mal ao filosofar,
económicos, possua uma visão mais profunda da Economia, que criou entre os cientistas a desconfiança na inutilidade da
<; que, para conhecê-la, é mister embrenhar-se apenas por tais Filosofia. E não faltam professores de filosofia que promo
sectores. O que dá a garantia de uma visão clara de qual vem essa desconfiança e proclamam até a inanidade do filo
quer disciplina é a capacidade de colocá-la em seu verdadeiro sofar, e apresentam os que filosofaram com rigor, como se
lugar ontológico, conhecer suas raízes e as conexões que a *ôssem outros tantos fantasmas do filosofismo. Tudo isso
concrecionam com outras disciplinas. Na verdade, não há contribuiu tremendamente para criar o estado actual em
ninguém capaz de conhecer tôdas as minúcias de uma disci certos sectores de desconfiança contra a Filosofia, o que só
plina, todos os factos que constituem o acervo dos elementos- tem servido para alguns energúmenos atacá-la com uma tei
materiais, tôdas as hipóteses, doutrinas e opiniões que o mosia, uma audácia e uma auto-suficiência simplesmente ri
pensamento humano é capaz de criar em torno de uma ma dícula e assanhadas. O resultado foi o aumento dos conhe
téria, quanto mais de um volume extensivo de doutrinas cimentos específicos (o que realmente deveria ser um bem
sem dúvida é assim. Mas também é verdade que não é para o saber humano), mas infelizmente desacompanhados
possível ter um conhecimento seguro de nenhuma delas sem do necessário generalismo, que conexiona e concreciona as
uma base generalista ontologicamente bem fundada. A pri fontes de todo o saber. Desse modo se impediria que o es-
meira maneira de conhecer é a abstractista, unilateral e de- pecialismo promovesse tantos estragos e permitiria que os
formadora da realidade, porque o especialista de tal cunho especialistas se tornassem criadores no campo a qual se de
não é capaz de ter uma visão clara nem da matéria sobre a dicam, dissipando-se assim a confusão de ideias em que vi
qual se especializou. Sem a segunda posição, não há saber vemos nesta nova Torre de Babel.
seguro, porque sem a capacidade de entrosagem concreta
todo conhecimento é um fragmento de saber solto, separado * * *
por um diástema intransponível.
Se a mente humana é incapaz do primeiro conhecimento Como a finalidade primacial desta colecção é dar ao lei
extensivo e quantitativo, não o é do segundo, que é mais tor a maior soma possível de conhecimentos, que o tornem ca
profundamente seguro, além de ser o que dá a melhor base paz de julgar com proficiência os magnos problemas da
a todo saber. actualidade, e encontrar caminho novo a ser trilhado, novas
possibilidades a serem despertadas e realizadas, oferecemos
Podem realizar-se as experiências que se quiser, mas ne nos livros desta coleção, sob os aspectos gerais, os elemen
nhuma até hoje, nem ontem, nem amanhã destruirá uma tos necessários para que tal estudo possa ser realizado.
única das leis ontológicas a que alcançou a filosofia concre
ta. Quando se examinam as leis científicas, propostas atra Examinaremos a Economia sob o ângulo generalista e
vés dos tempos, verifica-se desde logo que tôdas aquelas que não sob os ângulos especialistas, os quais poderão ser trilha
ofenderam um princípio ontológico não resistiram ao tenjpo, dos, posteriormente, pelos que tenham já construído as
e caíram fragorosamente. A ciência tem sido um campo de bases fundamentais.
batalha de doutrinas, no qual jazem mortas inúmeras teorias
e hipóteses. Não tinham elas fundamentos ontológicos, co O terrível preconceito de nossa época, que supervalori-
mo o demonstramos em nosso "Teoria Geral das Tensões", zou o especialismo, colocou o estudioso dentro do campo do
onde examinamos as leis ontológicas, rigorosamente decor contingentismo puro, provocando uma visão unilateral e pri
rentes de princípios insofismáveis. Por essa postulação cui mária do restante do saber, sem situar precisamente a pró
dadosa de tais leis, é fácil comparar tôdas as proposições pria matéria sobre a qual dedica o seu melhor esforço. Ne
que os cientistas ofereceram através dos tempos. Tôdas as nhum especialista se tornará criador nem constructivo, se se
TRATADO DE ECONOMIA 27
26 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
m
TRATADO DE ECONOMIA 31
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
30
Assim, a vida económica é um conjunto de actos custosos,
Para a realização desse processo da captação, há certo onerosos, que são empregados sobre o meio exterior pelo
esforço da parte do ser vivo, que tem de vencer as resistên homem, para manter a sua subsistência. Que é a vida hu
cias exteriores. Mas o ser vivo não permanece sempre vi mana senão uma adaptação do homem à natureza, adapta
vo; depaupera e morre. Em compensação, reproduz-se ao ção ora passiva, ora activa? Que é senão a transformação
atingir certo estado de sua vida. Observa-se, no entanto, da natureza e das forças naturais em seu proveito?
que os seres vivos procuram permanecer vivos; isto é, tudo
fazem para conservar a vida. Desta forma, estabelecem os A característica fundamental e simples do acto econó
biólogos duas constantes: mico é o esforço despendido pelo homem para a obtenção
dos meios exteriores que possam permitir a manutenção da
1) Constante biológica da conservação do indivíduo. sua subsistência. Nesse aspecto particular funda-se a eco
2) Constante biológica da conservação da espécie. nomia. Essa onerosidade é invariante, enquanto as formas
em que ela se apresenta na história, isto é, o seu conteúdo,
Podemos dividir a vida humana em duas fases: são variantes.
a) a vida intra-uterina, quando ainda permanece no Para executar essa apreensão dos meios que lhe for
útero materno, e nece o ambiente, esse esforço pesa, é penoso, portanto custo
b) a vida extra-uterina, iniciada logo após o nasci so, oneroso, porque lhe exige esforço. Até aqui permanece
mos dentro de actos económicos de uma economia individual,
mento. de uma economia que se processa entre um indivíduo e o
Salvo os casos anormais, o indivíduo, na primeira fase, meio ambiente. Mas, sucede que o homem não é um animal
está em equilíbrio orgânico, enquanto na segunda, a mudan isolado. Êle vive em sociedade. E essa sociedade, à pro
ça de ambiente, as mudanças climáticas e as do metabolis porção que se complexiona, condiciona também uma com
mo são diversas e o equilíbrio passa a ser instável. A ali plexidade nesse esforço, que tem seus graus de intensidade,
mentação, que na primeira não lhe dava trabalho, passa a como também trocas de bens entre os homens, como veremos
ser custosa, onerosa, e êle deseja restabelecer o equilíbrio, o mais adiante.
bem-estar de que tem uma reminiscência não consciente.
Nota-se, assim, que os aspectos económicos não são os
Precisa o homem, para viver, extrair do meio ambien únicos, mas alguns dos numerosos que compõem a vida hu
te os alimentos de que carece. Mas, nem tudo quanto con mana, a actividade do homem vivo na sociedade. Mas esses
tém o meio ambiente é susceptível de ser assimilado ao seu aspectos, crescem de importância, impõem-se de tal maneira
corpo, nem tudo é alimento. Ele precisa escolher entre o que são naturalmente notados, salientados, embora nunca se
que é e o que é, embora possa errar nessa escolha. Des dêem isolados, autónomos dos outros. Não são absolutamen
ta forma, o meio ambiente lhe dá uma quantidade limitada te autónomos; não há, desse modo, uma actividade económi
de alimentos para o seu consumo. Esse acto, pelo qual o ca rigorosamente pura. São eles separados pela mente hu
homem efectua uma escolha num conjunto limitado de bens mana, separados pela análise de nosso espírito, que, assim
para consumi-los, deles tirando o maior partido possível, é procede porque é o meio indispensável para estudá-los ra
o que se chama acto económico. É fácil desde logo compre cionalmente.
ender que os actos económicos acompanham todo o desenro
lar da vida humana, coordenando-se com ela. No acto económico, há ora uma troca entre o homem e o
meio ambiente, ora entre diversos seres humanos, mas essa
Uma variedade de processos, variedade extrema, com troca não é a mesma que se dá, por exemplo, entre dois va
plexa, é empregada para tal fim. É, portanto, fácil também sos comunicantes, ou "entre duas matérias que reagem qui
compreender que a Economia está assim coordenada à vida micamente uma sobre a outra". Esse esforço empregado é
humana e, portanto, também à história dessa vida. E como coordenado com actos psicológicos, pessoais ou adquiridos.
os meios empregados são diversos, está ela também ligada Nfcle penetram disposições psicológicas individuais ou colec-
à técnica (aos instrumentos e sua utilização) por êle usada.
m
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
32
tivas, e também o passado condensado na educação, na re
petição, na instrução, etc. O trabalho, assim, não é apenas
um acto físico, mas psicológico e cultural.
Os economistas liberais e também os marxistas tratam
o acto económico como algo abstracto, como autónomo. Con
fundem as análises abstractas que deles se fizeram (quando O CONHECIMENTO ECONÓMICO
foram tomados isoladamente, pela mente humana), como
se essa abstracção se desse na realidade. Transformam es
sa autonomia puramente especulativa em uma autonomia
real. Os marxistas, através desse abstraccionismo, acabam É natural que, ao iniciar-se o estudo de um tema, dele
por distinguir uma super-estructura e uma infra-estructura, se tenha, desde logo, um conceito formado. É mesmo co
esta formada pelo conjunto dos factos e relações económi mum iniciar-se pela definição. Para estabelecer-se uma de
cas, cujos aspectos e heterogeneidade estudaremos adiante, finição, impõe-se que obedeçamos a Lógica. Vimos que nem
enquanto a super-estructura inclui todas as outras activida todas as actividades humanas são actividades económicas.
des já do espírito; culturais), tais como o Direito, a Polí Estas costumam ser definidas de acordo com o fim a que
tica, as crenças, a actividade religiosa. Estes procedem da se destinam.
queles, são determinados por aqueles. A Economia política, ou a Ciência económica, tem por
Há, contudo, algum rigor na opinião dos marxistas, co objecto essencial o estudo dessa específica manifestação da
mo veremos. A colocação abstracta do facto económico le- actividade humana: a económica. Conservar a vida é um
vou-os a uma unilateralidade prejudicial à compreensão da fim comum de todos os seres vivos. E estes agem de um
Economia, como a posição diametralmente contrária dos li modo ou de outro na obtenção do que lhes parece necessá
berais não impediu que também estes aceitassem a autono rio ou desejável para a vida. Contudo, nessa actividade,
mia do facto económico. A actividade económica é um as que os seres vivos empreendem, há outras características.
pecto das actividades humanas (do homem enquanto indi Se nos animais é ela dirigida pelos instintos, entre os
víduo, e não pessoa), mas coordenada a estas, formando homens é ela, em parte, racional. Ê quando essa racionali
com estas um todo, que nós separamos, para, sobre elas, es zação se transforma num conhecimento ordenado, explicador
pecular, estudar, analisar. de muitos factos, torna-se ela não uma prática, mas uma
Dissemos enquanto indivíduo e não pessoa, e esclarece íeoria, um saber culto. Então temos, em resumo:
mos: como indivíduo, o homem é um organismo, um con
junto de células, de uma vida psicológica. Como pessoa, é 1) O facto económico é uma actividade.
uma síntese da consciência psicológica,, com seus valores 2) Essa actividade é específica isto é, tem caracteres
culturais, de aspecto espiritual, etc. (Empregamos o termo essenciais que a distinguem das outras actividades.
espírito em seu sentido genuinamente cultural, e não no sen
tido espiritualista). Os actos, que pratica como pessoa, ul 3) É uma actividade humana (inclui o acto humano,
trapassam o campo do económico, são gratuitos. Quando que estudaremos em "Filosofia e História da Cul
dá, não pretende receber em troca um equivalente. Não se tura").
dirige a uma utilidade, porque não perde o que dá. A pes 4) Tende a um fim, que é a conservação da vida ou o
soa, como pessoa, enriquece-se quando dá, enquanto no ter
reno económico, o que se dá, sai, é tirado do património. seu bem-estar.
Tais aspectos, que são importantes, serão melhor compre 5) Como actividade encerra um esforço e, como esfor
endidos com a leitura dos artigos seguintes. Antes, estuda ço, tem um custo de energia para quem o emprega.
remos o importante tema que é o conhecimento económico.
TRATADO DE ECONOMIA 35
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
34
genericamente incluídas nesse enunciado. Necessário se tor
6) Tende o ser humano a diminuir seu esforço na acti na esclarecer o sentido da expressão tradicional "Economia
vidade económica. Política". A expressão é formada de duas palavras gregas
oikós, que significa.casa, e polis, cidade. De oikós deu eco
7) Tende também a obter o maior proveito dessa acti nomia, com a conjugação do termo nomos que, em grego, quer
vidade. dizer regra, lei, norma. A Economia política dá a entender,
Não podemos por ora dar uma definição da Economia, assim, o alargamento da ideia económica para as activida
mas apenas um rápido enunciado. E a razão é a seguinte: des combinadas dos indivíduos numa comunidade, e desta
a definição de uma disciplina exige o clareamento dos prin com outras. Não se deve confundir a Economia política
cipais conceitos que a integram, e como temos diversas teses com a série de doutrinas relativas ao governo, ao Estado
a defender, no tocante a esta matéria, preferimos deixar a moderno, nem com o sentido hodierno de política.
definição para ser dada em "Filosofia e História da Cultu
ra", onde, ao examinar, dentro do âmbito filosófico, o "acto Numa época de especialismo como a nossa, cuja acen
económico", poderemos precisar com mais segurança o con tuação decorre da própria divisão do trabalho e das ocupa
teúdo, que mostraremos ser o mais válido, do conceito de ções específicas, que a Técnica criou, impulsionada, ade
mais, pela acção realmente proveitosa que fêz a escolástica,
Economia, após as demonstrações que faremos. Por ora, criando, na Filosofia, um fabuloso movimento analista, não
porém, pode-se dizer que "a economia é a disciplina ética, » de admirar que muitos julguem que basta alguém dedi-
que estuda a teoria e a prática do acto pacífico, consistente car-se ao estudo da Economia, deixando de lado o necessário
na consecução de bens para satisfação das necessidades hu cuidado que se deve ter com a Ética, a Sociologia, a Histó
manas, no intuito de obter o maior proveito com o menor ria, o Direito e, consequentemente, ao abranger todas, de-
dispêndio possível de energias." dicar-se ao estudo da Filosofia. Ora, quando falamos em
Desde logo ressaltam no enunciado algumas ideias, que Filosofia não queremos nos referir ao filosofismo, ao espe
provocarão a oposição de muitos, tais como a afirmação de cular apenas com ideias e delas extrair novos juízos opina
que é uma disciplina ética e que o acto económico é funda tivos. Quando falamos em Filosofia, falamos daquela que
mentalmente pacífico. Mas, desde que consideremos o que si! funda em demonstrações rigorosas. Na Ciência Natu-
foi examinado em "Sociologia Fundamental e Ética Funda r.il, a única e verdadeira autoridade é a experiência, a com
mental", é inegável que a Economia gira no âmbito da Ética, provação, a prova em suma; na Filosofia, também: é a de
indevidamente muitas vezes confundida com a Moral. Que monstração, aqui, a única autoridade, a demonstração mais
o acto económico é pacífico, demonstraremos naquela obra rigorosa. Portanto, quando falamos em Filosofia, falamos
antes citada, porque excluímos o caráter de económico à da que se baseia em demonstrações rigorosas e não da expo-
pilhagem, ao furto, ao roubo, e a todo acto de apropriação Hiç.ão filosófica que pertence mais à Estética, ao campo das
violenta dos bens, quando essa violência é feita sobre pes (>|iiniões, dos pontos de vista, das hipóteses e teorias bem
soas ou sobre seus direitos. Inclusive a afirmação de uma Rtquítetadas, porém não fundamentalmente demonstradas.
"economia escravagista" é tema de análise oportuna, bem Km Filosofia não se deve adotar um postulado, dar-se um
como a da expropriação realizada sobre povos mais fracos, enunciado, que não tenha a fundamentá-lo razões ontológicas
dominados pela força, cuja expropriação incluímo-la na pi rigorosas, suficientes pelo menos a dar-lhe uma dose de va
lhagem, como mostraremos, que é um dos factos mais im lidez.
portantes da História e em cuja actividade há a presença de
certos factores psicológicos, que merecem exame especial. Sem essa Filosofia, todo especialista cai numa visão de
Deste modo, o enunciado que oferecemos é apenas pro formada, limitada e falsa da realidade, pelo excesso de abs-
visório, já que sua justificação virá oportunamente. Inictismo primário, que fatalmente o dominará. Para que
itlKiiém, em qualquer sector do conhecimento, possa ter
As diversas denominações, tais como ECONOMIA PU uma visão segura, capaz de servir de guia para melhores
RA, ECONOMIA SOCIAL e ECONOMIA POLÍTICA, estão
36 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
1) Concepções mecanicistas
2) Concepções orgânicas
m
TRATADO DE ECONOMIA 41
40 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
1 idade económica mais profunda, mais essencial, comum a
sujeito o criador dos valores, e estes consistiriam apenas todos os sistemas económicos, independentemente dos acci-
no ser uma coisa considerada valiosa, que uma coisa produz dentes da História, o que muitos chamam de economia pura,
agrado, etc. e outra parte, variante, que se atenha às diversidades, às
heterogeneidades, ao diferente, que se dá em cada facto e
3) A doutrina de Scheller é a teoria da apreciação. num conjunto de factos, sem esquecer o que há de perma
Nega a independência dos fenómenos estimativos éticos. nente e de contínuo.
Aceita a subjectividade, mas limita-a pela apreciação do
valor que está na própria apreciação ou se revela mediante A escola austríaca, a escola de Viena, com Karl Men-
a apreciação, quando não é produzido por ela. Há, assim, ger, Bohm-Bawerk, e outros, defendia a economia invarian
para Scheller, uma base material, do valor. te, enquanto a escola alemã, com Bucher, Werner Sombart,
Há uma distinção na lógica moderna quanto aos juízos; Schmõller, procuravam as diferenciações, o estudo dos sis
temas económicos distintos.
a) juízos de existência;
A conjugação das duas orientações dá um sentido mais
b) juízos de valor. concreto, procurando através das diversidades e heteroge
Nos primeiros se diz de uma coisa o que a coisa é. neidade dos factos económicos, proposições que enunciem
uniformidades de alcance geral.
Enunciam-se propriedades, atributos, predicados dessa coi
sa que pertencem ao seu próprio ser. Os juízos de valor Isto é, concrecionar o parecido com o diferente, o in
enunciam algo que não se junta nem se tira à existência variante com o variante, o que se repete, por entre o que
nem à essência da coisa. t novo.
Assim, quando dizemos que é justa ou injusta tal for Desta forma, a análise dos factos diversos é um meio,
ma de producção, ou quando dizemos que tal producto devia mas o fim deve ser a construção da ciência económica.
destinar-se ou não a tal elemento da producção, etc, enun Confundir um com o outro foi o erro da escola alemã, en
ciamos juízos de valor. quanto ao da austríaca foi desprezar os meios pelo fim.
* * * Assim, no estudo das escolas, pode caracterizar-se a se
guinte distinção:
Todo valor tem um contra-valor. Bom e mau — co
rajoso e covarde — forte e débil — belo e feio. É o que Economia pura e Economia aplicada.
se chama de polaridade dos valores.
A Economia pura pode ser considerada de dois modos:
Quanto à Economia, os valores são úteis e podem ser
considerados como adequados ou inadequados — convenien a) como a parte da ciência económica que actualiza
tes ou inconvenientes, etc. o estudo do invariante, inibindo as particularidades do meio
em que se desenvolve a actividade económica;
* * *
b) como estudo das relações que se estabeleceriam
numa sociedade hipotética, segundo um certo ideal.
Tiveram as perguntas que acima fizemos diversas res
Os economistas, que estudam a Economia pura, estu
postas no decorrer do desenvolvimento do pensamento eco
dam o facto económico simplificado pela abstracção, quer
nómico. se apresente como um resíduo pela abstracção ou como cons
Mas, aproveitando o que já expusemos, podemos acei trução ideal.
tar um invariante na Economia, que se dirigiria a uma rea-
42 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 43
A Economia aplicada estabelece "as regras de utilida tes naquele país, mas foram energicamente reprimidas pela
de, segundo as quais se deve efectuar a producção da riqueza acção policial do Estado.
social." A Economia, para permanecer como uma ciência, deve
Mas a Economia aplicada deve ser uma ciência e não verificar os factos, deles extrair as normas gerais invarian
uma arte, razão pela qual ela deve procurar a-pHcar-se aos tes (ou constantes), registrá-las, explicá-las, e aproveita
factos, reconhecendo a sua heterogeneidade, como variantes das na acção prática.
que são, e procurar os princípios invariantes, que possam Quando a Economia serve à política, ela é desviada do
ser captados e estudados pela Economia pura. Só aí a seu verdadeiro campo de acção.
Economia será concreta, como a preconizamos.
Com um alcance prático, a Economia torna-se uma
Todos esses elementos nos preparam para compreender arte, desde que consista num conjunto de juízos de valor
o conhecimento do facto económico. qualificadores dos factos ou dos actos, e quando esses ten
dem a um fim previamente estabelecido ela torna-se uma
A actuação do Estado, como vemos hoje na Rússia, e doutrina.
como vimos na Alemanha hitlerista e na Itália, mostra-nos
a sua interferência no conhecimento do facto económico e Quando, porém, ela se atém aos juízos de existência,
também como neste penetram os juízos de valor, o que te exprimindo relações verificáveis, como as chamadas leis, ou
remos oportunidade de examinar quando chegarmos à aná apenas supostas, como as hipóteses, entre os factos econó
lise económica desses sistemas. micos, ela se torna uma teoria.
Não deve a Economia abdicar das suas funções pró
Veremos quanto a vontade e as ideias humanas pene prias, e o Estado, quando dela usa, deve reconhecer os li
tram na Economia. Mostram, entretanto, os factos, que a mites que ela tem.
escolha de um fim, na Economia, ultrapassa as nossas pos
sibilidades, desde que a consideremos sob certo aspecto e Quando procura transformá-la num meio para garantir
como também se verifica que é possível certa acção em de o seu domínio, êle desvirtua a sua finalidade e a deturpa.
terminados momentos e quais os meios apropriados para
pô-la em execução. * * *
Mas tal verificação, dizem muitos, não é suficiente O conhecimento do facto económico nos é dado por uma
para afirmar-se um carácter finalista na Economia. São série de elementos que vamos sintetizar:
precisamente os juízos de valor que querem forçar a marcha
normal dos acontecimentos para que eles se coadunem com 1.°) os organismos estatais e extra-estatais, tais como
os fins previamente aceitos. Naturalmente, aqueles que es os ministérios, com as documentações económicas que for
tabelecem, por uma apreciação, em que penetram elementos necem, os bancos de emissão e os grandes bancos, os insti
tutos, que estudam a conjuntura, a Organização das Nações
abstraccionistas, uma finalidade para o acontecer económi Unidas, o Bureau Internacional do Trabalho, as revistas
co, reagem energicamente quando os factos mostram um económicas, os institutos internacionais e nacionais, etc.
desvio desse fim.
É em casos como este que a acção política tenta dirigir 2.°) Com o que já foi exposto, verificamos que a Eco
a Economia, como na Rússia, após esta última guerra, com nomia se processa no terreno onde predomina a ordem di
batendo as experiências espontâneas do povo russo, nas zo nâmica da intensidade, e que, portanto, são mais difíceis as
nas que mais sofreram com a campanha guerreira. Ali experiências no sentido que conhecemos na Física, por exem
houve comunidades que se orientaram para a realização de plo. Tal não impede que empresários realizem em seus es
novas formas colectivistas mais avançadas que as existen- tabelecimentos inovações técnicas, que fornecem dados pre-
44 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
NECESSIDADES
NECESSIDADES
de utilidade indirecta
CLASSmCAÇAO DAS UTILIDADES E DOS BENS BENS NATURAIS
de utilidade directa
É muito maior do que se pensa o papel que a Técnica fenómeno autónomo. Embora as razões sejam muitas, de
desempenha no pensamento económico, e teremos oportuni parte à parte, devemos sempre considerar que tomamos o
dade de ver que muitas das leis fundamentais da Economia facto económico concretamente com os outros factos da vida,
são leis de carácter tecnológico. As profundas transforma razão pela qual não aceitamos essas separações como reais,
ções que ela tem dado à producção, em todos os seus aspectos, mas apenas como distinções abstractas. Por isso se separa
modificaram a vida humana, penetrando até no terreno da o fenómeno da circulação para melhor estudá-lo, nunca po
História, que, numa concepção concreta da Economia, como rém se deve julgar que as abstracções que fazemos, por uma
a que exporemos, é inseparável daquelas. exigência de ordem mental, signifiquem que realmente se
dão, separadas umas das outras. Dessa forma, a Econo
As condições jurídicas da producção são importantes, mia deve procurar as características que peculiarizam a cir
porque esta toma aspectos variados, segundo a influência culação, nunca porém considerá-las como autónomas.
das instituições jurídicas adotadas. Basta que atendamos
para a propriedade, e compreendamos a producção baseada
sobre a propriedade individual ou a colectiva, para que, des MERCADORIA
de logo, tenhamos patente aos olhos a importância das con
dições jurídicas. Por isso, no decorrer das análises das
diversas categorias da Economia, teremos sempre presente, O bem que circula, que passa de uma para outra mão,
de diferentes pessoas, recebe o nome de mercadoria. E tem
tanto quanto possível, as condições jurídicas. o nome de mercadoria quando, quem a entrega, recebe em
compensação, bem ou bens que são dados em troca daqueles.
E esses bens, que se dão em troca, constituem o
CONSUMO
PREÇO
Já vimos que consumo é a aplicação dos bens na satis
fação das necessidades, com o desaparecimento destas. Já
vimos que há bens, cuja destruição é imediata, como os Para facilitar ou tornar mais rápida a troca (que numa
alimentos, enquanto outros têm, pelo uso, um desgaste mais vida humana primitiva era feita segundo os bens disponí
lento, como os vestuários. Há também, o consumo de bens veis), com a complexidade da vida, e para tornar mais efi
que são empregados para produzir outros. Quanto ao mo ciente essa troca, escolheram os homens bens conhecidos,
do de se realizar esse consumo, pode-se estabelecer que os que servissem para representar o bem trocado, e temos a
bens podem oferecer um máximo proveito ou não. Chama-
-se o consumo de anti-econômico no primeiro caso, quando MOEDA
são desperdiçadas utilidades, isto é, não aproveitadas.
É mister, examinemos previamente as diversas moda
CIRCULAÇÃO lidades de troca, essas operações económicas, pelas quais os
indivíduos e grupos de indivíduos fornecem-se reciproca
mente bens e serviços. Numa sociedade primitiva, a troca
Já vimos que os bens nem sempre se destinam ao con é feita sob a forma de um escambo directo de um producto
sumo de quem os produz, mas a outros. A actividade es ou de uma prestação de serviço, por outro producto ou por
pecífica de passarem mediatamente (por meio d e . . . ) os outra prestação de serviços. Esse acto se decompõe, geral
bens do productor ao consumidor é o que se chama de cir mente, em uma venda e uma compra. Com a introdução da
culação. Para muitos, essa circulação faz parte da produc moeda, que, como já vimos, é um bem que substitui, que re
ção. é um simples desdobramento desta. Para outros, é um presenta outros, cujas características estudaremos oportu-
TRATADO DE ECONOMIA 63
62 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
dada em compensação, representada pela moeda e, neste ca
namente, a troca pode ser feita entre o producto ou a pres so, fala-se em preço. Trocamos um terno por dois sacos de
tação de serviços, pela moeda que pode representar, até arroz. Dizemos, pois, que um terno é igual a dois sacos de
certo grau, productos e prestações de serviços. arroz. Concluímos então, que um terno vale, como valor
de troca, dois sacos de arroz. Mas, digamos que, em moeda,
Não há necessidade de amplas explanações sobre a moe o terno vale X. Então está visto que cada saco de arroz
da aqui, porque é tal a familiaridade que temos com ela que vale a metade de X, que é o seu preço. Dizemos, então, que
as definições tornaram-se desnecessárias, pois um estudo o preço de um saco de arroz é de X/2 (meio X ) .
mais aprofundado exige que primeiramente abordemos ou
tros temas. Tem essa parte sintética apenas a função de A escala dos preços registrados sobre todos os merca
nos familiarizar com os conceitos fundamentais, para que, dos, permite-nos, da mesma forma, representar o conjunto
na fase analítica, não tenhamos necessidade de explana das relações de valor existente entre uma quantidade dada
ções elementares. de uma mercadoria ou de um serviço e uma quantidade dada
de qualquer outra mercadoria ou serviço que se torna objecto
Todos sabem, sem terem estudado Economia política, de uma troca. Esses aspectos, que são importantes, serão
que a moeda é uma coisa que recebemos em troca de uma estudados pormenorizadamente, sobretudo no que se refere
mercadoria ou de um serviço prestado, ou que damos em à formação dos preços, cuja análise é de grande importância
troca de mercadorias ou serviços. Assim, a moeda se torna à boa compreensão dos factos económicos.
também uma mercadoria, um sinal representativo concreto.
As diversas modalidades de troca tomam o nome de venda, Subjectivamente, temos o valor de uso. A noção de va
empréstimo com juros, aluguel, depósito e contracto de tra lor não é necessariamente associada à de troca. Podemos
balho, cujos aspectoe serão oportunamente estudados. É considerar, fora de toda troca, a importância económica re
fácil perceber-se que em toda a explanação que fizemos dos lativa de certos bens ou serviços, que estão à nossa dispo
conceitos fundamentais, esforçamo-nos por não empregar um sição ou que desejamos ter à nossa disposição.
termo, que denomina um dos conceitos mais importantes da
A diferença entre o valor de uso e o valor de troca, já
Economia política, que é o de VALOR. a encontramos em Aristóteles. As grandes polemicas, que
se travam na Economia sobre os verdadeiros sentidos desses
dois valores, como: se são contrários, se um só pode reduzir-
VALOR -se ao outro, etc, serão examinados no lugar competente.
Entretanto, algumas considerações ainda podem ser feitas
aqui. O valor de uso é essencial a toda mercadoria, portan
Não iremos estudá-lo pormenorizadamente, porque as to a todo valor de troca, mas há bens, com valor de uso,
diversas teorias e opiniões sobre esse tema têm tal importân que não são mercadorias; porque não se trocam, como, por
cia na formação do seu conteúdo próprio, que exige um ca exemplo, a água dos rios. O valor de uso é condicionado
pítulo especial. O conceito de valor é muito complexo e pelas propriedades do bem, na sua capacidade de satisfazer
também muito confuso na Economia. Vamos, por ora, ape as necessidades humanas.
nas dar-lhes um enunciado geral. O valor corresponde à im
portância económica de um bem, ou de um serviço. RENDIMENTO E RECEITA
Um bem é uma coisa útil conforme à sua importância
económica. O valor deve ser estudado intensiva e extensi Dá-se o nome de rendimento a tudo quanto o indivíduo
vamente, qualitativa e quantitativamente, objectiva e sub percebe num determinado período, tudo quanto constitui fru
jectivamente. Vamos, agora, apenas considerá-lo por estes to ou resultado de sua actividade económica, tudo quanto po
dois últimos ângulos. Tomado objectivamente, toma o no de aplicar às suas necessidades e dos que dele dependem.
me de valor de troca, e este é representado pela mercadoria
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
64
ser que constitui a matéria e a forma de uma ciência deter Maior, a Lógica Demonstrativa. Deste modo, o emprego
minada, que toma em geral o nome de pura. Assim, fala- de tais métodos buscam emprestar à Economia maior regu
-se em uma Matemática pura, em uma Física pura, em Psi laridade. Como os factos económicos não se dão de per si,
cologia pura e também em uma Economia Pura. Não toma independentemente de tudo o mais, e ao contrário acompa
aí o termo o sentido restricto que lhe deu Kant de mera nhados dos factos extra-econômicos, e que têm uma impor
mente a priori, porque não seria possível estabelecer-se uma tância capital na formação e no processuamento daqueles,
física pura apenas aprioristicamente, mesmo porque não há não é de admirar que a tentativa de matematizar a Economia
um a priori em sentido puro. Na dialéctica concreta, po- encontrasse suas resistências, sérios obstáculos, e não conse
de-se estabelecer as bases de uma ciência, desde que parta guisse êxito em equacionar todos os acontecimentos econó
mos do conceito do seu objecto e das suas intenções e tenha micos possíveis, o que forneceu razões poderosas para os ad
mos alguns dados experimentais. Não é o homem capaz versários negarem validez às tentativas de matematização.
de construir uma ciência pura sem a presença desse elemen
to experimental, sobre o qual êle aplica os conteúdos eidé- Os "matemáticos" chamam de "literários" aos outros
tico-noéticos do conceito fundamental da ciência que preten economistas, e afirmam, ademais, que representam estes um
da examinar. Assim não seria possível falar-se nos elemen verdadeiro perigo público, pois os prejuízos que causam na
tos fundamentais e puros da cristalografia, sem se saber sociedade são imensos, incalculáveis, como afirma M. Frechtt.
primeiramente que significa cristal e também grafia, des
crição, e ter alguma experiência de cristais. Julgar-se que o Contudo, os últimos respondem que não é possível ma
homem é capaz de criar uma ciência a priori, pura, s e m au tematizar os factos sociais e muitos apóiam-se em Comte,
xílio da experiência é um erro lamentável. E são precisa que embora matemático, afirmava que, nos factos sociais,
mente tais factos da experiência sobre os quais se aplicam seria melhor empregar a Lógica que a Matemática, como
os conteúdos eidético-noéticos, e que facilitam, quando bem também se pode dizer quanto à Psicologia.
conduzidos, que, dos juízos estabelecidos como seguros, se Como a polémica ainda continua, à semelhança de ou
possam deduzir os juízos virtuais que neles estão contidos, tras que também surgiram quanto a outras disciplinas, po
bem como os que eles permitem estabelecer, como temos demos, contudo, tecer os seguintes comentários.
demonstrado em nossas análises dialécticas.
Em primeiro lugar, é mister que se esclareça bem o
O que se costuma chamar por ciência pura não é a ciên que significa, ou pelo menos, em que sentido se toma o
cia completamente separada da experiência, mas a ciência termo matemático. Como se entende a Matemática ape
reduzida a fórmulas, embora captadas da experiência, que nas no sentido quantitativo, como a disciplina que se de
possam ser empregadas antes desta, e que sirvam como fór dica ao estudo das quantidades abstraídas, em segundo grau
mulas matemáticas, como vemos entre os economistas ma de abstracção, a matematização da economia se processaria
temáticos, como Cournot, Gossen, Tinbergen, Leontiev, Chait, apenas tomando o aspecto quantitativo dos factos econó
A. Marchai, Divisia, e todos aqueles que se dedicam à econo micos, que não abrange a totalidade da realidade possível
metria, na qual se pretende sintetizar, como o expõe Chait, de ser captada pelo ser humano. Ademais, grave defei
a Economia Política, a Economia Matemática, a análise es to é julgar-se que podemos estudar devidamente uma ma
tatística e a análise matemática. téria, considerando-a sempre como separada do restante da
realidade concreta à qual pertence, como o considera o es-
A Economia Matemática era desconhecida dos econo pecialismo caolho e vesgo, que separa mentalmente e julga,
mistas clássicos e a aplicação do método matemático aos depois, que a separação é real-real, extra-mentis.
factos económicos significa realmente um desejo de tornar
mais apodítica essa ciência, dar-lhe o rigor que a Matemá A matematização da Economia só é aplicável até onde
tica exige e oferece, como o pode realizar a Lógica quando abrange o quantitativo, ao que pode ser tomado- por esse
conduzida com o rigor dialéctico que lhe imprime a Lógica modo abstracto, e falha lamentavelmente no que ultrapassa
68 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA
69
a esse aspecto. Por sua vez, os "literatos" da Economia impossível sem considerar o que é extra-pedagógico. Do
poderão actuar e obter êxitos relativos no sector que per mesmo modo é impossível examinar bem a Economia sem
mite divagações e especulações tão ao gosto das opiniões considerar o que é extra-econômico, e que exerce um papel
diversas, do que é julgado o mais acertado e fácil de ser importante naquela.
empregado e aplicado. Não há dúvida que há certa posi
tividade em ambos os lados, mas apenas no que realmente Por tais razões, esta obra obedece a uma hierarquia
é positivo, e ambos pecam quando negam as possibilidades dialéctica concreta: examinamos abstractamente cada sec
reais da outra posição. tor do conhecimento, para concrecioná-lo com outros aos
poucos, até alcançar uma concreção mais vasta, que nos per
Nenhuma ciência pode alcançar a plenitude de sua mita ter uma visão superior dos temas e problemas de cada
actuação se não se considerar como fazendo parte de uma disciplina, em benefício de um conhecimento mais concreto.
concreção, e essa concreção abrange o que é extra-scientiam, Por isto, nesta parte, examinamos a Economia nas bases
mas que actua no que constitui o objecto formal termina- em que em geral a colocam os economistas, embora dei
tivo e também do formal-motivo e do material da mesma. xando desde logo algumas sementes concretas, que germi
É um erro pensar-se na Economia separada da História, narão no futuro. Queremos ter uma visão de condor dos
da Ética, da Psicologia, da Sociologia, da Política, etc. É factos de todas as ciências afins e não uma visão de batrá-
pensar que tal abstracção, por ser possível de realizar-se quio. O especialismo tende e gestar esta visão, mas o ge-
mentalmente, corresponda ela a uma realidade insofismá neralismo concreto permite a primeira, que preferimos e
vel, como julgam racionalistas e idealistas. Nenhuma ciên demonstramos a razão da nossa preferência. Mas outras
cia pode ser devidamente examinada com um especialismo provas virão a seu tempo.
de tal espécie, que se situa fora do que constitui a genera
lidade da qual aquela ciência faz parte. Nunca o especia
lismo realizou tantos desgastes e tantos males como na
época de hoje, em que vivemos numa verdadeira Torre de
Babel, em que dialogamos uns com os outros num verda
deiro diálogo de surdos, porque cada um fala uma "língua"
que o outro não entende. E tudo isso surge da má visua
lização da especialidade, que foi confundida com a separa
ção mental e esta como se realmente se desse na natureza
do mesmo modo como se dá em nossa mente.
Na Economia, como em todas as outras ciências, os
métodos abstractos, que são os especialíssimos, produziram
males inumeráveis. Só um método pode realmente produ
zir bons resultados, e os mais seguros, e é o método con
creto, como o chamamos, que segue uma dialéctica concreta,
que considera a natureza da coisa a ser estudada, a sua
emergência, ao lado da predisponência e, nesta, considera
aquela que é factor essencial da coisa e os factores que são
extra, mas que exercem também um papel determinador.
Ou, em outras palavras, toda ciência deve considerar o
que é extra-scientiarn, e que actua no campo da primeira.
Assim é i-mpossível a Pedagogia sem a Psicologia, a Medi
cina, a Sociologia, a História, a Sociologia, a Ética, etc, é
TRATADO DE ECONOMIA 71
Ser dono de um relógio foi durante muito tempo o época de "romantismo dos números". Para comerciar e
símbolo do sucesso. guerrear, os homens baralharam números e, "finalmente,
à medida que se generalizou o costume, só os números fo
"Tempo é dinheiro" é uma das muitas frases prediletas ram tomados em conta."
dos burgueses do século XVIII em diante, quando o reló
gio atingiu a sua grande perfeição cronológica. A vida * * *
humana passou a ser regulada pelo relógio.
E a nova ideia do tempo permitiu que se desenvolvesse Nessa fase, surgiu, com Galileu e Leonardo, uma nova
o conceito da História sob outros aspectos e o interesse so oreintação no pensamento, que favoreceu o advento da ci
bre o tempo passado tornou-se tão forte, que o Renasci ência moderna.
mento, em seu aspecto cultural, foi uma tentativa de revi Em vez de procurar saber por que um corpo cai, preo-
ver o que já se dera, o esplendor das antigas civilizações cupou-se Galileu em estudar como caía. O modo tornou-se
greco-romanas.
mais importante e urgente de conhecer-se do que o porquê,
Depois da atomização europeia, que decorrera da in entregue apenas à Filosofia. A ciência iniciava-se aí, para
vasão dos bárbaros, com seus castelos fortificados, seus entrar no campo das coisas contingentes e experimentáveis.
burgos fortificados, com a vida segregada nos mosteiros, o * * *
mundo tomara uma feição espacial estreita, limitada. Mas
as Cruzadas, a separação entre o ocidente cristão e o orien
te muçulmano, permitiram que novas gerações, criadas em Estudando essa época, diz Marx: "Assim como todas
ambientes estreitos, empreendessem novas marchas por ter as diferenças qualitativas entre as mercadorias desapare
ras desconhecidas. cem quando intervém o dinheiro, este, que é um nivelador
radical, faz desaparecer todas as distinções. O próprio
A amplificação do espaço foi também uma influência dinheiro é uma mercadoria, um objecto externo, capaz de
da ideia nova de tempo. A divisão do espaço e a nova con chegar a ser a propriedade privada de um indivíduo. Por
cepção que dele se forma têm seu início sobretudo nos tanto, o poder social se converte em poder privado em mãos
séculos XVI e XVII, na época das descobertas. O espaço de uma pessoa privada."
não é mais uma hierarquia de valores, mas um sistema de
magnitudes. O sentido quantitativo predomina definitiva E a medida comum, o denominador comum, o dinhei
mente. As leis da perspectiva na pintura só poderiam sur ro, representado pelo ouro, tomou um vulto extraordinário
gir aí. e simplificou as relações de troca. A atenção humana foi
desviada para o "ganho e a perda", e surgiram grandes
A relação simbólica entre os objectos é substituída por' banqueiros, como os Fugger.
uma relação visual. A fase místico-espiritual dos cristãos, * * *
que substituiu a fase orgânica dos gregos, foi substituída
pela fase mecânica do Renascimento. O homem pôs-se à
conquista do tempo e do espaço. Não podiam os cristãos, nos primeiros séculos do Cris
tianismo, emprestar dinheiro com juros. No entanto, a
A arte da guerra, cuja importância sobre a Economia reforma protestante o permitiu e além disso os judeus, não
em breve estudaremos, tem um sentido de conquista do es sujeitos a essas restrições, faziam grandes negócios com
paço. Surgem o canhão e o mosquete. Nessa época foram empréstimos a juros. Esses elementos são importantes e
feitos projetos fantásticos para voar, como os interessan vão constituir as coordenadas do capitalismo moderno, que,
tes e extraordinários de Leonardo da Vinci. O ritmo do conjugadas com as anteriores, formam as condições con
trabalho aumentou, as magnitudes cresceram, a cultura en- cretas das grandes transformações que a economia começa
tregou-se ao espaço e ao tempo. Max Weber chamou essa então a sofrer. Por outro lado, protestantes, como Cal-
76 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 77
vino, julgavam que a vitória no mundo dos negócios era Se a indústria necessitava de grandes capitais, e tendia
uma manifestação da graça divina. Os homens que ven a crescer, graças à mecanização, o comércio oferecia tam
ciam, que aumentavam seu pecúlio, eram agraciados por bém possibilidades de grandes lucros. A economia fecha
Deus, o que significava uma reviravolta importante nas da, que então predominava, abria-se agora e procurava
restrições que os católicos ainda faziam. mercados, matérias primas. Os mercadores, trazendo no
vos materiais da índia e das Américas, permitiam que se
* * * descortinassem novas possibilidades.
A máquina foi aproveitada, não para estimular o bem-
Vemos assim que essa época marcava a predominân -estar social, mas para aumentar lucros, e em benefício das
cia do quantitativo. Estas palavras de Kepler, em 1595, classes dominantes. A máquina, assim, trazendo em si esse
são bastante significativas: "Assim como o ouvido está interesse privado, era desvirtuada. As virtudes da máqui
feito para perceber o som, e a vista a côr, a mente do homem na não são devidas ao capitalismo. A este apenas se devem
foi formada para compreender, não toda classe de coisas, muitos de seus males.
mas quantidades. Quanto mais se aproxima uma coisa,
quanto à sua origem, às quantidades nítidas, tanto melhor Convém que se note desde já um ponto importante: o
a percebe a mente, e à medida que uma coisa se afasta das capitalismo existiu em outras épocas, mas com técnicas di
quantidades, aumentam nela, em proporção, a obscuridade ferentes.
e o erro."
A técnica permitiu que o capitalismo ocidental tomasse
O capitalismo ter-se-ia de tornar racional, portanto essa feição que conhecemos.
quantitativista pois o mercador pesa, mede, compara, conta.
A razão é a função do espírito que mede, pesa e conta, com A técnica não depende do capitalismo, portanto, como
para. O racionalismo, como a racionalização do Cristia julgam tantos, e entre eles Marx, que escreveu as páginas
nismo, que passava do domínio platónico para o aristotélico, mais entusiastas sobre aquele. E tudo isso, aos poucos, ire
era uma decorrente dessas condições. mos abordando para que se esclareça bem.
O mercantilismo e as trocas mais constantes entre as O mundo, para o homem religioso ocidental, não era a
partes atomizadas da Europa tinham que predispor a for realidade que aparecia. Havia outra-realidade atrás desta.
mação dos grandes países já sob outro aspecto. Os mer As coisas permitiam que se vissem as intenções de
cadores, que iam e vinham do ocidente ao oriente, formaram Deus e o mundo era demasiadamente insignificante para
outra coordenada que constituiria os fundamentos da nos ser valorado em extremo. A visão era mística, e só a valo
sa era. rização da visão natural e a libertação do misticismo dos
números valorativos, como 3, 4, 7, 9, 12, poderia permitir
Grandes mercadores eram também experimentadores na a ciência de formar-se sob uma base realista. Neste pon
ciência física, como os fundadores da Royal Society de to, o papel dos artistas do Renascimento, e antes até, é im
Londres. portantíssimo, e deve ser considerado como uma das coor
Se os hábitos abstractos do pensamento, os interesses denadas da economia moderna. O livreto de notas de Vil-
pragmáticos e as estimações quantitativas preparam o am iard de Honnecourt, um mestre de obras, nos mostra em
biente do capitalismo, não foram, porém os únicos como já seus desenhos uma visão realista das coisas. Quando os jo
vimos. vens estudantes, em pleno século XIII, faziam perguntas e
desejavam conhecer as condições do globo, eram criticados
O desenvolvimento técnico influiu sobre o capitalismo pelos mestres religiosos, apegados mais à Teologia e às ex
como o capitalismo sobre a técnica. plicações religiosas.
TRATADO DE ECONOMIA 79
78 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
facto existem. Não creio que exista nada nos corpos ex
ternos para excitar os gostos, os odores, os sons, etc, ex
cepto o tamanho, a forma, a quantidade e o movimento."
Está aí sintetizado o sentido quantitativo que tomaria
essa fase mecânica, a qual começa hoje, por uma imperio-
sidade do espírito, a ser substituída, como veremos mais
adiante. O DESENVOLVIMENTO DA TÉCNICA
* * »
Tudo quanto estudamos até aqui foi para dar um pa
Grandes inventos foram realizados nessa época, como norama do pensamento europeu que serviu de preparação
também grandes antecipações foram propostas. Notemos ao desenvolvimento da máquina e do mecanicismo, e que
estas palavras do monge Roger Bacon (1214-1294) : permitiu um grande salto qualitativo da Técnica, o qual
"Mencionarei agora algumas obras de arte maravilho í-erá estudado no capítulo correspondente, quando examine
sas e também algumas obras maravilhosas da natureza, que mos as fases daquela, como também de suas profundas re
nada têm que ver com a magia, e que esta não poderia reali lações com a Economia. Não seguimos nesta explanação,
zar. Podem fazer-se instrumentos graças aos quais gran até aqui, uma ordem cronológica, mas dialéctica. Procura
des barcos serão guiados por um só marinheiro; tais bar mos fixar alguns planos e, ao fechá-los, abrir os sucessivos,
cos viajarão mais rapidamente do que se tivessem a bordo com os retornos no tempo que se tornarem necessários.
uma grande tripulação. Poder-se-ão construir carros que Apresentamos uma visão geral do período de prepara
se transladarão de um lado a outro com incrível rapidez, ção para a máquina, que começa no século X, e termina no
sem a ajuda de animais. Talvez se construam aparelhos século XVIII.
para voar, nos quais, o homem, sentado com toda comodi
dade e meditando sobre qualquer tema, possa bater o ar com # # *
suas asas artificiais, tal como o fazem os pássaros... e
também máquinas que permitirão aos homens caminhar no Não se pode deixar de considerar a técnica mais pri
fundo dos mares ou dos rios." mitiva, o emprego de objectos modelados pela natureza, pe
dras, conchas, para transformá-los em utensílios, e, com
eles, cavar, partir, martelar, fiar e modelar até as ferra
mentas, segundo eram exigidas pelas necessidades e pelas
habilidades do artesão.
Accidentes felizes, como o do fogo, e posteriormente o
do vidro, permitiram transformações importantes do am
biente material. O uso do ferro meteórico, o emprego de
fios cortantes que têm certas conchas são descobertas hu
manas.
A linha de desenvolvimento da civilização humana en-
contra-se nos vales, aproveitando os caminhos naturais dos
rios ou à beira do mar. O trabalho nas minas é um dos
mais primitivos, e tecnicamente ainda em nossos dias é
realizado em geral por meios primitivos.
82 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 83
A necessidade de alimentos obrigou o homem a caçar, O silex era comum no norte da Europa. Ao partir-se,
perseguir a caça, golpeá-la, firmar o olhar, ser hábil na forma fios cortantes e, por isso, foi aproveitado para fer
construção de armadilhas, invadir, na perseguição de ani ramenta. Com a ajuda do corno de rena e pedras, extraía
mais, as regiões de outros, e com eles ter conflitos cons o mineiro o silex e, com o tempo, o martelo alcançou sua
tantes. forma perfeita actual, em fins do período neolítico.
Nas selvas, aprendeu a tornar ocas as árvores e trans Oferece a indústria mineira, desde os tempos primiti
formá-las em canoas, inventou o arco e a flecha, o mais efi vos, grandes sugestões para a formação das ideias huma
caz dos instrumentos primitivos, inventou os dispositivos nas, mas tais aspectos não poderão ser examinados aqui.
para fazer o fogo, cortou as árvores, construiu a roda. Ao
derrubar as árvores, deixou cair sementes no chão, e com Como a civilização industrial de nossos dias está liga
elas descobriu a agricultura. Nos campos criou cabras e da à producção das minas, esse tema voltará a ser exami-'
vacas, e inventou as formas primitivas do fuso e do tear. nado debaixo do ponto de vista técnico, sempre que neces
sário.
A ordem e a segurança das civilizações agrícola e da
pastoril representam o progresso mais importante observa O trabalho nas minas é o mais penoso que se conhece.
do no período neolítico. A estabilidade procurada permi Os riscos são numerosos, os desastres quatro vezes mais
tiu que surgisse a vivenda, a comunidade permanente, uma numerosos que os de qualquer outra profissão. O mineiro
vida de cooperação económica e social. Posteriormente, vive num mundo estranho, de umidade, sombras, falta de
surgiram os mercados, o intercâmbio. ar, perigos. Não tem cores, luz diurna, formas, mas ape
Esses elementos da cultura primitiva nunca estão num nas matéria bruta, informada, terrivelmente a mesma.
equilíbrio completo. É o lavrador e pastor que ocupam as Em suas fases primitivas, procurava o imprevisto, a
posições mais importantes, e é a agricultura que oferece as fortuna, que poderia surgir de um momento para outro, e
modalidades principais da vida, tanto na religião como nos encontrava, a maior parte das vezes, o malogro. As gera
conhecimentos da época. ções de mineiros formaram uma psicologia toda especial.
As culturas de lavradores sofriam com os ataques vo Com as descobertas de uma maquinaria complicada de bom
razes dos caçadores e pastores, que dilatavam seus territó bear água, ventilar a mina, com o aproveitamento da ener
rios de caça, e em fases mais adiantadas, começaram a exi gia hidráulica para accionar os grandes fornos, tornou-se
gir tributos e a exercer o domínio sobre tribos inteiras. necessário o emprego de capital, que não possuíam os pri
meiros trabalhadores.
Três culturas têm continuidade na história: as cultu
ras pacíficas da índia e a da China e a cultura urbana dos Desta forma, grandes capitais particulares começaram
judeus. a ser aplicados na indústria da mineração, oferecido por
As formas predominantemente militares foram sempre patrões que não tomavam parte no trabalho, os quais, com
auto-destruidoras. o decorrer do tempo, foram apropriando-se plenamente da
propriedade da mina e transformando os antigos patrões
A Europa é a região de caçadores e de conquistadores trabalhadores em meros assalariados.
de homens.
No século XV, dá-se na Europa um grande desenvolvi
* * * mento da indústria mineira, que, desde então, prosseguiu
em ascensão. E agudizou a luta de classes. O desenvol
A primeira ferramenta eficiente parece ter sido uma vimento da indústria mineira atraiu o emprego de grandes
pedra tomada pela mão humana e transformada em mar capitais, graças aos lucros fabulosos que oferecia, levando
telo. lambem a conquista de outros territórios para explorarem
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 85
84
as jazidas minerais, provocando guerras de conquista. Se senvolvesse a sua técnica e aproveitasse ainda mais as pe
considerarmos que a mineração é a base das guerras mo dras e os metais. Os primeiros tornos foram feitos de
dernas, e que para manter os exércitos são necessárias no madeira.
vas jazidas de mineral, vemos que os ciclos das guerras
modernas formam um verdadeiro círculo vicioso: é mister * * *
minas para fazer a guerra, e fazem-se guerras para ter-se
minas. Grande é o papel da pilhagem na História, o que me
rece estudo especial. Foi um dos meios de poupar traba
E como a guerra é um consumo completo, porque é um lho e a guerra permitiu obter mulheres, obter poder, pelo
consumo total, é ela anti-econômica, e tem custado mais uso da força. Ante destas possibilidades, o caçador, à pro
males à humanidade do que benefícios, tanto para vencidos porção que se desenvolvia, transformou-se em conquistador
como para vencedores. sistemático à procura de escravos, pilhagem, poder.
Empregaram os homens, nas guerras, esforços combi O desenvolvimento da guerra foi dando, aos poucos,
nados e reservas, que, se utilizadas fossem para seu bene uma superioridade ao soldado, e pelo progresso técnico, a
fício, não para a sua destruição, outro seria o panorama sua capacidade de matar foi aumentada. Os povos agríco
da vida humana. las e pastores não cavaleiros são em geral pacíficos, dese
jam a cooperação amistosa, e deles saíram os grandes pre
Embora seja uma verdade tão simples, não é facilmen gadores da paz e da cooperação entre os homens, como
te compreendida nem aceita, por um lado, pela influência Moisés, Confúcio, Jesus, Rama, etc.
dos interesses criados e, por outro, porque, dizem alguns,
a guerra estimula a criação de novos inventos. Um estu O desenvolvimento da guerra forçava um desenvolvi
do, porém, consciencioso, nos mostrará que grandes inven mento da técnica, e esta, por seu turno, a própria guerra.
tos não foram criados propriamente pela guerra, mas sim Os primeiros altos fornos construídos na Europa foram
guardados para ela, para os momentos oportunos, por aque destinados às fundições e à manufatura de material de
les que tinham interesses directos naquela. guerra. A primeira grande indústria organizada foi pre
cisamente guerreira. Como a guerra e o exército são con
O mineiro primitivo trabalhava para enriquecer, e o sumidores puros, e oferecem maiores lucros às indústrias,
seu espírito impregnou o capitalismo e, assim como este, como vemos exemplos extraordinários na história, provo
sua concepção do valor é também meramente quantitativa, cam eles a construção das grandes fábricas de armas, reali
e quando estudemos este tema, tão importante, teremos zadas por Colbert na França, as de Gustavo Adolfo na Sué
ocasião de ver a influência do mineiro sobre a concepção cia, e as de Pedro o Grande, na Rússia, onde uma única
do valor predominante na Economia Política. fábrica empregava quase 700 trabalhadores. Pode-se dizer
que a primeira producção em série, organizada tecnicamen
Entretanto, a conquista do ambiente por meio de má te, deu-se na fábrica de material de guerra.
quinas, deve-se à acção do madereiro. A madeira presta- Tais factos vêm salientar a nossa "teoria da pilhagem"
-se à manipulação, e foi por isso o elemento que exerceu como facto da História, por oferecer ela a acquisição de
mais influência, e a matéria prima por excelência da pro- uma soma maior de bens à custa de outros, com um menor
ducção. O aproveitamento da madeira e das condições ofe emprego de esforços. É o que veremos em "Filosofia e
recidas pelas árvores serviu para os empregos mais diver História da Cultura".
sos. Por ser um material dúctil, por se prestar a uma gran
de variedade técnica, foi possível construir, não só instru Se nos recordarmos que Luís XIV tinha um exército
mentos de trabalho, mas também casas, pontes primitivas, de 100 mil soldados, e que o exército é um grande consu
defesas, estacas e combustível, permitindo assim que êle de- midor, cujo consumo não é reproductivo, podemos imaginar
86 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
A eotécnica, no Ocidente, vai conhecer seu momento Foram usados os cavalos para mover os moinhos de
mais alto no período compreendido entre o ano 1000 ao ano trigo e para bombear a água. Com os cavalos, agora apro
1750, que é o da eotécnica superior, e o anterior é o da veitados, a agricultura teve um grande desenvolvimento,
eotécnica inferior. permitindo, por seu turno, que se pudesse criar mais cava
los, dadas as possibilidades maiores de alimentação.
Durante este período, foram aproveitados os problemas
e as sugestões técnicas de outras civilizações. Nele foram Os progressos técnicos mais importantes se deram nas
idealizados os principais inventos que condicionaram o de regiões, onde os rios são de corrente mais rápida, como o
senvolvimento da maquinaria. Os trabalhos de Leonardo Ródano e o Danúbio, os arroios da Itália e nas regiões do
da Vinci, de Galileu, entre outros, mostram os pontos altos Mar do Norte e do Báltico, açoitadas por fortes ventos.
dessa época. A nova civilização teve aí suas expressões culturais mais
felizes.
Foi um momento grandioso, apesar de seus malogros
políticos, que realizou todo esse grande arcabouço da arte As rodas hidráulicas, para levar água, foram descritas
e cia filosofia dessa época. Do ponto de vista sociológico, por Filon de Bizâncio, no terceiro século antes de Cristo.
o Renascimento não foi a aurora de um novo dia, mas sim
seu crepúsculo, afirma Mumford. No século XIV, o moinho de água era empregado nas
No terreno sociológico, o sentido orgânico dos gregos, fábricas de todos os grandes centros industriais, como Bo
lonha, Ausburgo, Ulm.
e dos romanos, fora substituído pela direção espiritual-mís-
tica do Cristianismo. Com o Renascimento, há um desejo Em 1290, o moinho serviu para reduzir os farrapos de
de retorno ao orgânico, mas é já impossível, porque a vida panos em uma polpa, que se convertia em papel, e foi em
e o mundo estavam irremediavelmente modificados pela vi pregado também para accionar máquinas portadoras das
são cristã. Deu-se o inevitável: retiraram do orgânico he fábricas de ferro, para serrar madeira, para bater couros
lénico apenas seu aspecto quantitativo, o mecânico, que en nos cortumes, para fiar seda.
cerra o movimento, o dinamismo, já não vital.
Em 1400 foi aproveitada para bombear água nas mi
As artes se debilitaram, e as artes mecânicas tiveram nas e nesse mesmo século empregaram-se moinhos de água
seu maior desenvolvimento. O homem diminuiu no sentir? para triturar minerais.
mas aumentou no, poder.
Graças a eles foi possível fazer foles mais poderosos,
Tivemos, nas eras anteriores à eotécnica e durante a alcançar temperaturas mais altas, empregar fornos maio
primeira fase desta, exclusivamente, o emprego da força res, aumentando a produção do ferro. Esse aumento da
física do homem, livre ou escravo, e a dos animais. Eram energia e da producção possibilitou a maior difusão das po
esses os geradores e productores da energia. No artesão, pulações e permitiu que houvesse maior equilíbrio entre as
temos o exemplo dessa fase, onde se une a habilidade hu diversas regiões da Europa e entre a cidade e o campo.
mana aos instrumentos de trabalho.
Com a concentração do poder financeiro e político, nos
O período eotécnico mostra um aumento da utilização séculos XIV e XVII, surgiram as grandes cidades de Lon
do animal para a producção da energia. A introducção da dres, Amsterdam, Paris, Lyon e Nápoles.
ferradura de ferro nos cavalos, aumentando seu poder de
tração, permitiu maior rendimento, bem como o aproveita Outra fonte importante de energia foi ministrada pelo
mento do arnês, no século X, que já os chineses conheciam vento. Em fins do século XII, os moinhos de vento propa-
duzentos anos antes de Cristo, o que permitia aos cavalos garam-se rapidamente na Europa. Em 1438 criou-se a
tirarem pelas espáduas, em vez de pelo pescoço, como era primeira turbina de vento que no século XVI tiveram maior
antes. desenvolvimento com os holandeses.
90 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 91
É nesta época que se dá o grande desenvolvimento in barcos. A arte da navegação desenvolveu-se extraordina
dustrial dos Países Baixos, centro de producção de energia, riamente, graças aos grandes lucros que oferecia, e não só
como seria a Inglaterra no regime do carvão e do ferro. serviam aqueles para o comércio oceânico como também
Sendo uma região batida pelo vento, os moinhos, na Holan para os transportes regionais e locais, graças aos sistemas
da, permitiram um grande desenvolvimento económico, co de canais organizados na Europa há muitos séculos.
mo também ganhar terra ao mar, evitando as inundações.
Estas terras conquistadas ao mar, depois de extraído o sal, A velocidade dos navios também foi aumentada. Ou
proporcionavam boas pastagens e eram de grande fertili tra matéria de grande importância na economia eotécnica,
dade. que permitiu empregos dos mais variados, foi o vidro, um
descobrimento feito pelos egípcios ou provavelmente por
Existia na Holanda, em 1836, doze mil moinhos, que povos mais primitivos.
forneciam uma força motriz aproximadamente de cento e No século XII, teve a indústria do vidro um grande
vinte mil cavalos, o que era dez vezes maior que a força desenvolvimento, que colimou, no século XIII, com as famo
motriz de que dispunha a Alemanha na mesma época. Con sas fábricas de vidro de Murano, perto de Veneza. O vidro
vém notar que o moinho, depois de construído, dá ener mudou completamente o aspecto da vida doméstica, sobre
gia sem nenhum custo de producção, o que já não se veri tudo nas regiões onde imperavam longos invernos e dias
fica com a máquina a vapor que, no início, era custosa. nublados.
Por outro lado, os moinhos de vento contribuíam para en
riquecer a terra e facilitavam a implantação de uma agri O vidro das janelas permitia uma visão da natureza
cultura estável, enquanto as indústrias mineiras deixavam emoldurada e das suas perspectivas, o que influiu na trans
atrás de si ruínas e vilas despovoadas, além de terras can formação da pintura do século XV em diante. Com o vidro,
sadas e de matas derrubadas, devido ao grande emprego da surgiu a descoberta das lentes e, em 1615, Johann Lipper-
madeira para a construcção das galerias. sham inventou o telescópio, permitindo a Galileu as suas ob
servações astronómicas.
No século XVIII, a grande producção das indústrias
têxteis decorreu da utilização da energia hidráulica. Outro holandês, Zacarias Jansen, inventou o microscó
pio composto, e provavelmente também o telescópio. Essas
Furneyron criara uma turbina hidráulica de grande invenções permitiram estender o macrocosmos e o micro
eficiência e, em meados do século XIX, construíram-se tur cosmos, isto é, o mundo do imensamente grande e o do imen
binas de quinhentos cavalos de força (500 H P ) . samente pequeno. Desta forma, a concepção do espaço mo-
Pode-se concluir desta maneira, que a revolução indus dificou-se radicalmente.
trial moderna podia ter-se registrado sem a necessidade da
extração do carvão. Tudo isso facilitou o advento das teorias de Leibnitz.
Já vimos que foi a madeira a matéria prima da eco Com o vidro, a visão ampliou-se mais, tornando-se um
nomia eotécnica. Só no século XV, começam a aparecer as órgão ainda de maior valor para o homem. Com o vidro, a
rolhas de cortiça, depois da invenção das garrafas de vi química obteve o seu grande progresso, por ser êle um cor
dro. As máquinas empregadas na indústria eram feitas po de propriedades únicas, não só transparente, como por
de madeira, como o torno. Mas a necessidade de armadu nãc ser afetado pelas composições químicas. Além de neu
ras, canhões e balas de canhão, a necessidade de metais tro às experiências, permitia que o observador as acompa
para a guerra, favoreceu o desenvolvimento da arte da mi nhasse com os olhos. Ademais, por ser passível de sofrer
neração. temperaturas relativamente altas, e ser um grande isolador,
o que seria importante no século XIX, permitiu, além da
Foi o vento, a água e a madeira que se combinaram criação da retorta, do frasco de distilação, do tubo de ensaio,
para uma producção técnica importante: a construcção de do barómetro, do termómetro, das lentes também, e na
92 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
Além disso, a natalidade foi extraordinária. Tal facto Na Rússia, cuja mentalidade é inteiramente paleotéc
tem sido mal explicado e as razões oferecidas não satisfa nica, porque o marxismo é uma filosofia do proletariado da
ziam. Mas é aceitável compreender que muitos factores paleotécnica, e por isso uma filosofia ultrapassada em quase
influíram. todos os seus aspectos, assistimos ao domínio da mesma men
talidade mecânica quantitativista.
De um lado, a vida de misérias do proletariado, que
procuraria uma evasão prazenteira ao desprazer da vida na Note-se que o mecânico encerra o quantitativo.
fábrica ou na mina. Na eotécnica havia o mecânico, mas qualitativo, como
já vimos.
E o amor sexual era um recurso para esquecer, naque
le instante ao menos, a tortura da miséria espantosa dessa Na paleotécnica, é o domínio do mecânico quantitativo.
fase da paleotécnica. Os planos quinquenais russos dão resultados quantitativos,
mas falham fragorosamente no qualitativo. O povo russo,
(Estudos modernos comprovam que a natalidade cres apesar de haver atingido a um alto progresso material e
ce com o crescimento da miséria). paleotécnico, vive numa das situações mais inferiores do
Com o amor, vieram os filhos. Mas estes, com o tem mundo.
po, serviam para ajudar os pais desempregados, porque as Tal não se dá porque assim o queiram propriamente os
crianças, desde os mais tenros anos de idade, iam para as dirigentes, mas apenas porque a economia, seguida pelos
fábricas trabalhar. E trabalhar numa fábrica ou numa cânones de Marx, é uma economia quantitativista. Em bre
mina significava a miséria inevitável. Era preciso muita ve veremos, quando analisemos a economia russa, através de
sorte e muita astúcia para evitar essa desgraça. suas instituições, como tal visão deformada condiciona os
gravíssimos erros, pois ali, contrariando todas as ideias de
Essa fase não teve paralelo na história da civilização. Marx, é a Política que dirige a Economia e não a Economia
"Não se trata de uma recaída na barbárie, devido à deca que dirige a Política.
dência da civilização, mas a um sobreerguimento da barbárie,
apoiada pelas mesmas forças e interesses que, originalmen O carvão já era conhecido muito antes de Cristo, e usa
te, haviam sido aplicados à conquista do meio e à perfeição do pelos ferreiros, mas em 1709, igraças à invenção de
da cultura humana" (Mumford). Abraão Darby, foi possível a construcção de altos fornos de
muito rendimento. Só em 1760 é que chegou o invento à sua
A paleotécnica teve seu momento mais alto na Ingla maior capacidade de producção. Note-se que, nesta época,
terra. O espírito dela ainda perdura, bem como essa fase. se desenvolve a grande natalidade na Inglaterra.
Vemo-la na China e também aqui, no Brasil, onde, se não
fossem as leis trabalhistas, teríamos vivido, em grau talvez O capital financeiro põe-se a explorar os campos carbo
mais terrível, a miséria que viveu o proletariado inglês da níferos, em vista dos lucros espantosos que tal exploração
paleotécnica. Essas leis impediram em parte a exploração oferecia.
em massa, que a indústria paleotécnica brasileira fatalmen O século dezenove é um século da extração do ouro, do
te realizaria. Vivemos, em espírito, paleotecnicamente, pois ferro, do cobre, do petróleo e do diamante, enquanto o sé
o desejo do lucro imediato e desenfreado predomina entre culo dezoito iniciara a exploração do carvão de pedra. Com
nós, mas, na indústria, graças a essas leis, com todos os seus a máquina a vapor e o carvão, podia a indústria pesada co
defeitos vivemos já em parte, a neotécnica, e para ela mar nhecer um desenvolvimento espantoso, e, para diminuir as
chamos. despesas de transporte, concentrou-se perto das grandes ja
zidas carboníferas, a cidade típica da paleotécnica, a cidaãe-
O que prejudicou o progresso neotécnico brasileiro foi -carvão, a cidade suja.
o campo não ter acompanhado o mesmo ritmo, e ter permi
tido que homens famintos venham para a cidade competir O espírito quantitativo tinha que ser exacerbado e jus
no mercado do trabalho e baixar os salários. tificado pelas próprias experiências gigantescas. Primei-
96 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 97
ro: a concentração da indústria, crescimento consequente sinar aos seres humanos a renunciar aos seus desordenados
das fábricas. E como a máquina a vapor exigia uma tensão hábitos de trabalho e amoldá-los à regularidade invariável
constante, surgiu a conveniência de se criar máquinas cada do complexo automático" que acentuam a grande dificulda
vez maiores. Esse processo aumentativo, quantitativo por de que êle notava. E prosseguia: "assim se deve proce
tanto, aparecia aos olhos de todos como um progresso, e der devido à imperfeição da natureza humana, pois sucede
daí para considerar-se o progresso apenas sob o ângulo quan que quanto mais hábil é um trabalhador, tantas maiores
titativo era um passo. probabilidades tem de chegar a ser obstinado e intratável e,
Temos, então, as máquinas de vapor gigantes, as fábri consequentemente, menos adequado para o sistema mecâni
cas gigantes, gigantes granjas de exploração, altos fornos. co dentro do q u a l . . . que, em última análise, causar grandes
O maior substituiu o menor. Com a invenção das estradas prejuízos."
de ferro e do transporte mais barato, grandes populações Vemos que o requisito para a fábrica paleotécnica é a
agrícolas empobrecidas passaram a se transferir para as falta de habilidade, a disciplina miserável e cega, e a supres
cidades industriais, aumentando, assim, o mercado do tra são de qualquer ocupação optativa. O operário era reduzi
balho. A guerra dá à paleotécnica uma transformação es do, assim, a uma peça do maquinismo; não podia trabalhar
pantosa. Os grandes fornos permitem dar mais aço e fer a não ser preso a uma máquina. Assim a miséria, a igno
ro, e mais barato, aos grandes exércitos, canhões maiores, rância e o temor eram os fundamentos da disciplina indus
navios de guerra maiores e mais equipados, e um novo sis trial, permitindo a formação da producção em série, o que
tema de estradas de ferro torna possível transportar maior impedia ao operário a satisfação que tinha o artesão inde
número de soldados para os campos de batalha. pendente, que podia deter-se no trabalho quando assim o
O que é espantoso na paleotécnica é a destruição, o quisesse. Com a produção em série, tal tornava-se impos
sível e prejudicial.
desperdício.
As cidades paleotécnicas, sem sol e sem ar, submissas As grandes greves que se verificaram neste período, ti
sob a fumaça das fábricas, chaminés fumegantes de gases veram as melhorias na producção. Também nunca foram
tóxicos, que exerciam uma acção corrosiva sobre os vege repelidas com tanta energia, como nessa época, pela polícia
tais e a vida humana, mereceram ditirambos de muitos es a serviço do capitalismo paleotécnico.
critores, mas hoje nos causa calafrios a memória dessa épo As grandes cidades da paleotécnica mostravam os bair
ca de desperdício. ros de miséria mais espantosos que já existiram em qual
No século passado, calculou-se que só nos Estados Uni quer época na humanidade. A adulteração dos alimentos
dos, por ano, o desperdício atingia a duzentos milhões de foi a mais completa e apoiada até nos parlamentos pelos re
dólares. presentantes do povo (temos, aqui, exemplos também). O
A economia paleotécnica era uma economia de desper álcool fazia estragos espantosos, o sexo degradou-se ao ex
dício e de sujeira, em que até os cirurgiões, para testemu tremo, e nas minas e fábricas o acto sexual era praticado com
nhar a sua longa prática, orgulhavam-se das manchas de a maior brutalidade. Em algumas minas, as mulheres ingle
sangue e de sujeira dos seus aventais. Tal facto se dava sas trabalhavam nuas e rebaixadas a um grau de indignida
nos hospitais das classes mais elevadas. Imaginai agora o de poucas vezes conhecido entre os escravos da antiguidade.
O aborto era geral e os mestres de fábrica abusavam das
que seria nos hospitais das classes pobres. suas condições, pervertendo jovens.
Para se ter uma ideia dessa época e a que ponto levou
a degeneração do trabalhador, e ofendeu a dignidade huma Cresceram os lupanares, mas também cresceram as
na, basta reproduzirmos estas palavras de Ure: "É mister reacções morais.
realizar a distribuição dos diferentes membros do aparelho Nunca se combateu tanto o sexo, e os moralistas, que se
conjunto cooperativo para accionar cada um dos órgãos com esqueciam da indignidade da exploração humana, queriam
delicadeza e velocidade apropriadas, e acima de tudo, en- acabar com os efeitos, sem procurar acabar com as causas.
98 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
Data. J I
100 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 1Q1
pio e a doutrina da conservação da energia, tudo isso in O proletariado pôde retornar para mais perto do cam
fluiu para modificar o panorama da Técnica. Essas in po, e ter possibilidades de uma vida mais humana e mais
venções, no período de 1875 a 1900, começaram a ser em saudável. A higiene nas fábricas pôde ser maior. Os planos
pregadas na indústria, ainda paleotécniea, para influir na de organização das mesmas poderiam ser totalmente modi
sua transformação rápida, apesar das resistências e do es ficados, permitindo, também, o aumento da producção que
pírito bárbaro que ainda predomina. A primeira Guerra atingiu uma percentagem elevadíssima. Pequenas unida
Mundial nos mostra talvez o marco desse início, embora a des de producção podem ser utilizadas por grandes unidades
neotécnica ainda não tenha alcançado o seu apogeu, devido de administração, comunicações mais rápidas, supervisão,
às resistências políticas e aos interesses criados. mais técnica. A electricidade não exige, como a máquina
a vapor, que à sua volta se concentre a producção.
Cabe à Ciência um grande papel nessa fase. Os traba
lhos de um Pasteur, de um Clerk-Maxwell, de um Hertz, de Ambientes mais distantes e mais vastos podem ser usa
um De Forest, de um Niels Bohr, Einstein, Mach, Planck, dos, portanto mais ar, mais luz, mais saúde.
Edison, Baekland, Sperry, Lord Kelvin, Michell, Papin, Bell,
Gibbs e de muitos outros, dos grandes institutos e univer Mas, o que caracteriza sobretudo a neotécnica é a luta
sidades, as acções de grandes homens como Siemens, Schu- contra o desperdício. O aproveitamento dos bens é integral.
ckert, Krupp, Steinheil, Morse, Telsla, permitiram que novas Enquanto na paleotécniea se envenenam os rios, arroios, o ar;
fontes de energia fossem descobertas, sobretudo com o apro a neotécnica limpa, higieniza, porque aproveita tudo. Pe
veitamento das forças eléctro-magnéticas, que iriam trans quenas oficinas podem ser criadas, e o operário pode deixar
formar totalmente o aspecto do mundo. de ser apenas uma engrenagem para tornar-se também cria
dor, porque procura-se novamente aproveitar a sua inteli
Muitas fontes de energia ainda não foram aproveitadas, gência. Por outro lado seu esforço é menor, seu trabalho
como a luz solar, senão em fraca intensidade. Mas as que mais leve, mesmo quando automatizado. Desta forma, a
das dágua tiveram um aproveitamento novo e extraordi indústria da neotécnica torna-se capaz de produzir, com
nário, permitindo que países, sem os combustíveis clássicos 10% de homens, uma producção multiplicada.
da paleotécniea, pudessem tornar-se industriais, passando da Benjamin Franklin já imaginava a organização do"
eotécnica para a neotécnica, como a Holanda, Suécia, Suíça, trabalho e a eliminação das classes possuidoras, e que seria
Noruega, Finlândia, sem passar pela barbárie da paleotécni possível produzir tudo quanto é necessário, trabalhando cada
ea e, consequentemente, atingir a um nível de vida mais alto operário apenas cinco horas por dia. Hoje, cálculos mais
que os países onde ainda a paleotécniea continua fazendo perfeitos, mostram que bastaria apenas duas horas, numa
seus estragos pavorosos. Imagine-se a possibilidade imen producção neotécnica, apesar de terem aumentado os nossos
sa da América do Sul, dotada de um potencial hidráulico padrões de consumo.
extraordinário, ainda não devidamente aproveitado pelos en
traves que oferece obstinadamente a mentalidade e os inte O progresso da química, de 1870 em diante, permite
resses paleotécnicos. um aproveitamento integral, e o desperdício pode ser anula
do. Cresce o número de técnicos; a competência afirma-se.
A transmissão da força permitiu a descentralização. Novos metais são descobertos e outros são aproveitados pa
Imagine-se se as fábricas Ford tivessem que se concen ra fins industriais, sobretudo os metais leves. Uma série
trar, acumulariam elas, com as subsidiárias, milhões de de compostos sintéticos suprem o papel, o vidro e a madeira:
trabalhadores. c celulóide, a vulcanita, a baquelita e as resinas sintéticas,
irrompíveis e elásticas, imunes à acção dos ácidos, prepa
A transmissão da força permitiu libertar o homem das ram uma nova era. Graças à electricidade, o cobre e o alu
concentrações da paleotécniea e das cidades sujas de carvão mínio tomam um papel importante. O tântalo, o tungsté
e fumaça. nio o tório, o cério, o irídio, a platina, o níquel, o vanádio,
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 103
102
o magnésio, o cromo, o selênio surgem para a indústria. O No desenvolvimento das ideias políticas dos chineses,
amianto, a mica, o cobalto, o rádium, o urânio, o hélio, o mo- hindus, egípcios, gregos e romanos, aproveitaremos aque
libdeno começam a ter possibilidades imensas. les aspectos que ainda têm actualidade para nós.
Abrem-se as fronteiras, apesar dos nacionalistas extre E' natural que a nossa atenção se enderece sobretudo
mados e bárbaros. Os inventos novos vão beneficiar os para o que constrói a nossa época, tão rica de ideias diversas
povos de todo o mundo. e de tantos embates.
A Ciência rompe as fronteiras e trabalha para a Huma O estudo acurado das ideias políticas, que germinaram
nidade. do Renascimento até os nossos dias, é inseparável das coor
denadas sociológicas, económicas e históricas, pois são elas,
O amplificador de De Forest e a válvula de Fleming na verdade, campos onde se processam diversas relações hu
criam possibilidades imensas. manas, que se formam nesse período tão importante. Elas
Da fase criadora da química que continua, temos agora nos dizem respeito mais de perto, em face da influência que
a fase da Fisiologia, da Biologia e da Psicologia. O orgâ lais factos exercem nesta hora conturbada de nossa vida,
nico retorna para incorporar-se ao mecânico, e inicia-se a em que todos sentem que grandes acontecimentos nos espe
preparação de uma nova fase do futuro, a biotécrrica. ram, e nem todos são capazes de se guiarem com cuidado
pelo emaranhado de ideias, que disputam entre si a prima
O automóvel e o aeroplano, de 1910 para cá, conhecem zia, e o que é mais grave, a posse de uma verdade absoluta.
prGgressos extraordinários. A radiotelefonia invade o mun
do, a cinematografia cria possibilidades educacionais ainda
não aproveitadas pelo entrave do espírito paleotécnico. A
câmara fotográfica permite a formação de uma visão nova
das coisas e do mundo. A mortalidade decresce, a eugenia
avantaja-se, a higiene melhora, a cirurgia realiza milagres
e os aspectos mais belos da eotécnica podem novamente en
contrai campo para suas plenas realizações. A fertilização
dos campos aumenta, a alimentação torna-se mais racional,
as habitações melhoram de condições.
No entanto, a predominância do espírito paleotécnico
na Política e na Economia não permite que ingressemos de
cheio nessa fase.
Ainda se favorecem as concentrações humanas. Mos
cou abre subterrâneos para aumentar e facilitar o desen
volvimento ciclope da sua metrópole. Grandes fábricas, sob
as normas da paleotécnica, ainda são construídas.
O manchesterismo continua ainda fazendo seus estragos
e as lutas de classe não permitem que os homens actualizem
senão os seus ódios e seus ressentimentos. Mas aqui já pe
netramos em outro terreno que será tratado oportunamente.
Só poderemos penetrar como se deve no terreno das
Ideias Políticas se as precedemos dos estudos fundamentais,
como os que tivemos oportunidade de fazer.
TRATADO DE ECONOMIA 105
Esta classificação apesar de unilateral e incompleta, é Vejamos agora o que é um sistema económico.
a frequentemente usada e serve para expressar certos pe
ríodos. Caracteriza-o os fins da actividade económica, os mó
veis dominantes, a forma de producção e distribuição e a
Não se julgue, porém, que, na História, se dê uma forma organização política, social e jurídica que a regula, for
de economia, que é substituída por outra superior. Elas vi mando uma unidade menos coerente e coesa aqui, que pro
vem muitas vezes juntas. priamente, é o regime económico.
Quanto às formas de producção e de distribuição, pode Podemos classificá-los em:
mos classificá-las assim:
1) o sistema de economia fechada;
Chama-se forma de producção o conjunto estructural das
actividades e respectivas instituições, por intermédio das 2) o sistema de economia artesanal;
quais os bens são modificados, a fim de se tornarem aptos 3) o sistema capitalista, com suas subdivisões;
ou mais aptos à satisfação das necessidades. E forma de
distribuição, o conjunto dos mecanismos e instituições pelas 4) o sistema socialista de planificação total.
quais o producto é dirigido para os diferentes agentes, que
facilitam o seu surgimento no mercado.
A ECONOMIA FECHADA
Podem dar-se aqui dois casos:
1) quando os meios de producção e as forças de tra Neste sistema, o trabalho e os meios de producção per
balho estão à disposição do mesmo agente ou da tencem ao mesmo agente ou então a uma só e mesma cate
mesma categoria de agentes económicos, ou goria de agentes.
2) quando estão à disposição de agentes separados e
É a agricultura a forma de producção predominante,
distintos. e exercida por pequenos proprietários independentes ou se
Com essa classificação, já se nos torna fácil compre nhores feudais. No caso do pequeno proprietário, quando
ender os sistemas: subsiste, é êle senhor do capital, da terra e da força de tra
a) economia fechada balho, como se vê no sistema das colónias do sul do Brasil.
b) economia artesanal O senhor feudal dispõe dos meios de producção, é pro
prietário dos bens e tem amplos direitos sobre as pessoas
c) economia capitalista e sua actividade.
A primeira e segunda destas formas de actividade eco No capitalismo, o capitalista, industrial ou comercial,
nómica não se opõem, exactamente. aluga a capacidade de trabalho do operário.
Nestas, os meios de producção e as forças de trabalho O senhor feudal não paga o trabalho; este é pago pelo
estão à disposição do mesmo agente. O senhor feudal dis
põe dos meios de producção e das forças de trabalho. O próprio trabalho. Recebe em produetos ou serviços que,
artesão também dispõe de ambos. com o desenvolvimento da Economia, se transformam em
prestações pecuniárias. Neste caso, não há separação ju
No sistema capitalista, o capitalista dispõe dos meios rídica nem separação económica entre factores de trabalho
de producção; não das forças do trabalho. e capital.
Esta classificação é completada por elementos técnicos, A economia fechada não favorece a exportação. A
políticos e sociais, como estudaremos, bem como outros as maior parte dos bens são empregados para a satisfação das
pectos que examinaremos a seguir. necessidades dos indivíduos que nela trabalham.
108 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 109
Aqui a adaptação da oferta e da procura não se realiza mundo. Temos, hoje ainda, exemplos de economia fechada
pelo mecanismo dos preços, nem sequer sob a acção do valor a par de outros sistemas ainda vigorantes, sobretudo entre
de troca. nós.
As necessidades são conhecidas por experiência. Cui- Percebe-se nessa economia:
da-se de cobrir as necessidades do senhor e dos camponeses. a) a producção tende à satisfação directa dos que nela
Não se trata de obter benefício sobre um mercado. tomam parte, sem recorrer ao mercado;
Quem regula essa economia é o valor de uso, o valor dos bens b) não há indicação de preços, porque os bens não se
produzidos para os que habitam o domínio, e não o valor destinam ao mercado.
de troca.
Aqui, podemos ainda esclarecer: a economia fechada
É uma economia da necessidade e não uma economia pode ser: de um domínio fechado, de uma vila fechada, de
da procura. tribo ou de clã, economia familiar fechada de cidade. Tais
Considera-se a procura a acção de indivíduos que se esferas ainda as encontramos nos dias de hoje.
apresentam num mercado para obter os bens que necessi Há, contudo, comércio exterior, mas vejamos as suas
tam, no limite de seu poder de compra. características:
Quanto à actividade económica, a producção, a troca a) não é um comércio à semelhança do capitalista,
e a distribuição realiza-se no domínio rural. A fracção do porque
producto total, que cabe ao senhor e a que cabe aos campo
neses são determinadas autoritariamente pelo senhor, com 1) os productores, que vendem ao exterior, não es
certa obediência às prescrições costumeiras. colheram suas mercadorias tendo em vista o mercado. Eles
procuram satisfazer suas necessidades. Quando a produc
Há certa semelhança entre a economia fechada e a ção supera, empregam o supérfluo para a troca externa.
economia colectivista, e planificada, como na Rússia, onde Mas o que os moveu, inicialmente, foi a satisfação de suas
o granjeiro é obrigado a dar ao Estado sua contribuição de necessidades, e não o ganho que lhes dá o mercado;
manteiga e de carne ou o equivalente em rublos, conforme
o número de cabeças de gado que possua. Essa quantidade 2) os preços do mercado pouco afectam o preço dos
é determinada autoritariamente pelo Estado. bens que trocam. Vemos isso no Brasil, onde o mercado é
regulado pelo capitalismo, e parte da producção não ganha
Nesta economia, a sua base técnica é a ferramenta, na alta maior preço. O sobrante, aqui, cabe aos interme
ainda rudimentar. A técnica é pouco progressiva, os in diários, aos dominadores do mercado.
ventos são pouco numerosos e pouco importantes.
Psicologicamente, seu fim consiste na busca de bens e ECONOMIA ARTESANAL
serviços necessários para atender a subsistência do cam
ponês e para manter o padrão de vida do senhor. Não bus
ca o máximo de vantagens, mas evita riscos e perdas, por Como na economia fechada, o trabalho e os meios de
isso não há também o desejo do agente económico procurar producção estão à disposição de uma mesma categoria de
o maior ganho expresso em moeda, como no capitalismo. agentes; contudo, há artesãos independentes, que fornecem
os meios de producção, e também tomam parte nela di
Temos os seguintes exemplos históricos dessa econo rectamente.
mia: As "villas" carolíngias, a mansão medieval inglesa,
as mansões, as casas grandes e grande parte do sistema A escala de acção agora não é mais o campo, mas a
feudal, quer na Europa, quer aqui, e em outras partes do cidade. Esta afirmação não deve ser tomada ao pé da le-
110 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 111
tra, nem deve ser exagerada. A cidade, em linhas gerais, nando-se a diferenciação entre mestre e companheiro mais
permanece um centro que deseja bastar-se a si mesma. Te aguda.
mos exemplos nas cidades medievais. Em primeiro lugar,
estava a satisfação das necessidades de seus habitantes, que A técnica artesanal é à base de ferramenta, sendo tam
tinham prioridade. As caravanas eram muitas vezes obri bém pouco progressiva, devido à constância entre a oferta
gadas a passar pelas cidades para efetuar seus aprovisiona e a constância da procura. Se a producção aumentar, ela
mentos. não é absorvida.
Há, assim, semelhança entre a cidade e a economia fe O móvel dessa economia não é a procura de benefícios,
chada. Mas diferencia-se, porque a cidade é um centro de ou pelo menos não é a de benefícios maiores quanto possível.
trocas. Não há ainda as trocas entre centros urbanos di Temos exemplos históricos em todos os tempos, inclu
ferentes, entre si. São trocas entre a cidade e os campos sive quanto à producção nos dias de hoje.
que a cercam. É a característica de uma cidade na Idade
Média. Na cidade, concentram-se as actividades económi Três factores principais contribuíram para aumentar
cas, que anteriormente se encontravam nos campos. Se as trocas comerciais no Ocidente, no correr dos séculos X
nhores, homens armados, trabalhadores manuais estão ago e XI, como já tivemos ocasião de estudar. Essas trocas
ra reunidos num mesmo lugar. comerciais haviam sido mais activas no tempo dos romanos,
mas com a queda do império, a economia fechada e a arte
Para trocarem com os homens do campo, necessitam sanal foram dominadoras, e quase totais.
um supérfluo de producção.
Os três factores em geral citados pelos economistas
Para receberem bens de primeira necessidade, precisam são:
dar outros.
1) aumento de população, consequência do retorno de
Dá-se aqui uma troca directa. Quem a pratica não uma visão do orgânico em vez da visão místico-espiritual,
tem uma clientela anónima. Não trabalha para um mer e que por não poder tornar-se orgânica, tornou-se mecâ
cado, mas para um número determinado de consumidores nica;
conhecidos.
2) factores políticos, como a instalação do regime
O risco económico é diminuto, restrito; maior é o risco feudal, o abandono às guerras privadas;
técnico.
3) factores económicos, como a actividade de centros
O risco económico decorre da não adaptação da oferta económicos como Veneza, a Flandres, a realização de gran
e da procura, por erro de previsões. des feiras.
O erro técnico consiste no mal acabamento ou no erro Mostra-nos a história como aos poucos, quase insensi
no processo productivo, ou por intervenção de forças exte velmente, se passa da economia artesanal para a empresa
riores. propriamente dita. Tal se dá pelos seguintes factores:
Ainda não há rendimento que seja exclusivamente o O artesão trabalha no domicílio, por tempo ou por peça.
preço dos factores productivos sobre um mercado livre. Recebe a encomenda do cliente, que lhe dá a matéria prima
e a técnica de transformação que deseja. Até aqui nada
A repartição, dentro do grupo cooperativo, grupo dos o compara ao empresário.
profissionais, é feita segundo o costume. A corporação, no
início, é um grupo aberto, o que mostra que não é uma clas Mas, muitas vezes trabalha também numa oficina com
se, mas um grau. O companheiro pode tornar-se mestre. outros companheiros, a quem paga pelo serviço, e aqui co
Mas, com o decorrer do tempo, a corporação se fecha, tor- meça a parecer-se com o empresário.
112 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 113
Há, contudo, uma diferença: êle faz a maior parte do O salário depende de outros preços, tais como os da
trabalho e a mais importante. Entre o empresário puro, subsistência necessária para manter a vida do trabalhador,
que tem por função assumir um risco de producção, e o ar preços do producto que êle confecciona, preços do factor ca
tesão, que fornece a totalidade do trabalho e a totalidade pital, os juros. O capitalismo é radicalmente oposto ao sis
tema de economia fechada ou ao colectivismo planificado.
do capital, encontramos aquele tipo intermediário, que é o O producto não é repartido autoritariamente pela interven
artesão adulterado, de que acima falamos. ção de um poder estatal, mas pelo jogo dos preços, pelas
Outro aspecto: no início, o artesão trabalha sob enco flutuações do mercado.
menda. Não está submetido a riscos económicos, mas ape
Há uma diferenciação social provocada pela separação
nas a riscos técnicos, que se dão em toda produção de qual
do trabalho e dos meios de producção: assalariados de um
quer espécie, como por exemplo, o incêndio, o trabalho mal lado, e empresários e capitalistas de outro.
acabado, etc. A quantidade oferecida é equivalente à quan
tidade procurada. Essa diferenciação atinge não só o campo económico
Mas, quando o artesão põe o seu producto no mercado do rendimento, mas o do modo de vida, o da cultura e o da
psicologia.
local, quando produz para vender, há uma modificação pro
funda. Enquanto permanecer na esfera urbana, o risco Surgem daí os antagonismos mais fortes.
económico é limitado, porque a clientela é conhecida. Todo
o aspecto se transforma quando intervém o grande merca Quanto à circulação, a troca é indirecta e complexa, em
dor, quando trabalha para uma clientela a qual já não co oposição à que se verifica na economia fechada e na arte
nhece e que se estende geograficamente. Esse intermediá sanal.
rio, que fornece as matérias primas, os capitais monetários O productor nem sempre conhece o consumidor; sua
para o artesão, acaba por submetê-lo, reduzindo-o à cate^- clientela é anónima. Toma em consideração as flutuações
goria de trabalhador assalariado. da procura, e entre o productor e o consumidor intercala-se
uma série maior ou menor de intermediários.
Essa passagem se observa na Europa do século XIII,
em diante. Há o risco económico que decorre da possibilidade de
uma má adaptação das quantidades produzidas e das quan
tidades procuradas, que são ajustadas pelo mecanismo do
A ECONOMIA CAPITALISTA preço.
O fim do capitalista ou do empresário é a consecução do
Nesta economia, os meios de producção são de proprie maior ganho em moeda. No início da eotécnica, é o lucrum
hi hífinitur.i, o lucro sempre crescente, que se torna desen
dade do empresário ou do capitalista emprestador, e o traba freado na paleotécnica que predomina ainda em muitos
lhador, que é assalariado, aluga sua força de trabalho por países.
meio convencional ou contractual. Não há aqui somente
separação técnica, mas também jurídica dos factores da Normalmente, o lucro é a única preocupação e o único
producção, trabalho e capital, os quais são unidos apenas móvel do capitalista.
funcionalmente na empresa.
Os capitalistas virtualizam o interesse social e actua
A totalidade do producto social encaminha-se para as lizam o pessoal, exceptuando-se alguns indivíduos (que eles
partes, através de rendimentos monetários (salários, lucros, chamam "românticos"), que sobrepõem o primeiro ao se
e t c ) . Esses rendimentos são determinados por preços. gundo, ou afanam-se por equilibrá-los, como procedeu
114 MAMO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 115
Mauá. Apenas esses têm uma visão social, não deformada, nômicas, o capitalismo é chamado capitalismo industrial,
do verdadeiro sentido da empresa. comercial ou financeiro.
A técnica é altamente progressiva. A concorrência e Quanto à sua origem, ou quanto aos factores que deter
a grande soma de capital permitem esse desenvolvimento, minaram seu aparecimento em nosso ciclo cultural, trata
aguçado pelo ganho sempre crescente. remos mais adiante.
É uma técnica maquinista: a máquina é desenvolvida,
como já vimos, e o trabalho é decomposto em suas partes ECONOMIA SOCIALISTA DE
para a consecução da maior producção e também menos
onerosa. A máquina é empregada, extensa e intensiva PLANIFICAÇÃO TOTAL
mente.
As tarefas de trabalho são decompostas em elementos Deixamos de considerar a economia socialista de pla
ou operações simples, confiadas a várias espécies de trabalha nificação não total, como a proposta pelos socialistas liber
dores. É uma economia aberta e a sua actividade econó tários (anarquistas), porque as experiências até hoje reali
mica ultrapassa à da região e até à do país. Estimula o zadas processaram-se dentro da economia fechada, da arte
desenvolvimento dos meios de comunicação e de transportes, sanal, do capitalismo às experiências cooperacionais reali-
o que favorece o seu desenvolvimento. lizadas já em grande escala na Suécia, Suíça, Islândia, Ca
nadá, Nova Zelândia, etc.
Sombart, ao estudar o capitalismo, estabelece três ida
des: a) juventude, b) apogeu ou maturidade, c) envelheci Economia socialista totalmente planificada temos hoje
mento. na Rússia, que a executou em maior escala. Passamos a
estudar, esquematicamente, os aspectos gerais de uma eco
G regime capitalista reúne seus dirigentes entre os nomia colectivista planificada, fixando os aspectos sovié
próprios capitalistas e seus mandatários, criando-lhes todas ticos.
as condições favoráveis para o seu desenvolvimento.
Os meios de producção são "nacionalizados"; isto é,
Emprega-se o termo capitalismo para indicar o sistema estão à disposição do Estado, depois de terem sido retira
jurídico, a estructura económica em que o capital é um dos dos particulares com ou sem indemnização.
factor de producção. Nesse sentido, toda estructura eco
nómica é capitalística. Mas o que o caracteriza propriamen O Estado organiza-se em órgãos para a administração
te é o titular do capital. Quando este é o Estado, diz-se da producção, órgãos estritamente subordinados aos órgãos
capitalismo de Estado, quando os particulares, fala-se em centrais.
capitalismo privado, ou propriamente capitalismo. Estes estabelecem um plano de actividade no tempo e
Contudo, como vimos, o que caracteriza propriamente no espaço, (plano quinquenal, regional) para regular as ne
o capitalismo é constituir êle uma estructura económica, cessidades com a producção. Os preços, que representara
cuja funcionalidade consiste em organizar empresas priva um papel de equilíbrio dinâmico na economia capitalista,
das e ser uma economia de mercado; ou seja, produzir para na colectivista planificada são regulados pela autoridade do
o mercado, para o cliente indeterminado. Visualizando-se Estado.
do lado da empresa, pode, pelo vulto das mesmas, ser clas A distribuição é feita por decisões autoritárias dos ór
sificado em capitalismo de grandes unidades ou de peque gãos públicos, que procuram ou devem procurar evitar as
nas unidades, e segundo o mercado é de concorrência ou de desigualdades e os azares do mercado, oferecendo remune
monopólio. Segundo a aplicação de suas actividades eco- ração de acordo com as necessidades e a productividade.
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 117
116
0 fim imediato proclamado é a mais plena satisfação explorações colectivas sofreram profundas modificuçAcH no
das necessidades da totalidade da população. quadro administrativo, e é essa fase, cujo estudo IIOH vul
interessar agora.
Apresenta a mesma atomização técnica do capitalismo.
Esta não depende do consumidor, e o Estado cuida de de Com a mudança da Constituição de 1936, pausa ao Es
senvolvê-la e melhorá-la. No campo geográfico, tende a tado a gestão de todos os interesses económicos da Nação.
tornar-se em economia "nacional", porém mais homogénea, A administração dos bens e das explorações é confiado a
mais unida e unitária que a do capitalismo, como o nota comissariados especiais (hoje já se chamam ministérios).
Marco Fano. Esses comissariados nomeiam os chefes das direções prin
cipais, os chefes dos trustes soviéticos, que são vastas com
No sistema capitalista, há entre as empresas comer binações de explorações industriais ou agrícolas, fundadas
ciais e industriais apenas uma solidariedade funcional; como um todo, constituindo um estabelecimento público.
umas adquirem de outras, emprestam a outras.
À frente do truste, acha-se um funcionário nomeado
Numa economia socialista planificada, as empresas são pelo governo, (nomeado e não eleito), responsável penal
unidas por um laço de ordem estructural, todos os elementos mente pelos erros que praticar na organização do plano.
são peças de um só mecanismo e funcionam segundo nor Dos lucros obtidos pelos trustes, 24% pertencem aos tra
mas sistemáticas. balhadores para melhoria de sua vida, e 76% cabe ao Es
tado. Se houver prejuízos são lançados em balanço para
serem cobertos nos exercícios futuros.
O EXEMPLO SOVIÉTICO
Quanto à distribuição de bens, as explorações públicas
entregam aos seus colaboradores bens de consumo (objec
Podemos considerar a economia soviética sob três fa tos de alimentação) ou bens de uso. Esse processo foi o
ses: da fase do comunismo de guerra. A partir de 1931, res-
tabeleceu-se, com certa dificuldade, a prática dos salários
1) a do comunismo de guerra (1918-1922). Nessa em moeda. A soma, que é entregue ao operário, este a usa
fase, as autoridades tentaram exterminar o mercado e o sis rá para a acquisição de bens nos armazéns estatais.
tema de preços, suprimir a moeda, realizar o colectivismo
e até o comunismo integral, como o foi feito em algumas Para tal acquisição deve o comprador exibir uma carta
regiões. Mas a intervenção do Estado, sob a alegação da de consumo.
incapacidade do proletariado de administrar, levou a inter
ferência política ao campo económico, justificada em gran Em 1935, suprimiram a carta, e o acesso aos armazéns
tomou-se livre, mas, em compensação, os preços aumenta
de parte pela reacção dos elementos anti-soviéticos. Con ram rapidamente. O preço é, na economia soviética, diri
sequência: queda impressionante da producção, desordem gido pelo Estado, manobrado por este, e nada tem que ver
administrativa. com as trocas na economia russa. Êle é fixado a priori, isto
2) A NEP (nova política económica) (1922-1928) : é, previamente.
Retorno ao mercado e aos preços. Foi novamente aceita a No início do comunismo de guerra, deslocaram-se po
propriedade privada, reaparecendo a empresa privada e o pulações e operários para serem empregados em qualquer
comércio, em parte nas mãos dos particulares. Conse ramo de actividade mais penosa, pela coacção até física.
quência: aumento de producção, com regresso do espírito Mas de 1930 a 1931, voltou-se à prática capitalista do
socialista. salário dirigente do emprego. Quando se desejavam ope
3) A fase dos planos quinquenais: Retorno à ortodo rários para uma determinada actividade, ofereciam-se me
xia socialista, com planificação da economia. Em 1934, as lhores salários. Que mostram tais factos e modificações
118 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
recimento do capitalismo. No caso ocidental, que é o que e foi nesse ano que se deu o estabelecimento dos judq ]%j
por ora nos interessa, podemos ressaltar os fatôres cuja Amsterdam.
coordenação precipitou o advento do capitalismo como sis
tema económico. Examinemo-los portanto: Troeltsch e Weber atribuem a influência aos ref. ^ ei/
ias, especialmente aos calvinistas, que não só libertay
1) Factor técnico — É comum dizer-se, como se vê homem do empréstimo com juros, como valorizavam H . /
na obra de Marx, que o capitalismo é fruto das invenções mem próspero nos negócios como um distinguido p^J/^ff
da metade do século XVIII, sobretudo o capitalismo indus vindade. 1™ \
trial inglês. É verdade que Marx fundamentou seus estu h0
dos económicos nos dados obtidos na Inglaterra. Essas Vemos assim que, na interpretação do advento dc^ \" ^í/
,
transformações vieram dar ao capitalismo um domínio eco talismo, Marx acentua o factor económico, autores
nómico no panorama europeu, que o preparou ao domínio modernos os factores religiosos; no entanto, pode^ ^ ./
político. dizer que esses intuitos de reductibilidade de um fa.l^P 1 ^
outro é ainda uma influência da tendência identifiAi^ ai i
2) Factor demográfico — Para Achille Loria, soció do filosofismo, unilateralmente racionalista. yí*10/
logo italiano, as transíormações da actividade económica são
devidas exclusivamente à acção do factor demográfico. Uma Os factores reais não são separáveis dos ideais, tjor'
economia à base de escravidão é substituída por uma eco podem dar-se sem os outros e quando não se baseia,
nomia capitalista. As terras disponíveis são em quantida queles, são tópicos, no sentido comum da palavra. CM i
de limitada. Sua fertilidade não é susceptível de ser au os ideais se fundam nos reais, têm então eficiência, t q ^ s t e /
mentada à vontade. -se activos. \ \ nf//
Dando-se a multiplicação dos homens, e permanecendo And*)
a terra, quantitativa e qualitativamente, igual, impunha-se No caso do capitalismo, não só esses factores, , laitf
a inversão de maior quantidade de capitai numa determi conjugação de todos, que dialècticamente podemos eh
nada unidade de superfície, para que a exploração se tor e compreender, é que explica o advento do capitalisir^| f
nasse mais intensiva. Se há muito de verdade nessa afir derno. ^
mação, como há também na da causa técnica, ambas coor Quatro acontecimentos importantes se deram no nW
denam o processo e não são únicas. Há escalas intermediá do entre o século XVIII e o XIX: aumento da pop\\
rias que deveriam ser anotadas, para que a transformação constituição de grandes colónias de povoamento das M. J
da economia tenha uma plena explicação concreta. cos, aplicação de máquinas à indústria; revolução nos \xrly
portes marítimos e terrestres. ^^j/
3) Factor religioso — Sombart, Weber e Troeltsch
defendem a tese de que o capitalismo se deve ao factor re No período dos séculos XII ao XVI, quanto à q. \nê
ligioso. Já Wnliam Petty e Sismondi haviam ressaltado a zação política e social, assistimos à queda do impériá
influência religiosa. Sombart, por exemplo, defende a in papado. Surgem unidades regionais e nacionais, e insH /
fluência dos judeus no capitalismo, pela acumulação de ca -se as grandes "nações", que tendem cada vez mais \ ^ V
pitais móveis, no fim da idade Média e no início da nossa mação das economias isoladas. As condições técná\* <y
era, por não estarem eles sujeitos às restrições que a proi producção agrícola, a têxtil e os transportes desse p^ laiy
bição canónica e governamental aplicava ao empréstimo já foram por nós examinados, quando estudamos a fAl^ 0 '/
com juros. eotécnica. \vs'_/
\i<xy
Mas o capitalismo comercial e financeiro já se havia Mas, no referente aos transportes, o uso da » ç d
estabelecido na Inglaterra e na Holanda, muito antes da imantada no fim do século XII, transportada dos \
presença dos judeus nesses países. Muito antes de 1593, a árabes para o Mediterrâneo Ocidental, e aperfeiçoadaji /
Holanda já era um grande centro comercial e financeiro, marinheiros de Marselha e pelos italianos, permitiu \ u ^ y .
Aísvfl
iéí(/
\ \J
120 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 121
recimento do capitalismo. No caso ocidental, que é o que e foi nesse ano que se deu o estabelecimento dos judeus em
por ora nos interessa, podemos ressaltar os fatôres cuja Amsterdam.
coordenação precipitou o advento do capitalismo como sis
tema económico. Examinemo-los portanto: Troeltsch e Weber atribuem a influência aos reformis
tas, especialmente aos calvinistas, que não só libertavam o
1) Factor técnico — É comum dizer-se, como se vê homem do empréstimo com juros, como valorizavam o ho
na obra de Marx, que o capitalismo é fruto das invenções mem próspero nos negócios como um distinguido pela di
da metade do século XVIII, sobretudo o capitalismo indus vindade.
trial inglês. É verdade que Marx fundamentou seus estu
dos económicos nos dados obtidos na Inglaterra. Essas Vemos assim que, na interpretação do advento do capi
transformações vieram dar ao capitalismo um domínio eco talismo, Marx acentua o factor económico, autores mais
nómico no panorama europeu, que o preparou ao domínio modernos os factores religiosos; no entanto, poderíamos
político. dizer que esses intuitos de reductibilidade de um factor a
outro é ainda uma influência da tendência identificadora
2) Factor demográfico — Para Achille Loria, soció do filosofismo, unilateralmente racionalista.
logo italiano, as transíormações da actividade económica são
devidas exclusivamente à acção do factor demográfico. Uma Os factores reais não são separáveis dos ideais. Estes
economia à base de escravidão é substituída por uma eco podem dar-se sem os outros e quando não se baseiam na
nomia capitalista. As terras disponíveis são em quantida queles, são tópicos, no sentido comum da palavra. Quando
de limitada. Sua fertilidade não é susceptível de ser au os ideais se fundam nos reais, têm então eficiência, tornam-
mentada à vontade. -se activos.
Dando-se a multiplicação dos homens, e permanecendo No caso do capitalismo, não só esses factores, mas a
a terra, quantitativa e qualitativamente, igual, impunha-se conjugação de todos, que dialècticamente podemos estudar
a inversão de maior quantidade de capital numa determi e compreender, é que explica o advento do capitalismo mo
nada unidade de superfície, para que a exploração se tor derno.
nasse mais intensiva. Se há muito de verdade nessa afir
mação, como há também na da causa técnica, ambas coor Quatro acontecimentos importantes se deram no perío
denam o processo e não são únicas. Há escalas intermediá do entre o século XVIII e o XIX: aumento da população,
rias que deveriam ser anotadas, para que a transformação constituição de grandes colónias de povoamento das Améri
da economia tenha uma plena explicação concreta. cas, aplicação de máquinas à indústria; revolução nos trans
portes marítimos e terrestres.
3) Factor religioso — Sombart, Weber e Troeltsch
defendem a tese de que o capitalismo se deve ao factor re No período dos séculos XII ao XVI, quanto à organi
ligioso. Já Wniiam Fetty e Sismondi haviam ressaltado a zação política e social, assistimos à queda do império e do
influência religiosa. Sombart, por exemplo, defende a in papado. Surgem unidades regionais e nacionais, e instalam-
fluência dos judeus no capitalismo, pela acumulação de ca -se as grandes "nações", que tendem cada vez mais à for
pitais móveis, no fim da Idade Média e no início da nossa mação das economias isoladas. As condições técnicas, a
era, por não estarem eles sujeitos às restrições que a proi producção agrícola, a têxtil e os transportes desse período
bição canónica e governamental aplicava ao empréstimo já foram por nós examinados, quando estudamos a fase da
com juros. eotécnica.
Mas o capitalismo comercial e financeiro já se havia Mas, no referente aos transportes, o uso da agulha
estabelecido na Inglaterra e na Holanda, muito antes da imantada no fim do século XII, transportada dos países
presença dos judeus nesses países. Muito antes de 1593, a árabes para o Mediterrâneo Ocidental, e aperfeiçoada pelos
Holanda já era um grande centro comercial e financeiro, marinheiros de Marselha e pelos italianos, permitiu o in-
122 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 123
vento da bússola, e mais tarde do astrolábio e consequente Formadas as finanças, a concentração do capital mobi
mente, do uso regular das cartas náuticas. Dessa forma, liário permitiu fossem financiadas as viagens longínquas.
a navegação, apenas costeira, pôde tornar-se em navegação Os riscos, embora grandes, ofereciam compensações.
de alto mar.
Os lombardos concediam empréstimos nos Países Bai
Tal permitiu uma verdadeira revolução no tráfego in xos. Eram em geral judeus que escapavam às restrições
ternacional, o aumento da esfera do comércio marítimo e o canónicas, e também estabelecimentos religiosos, que apesar
deslocamento de seus centros essenciais. dos protestos da Igreja, enriqueciam-se emprestando di
Nos séculos XII e XIII, as Cruzadas permitiram a for nheiro a juros.
mação de correntes de trocas. O centro de interesse e de Para fugir à forma do empréstimo com juros, criaram
trocas passou do Mediterrâneo oriental para o Mediterrâ o processo da comandita e o da constituição da renda.
neo ocidental. As cidades comerciais da Itália foram fa Como não era permitido emprestar com juros, podia-se, no
vorecidas, como também os entrepostos da Flandres, pois entanto, associar-se nos lucros.
as mercadorias, chegadas a Génova e Marselha, eram re
metidas para o norte. As regiões dos mares septentrionais Ou, então, o emprestador recebia do tomador uma ren
da Europa, na França do Nordeste, nos Países Baixos, na da em benefício do primeiro. Formavam-se sociedades co
região do Reno, na Inglaterra do sudoeste, povoaram-se de merciais em comandita e em nome colectivo.
cidades, que tomaram grande importância como centros de Assim, nos séculos XIII ao XVI, a Itália nos ofereceu
indústria têxtil. Desenvolveram-se também as cidades cos o tipo de um capitalismo ao mesmo tempo comercial e fi
teiras da Espanha e Portugal, de onde saíram os grandes nanceiro, enquanto a Holanda e a Inglaterra, um tipo de
descobridores. Com os descobrimentos, surgiram modifica capitalismo eminentemente comercial.
ções revolucionárias na Europa dos séculos XV e XVI.
Alargaram-se as possibilidades de trocas. Com Vasco da Os descobrimentos: — os descobrimentos realizados
Gama e a passagem do Cabo da Boa Esperança, perdeu o pelos portugueses e espanhóis aumentavam as relações co
comércio do Levante grande parte de sua importância. Vi merciais e ao lado dos benefícios que estas ofereciam, jun-
nham diretamente a Lisboa e Antuérpia os produtos do tavam-se os do trabalho forçado e da pirataria. As novas
Oceano Índico e do Extremo Oriente. Cresceram os gran terras da América permitiam um afluxo de metais precio
des mercados da Europa atlântica e do Mar do Norte. Po sos, do ouro e da prata, com a exploração regular das mi
diam os mercadores de Lisboa vender a um preço muito nas e a pilhagem dos tesouros acumulados pelas populações
mais baixo, diminuindo, graças às suas frotas, os riscos submetidas.
técnicos. Com o descobrimento da América, estabeleceu-se
um comércio activo entre as duas margens do Atlântico. No período de 1560 a 1620, o estoque de prata, por
As cidades banhadas pelo Tamisa, pelo Sena e pelo Reno exemplo, quintuplicou na Europa. Mas esse grande afluxo
tornavam-se mais próximas e desenvolveram-se extraordi de metal não permaneceu nas mãos das potências maríti
nariamente, deslocando-se, assim, o progresso europeu. A mas (Portugal e Espanha).
indústria progrediu precisamente nessas regiões, que per As importações desses países eram superiores à expor
mitiam agora um grande e novo desenvolvimento, e não so tação, e a Espanha como Portugal foram obrigadas a dar
friam os entraves do passado. seu ouro e a sua prata para equilibrar as suas balanças.
Foi no domínio do comércio e no da finança privada, O grande afluxo de ouro e prata trouxe como conse
que nasceu o capitalismo na Europa. A formação desse quência o aumento dos preços das mercadorias. Com a
capitalismo deveu muito às Cruzadas, que restabeleceram Reforma, desapareceu a proibição canónica do empréstimo
os laços entre o Oriente e o Ocidente, e que desenvolveram com juros. O princípio canónico de que nummus non parit
as cidades italianas, como já vimos. nummos, (o dinheiro não pare dinheiro), é rejeitada.
122 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 123
vento da bússola, e mais tarde do astrolábio e consequente Formadas as finanças, a concentração do capital mobi
mente, do uso regular das cartas náuticas. Dessa forma, liário permitiu fossem financiadas as viagens longínquas.
a navegação, apenas costeira, pôde tornar-se em navegação Os riscos, embora grandes, ofereciam compensações.
de alto mar.
Os lombardos concediam empréstimos nos Países Bai
Tal permitiu uma verdadeira revolução no tráfego in xos. Eram em geral judeus que escapavam às restrições
ternacional, o aumento da esfera do comércio marítimo e o canónicas, e também estabelecimentos religiosos, que apesar
deslocamento de seus centros essenciais. dos protestos da Igreja, enriqueciam-se emprestando di
Nos séculos XII e XIII, as Cruzadas permitiram a for nheiro a juros.
mação de correntes de trocas. O centro de interesse e de Para fugir à forma do empréstimo com juros, criaram
trocas passou do Mediterrâneo oriental para o Mediterrâ o processo da comandita e o da constituição da renda.
neo ocidental. As cidades comerciais da Itália foram fa Como não era permitido emprestar com juros, podia-se, no
vorecidas, como também os entrepostos da Flandres, pois entanto, associar-se nos lucros.
as mercadorias, chegadas a Génova e Marselha, eram re
metidas para o norte. As regiões dos mares septentrionais Ou, então, o emprestador recebia do tomador uma ren
da Europa, na França do Nordeste, nos Países Baixos, na da em benefício do primeiro. Formavam-se sociedades co
região do Reno, na Inglaterra do sudoeste, povoaram-se de merciais em comandita e em nome colectivo.
cidades, que tomaram grande importância como centros de Assim, nos séculos XIII ao XVI, a Itália nos ofereceu
indústria têxtil. Desenvolveram-se também as cidades cos o tipo de um capitalismo ao mesmo tempo comercial e fi
teiras da Espanha e Portugal, de onde saíram os grandes nanceiro, enquanto a Holanda e a Inglaterra, um tipo de
descobridores. Com os descobrimentos, surgiram modifica capitalismo eminentemente comercial.
ções revolucionárias na Europa dos séculos XV e XVI.
Alargaram-se as possibilidades de trocas. Com Vasco da Os descobrimentos: — os descobrimentos realizados
Gama e a passagem do Cabo da Boa Esperança, perdeu o pelos portugueses e espanhóis aumentavam as relações co
comércio do Levante grande parte de sua importância. Vi merciais e ao lado dos benefícios que estas ofereciam, jun-
nham diretamente a Lisboa e Antuérpia os produtos do tavam-se os do trabalho forçado e da pirataria. As novas
Oceano Índico e do Extremo Oriente. Cresceram os gran terras da América permitiam um afluxo de metais precio
des mercados da Europa atlântica e do Mar do Norte. Po sos, do ouro e da prata, com a exploração regular das mi
diam os mercadores de Lisboa vender a um preço muito nas e a pilhagem dos tesouros acumulados pelas populações
mais baixo, diminuindo, graças às suas frotas, os riscos submetidas.
técnicos. Com o descobrimento da América, estabeleceu-se
um comércio activo entre as duas margens do Atlântico. No período de 1560 a 1620, o estoque de prata, por
As cidades banhadas pelo Tamisa, pelo Sena e pelo Reno exemplo, quintuplicou na Europa. Mas esse grande afluxo
tornavam-se mais próximas e desenvolveram-se extraordi de metal não permaneceu nas mãos das potências maríti
nariamente, deslocando-se, assim, o progresso europeu. A mas (Portugal e Espanha).
indústria progrediu precisamente nessas regiões, que per As importações desses países eram superiores à expor
mitiam agora um grande e novo desenvolvimento, e não so tação, e a Espanha como Portugal foram obrigadas a dar
friam os entraves do passado. seu ouro e a sua prata para equilibrar as suas balanças.
Foi no domínio do comércio e no da finança privada, O grande afluxo de ouro e prata trouxe como conse
que nasceu o capitalismo na Europa. A formação desse quência o aumento dos preços das mercadorias. Com a
capitalismo deveu muito às Cruzadas, que restabeleceram Reforma, desapareceu a proibição canónica do empréstimo
os laços entre o Oriente e o Ocidente, e que desenvolveram com juros. O princípio canónico de que nummus non parit
as cidades italianas, como já vimos. nummos, (o dinheiro não pare dinheiro), é rejeitada.
124 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
mas a máquina toma aí uma grande importância. A di representa o que se deu na Europa. Por outro lado, tais
visão de trabalho, que no segundo caso é rudimentar, neste modificações não excluem as anteriores, as quais permane
é plenamente desenvolvida, como se vê numa indústria mo cem em muitos ângulos, bem como permite a formação de
derna. processos híbridos, combinados.
Essa sucessão não é uma sucessão linear sem retornos.
Além da passagem de um sistema para outro, há regres
NA INGLATERRA sões. Lembremo-nos que depois de um grande desenvolvi
mento da economia de troca, que se deu no mundo antigo,
voltamos, na Europa, após a queda do império romano e a
O desenvolvimento industrial na Inglaterra, que é tão invasão dos bárbaros, para uma economia fechada.
importante para a economia e para o pensamento económi
co, pois foi ali que a ciência económica teve seu grande de Segundo Pirenne, tal se deu devido à expansão do Islão,
senvolvimento, merece um estudo especial. que separou o Ocidente do Oriente. Mas lembremo-nos que
as constantes invasões, maiores ou menores, na Europa, exi
Dois grandes factores colaboraram para esse desenvol giram a formação de concentrações humanas em castelos,
vimento: em primeiro lugar, a expansão do comércio pelas em cidades fortificadas, etc, tornando-se difícil o intercâm
razões que já expusemos. A importação do algodão per bio até na própria Europa.
mitiu o desenvolvimento da região manchesteriana.
Outro aspecto importante, que sempre deve ser consi
E em segundo lugar: as invenções industriais, que re derado, é que a sucessão de um sistema para outro não se
novaram a producção inglesa, depois da segunda metade do faz sem transições.
século XVIII.
Esses grandes inventos se devem a artesãos e empre Essa fase de transição, como a que hoje conhecemos, é
sários, e não a homens de ciência. Os artesãos procuravam intermédia entre a formação do novo sistema e o seu apo
diminuir seu esforço; os empresários aumentar seus lucros. geu. Quando atingida esta fase última, é que os homens
Em 1763, John Kay inventou a lançadeira volante, de 1761 datam a plenitude de um novo sistema e dela partem para
a 1766, Wabb, Perry, Grant, Garatt, Perrin, imaginaram procurar, então, os precursores, o que a antecedeu, e qufe;
diversas máquinas de fiar, progressivamente aperfeiçoadas. já denotava a nova forma. Não se dá na história a subs
tituição total de um sistema por outro, porque as formas an
O proletariado reagiu contra esses inventos, porque teriores continuam subsistindo, aumentando a complexidade
criavam eles o desemprego. O Estado reagiu contra os in dos sistemas e das formas combinadas.
ventos até que, finalmente, deixou livre o empresário. A O capitalismo resultou de uma longa maturação, e não
máquina a vapor permitiu um amplo desenvolvimento, com foi criado de um golpe. Os estudos que já fizemos até aqui
os aperfeiçoamentos introduzidos por Watt. nos mostram bem como sucedeu e se formou esse sistema.
O desenvolvimento do capitalismo se processou inten Tal facto deve estar patente àqueles que julgam que se pode,
samente, sobretudo de 1850 em diante. No período de da noite para o dia, abolir totalmente um regime para ins
1815 a 1850, grandes inventos surgiram, sobretudo o dos taurar outro. O estudo cauteloso da História lhes será de
caminhos de ferro. Multiplicaram-se as sociedades anóni muita utilidade para que compreendam que a convicção de
mas e a grande sociedade bancária substituiu a empresa uma possibilidade prova apenas a convicção e não o advento
bancária isolada. inevitável da possibilidade.
O esquema que oferecemos da sucessão dos sistemas de O regime capitalista, cuja estructura moderna passare
economia fechada, para o de economia artesanal, e deste pa mos a estudar, é defendido hoje pelos que acreditam em suas
ra a economia capitalista (comercial e depois industrial), possibilidades criadoras, e também por ser um regime que
128 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
como o sistema capitalista, o feudal, o corporativo, o neo- de negar a influência que a concepção jurídica dos romanos
-capitalista, o socialista, o libertário. teve sobre a vida dos bárbaros europeus e também na or
ganização da sociedade cristã, nem a influência que a lite
E quando esse sistema é constituído efectivamente e ratura grega, trazida pelos árabes, como as obras de Aris
regulado por leis definidas, confirmando-se praticamente, tóteles e Platão, sobre o proceder social, filosófico, científico
temos, então, um regime. e económico do ocidente, nem o exemplo frisante da "ociden
As fluctuações da conjuntura promovem modificações talização" actual, que se verifica nos países asiáticos e afri
canos. Homens, como Max Weber, Sombart, Tawney, etc,
na estructura. Estas podem ser evolucionárias, quando o- trouxeram contribuições decisivas sobre este ponto, confir
processo de diferenciação se faz lentamente, conservando a madas pela própria experiência histórica.
base substancial da mesma, ou revolucionárias, quando as
transformações se realizam bruscamente, com mudança 2) Outro elemento é o factor demográfico, cujo desen
substancial e não meramente accidental. Contudo, um pro volvimento favoreceu o progresso da indústria em tantos
cesso de diferenciação evolucionária, atingindo de início o países, sobretudo nos de território restricto, pela impossibi
meramente accidental, pode alcançar aos poucos mutações lidade de se prosseguir a divisão atomizada das terras, au
substanciais, e constituir-se numa revolução quase imper mentando a população das cidades e, consequentemente, ofe
ceptível, como aliás se processam as verdadeiramente gran recendo um grande mercado de trabalho, que estimulou a
des revoluções da História. realização de indústrias novas.
As modificações conjunturais podem dar-se por facto 3) A actuação de políticos, de líderes carismáticos, e
res intrínsecos ou extrínsecos. Entre aqueles, por alguns da interactuação constante das ideias fundamentais dos es
chamados de endógenos, que têm uma origem interna, te tamentos sociológicos da teocracia, da aristocracia, da de
mos os emergentes (imanentes, que são os constituintes da mocracia e da cesariocracia, como examinamos em "Filoso
própria natureza material e da formal da estructura econó fia e História da Cultura", que permitem a ascensão de cer
mica, e significam propriamente os lanços do roteiro do pró tos estamentos económicos (classes, como a burguesia, clas
prio desenvolvimento natural de uma estructura. Os fac se média, classe gestora dos tecnocratas, em ascensão actual
tores extrínsecos, também chamados exógenos, são os pre mente, e t c ) .
disponentes, que, não fazendo parte da natureza da estruc
tura ou estructuras, actuam, contudo, sobre elas, como a es 4) A eclosão das guerras periódicas e das suas conse
tructura industrial actua sobre a agrária, e vice-versa, den quências inflacionárias e da destruição que trazem, o es
tro de um país de determinado regime, de um sistema eco gotamento dos estoques e o novo ímpeto de producção que
nómico, como as lutas de classe, as lutas de interesses de provocam, etc. Essas causas, que aqima alinhamos, são
grupos, etc., que são por sua vez, de certo modo, endógenas consideradas supra-econômicas, porque actuam elas sobre
ao regime, mas exógenas em relação às outras estructuras. a estructura económica. O erro de Marx foi não ser mais
dialéctico e não ter compreendido que se a estructura eco
Entre os factores extrínsecos, alinham-se os seguintes: nómica (a infra e a intra estructura) actua sobre a super-
estructura, esta, por sua vez, actua sobre a primeira, e dessa
1) O que Marx caracterizava como swper-estructural, interactuação é que se realizam as alternâncias e variações,
que constitui propriamente o mundo das ideias, que para êle que se processam dentro de um sistema e de um regime.
eram apenas reflexos na mente humana da estructura eco
nómica, podem actuar sobre a estructura económica, como 5) A Técnica, cuja influência sobre a Economia já
vemos no próprio exemplo russo, onde ideias distintas às estudamos em seus aspectos gerais. Ora, a Técnica consti
normalmente actualizáveis, segundo o marxismo, pelo mu- tui um elemento estructural, porque, como já vimos, é o es
jique e pelo proletariado russo, em fase pouco evoluída, in tudo sistemático dos factores instrumentais do processo pro-
fluíram sobre a vida económica daquele país. Não se po- ductivo. Marx também o reconheceu em parte; Fourastié
TRATADO DE ECONOMIA 133
132 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
nômico gera a política económica independente (tese) que fluxos e refluxos, que são registrados no âmbito que abrange
é substituída aos poucos pelo imperialismo (antítese) — a História. Por outro lado, o exame dos ciclos culturais
como se verificou com as Grandes Companhias do Renasci tensionais nos revelam ademais a repetição de períodos e
mento — e, finalmente, gera a política económica dominan suas fases, de curvas ascensionais, horizontais e descensio-
te do Estado (síntese). nais, fluctuações cíclicas, alternâncias em suma, que mere
ceriam melhor atenção dos economistas se se dedicassem
Contudo, essa dialéctica não corresponde à realidade, melhor ao estudo da Filosofia, da História, da Sociologia e
porque a formação das grandes unidades económicas, por da Ética, e não ficassem prisioneiros de uma especialidade
sua vez, gera a formação de muitas unidades pequenas, co abstractista. Não se conhece melhor uma matéria quando
mo oficinas de reparação, distribuidores regionais, descen penetramos apenas nos escaninhos das suas pesquisas es
tralização industrial, etc. Também o imperialismo é for pecializadas. Conhece-se melhor uma matéria quando dis
çado a actos gratuitos pela imposição de campanhas bem pomos de um método que a concrecione com o restante do
orientadas e poderosas. O estatismo soviético marcha para saber culto humano. É preferível desconhecer tantos por
um inevitável domínio tecnocrático-científico, cujos repre menores, que não ajudam a uma visão de conjunto, mas ape
sentantes serão, num futuro bem próximo, os novos senho nas particular e superficial, e dedicarmo-nos um pouco mais
res do Kremlin, embora mascarados de bolchevistas, com ao generalismo concreto, para evitar a unilateralidade su
as mesmas roupagens vermelhas, a foice e o martelo. O perficial e a falsa cultura de nossos dias em que se julga,
que tudo isso revela é a lógica intrínseca do regime, que não e bem erradamente, que para conhecer bem uma matéria é
pode ser desprezada, embora se deva, isso sim, considerar o mister dedicar-lhe a vida inteira, quando, na verdade, é ela
papel das disposições prévias corruptivas de toda estruc- conhecida mais profundamente ao sabermos correlacioná-la
tura, que é matéria de estudo em nosso "Filosofia e His às outras estructuras, que formam as grandes constelações
tória da Cultura". Observa-se, na sociedade humana, a coe estructurais tensionais do saber culto do homem.
xistência de sistemas distintos e até opostos, de práticas dis
paratadas, como vemos entre nós, onde encontramos um ca
pitalismo de estructura liberal ao lado de intervenções exa
geradas e incompetentes do Estado, apoiada até por ele
mentos capitalistas, a má organização de planos económicos
e financeiros, que geram o inverso do desejado e provocam
o advento precisamente do que se desejava evitar.
c) Há, contudo, o desenvolvimento dinâmico e siste
mático de estructuras que se processam pari passu ao sis
tema, de origem intrínseca que actuam nele. A irreversi
bilidade histórica, que fora um elemento de coagulação das
ideias historicistas, abrangera em sua concepção, errada
mente, uma afirmativa da irreversibilidade sociológica e
económica. Há, inegavelmente, o irreversível na História,
que pertence directamente à unicidade do facto, não, porém,
os aspectos formais, que se repetem. Assim o desenvolvi
mento industrial não destruiu o artesanato, que continua
realizando-se plenamente, tendo até alcançado estágios mais
elevados do que em qualquer outra época conhecida; a repe
tição dos sistemas políticos de força, substituídos por sis
temas políticos de maior liberdade, enfim, as alternâncias,
/l
TRATADO DE ECONOMIA 137
tas, onde a separação do trabalho e do capital se dá de acor África e entre nós, na Aihérica do Sul. cujo desenvolvimen
do com as características do regime capitalista e também to industrial é crescente. De acordo com o grau de difu
extra-capitalistas, como as organizações que se destinam a são do capitalismo, poder-se-iam distinguir os países em
prestar serviços sem intuito de benefício, como sociedades quatro grupos:
humanitárias, hospitais, etc.
1.°) Países não capitalistas, como a Rússia asiática, o
A importância do estudo das estructuras do sistema ca Sudão, etc. Os actuais planos de industrialização preten
pitalista e menos importante quando êle tende para a con dem tornar a Rússia asiática industrial.
corrência e, portanto, para a liberdade, do que, quando ten
de para um capitalismo dirigido ou simplesmente orientado, 2.°) Países semi-capitalistas são os em que há pouco
como é a tendência moderna. É importante também para capital e muito trabalho, como os da Ásia, excluindo-se o
compreender os planos de socialismo parcial, que tem sido Japão.
apresentado por elementos reformistas, que procuram a coe
xistência e a colaboração entre sectores heterogéneos. As 3.°) Países de capitalismo recente, como a América
sim temos planos de "nacionalização", combinando sectores do Sul, a Austrália, a África do Sul, em que há penúria de
públicos com privados, para constituir, com os públicos, o capital e de trabalho.
modelo de economia do futuro, segundo a tendência predo 4.°) Países de alto capitalismo, como a Europa, o Ja
minante entre os socialistas de Estado. pão, os Estados Unidos da América do Norte, onde há abun
As realizações efectuadas na Rúasia mastranvnos a dância de trabalho e de capital.
actualidade do estudo das estructuras. As tentativas do Como o capitalismo está desigualmente disseminado, tem
governo para proceder a uma socialização rápida e integral êle realmente possibilidades extensistas, e, consequentemen
da economia, como vimos no início, teve como consequên
cia a fase da NEP, que admitiu a existência de sectores li te, intensistas.
vres ou relativamente livres. O capitalismo em certos países da Europa Ocidental
Posteriormente, assistimos a uma ofensiva de colectivi- e na América do Norte, experimentou transformações gerais
zação, tanto na agricultura como na indústria. Para tal, de estructura, começadas antes da primeira guerra, conti
foram os economistas russos obrigados a realizar estudo3 nuadas após, até os dias de hoje, de maneira tal que o ca
de estructura. Hoje o estudo da economia, para ser com pitalismo contemporâneo distingue-se profundamente do ca
pleto, exige que se tenha uma visão estructural, devido às pitalismo anterior à guerra.
relações, às proporções e às influências que a política eco
nómica de um país pode exercer sobre outros. Vejamos quais foram estas transformações:
Em "Análises de Temas Sociais", procuraremos exa a) do capitalismo concorrencial surge o capitalismo
minar estes aspectos estructurais, naturalmente depois de monopolizador, isto é, cresce o capitalismo monopolizador e
havermos feito uma análise das categorias económicas. a relação, entre este e o concorrencial, torna-se favorável ao
primeiro. Procura-se organizar o mercado. Os trabalha
Tal, no entanto, não impede que teçamos, por ora, alguns dores assalariados, para minorar a exploração de que são
comentários sobre as estructuras do capitalismo moderno. vítimas, formam associações sindicais, que, perseguidas a
Todos os factos nos mostram que o capitalismo industrial te início pelos poderes públicos, terminam por impor a sua
ve um rápido aumento na sua extensão geográfica pelo em legalidade.
prego generalizado da máquina. Da Inglaterra, o indus
trialismo propagou-se para a América do Norte, para a Eu Os capitalistas, por seu turno, para resistir às preten
ropa ocidental, penetrando mais lentamente na Europa orien sões operárias e para aumentar seus lucros, fundam tam
tal e, finalmente, nos países novos, nas colónias, na Ásia, na bém sindicatos patronais, os quais tentam assenhorear-se do
140 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 141
mercado, dominando, assim, o consumidor, enquanto os agru liou o nascimento e o desenvolvimento do capitalismo indus
pamentos obreiros tentam assenhorear-se da mão de obra trial, o Estado passa, nas mãos do capitalismo financeiro,
e disciplinar os trabalhadores, a fim de lutar contra o mo
nopólio. a transformar-se num instrumento a seu serviço. Desta
forma, dá-se uma separação crescente entre o Estado e a
Desta forma, passa-se do capitalismo de indivíduo para Economia, Dominado por particulares é obra de parti
o capitalismo de grupo. As grandes empresas reúnem-se culares.
em grupos de empresas, a fim de impor a sua preponderân Declarava o liberalismo económico que o sujeito da
cia sobre as pequenas empresas. actividade económica não era o Estado, mas o indivíduo. O
Os próprios trabalhadores vêem declinar a sua potência Estado devia permanecer fora das actividades económicas.
ante a influência crescente do sindicato. Com a organiza Seu papel era manter a ordem, a paz interna e externa, res
ção das suas actividades e a homogeneização dos métodos de peitar a propriedade e os contractos.
acção, conquistam reivindicações junto aos poderes públicos. O indivíduo, em sua acção, estava limitado apenas aos
As minorias, que a princípio têm seus direitos garantidos, direitos dos outros indivíduos. A liberdade de um cessava
vêem-se a braços com a acção da maioria, que deseja impoí onde começava a liberdade do outro.
a sua vontade.
Mas, na realidade, tal não se deu. O Estado foi levado,
O capitalismo inorgânico das primeiras épocas passa devido às injustiças sociais, a penetrar na vida económica,
a ser um capitalismo orgânico. Tal não havia sido compre a criar leis favoráveis aos consumidores e trabalhadores, a
endido por Marx, mas o foi por Proudhon, que, em dias do criar impostos, a intervir, em suma, não por motivos eco
século passado, previu essa transformação do capitalismo, nómicos propriamente, mas por motivos fiscais e sociais.
que, de desorganizado e vário, procuraria, a pouco e pouco, Essa acção do Estado foi a pouco e pouco se transformando.
coordenar sua acção. O capitalismo comercial e industrial Os agentes económicos começaram a apelar para o Estado,
torna-se cada vez mais dependente da finança privada. No e este acabou por controlar a vida económica, tornando-se
início, as pequenas e médias explorações não tinham neces finalmente capitalista, e criando, assim, razões de ordem
sidade de capitais monetários em grande escala. Mas as económica para a sua actividade.
grandes empresas industriais e comerciais o exigem para se
constituírem, para crescerem, para funcionarem. São neces Assim assistimos hoje a um capitalismo controlado pelo
sárias grandes somas de dinheiro, e essas somas são obti Estado, e a um capitalismo de Estado, motivado por razoes
das nos bancos, dos quais passam a depender as empresas. das transformações da estructura económica.
Dessa forma, um banco ou grupo de bancos asseguram As grandes empresas passam a ser de utilidade pública,
o controle sobre um grande número de empresas. Muitas embora não pertencentes ao Estado.
empresas, como a Ford, por exemplo, para liberarem-se do
capital financeiro, buscam poupar e conservar essa poupan Há, no entanto, o choque dos grandes interesses de
ça, para, com ela, poderem auto-financiar-se. grupo. As pretenções de productores de um ramo cho-
cam-se com as pretenções de productores de outro ramo,
A Bolsa, como ainda veremos, submete ao seu poder a além dos choques destes contra os assalariados. A inter
indústria e o comércio. Campanhas odiosas, pânicos e en venção do Estado se dá para solucionar esses choques e evi
godos são criados para levarem títulos à alta ou à baixa, tar os conflitos.
com o intuito de darem lucros elevados.
É tal, hoje, o entrelaçamento entre o Estado e a Econo
Mas o capital financeiro não exerce apenas sua influên mia nos países capitalistas, que se discute por saber se o
cia no terreno económico, mas também no terreno político, Estado é quem possui, quem domina e Economia ou a Eco
e daí surgir um capitalismo de Estado. Se o Estado auxi- nomia quem domina o Estado. Há, realmente, uma inter-
142 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 143
actuação do Estado e da Economia; vemos um exercer sua de ser motivado por uma preferência política ou por uma
influência sobre o outro, e vice^versa. preferência económica. Em tempo de guerra, os Estados
procuram assegurar em seu interior seu próprio aprovisio
Antes da guerra, a economia procurava internacionali- namento. Podemos salientar alguns aspectos, que permi
zar-se, e para um grande número de productos havia a ten tem o desenvolvimento dos países de economia complexa.
dência de se constituir um mercado mundial. A Alemanha Temos que considerá-lo sob o ângulo das condições físicas,
e a Itália, mal providas de riquezas nacionais e relegadas a técnicas e humanas, que são fundamentais. Quando uma
uma posição inferior na partilha do mundo, sob a influência região se torna centro de economia complexa, estabelecem-
de regimes totalitários, procuraram tirar melhor partido, -se aí as indústrias por camadas e grupos sucessivos. Pos
recolhendo-se a si mesmas, para adquirirem um potencial teriormente, vêm as indústrias de transformação; isto é,
de resistência e de expansão cada vez maiores. aquelas que utilizam a matéria prima ou eventualmente o
combustível que se encontra no local. A segunda camada é
Procuram hoje muitos países encontrar um equilíbrio formada pelas indústrias que oferecem serviços às indús
entre os dois ramos de actividade económica: a agricultura trias de transformação. Posteriormente, vêm as indústrias
e a indústria, sempre numa luta constante. Esse equilíbrio cosmopolitas, que utilizam matéria prima produzida em lu
tende para um desenvolvimento e a uma utilização máxi gares longínquos do centro de transformação. Quanto às
mas de todas as forças productivas disponíveis. trocas, devemos considerar previamente que não há um
mercado internacional propriamente dito para todas as mer
Assistimos a uma reaproximação entre os países agrí cadorias, nem mesmo um mercado nacional unitário. Os
colas e os industriais; é uma economia complexa, que pro preços variam de região para região. Essa diversidade le
cura vencer a antítese entre a agricultura e a indústria, va a exigir a intervenção do Estado que fixa preços regu
cujos aspectos contrários teremos ainda oportunidade de lares para as diversas regiões, ou então são regulados, se
estudar. Processa-se, assim, a industrialização dos países gundo a chamada "lei da oferta e da procura". Inúmeros
até então exclusivamente agrícolas. Essas indústrias ofe aspectos importantes surgem agora ante nossos olhos, como
recem muitas vezes rendimentos maiores aos que se costu seja o problema das crises, quer de funcionamento, quer de
mam obter nos países industrializados. Por outro lado, os estructura, quer de sistema. Mas tal estudo só poderia ser
países industrializados procuram uma reorganização do seu devidamente empreendido, como outros que já acima fala
território, como vimos na Alemanha e na Itália. A agricul mos, depois de havermos passado pela fase analítica da Eco
tura, com o auxílio da indústria, torna-se industrial. Au nomia, e nas obras posteriores, que compõem esta coleção
menta o capital de exploração, máquinas e utensílios são apli de trabalhos nossos.
cados intensa e extensivamente. A exploração agrícola co
nhece um desenvolvimento que a torna verdadeiramente ca
pitalista, transformando-a de empresa agrícola em empresa
capitalista.
Quais as causas que levaram à evolução das economias
nacionais para a economia complexa? Para alguns, os que
defendem a teoria da divisão do trabalho, tal se deve à ten
dência de especialização das economias nacionais, o que é
combatido por outros, sob a alegação de que não se deu
essa especialização das economias "nacionais".
Em tempo de paz, os Estados concedem um estatuto
preferencial a certos ramos e categorias de productores, co
mo, por exemplo, proteção alfandegária, etc. Tal favor po-
TRATADO DE ECONOMIA 145
Entre os gregos, encontramos estudos sobre os temas No século XIII, Tomás de Aquino condenou a usura,
económicos, e a eles devemos o nome de Economia formada mas em certos casos permite uma indemnização a quem em
presta.
dos termos oikos e nomos (casa e regras), que, em sua
etimologia, referia-se apenas à "economia privada". Di No Renascimento, surgiram obras de imaginação como
versos aspectos sociais da vida económica foram examina a "Utopia ou a melhor das repúblicas", de Thomas More,
dos por historiadores como Heródoto, Tucídides e Xenofon- a "Cidade do Sol", de Campanella, que procedem do socia
te, e por filósofos como Platão e Aristóteles. lismo platónico, cujo exame especial fazemos em outros tra
balhos nossos.
Platão, nas "Leis" e na "República", estudou o prin
cípio da divisão do trabalho e o da troca, que é a sua con As teorias relativas ao lucro continuaram a provocar
sequência. Juntava às suas observações, conclusões de ca discussões entre teólogos e juristas, bem como sobre a pro
rácter moral, considerando-se hostil à propriedade privada, priedade.
por engendrar ela a desigualdade das riquezas e o luxo.
Pintava Platão, em sua "República", uma cidade ideal, em O desenvolvimento e a complexidade crescente da vida
que o Estado seria o regulador da producção e o senhor da económica levaram os pensadores da época a se preocupa
distribuição das riquezas produzidas. Poder-se-ia conside rem com os temas económicos, sobretudo com a aplicação
rar Platão de certo modo, como socialista totalitário. dos sistemas monetários e a política arbitrária dos prínci
pes. É precisamente a partir do século XIV, que vamos
Aristóteles, menos imaginativo que Platão, apresentou encontrar escritores que apresentam obras de estudo sobre
observações mais vastas, e construiu até uma teoria do va temas especificamente económicos.
lor e da moeda, como veremos.
Com Catão e Varro, encontramos, entre os romanos, OS MERCANTILISTAS
alguns estudos sobre temas de economia rural, mais tecno
lógicos do que propriamente económicos.
No século XVI, com a formação dos Estados modernos,
No início da Idade Média, o pouco desenvolvimento da com uma economia complexa e de interesses diversos, mui
cultura intelectual não favoreceu o desenvolvimento do pen tas vezes opostos, a atenção dos estudiosos se dirigiu para
samento económico. Mas, com o decorrer do tempo, e à os factos económicos, então patentes pela exacerbação dos
proporção que volve o homem sua atenção para a vida, os interesses em antagonismo. Predominou o interesse "na
teólogos preocuparam-se com os factos económicos, sobre cional", e nesse campo, principalmente, o comércio exterior,
tudo sob seus aspectos de ordem moral. Eram os primeiros para o alcance de uma balança comercial favorável, visto
padres da Igreja contrários à propriedade privada, gera o afluxo de metais preciosos que dele resultava. Foi por
dora das desigualdades sociais, do luxo e da miséria. Di- esse aspecto, por terem considerado o problema económico
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 147
146
do ângulo "nacional", e este do ponto de vista comercial, ção era uma constante da época, que desejava submetê-la às
que lhes deram o nome de mercantilistas. leis naturais. "Laissez faire; laissez passer" ("deixai fa
zer; deixai passar"), tal era o lema máximo da escola.
Não formaram eles uma escola propriamente dita, com.
uma doutrina comum. Apesar de todos se preocuparem Comparava Quesnay a sociedade a um organismo —
com a balança comercial e a acquisição de metais precioso» comparação aliás já velha — cuja fisiologia procurava es
para o seu país, estavam eles em desacordo quanto aos meio» tudar. Imaginava a circulação das riquezas de uma forma
para alcançar tais fins. Entre eles os mais famosos foram análoga à circulação do sangue. O ponto de partida dessa
Thomas Mun e Antoine de Montchrestien. circulação era a agricultura: "o cultivador consome imedia
tamente o que é necessário ao seu alimento; o resto é par
Com William Petty (1623-1687), o campo do pensa tilhado entre êle e o proprietário, e ambos distribuem o
mento económico se alargou. Estudou êle os factores de resto em salários a todos os membros da sociedade, como
producção, o trabalho, que é o pai, e a terra, que é a mãe preço de seu trabalho. Os valores, que estes receberam,
de todas as riquezas, para estudar diversas aplicações da retornam pela compra dos alimentos que eles consomem,
estatística ao estudo dos factos económicos. entre as mãos dos cultivadores, para sair de novo, por uma
No século XVIII, surgiu Richard Cantillon, que se pode circulação, cuja continuidade faz a vida do corpo político,
considerar como um economista moderno. Sua obra "En assim como a circulação do sangue faz a vida do corpo
saio sobre a natureza do comércio em geral", contém uma animal."
exposição dos regulamentos internacionais e, seguindo o»
estudos de Petty, analisou a producção, o valor, a moeda, Tinha, assim, toda riqueza sua fonte na agricultura, e
os salários, a população. Sua clareza de espírito empres é a ela que os fisiocratas atribuíam a primazia, que era
tou à obra um valor científico. dada ao comércio e à indústria pelos Mercantilistas. Con
sideravam eles que apenas a agricultura era productiva, e
viam nos cultivadores a "classe dos productores", qualifi
A ESCOLA FISIOCRATA cando os artesãos e os comerciantes de classes estéreis.
Não negavam a utilidade do trabalho efectuado pelos
No decorrer do século XVIII, influídos pelo mercanti que fazem circular a riqueza, mas só a agricultura ajunta
lismo, muitos escritores preconizavam medidas intervencio va, oferecia riquezas. Diziam que apenas os cultivadores
nistas, com o fim de favorecer o comércio e a indústria, "produziam por geração, por aumento real do producto", en
enquanto outros reaccionavam em favor de uma política quanto o artesão "produzia por adição de matérias primas
mais ampla e mais liberal. e de substâncias convertidas em trabalho".
A miséria, que avassalou a França no século XVIII, Concluíam assim os fisiocratas que se devia favorecer
e a desordem existente nas finanças públicas davam lugar a agricultura, mas, consequentes com a sua doutrina, jul
a muitas ideias liberais, que preconizavam reformas pro gavam que o imposto devia recair sobre a terra, fonte de
fundas. Com a finalidade de remediar as misérias do tem riqueza, e eram partidários do imposto único.
po por uma ampla reforma, e também com o intuito de
constituir uma economia política, surgiu a Escola fisiocrata, Vê-se, facilmente, que a teoria fisiocrata funda-se nos
cujo chefe foi Quesnay (1694-1774). Era Quesnay médico dados da sua época e não é mister muitos argumentos para
de Luiz XV, e escreveu alguns opúsculos. Teve como dis mostrar seus erros. É uma doutrina própria da eotécnica,
cípulos o Marquês de Mirabeau, Dupont de Nemours, Mer- que actualiza a agricultura, como os mercantilistas haviam
cier de la Rivière, etc. actualizado o comércio e a indústria. Tem, no entanto, seu
A preocupação dominante dos fisiocratas era a de des papel histórico e muitas das suas teses retornam, fundadas
cobrir a ordem natural da vida económica. Essa preocupa- em novos argumentos, como ainda veremos.
148 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 149
A ECONOMIA POLÍTICA mercado regula-se pelo custo mais elevado das mercadorias
necessárias para responder à procura, os proprietários fa
É na Grã-Bretanha, sobretudo na Escócia, que o pen vorecidos obtêm um retorno suplementar, que êle chama
samento económico vai ter um grande desenvolvimento. renda.
É iniciada por filósofos, os quais, presos à orientação
abstracta dominante então na Filosofia, deram ao pensa Segundo Ricardo, esse retorno suplementar é pago pe
mento económico esse cunho abstracto, que teremos muitas los granjeiros.
ocasiões de salientar. Os precursores foram Hutcheson, Por outro lado, o aumento da população exige que se
mestre de Adam Smith, Ferguson e David Hume. Este, so ponha em plantio terras menos férteis, em que a producção
bretudo, escreveu notáveis trabalhos sobre a moeda, comér é cada vez mais onerosa, razão pela qual o preço das sub
cio internacional, taxa de juros, população, dívida pública, sistências tende a elevar-se, o que vem em proveito dos
etc. Influiu poderosamente sobre Adam Smith. antigos proprietários por um acrescentamento da "renda".
Adam Smith nasceu na Escócia em 1723, viajou pela Quanto ao salário, apesar da relação entre o capital
França e pela Suíça. Em 1776 publicou sua célebre obra disponível e a população, êle não pode cair abaixo das es
a "Riqueza das Nações". Apesar das influências sofridas, tritas necessidades da existência e tende a elevar-se, mas
seu trabalho tem um cunho pessoal e original. É uma obra somente na medida em que é preciso para enfrentar a alta
de observação e de documentação, coordenada por uma ló do preço das subsistências e, consequentemente, sem provei
gica penetrante. Professava, em geral, ideias liberais; não to para os operários.
era, porém, intransigente. É êle considerado o fundador
da economia política moderna. Segundo Ricardo, devido ao aumento dos salários, os
lucros do capitalista iriam diminuindo até o momento em
J. B. Say (francês, 1767-1832) foi continuador da obra que a acumulação de capitais cessaria de ser lucrativa.
de Adam Smith. Publicou em 1803 o "Tratado de Economia Chegar-se-ia a um estado de producção estacionária, en
Política", que foi posteriormente remodelado yeW autor. quanto o proprietário territorial se beneficiaria com uma
Adotou uma classificação lógica (Producção, Distribuição, renda sempre crescente. Essas premissas, hoje contestá
Consumo), que ainda é usada hoje, e estudou analiticamen veis, inclusive em suas consequências, tiveram grande in
te essas fases. Sua obra teve grande influência nos estu fluência no pensamento económico. Forneceram argumen
dos posteriores. tos aos socialistas e aos adversários de uma organização pu
ramente individualista da producção.
Contemporâneo de Ricardo foi Thomas Robert Malthus
ESCOLA CLÁSSICA INGLESA (1766-1834), pastor protestante. Publicou em 1820 "Prin
cípios de Economia Política". A celebridade de Malthus
se deve ao seu ensaio sobre o princípio da população, pu
David Ricardo (1772-1823) foi, no início, um financis blicado em 1789, em que afirmava um crescimento numa
ta, que obteve grande fortuna, e depois se dedicou a uma progressão geométrica, enquanto o aumento das subsistên
especulação desinteressada. Após haver lido a obra de cias se processava numa progressão aritmética. Desta for
J. B. Say, entregou-se ao estudo dos problemas mais teó ma, aumentava a necessidade, e a quantidade de alimentos
ricos da economia política. Com sua teoria do valor, re não aumentando na mesma proporção, a fome e a miséria
conhece que a utilidade é a condição prévia do valor, mas cresceriam, razão pela qual propôs certas medidas anti-con-
considera que o valor de troca normal depende do custo de cepcionais, com o intuito de evitar o aumento da popula
producção, e, finalmente, do trabalho. Em face da desigual ção. Fundava-se em estatísticas inglesas e suas opiniões
dade de fertilidade do solo, o custo da producção não é o mereceram posteriormente severas críticas. No entanto, há,
mesmo para todos os proprietários. Ora, como o preço do em suas teorias, muitos aspectos verdadeiros.
150 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
Estudou, sobretudo, os factos contemporâneos, mas com um Com a doutrina da plus-valia, não atacava Marx a ex
método paciente de historiador, buscando a realidade, pro ploração sofrida pelo trabalhador, mas explicava, com ela,
curando explicar os factos concretos da vida económica, an a teoria do valor. Aceitava a de Ricardo sobre o valor, fun
tes de procurar seus princípios. dado no trabalho, o que Proudhon antes também aceitara.
Assim o patrão vende o producto ao preço correspon
dente à quantidade de tempo de trabalho que êle contém,
O SOCIALISMO DE ESTADO E O COLECTIVISMO, mas paga ao operário, não todo o trabalho fornecido, mas
somente um salário correspondente às estritas necessidades,
NA ALEMANHA ao custo da existência do trabalhador. Concludentemente, o
valor da subsistência necessária para a manutenção do obrei
ro é inferior ao valor dos productos do trabalho do mesmo,
O espírito positivo que, como já vimos, penetrava na que é a plus-valia. Esta doutrina, que examinaremos em
literatura económica da Alemanha, preparou, com seus ele outro trabalho desta coleção, foi rejeitada até por marxistas.
mentos descriptivos, a formação de um socialismo novo. que
a si mesmo intitulou de "científico", e que teve três figuras Quanto à segunda parte de sua doutrina, afirmava Marx
de relevo, que foram Rodbertus, Lassalle e Karl Marx. a concentração crescente dos capitais com o desenvolvimen
to da indústria, a acumulação em poucas mãos desse capi
Era Rodbertus (1805-1875) um grande proprietário tal, enquanto a proletarização seria crescente por parte dos
prussiano, que se inspirou diretamente na obra de Sismondi trabalhadores, cada vez mais miseráveis. Os artesãos, por
e dos saint-simonianos. O livreucâmbio levaria a fornecer sua vez, seriam forçados a vender sua força de trabalho e a
aos capitalistas e aos proprietários territoriais uma parte, proletarizarem-se consequentemente. Tal facto levou-o a
cada vez maior, de um producto que eles não criaram. "Vi concluir a necessidade da luta de classes. Essa evolução
vem eles no luxo, enquanto outros mal podem satisfazer do regime capitalista levá-lo-á à sua própria destruição, e
suas necessidades essenciais," Concluía então Rodbertus os capitais, concentrados em poucas mãos, serão arrebata
que o Estado deveria tomar a direcção da actividade econó dos pelo proletariado, que, através da revolução, os entrega
mica. Não queria suprimir a propriedade privada nem as rá ao Estado.
empresas particulares. Permanecendo a propriedade e as
empresas privadas, deveria o Estado intervir nas relações A formação dos trustes e as grandes concentrações pro
entre o capital e o trabalho. letárias nos sindicatos vinham em abono dessa tese. Mas
as crises previstas tornaram-se menos intensas e o proleta
Ferdimand Lassalle (1825-1864) acreditava, com Rod riado, em fins do século XIX e no sécudo XX, conheceu mui
bertus e Marx, numa evolução histórica, que terminaria na tas melhorias.
desapropriação da propriedade privada. Era um grande
agitador público. E pelas necessidades da acção, acabou por A doutrina de Marx foi combatida por socialistas, auto
preconizar seu programa prático à criação de sociedades ritários e libertários, sobretudo por se preocupar mais com
operárias de producção, como o fizera antes Louis Blanc. a producção que com a repartição e o consumo. Uma aná
lise rápida, feita sobre os dados acima expostos, permite
Karl Marx (1818-1883) foi inegavelmente o teórico mais ver que a doutrina de Marx prende-se mais às linhas gerais
completo do socialismo autoritário do século XIX. Sua teo do pensamento alemão que às do socialismo, que já estuda
ria da plus-valia, apoiada na teoria clássica do valor, e a mos na França. A tese do intervencionismo é cara aos so
concepção da evolução económica, baseada sobre os factos cialistas alemães, que chegaram a criar o nacional-socialismo
contemporâneos, levaram-no a aceitar o advento da pro hitlerista, em que o Estado chegou a alcançar o máximo de
priedade colectiva, como necessidade histórica. Estes são poder, só superado pelo poder que se observa na Rússia So
os pontos fundamentais da sua doutrina económica. viética.
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 157
156
Guillot define a necessidade como "o sentimento de um quando reduzimos o intensista ao extensista, o qualitativo
estado afectivo doloroso, que podemos substituir por um ao quantitativo.
estado afectivo agradável pelo emprego de um meio do qual
acreditamos poder servir-nos." 6) Julgam que os prazeres e as dores são comensurá
veis — Ora ambos são subjectivos, variam, portanto, de in
Thaon di Revel, economista italiano, assim define: "a divíduo para indivíduo. Por outro lado, não há uma unida
consciência que o homem tem da precisão de dever recor de de sensação que sirva de medida.
rer a um meio determinado, como condição indispensável
da existência ou o conhecimento que tem de poder obter por 7) Julgam que as necessidades são divisíveis — Por
um meio determinado uma melhora de sua condição de vi tanto supõem que cada dose de um alimento de qualidade ho
da ou da de outrem, ou a cessação de uma sensação penosa mogénea, consumida pelo sujeito, faz desaparecer, propor
ou de incomodidade para si ou para outrem." cionalmente à sua aplicação, uma fração correspondente da
necessidade de comer.
Estabelecem os economistas estes elementos da neces
sidade : Todas essas teorias, que são modernas, cometem o erro
inicial de confundir o lado intensista e o extensista da ne
1) o ser consciente. cessidade. O lado intensista varia de indivíduo para indi
víduo, de grupo para grupo, etc. No extensista, as varia
Este pode ser o indivíduo físico ou um grupo social. ções são menores, por isso se costuma chamar de constante.
Neste último caso, a necessidade do grupo é apreciada por
um indivíduo físico ou mais de um. As leis, que muitos economistas procuraram construir, fun
dadas nas medidas das necessidades e da sua satisfação, têm
2) Conhecimento da existência de um meio. valor apenas pelos elementos normalmente necessários para
a manutenção da vida. Outras necessidades ultrapassam o
Esse conhecimento nos é dado pela experiência ou pela campo do extensista, do quantitativo.
cultura. Este elemento nos leva a compreender por que
certos bens se tornam necessários em dado momento da Multiplicação das necessidades — Observa-se no capi
história: As meias, por exemplo, eram raras em tempos talismo que os novos inventos criam novas necessidades. O
passados, hoje são imprescindíveis ao homem civilizado. cinema, o rádio, a fotografia criaram necessidades novas.
Na verdade foram novas manifestações das velhas neces
3) Conhecimento do emprego possível do meio com sidades de divertimento, mais agudizadas agora pelo dina
vantagem para o sujeito económico. mismo da vida capitalista. Revela-nos a história que há épo
cas em que as necessidades se multiplicam, enquanto nou
O sujeito económico sabe que o bem lhe é necessário tras diminuem. Pode o homem suportar essas restrições na
para a manutenção da existência ou para melhorar sua con satisfação de suas necessidades e temos um exemplo na guer
dição de vida. Podemos citar quatro suposições fundamen ra, onde as restrições impostas são suportadas.
tais, que estão na base da teoria moderna da necessidade.
4) Princípio hedonístico — Pode ser enunciado assim: 8) As necessidades são saciáveis — É essa uma das
afirmavam os hedonistas (filósofos gregos), que o homem afirmações mais encontradiças.
deseja obter o máximo de prazer com o mínimo de dor. A Alegam alguns que tais afirmações não procedem, pois
Economia, em sua actividade, quer proceder como um he há necessidades não saciáveis, como, por exemplo, o luxo.
donista. Entretanto, se o luxo agudiza a necessidade, êle leva à sa
5) Mensurabiliãade da necessidade — Julgam mui ciedade e até ao desprazer, quando atinge um grau muito
tos economistas modernos que os prazeres e as dores são exagerado.
mensuráveis. Mas são eles intensistas, portanto não são O capitalismo e a necessidade — No regime capitalista,
quantitativos. Podemos apenas conhecer graus. Medir só há uma multiplicação intensa das necessidades. As causas
TRATADO DE ECONOMIA 165
164 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
operários dos diversos países, ao lado das dissemelhanças
são: o desenvolvimento crescente da Técnica, que aumenta dos orçamentos.
em quantidade os bens e os transforma qualitativamente; o A falta de um conhecimento científico da alimentação,
desenvolvimento dos meios de comunicação materiais e in mais seguido pelos usos e costumes e a influência do meio
telectuais, que são numerosos e poderosos, permitindo que e do factor étnico têm influído poderosamente nessa dispa
se conheçam novos bens para satisfação de necessidades. ridade. Consequentemente, é preciso também reconhecer as
O capitalismo é uma economia de forma monetária, que diferenças de mentalidade.
funciona sobre a base do mercado. Assim os bens podem Entretanto, o que nos revela a história é que, no de
ser avaliados numericamente. Uma necessidade nascida po correr do domínio do capitalismo, houve um aumento de con
de encontrar uma satisfação, porque é acessível apenas às sumo de parte da população humana, a par de um aumento
possibilidades monetárias. Ao lado da multiplicação das das necessidades que se multiplicaram, não apenas para uma
necessidades, temos a multiplicação das satisfações. classe, mas para todas as classes, cuja situação melhorou.
Outro aspecto também digno de nota é que o luxo se desen
É muito comum, sobretudo entre os marxistas, dizer-se volveu, mas acessível a um número maior, verificando-se
que a situação do proletariado é menos invejável que a do muitas vezes a preferência em atender-se as necessidades
escravo antigo. Tal afirmativa, considerada apenas como de luxo do que as necessidades fundamentais.
"frase de propaganda", pode ser desculpável, mas como afir
mação económica, como transparece nas obras de Marx e É digno de nota que no regime capitalista a satisfa
de seus sequazes, não é perdoável, porque mesmo em tempos ção das necessidades depende da solvabilidade do consumi
daquele, a situação do proletariado era economicamente me dor. Esta depende das rendas, dos salários, etc. Uma so
lhor. Além disso, a situação do proletariado melhorou com ciedade socialxsta planificada, que estabelecesse o desapare
o tempo, e hoje um operário recebe tanto e vive como um cimento do mercado, e que o trabalhador, para satisfazer a
privilegiado de séculos anteriores ao XIX. As análises fei sua necessidade, adquirisse bens nos armazéns do Estado
tas por sociólogos sobre os orçamentos operários demonstra ou da colectividade, e para tanto usasse de bónus, em vez
que os mesmos têm aumentado. da moeda comum, esse bónus deveria refletir as horas e a
qualidade de seu trabalho. Ainda aí teríamos a solvabi
Os estudos sociológicos, neste ponto, interpenetram-se lidade, pois apenas adquiriria bens na proporção do seu cré
com os da Economia. Certos aspectos económicos vão en dito em bónus.
contrar na Sociologia base para novas compreensões. Quan
do alguns autores socialistas comentam a falta de solidarie Na Rússia, tentou-se criar tal situação, mas deram-se
dade entre operários de uma fábrica e empregados da mes casos em que o proletário tinha meios solváveis para acqui-
ma, temos aí um facto sociológico, mas também com suas sição de bens, mas os armazéns não os tinham. O retorno
relações económicas, pois se verifica que as necessidades de ao regime monetário, na Rússia, não resolveu a Situação,
uns e de outros também são diferentes. porque o encarecimento dos preços foi extraordinário e, en
tão, se deu o que se observa no regime capitalista. O pro
Estamos numa época nova do pensamento humano. É letário passou a não ter solvabilidade suficiente e a acqui-
que hoje os homens estudam mais as diferenças que as seme sição de bens dependeu da sua solvabilidade. Dessa forma,
lhanças. Já mostramos em "Filosofia e Cosmovisão" por na Rússia, através da sua socialização, uma elite dirigente
que e como isso se dá, e também o motivo por que a Filosofia tem solvabilidade para satisfazer aié necessidades de luxo,
não pode permanecer no terreno unilateral que muitos dese enquanto a maior parte da população não tem solvabilidade
jam dar-lhe. suficiente para satisfazer as necessidades fundamentais.
Se tratamos agora das necessidades, devemos ressaltar É essencial do capitalismo que a satisfação das neces
factos importantes, como a dissemelhança das necessidades sidades decorra da solvabilidade, a qual depende da renda,
fisiológicas, que se dá entre os povos do mundo, entre os
166 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
Um bem para passar de bem indirecto para directo ne mo um óleo de oliveira pode ser de melhor qualidade que
cessita um certo lapso de tempo. Para obter colheitas é outro inferior.
preciso plantar, esperar que amadureça. Enquanto isso, as
condições do mercado podem variar radicalmente. Portan Os bens sucedâneos podem ser directos ou indirectos.
to, há riscos económicos 'particulares. Entre os bens sucedâneos, podemos distinguir os pro-
ductos naturais e os sintéticos, hoje são importantes. No
Quando se trata de bens directos, a avaliação é imediata, século XIX, devido à concorrência, e ao aumento do consu
quando se trata de bens indirectos, é preciso o trabalho de mo, apoiado nas descobertas técnicas, foi possível realizar
previsão. É preciso calcular a quantidade e bens directos bens sintéticos.
no mercado para concluir exactamente sobre a avaliação dos
bens indirectos. Depois da l. a Grande Guerra, a necessidade dos Estados
em se bastarem, levaram-nos à autarquia, para garantir sua
Muitos chamam os bens indirectos de bens instrumen independência. Certos países, movidos pela necessidade de
tais. O vinho, para o comprador, é um bem indirecto não abastecerem-se a si próprios, estimularam a producção de
instrumental. Mas para o vinicultor é um bem instrumen bens sucedâneos, que substituíssem os de importação. Tal
tal. Há, portanto, uma diferença. Um bem pode ser ins facto é importante no estudo da economia moderna.
trumental ou não, segundo sua relação a uma pessoa ou a Bens complementários são aqueles que estão colocados
um grupo de pessoas. numa relação tal que devem ser empregados conjuntamente,
para que possam atingir o fim desejado pelo agente que os
A moeda, por exemplo, é um bem instrumental, porque
serve para trocar-se por bens ou serviços de qualquer es usa, por ex.: o café e o açúcar.
pécie. A complementariedade é uma regra quase geral, pois
são poucos os bens que, para serem consumidos, não exigem
São substituíveis os bens que podem ser recolocados por outros que os complementem. A complementariedade cria
outros que servem para satisfazer as mesmas necessidades. um risco económico, porque, durante a producção, os laços
Os bens fungíveis são os que podem ser empregados de complementariedade podem modificar-se. As causas po
indiretamente um pelo outro. Por exemplo, as notas mo dem ser de ordem técnica ou por modificações do gosto do
netárias. consumidor.
Bens sucedâneos podem ser substituídos por outros, por Assim a diminuição do consumo do café traz uma di
que tendem para a satisfação de necessidades análogas, não minuição do consumo do açúcar. Essas modificações estão
idênticas. Portanto, os bens sucedâneos podem ter graus sujeitas a graus, maiores ou menores.
de sucedaneidade, dependendo de caracteres objectivos e de
elementos subjectivos. Por ex.: a margarina, como suce
dâneo da manteiga. DA UTILIDADE
O capital está incluído no conjunto dos fenómenos eco Desta forma, nos balanços anuais, uma soma determi
nómicos e apresenta-se como resultado de um cálculo, de nada, julgada suficiente para que sejam reconstituídos os
uma comparação entre as satisfações presentes e as futuras: bens que se usam, é debitada sobre o producto de uma empre
consequentemente, na conveniência de sacrificar bens pre sa. Assim, o capital permanece constante, permanente, in
sentes, já adquiridos ou por adquirir, para devotar o traba variante, como o expressam muitos economistas.
lho à realização desse novo elemento, qule permitirá, no Essa constância é, entretanto, avaliável, porque se po
futuro, obter maior quantidade de bens ou de melhor qua demos prever exactamente a usura (de uso) de uma máquina,
lidade. não podemos prever com a mesma exactidão, as transforma
Já vimos que o preço está ligado ao carácter económico ções técnicas.
dos bens, isto é, à sua limitação ou raridade. Todos os bens Essa noção de capital está visceralmente ligada à de
limitados e raros têm um preço. No caso exposto anterior renda.
mente, para exemplificar a formação de um capital, vimos A renda é um conjunto de valores monetários que um
que era o homem obrigado a sacrificar bens poupados, ou indivíduo obtém do emprego de sua força de trabalho, e que
a sacrificar parte do seu trabalho, com sacrifício da satis pode ser empregada em bens de consumo, sem que seja atin
fação das suas necessidades ou a aplicar maior soma de tra gido o capital, se o indivíduo o tiver.
balho para obtenção dos utensílios que lhe eram necessários. No caso dessa noção de capital, que ora estudamos, a
É o capital um bem ou bens que sofreram alterações renda é um excedente de valores monetários.
mais ou menos profundas, com o fim de servir para o au É fácil ver-se que através dessa noção, o capital e a
mento quantitativo ou qualitativo de novos bens. amortização dependem da vontade do agente económico, que
Chamamos a atenção para este enunciado, pois o termo premido por diversas circunstâncias poderá reduzir, na prá
capital costuma tomar diversas acepções na vida corrente, tica, as amortizações.
que aumentam a confusão em torno de seu verdadeiro con 2) As noções técnicas.
ceito. Os economistas, que expõem tecnicamente a noção de
Assim, todo capital custa, é um bem limitado, raro. capital, argumentam com a divisão entre bens directos e in
directos. Os primeiros são os bens de consumo, os segundos
os de producção. Assim, na producção de um bem de in
CONCEITO E FORMA DO CAPITAL dústria extractiva, como um cereal, a semente, a terra, a
luz, as máquinas, que depois o transformam, são bens indi
Para estudar concretamente o capital, é necessário ex rectos.
por em primeiro lugar as opiniões, em geral abstractas apre Para combater essa doutrina, bastaria perguntar se
sentadas pelos economistas. poderíamos pôr na mesma classificação as propriedades fí
Vejamos as noções dominantes, segundo Perroux: sicas e químicas do solo, da água, da luz com as máquinas
e utensílios.
1) As noções contábeis.
Os economistas clássicos ingleses definem o capital co
Sob este ponto de vista, o capital é definido como o mo o conjunto de bens de producção já produzidos. São
conjunto de valores monetários, tornados constantes pela esses bens os que tendem a uma transformação material de
prática da amortização. outros bens e que têm a virtude de aumentar a propriedade
Numa indústria, as máquinas, os estabelecimentos, os desses bens em satisfazer as necessidades humanas.
utensílios, etc. são bens perecíveis, quer em sua materiali Assim, o conjunto dos bens produzidos é o resultado
dade (uma máquina se usa, um instrumento se gasta), quer de uma combinação de factores naturais e do trabalho.
em sua eficacidade económica (envelhecimento das máqui Dessa forma, excluem as propriedades naturais e gratuitas
nas em consequência de certos progressos técnicos). dos bens indirectos, evitando a noção que acima expusemos.
TRATADO DE ECONOMIA 177
176 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
Entendia Adam Smith por capital todo bem que permi
Por essa explicação são distinguidos um dom gratuito te obter renda. Dessa forma não distingue a noção técnica
e um esforço, o que já havíamos salientado, quando estuda de a noção jurídica.
mos os bens livres e os bens económicos. Dessa forma, a noção de capital, juridicamente conside
Contudo, é difícil distinguir o factor de o elemento na rada, é mais ampla que a de capital tecnicamente conside
tural. rado, porque, além de incluir os capitais técnicos, inclui
ainda os direitos reais, a terra, etc.
Imaginemos uma queda d'água. Pela intervenção hu
mana é transformada em força motriz. As propriedades A renda, para a noção jurídica, está coordenada com a
físicas e químicas da água formam o factor natural. Mas mesma noção. A renda é sem trabalho actual. E como se
o esforço humano a transformou. Como distinguir aqui o pode dar tal renda?
factor humano de o elemento natural? Pelo empréstimo, decorrendo dele um juro, pela in
versão (ou investimento) na empresa, para obtenção de
Não nos revela tal facto a preocupação abstractista dos
economistas em querer separar? Não é preferível com benefícios, comprando trabalho humano, etc.
preender concretamente o capital? 4) A inclusão do tempo na noção de capital e renda.
Irving Fischer, economista americano, faz as seguintes
Para solucionar as dificuldades surgidas, a escola aus observações:
tríaca de Bohm Bawerk concluiu que o capital técnico (lem-
bremo-nos que estamos estudando a noção técnica do capi a) que o capital não é um grupo de bens determina
tal) é o conjunto dos bens indirectos ou intermediários que, dos em relação a outros bens, mas o conjunto de todos os
através de rodeios productivos fecundos, e mediante uma di bens existentes num dado instante;
minuição de tempo, têm- a virtude de tornar mais productivo b) que a renda é o fluxo de serviços que decorrem
o trabalho humano. desse conjunto de bens durante um período de tempo.
Tomemos um homem que tem uma obra a executar. Quanto ao capital, nada de novo, propriamente, nos
Antes de fazê-la, prepara-se para construir instrumentos, conta Irving Fischer.
que tornarão mais fácil e eficiente o seu trabalho. Com Uma série de problemas surgem quanto ao capital, os
isto poupa tempo e aumenta a productividade do mesmo. quais serão melhor compreendidos, quando estudemos as
Tais análises permitiram à escola austríaca formular, em teorias do valor. Entre esses, poderíamos citar: como de
bora abstractamente, uma noção do capital tecnicamente correm serviços de certos bens? Por que certos bens têm
considerado. a propriedade de aumentar os serviços tirados pelo homem
de outros bens?
Vimos, assim, que o acto de producção é uma combi
nação de factores naturais, capital e trabalho, e o resultado Essas perguntas e essas dificuldades, que assaltam aos
é um producto. Uma fração desse producto global é impu economistas, decorrem de uma concepção meramente quan
tável a cada factor. Os três são necessários para a integra titativa do capital. Ao formar-se uma nova estructura, com
lidade do producto, mas se pode determinar (abstractamen uma nova forma, novo ser tem uma tensão (coerência) di
te, é lógico) uma fração do producto para tal ou qual factor. ferente, nova, que não é apenas uma soma das tensões das
partes componentes, mas especificamente diferente. Assim,
Até aqui ficamos na noção técnica do capital. Vejamos a tensão do corpo de um homem não é apenas uma soma das
agora as: tensões dos sistemas que o compõem. É diferente. Um
3) Noções jurídicas do capital. bem produzido, não é apenas o que é quantitativamente,
mas diferente. E quando posto em acção pode êle produzir
É o capital, sob o ângulo desta noção, um conjunto de outros, cuja estructura ou plano tem possibilidades novas
valores monetários, que, numa organização jurídica e so e muitas vezes diferentes ou maiores que as que compõem
cial determinada, oferece a particularidade de fornecer, a as suas partes.
quem o possui, uma renda sem trabalho actual (em acto).
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 179
178
Um bem pode, deste modo, permitir que aumentem os Concretamente, capital é o valor ou o conjunto de va
serviços tirados pelo homem de de outros bens. lores económicos indirectos, que permitem aumentar actual
As quatro noções que expusemos do capital dão apenas ou potencialmente a productividade do trabalho, ou criar a
aspectos abstraotos. São verdadeiras em suas afirmações, renda sem trabalho actual.
mas falsas quando negam as outras; isto é, quando querem
anular as afirmações das outras noções. Elas se completam, CAPITAIS FIXOS E CAPITAIS CIRCULANTES
sem, na realidade, se oporem. O conjunto dessas quatro no
ções nos permite formar uma noção mais concreta do ca
pital. Antes de dar os enunciados dessas duas espécies de ca
Úma rápida digressão será conveniente fazer. pitai, façamos um exemplo. Um criador tem muitas cabe
ças de gado, algumas êle destina para os trabalhos de cam
Quando o primeiro homem percebeu que, com o auxílio po e para o serviço de agricultura, parte leva para o mer
de certos objectos, podia aumentar sua productividade, criou cado para vender.
êle o capital. Mas, nesse mesmo instante, criou êle uma
série de possibilidades novas, porque já no primeiro ins Para Adam Smith, o primeiro gado é capital fixo, e o
trumento de trabalho estava, em potência, todo o desenvol que é vendido é capital circulante.
vimento que conhecemos no homem moderno. Considere- Essa interpretação de Smith é combatida por muitos
-se este facto. O capital é também suas possibilidades, e motivos.
permite êle que se actualizem possibilidades de bens que, 1) é uma concepção fluí dica e imprecisa de capital,
sem êle, não poderiam actualizar-se. Por isso é que certos pois ora parece querer referir-se a valores monetários, ora
bens têm a propriedade de aumentar os serviços que o ho a bens em sua realidade material.
mem tira ou pode tirar de outros. 2) Os factos desmentiram as afirmações de Adam
f * *
Smith. Os capitais chamados fixos, como os estabelecimen
Examinemos sucintamente a noção geral de capital em tos, as máquinas, tomaram uma importância preponderante.
face dos diferentes sistemas económicos. Além disso, a classificação entre capital fixo e capital cir
Em todos os sistemas económicos, que já estudamos, culante em Adam Smith, gera mal-entendidos.
vê-se que o capital, em seu sentido técnico, está presente.
Adam Smith fundava-se no facto de permanecer o bem
Numa economia fechada, os capitais técnicos são pre no património, e tínhamos um capital fixo, ou de sair do
sentes, embora o capital jurídico não tenha tanta importân património, e tínhamos um capital circulante.
cia. Numa economia socwlista, o capital jurídico e elimi
nado para subsistir apenas o capital técnico. Mas é pre Modernamente', essa classificação é entendida assim.
ciso que essa economia socialista seja plenamente socialista. Capitais fixos são os que podem concorrer em diversos actos
No caso soviético, há rendas sem trabalho actual, como de producção sem se transformarem materialmente. Exs.:
bónus, empréstimos, juros, etc. as máquinas, as instalações. Capitais circulantes são os
que se destroem ou se perdem no acto de producção em que
A polémica entre socialistas e liberais pode ser agora intervêm. Por exemplo: as matérias primas, as sementes,
bem compreendida. Quando os socialistas propõem-se a etc.
suprimir o capital, querem suprimir o capital jurídico. E
quando os liberais afirmam que "o capital é eterno", fun- Dessa forma, não se visa mais a um deslocamento pa
dam-se no capital técnico para justificar o jurídico. trimonial, como no caso de Adam Smith, mas a uma trans
Assim ambos empregam a mesma palavra para signi formação ao mesmo tempo técnica e económica do bem.
ficar realidades diferentes. Ambos concordam na impos No entanto, essa classificação é relativa. Pois a moeda
sibilidade de suprimir o capital técnico, mas, em suas inten é, para o empresário, um capital circulante; mas, para o país,
ções, um ataca o que o outro quer defender. é um capital fixo.
180 MÃRIO FERREIRA DOS SANTOS
a um banco. Este o coloca, emprestando-o a particulares preços. Há, aqui, uma poupança forçada, diferente das
ou a pessoas públicas. Desta forma, a soma depositada re outras. É um processo de poupança, mas destinada para
torna ao mercado. fins diferentes, pois não beneficia quem a faz, mas a ter
ceiros. Nestes casos, o Estado não intervém directamente.
2) Na economia capitalista, a poupança se dá segun E se intervém, é para provocar uma alta de preços através
do as diversas estructuras dessa economia. da inflação, diminuindo o consumo. Esses aspectos serão
Consideremos as estructuras do capitalismo, o capita melhor estudados oportunamente, quando examinemos a in-
lismo atómico e liberal, o capitalismo das grandes unida flacção e a deflacção.
des e o monopólio capitalista de Estado. Num regime de monopólio capitalista de Estado, como
No capitalismo atómico, liberal, de pequenas unidades,. o que se verifica na Rússia e que tentou na Inglaterra o
a poupança apresenta-se como uma poupança caracteristi trabalhismo, em que o Estado é o capitalista e o compra
camente individual e livre. Essas somas obtidas são con dor de trabalho humano, este estabelece, autoritariamente,
fiadas a institutos bancários, numerosos e de pequenas di as formas de poupança, como se verificou na Alemanha hi
mensões. tlerista. O Estado representa a sociedade e muitos socia
listas só compreendem socialismo desse modo. Na Rússia,
No capitalismo das grandes unidades e do monopólio, essa poupança se dá através dos empréstimos públicos avul
que é o actual capitalismo, os institutos de crédito são con tados, em que a população é chamada a contribuir com suas
centrados, os institutos bancários aumentam. Esses insti sobras ou com a reducção do seu consumo, para que o Es
tutos não estão mais ao sabor dos clientes, têm poder sufi tado possa empregá-las na acquisição de máquinas, cons-
ciente para imporem-se sobre eles. trucção de novas fábricas, aumento da producção, etc.
Nesse período, temos formas de poupança forçada, das Num regime colectivista, de socialismo integralmente
espécies mais variadas, por ex., quanto às sociedades anó planificado, a poupança é forçada, autorizada pelo Estado
nimas ou sociedades por acções, em que as reservas, cons ou pelas comunidades organizadas para benefício colectivo.
tituídas cada ano, tomam o destino decidido pela maioria da Quando individual, foge à significação do socialismo, per
assembleia dos accionistas. Uma minoria, que desejasse mitida apenas como reminiscência de sistemas anteriores
aumento de dividendo, teria de ceder à maioria, porque, na (capitalista, e t c ) .
regime de capitalismo, a maioria prevalece sobre a mino Essa poupança pode ligar-se a dois móveis. Constituir
ria, à qual se submete aquela. Neste caso, essa minoria se uma provisão de bens para serem ulteriormente consumidos
veria forçada a uma poupança. Por outro lado o Estado, ou para obter bens indirectos ou instrumentos, obtidos de
com seu grande poder autoritário crescente, estabelece, co outras colectividades. Neste caso, a poupança transforma-
mo se fêz na Alemanha hitlerista e na Itália fascista, que os -se em capital, como já vimos.
dividendos das sociedades não possam ser superiores a 6%
para a distribuição, e o restante deve ser aplicado em tí Afirmava Stuart Mill, em seus princípios, que "o capi
tulos públicos, etc. tal deriva da poupança". Realmente tal se dá, e podemos
verificá-lo em todas as economias.
Alguns autores americanos e alemães sugerem uma ou
tra forma de poupança forçada, consistente numa alta de Na economia primitiva, o caçador, quando obtinha ali
preços. Os que têm rendas fixas, que formam a grande mentos suficientes para manter-se por mais dias, tinha
parte da sociedade, salariados de toda espécie, etc., vêem- tempo para construir melhores armas. Dessa forma, o
-se, da noite para o dia, privados de um consumo actual ou consumo não era mais improductivo, mas productivo de
virtual. Se o que ganham é suficiente apenas para manter bens indirectos, que aumentavam a productividade do esfor
as necessidades, vêem-se forçados a restringir o consumo. ço humano. Numa economia individual, primitiva, o capi
Se há sobras, essas são diminuídas pelo encarecimento dos tal nasce da poupança.
186 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
ANÁLISE DO TRABALHO
na vida. O esforço, no início, tem um carácter tónico, he Interessaram-se os cientistas em estudar o organismo
donista crescente, até atingir um maximum (variável qua humano em seu funcionamento no trabalho, e muito ainda
se sempre), e alcançar aí um patamar (maior ou menor), se pode esperar desses estudos quanto à melhor utilização
e conhecer, posteriormente, um decréscimo hedonístico, e do esforço humano sem desperdícios.
uma marcha para o desprazer crescente. Há, assim, varia
ção no prazer. Chaveau estabeleceu três leis, completada por uma
quarta:
1) o dispêndio de energia é proporcional à sua dura
PRODUCTIVIDADE DO TRABALHO ção, ao esforço de contracção dos músculos, e ao grau de
seu encurtamento.
A productiv idade do trabalho consiste na sua capaci 2) O dispêndio de energia diminui à medida que a ve
dade em tornar os bens aptos ou mais aptos à satisfação locidade de contracção aumenta.
das necessidades; isto é, criar utilidades.
Seu rendimento físico ou material consiste na quanti 3) Existe um esforço e uma fadiga óptima para rea
dade de bens modificados durante certa unidade de tempo lizar o maximum, de trabalho com a menor fadiga.
(um sapateiro confecciona tantos sapatos em tantas horas 4) O músculo retorna mais depressa ao seu estado de
de serviço). repouso, quanto mais rápido fôr o seu trabalho.
O rendimento utilitário do trabalho consiste na soma
de utilidades que produz o trabalho em um determinado O rendimento do trabalho está em estreita relação com
producto. a sua duração. Essa proposição, embora nos pareça um
lugar comum, foi por muito tempo contestada pelos econo
O rendimento material é técnico, e o de utilidade é mistas. No início do capitalismo, na fase paleotécnica, em
económico. sua primeira fase, julgou-se que se obteria um aumento do
Vemos, assim, que um rendimento é diferente do outro. rendimento técnico e em utilidade, desde que se aumentas
Um é quantitativo; o outro, qualitativo. se a duração do trabalho.
Certas obras podem ter um rendimento técnico, sem Hoje, graças aos estudos feitos, compreende-se que o
rendimento económico. A perfuração de um poço de uma trabalho tem seus graus crescentes e decrescentes, e o seu
mina sem resultado, em que o minério não foi encontrado, rendimento médio pode ser estudado e determinado com
é um exemplo. bastante rigor. O estudo, que se refere ao trabalho sob
Numa economia monetária e de mercado, há um ren esses aspectos, pertence mais à Tecnologia.
dimento em preço do trabalho. Êle consiste na quantidade
de bens fisicamente transformada por êle, multiplicada pelo
preço unitário do bem, no mercado. Os dois primeiros ren
dimentos são encontráveis em todos os sistemas económicos. É interessante, no entanto, estudarmos os juízos de
O último (o de preço) depende do mercado; por conseguin
te, do sistema capitalista. valor elaborados em relação ao trabalho. Foi sempre, em
todas as culturas, e em todas as eras, o trabalho julgado
* * * pelos homens, segundo um princípio ético; isto é, quanto à
sua dignidade, ao seu valor.
Ê o organismo humano um proporcionador de força Esses juízos foram os mais divergentes. As funções,
motriz. Não tem a relativa continuidade de funcionamento até as necessárias, tiveram julgamentos diversos. Veja
de um motor mecânico. mos:
190 MÁRIO FERREIRA DOS S A N T O S
TRATADO DE ECONOMIA 191
Na Antiguidade ocidental (greco-ron^na,) ? 0 trabalho
era exercido por escravos e era a base material da cidade. Faremos a crítica dessas concepções quando estudemos
a producção.
Na Idade Média, o trabalho dos con\ er ciantes e o dos
banqueiros, embora julgados úteis, eram subestimados em Devemos considerar primeiramente se um trabalho é
relação aos trabalhos agrícolas e aos int6j ec tuais. No sis productivo, pouco importando a forma de actividade pela
tema capitalista, o trabalho manual, embora não o digam qual é obtida uma utilidade. O trabalho agrícola e o in
assim os burgueses, é subestimado por estes. E embora o dustrial são produetivos. E productivo é o trabalho comer
elogiem, tudo fazem para que seus filhos n a o sejam força cial. Aqui podem surgir, e têm surgido, contestações.
dos a fazê-lo, e tudo fazem para dar aos filhos profissões
chamadas liberais; ou seja, que os liberte d 0 salariado. Três aspectos podem ser estudados no trabalho do co
merciante :
Por sua parte, os proletários e t r a b a i h a ( j o r e s manuais
tudo fazem para dignificar e exaltar esse trabalho, elevan- 1) deslocação de bens no espaço;
do-o, dígnificando-o, deificando-o até. 2) conservação dos bens no tempo (estocagem) ;
Já vimos que, na Idade Média, com c>s benedictinos o 3) aproximação de bens na quantidade e na qualidade
trabalho foi deificado. No século XVIII, <)S fisiocratas ela desejadas pelo consumidor.
boraram a tese da productividade exclusive^ ^o factor terra.
Só esta dava um rendimento verdadeiro. Dessa forma a Essas três funções são essenciais, e se dão em todos os
sociedade era dividida, para eles, em duas classes: a classe sistemas económicos. Inclusive numa sociedade colectivis
produetiva, a dos proprietários da terra e o s que nela tra ta, tais funções são necessárias. Mas, numa sociedade co
balhavam, e as classes estéreis, os industr} a i s e comercian
tes. lectivista, podem e devem ser transformados os órgãos de
distribuição, embora não o sejam as funções propriamente.
O erro dos fisiocratas consiste na Co n f us ã 0 e ntre a Essas funções podem ser realizadas por órgãos cooperati
criação material de bens (o rendimento fís^o), e a criação1 vos, unindo produetores com consumidores, sem a necessi
ou aumento da, utilidade, a productividade. dade dos órgãos capitalistas.
No século XIX, com os saint-simonian og) s a o incluídos No capitalismo, os intermediários, que realizam tais
entre os produetores os grandes empresári os o s grandes funções, são:
banqueiros, os artesãos, os produetores a g i - l a s os traba
lhadores assalariados. São considerados n a 0 p'roductores a) numerosos;
(classe ociosa) os funcionários públicos e o g governantes.
Assim a ideia de productividade está ligac a a u m a trans. b) exigem um ganho como intermediários, excessivo
formação da matéria. quase sempre.
Tais intermediários são próprios do regime capitalis
Para os marxistas, a productividade repousa sobre o ta. Hoje, como estamos num regime de transição, o inter
trabalho, e é sobre êle que repousa o valor# p a r a eles os
produetores autênticos são os trabalhadores manuais ou in mediário encarecedor pode perfeitamente ser abolido, quan
telectuais. do encarecedor, pela aplicação das formas de cooperação,
que teremos oportunidade de estudar.
Posteriormente, por efeito das convenit n c j a s d a propa
ganda, os trabalhadores intelectuais independentes (profis * * *
sões liberais) foram postos de lado e subestimados e con
siderados como únicos produetores os tr£b amac [ores ma
nuais assalariados e os intelectuais assalar a ( j o s < Analisemos os caracteres do trabalho. O trabalho é
uma actividade. No regime de escravidão e no de servidão,
192 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 193
as forças de trabalho estavam à disposição do senhor ou O ser humano não era considerado, como ainda não o
dono, que determinava seu emprego e duração. é, porque ainda o espírito do capitalismo paleotécnico do
mina as consciências.
No capitalismo, o trabalhador passa a ser dono da sua
força de trabalho, juridicamente apenas. Êle podia ir ao Naquela época, no predomínio dessa técnica, o trabalho
mercado e vender ou alugar sua força de trabalho, sofren das mulheres e das crianças era explorado ao extremo.
do naturalmente as contingências variáveis do mercado. Lembremo-nos de Pitt, quando pronunciou tais pala
vras: "Se os salários são muito elevados, tomai as mulheres
Com os regimes autoritários, retorna o trabalho à dis e as crianças."
posição das autoridades, que dele dispõem. Tais factos
vemos: Homens, mulheres e crianças eram transformados em
escravos da necessidade; piores até, porque pouco importa
a) nos países coloniais, com o trabalho forçado das vam as condições de saúde física. Os castigos corporais
populações indígenas, sob a alegação de interesse público; eram admitidos, e não eram poucos os que tombavam mor
tos durante o trabalho e durante os castigos.
b) nos países capitalistas, por ex.: nos Estados Uni
dos, depois da primeira grande guerra, obrigando-se os ex- As torturas eram empregadas nas oficinas (suspensão
-combatentes ao trabalho para readquirirem a profissão ou de crianças pelas mãos). O homem não era um homem,
se readaptarem às profissões; aproveitamento dos "sem- mas apenas uma máquina, um motor. A legislação do tra
-trabalho" (chômeurs) em 1933 para obras públicas, evi balho foi obtida graças à luta feroz travada por esses su-
tando os males decorrentes de uma "chômage" prolongada, per-escravos, e custou muito sangue. Basta a leitura das
que torna difícil a readaptação. páginas da história das lutas sociais para aquilatar-se quan
to sangue e quanta lágrima foram necessárias para cons
Temos ainda outras diversas formas de trabalho for truir as grandes fortunas do mundo. A legislação favorá
çado para criminosos, delinquentes primários, etc. vel aos trabalhadores foi conseguida a despeito da resistên
cia dos empresários capitalistas.
No sistema capitalista, o trabalho é tratado como uma
mercadoria, como um bem, um serviço, dependente da Aliás, a história nos regista, como von Ihering já o
oferta e da procura. Dá-se, então a despersonalização e afirmava, que toda justiça foi sempre conquistada à força
desumanização do trabalho, contra a qual são criadas leis contra os que não queriam admiti-la.
protetoras ao trabalhador, através da chamada legislação
social. A remuneração do trabalhador, na paleotécnica, era
uma prova dessa desumanização do trabalho. Sem traba
Essa legislação não é um acto inerente ao capitalismo, lho, o trabalhador torna-se indigente. A assistência social,
mas um acto de defesa, uma reacção contra êle. organizada em seu benefício, procura corrigir, remediar, os
males e não resolvê-los.
Não decorre de uma lógica, de um nexo interno do ca
pitalismo, mas de defesa do trabalhador. O capitalista re O trabalho é pago ao preço mais baixo possível. E esse
nuncia- a certos "direitos" em benefício do trabalhador, for preço mais baixo é o suficiente para manter a vida ou per
çadamente, após lutas mais ou menos cruentas e demoradas, mitir que ela não se destrua imediatamente. Como não pa
e o faz para evitar renúncias maiores. Elas não decorrem, gar salário não seria possível, o capitalista da paleotécnica
repitamos, da constituição do sistema capitalista. paga-o na base mínima, na base em que o trabalhador es
colhe entre trabalhar para não morrer de fome e morrer
Analisemos: de fome ou adiar a morte. Esse limite é importante, por
Já vimos, no estudo da paleotécnica, que o trabalho era que êle revela o sentido do capitalismo paleotécnico, que é
apenas considerado como um objecto de mercado. uma exploração, uma especulação na baixa.
194 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 195
Daí a exploração desenfreada das crianças e das mu aumenta a dependência jurídica, com a criação do Es
lheres que podiam vender o trabalho a preço mais baixo e, tado como Patrão Único.
consequentemente, a organização técnica despersonalizante Se a sociedade fôr plenamente socialista, sua depen
do trabalho se desenvolve, porque permite que operários dência não será mais contractual, mas estatutária, segundo
menos competentes possam realizar uma função. A paleo- a comunidade a que pertença (sociedade anarquista) ;
técnica é sempre uma especulação sobre a baixa, inclusive
até na qualidade do trabalho. a dependência económica prossegue pelo salário. No
caso soviético, há o salariato, única renda do trabalhador.
Só nessa situação é que pode surgir a ideia do salário
mínimo, que é paralela ao predomínio da paleotécnica e de O artesão não é dependente nem técnica, nem jurídica,
influência paleotécnica, mesmo num período neotécnico. nem economicamente, salvo por contingência histórica, na
sua luta, sobretudo, contra as grandes empresas; não, po
rém, como decorrência lógica do sistema artesanal.
Que lições nos dá essa interactuação? Dá-nos que, muitíssimos. Entre outros exemplos, estavam o da fabri
para um problema de ordem económica, podemos ter solu cação de tecidos, cuja matéria prima, antes de tornar-se um
ções de ordem técnica ou de ordem puramente económica. bem de consumo, atravessa economias autónomas sucessivas.
A técnica é uma coordenação de instrumentos e de pro Aqui está um aspecto importante dos exemplos de Adam
cessos. Ela actua sobre o homem e sobre os bens. Quan Smith. É que ambos são diferentes. No primeiro caso, o
do um bem rareia e por isso encarece, a solução técnica (os dos alfinetes, os operários trabalham numa mesma oficina,
exemplos modernos dos sucedâneos na Alemanha, por exem isto é, indivíduos distintos concorrem para a obtenção de
plo) apresentam soluções. Em outros casos, a solução eco um mesmo producto, numa mesma empresa.
nómica resolve um problema técnico, quando há abundância No caso do tecido, são indivíduos isolados que trabalham
de um bem que necessita apenas ser explorado, etc. em empresas diferentes.
Compreenderemos muito melhor tudo isto ao estudar Vejamos como a escola histórica alemã precisa o con
mos agora a divisão do trabalho. teúdo dessas formas de divisão do trabalho:
A divisão do trabalho vem desde as mais primitivas a) Trabalho associado
formações humanas. Quando os primeiros homens produ
ziam, dividiam as funções espontaneamente dirigidos pela b) Trabalho dividido
necessidade. Um caçava, outro cuidava dos filhos, prepa
rava o alimento, etc. Há trabalho associado quando diversos indivíduos se
reúnem para realizar juntos o mesmo mister um dos outros.
Estudemos a divisão do trabalho no capitalismo, com-
parando-a com a dos outros sistemas. Apresenta duas modalidades:
É que a divisão do trabalho, no capitalismo, além de 1) Trabalho simplesmente associado, quando cada um
nos tocar mais de perto, apresenta características originais, efetua o mesmo mister sem ligação com seus vizinhos. Por
particularidades interessantes e, sobretudo, porque, da di ex.: colheita da uva.
visão do trabalho, fêz o capitalismo a organização do traba 2) Trabalho encadeado, quando os indivíduos que for
lho, obtendo rendimentos mais elevados e benefícios maiores. mam a mesma "equipe" estão submetidos ao mesmo ritmo.
Ex.: os remadores.
Quando nasceu a grande indústria na Inglaterra, sur
giram também, no século XVIII, os estudos sobre a divisão O trabalho dividido apresenta 6 modalidades:
do trabalho.
1) A formação de profissões elementares. Essas sur
Entre eles devemos salientar Adam Smith. No entan gem já na economia familiar ou de cidade (economia fecha
to, esses homens não foram propriamente historiadores da da). Nessa economia, já o trabalho é diferenciado, ou exe
divisão do trabalho, porque se interessaram pela divisão cutado sem escolha nem especialização, ora faz um, ora ou
como se dava então, nem tampouco foram teóricos, porque tro; ou, então, trabalho sumariamente dividido por idades
satisfazia-lhes apenas apresentar como se dava a divisão sem ou sexos, que são as primeiras divisões.
examinar o nexo que as ligava.
Na economia fechada, já se notam diferenciações das
Os exemplos de Adam Smith tornaram-se famosos, e grandes profissões. Segundo Homero, entre os gregos tí
vamos citar o da fabricação de alfinetes. Um homem, por nhamos já os trabalhadores da madeira, por sua vez cons
si só, não seria capaz de produzir um só alfinete no tempo trutores de barcos, carros, e t c ; o trabalhador de metais,
em que alguns operários especializados poderiam produzir fabricante de instrumentos, armas; os trabalhadores do cou-
200 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 201
ro, que preparavam peles, e t c ; os trabalhadores que davam que se assemelham, que se repetem, que são os processos de
forma ao barro, os moleiros, etc. transformações em fases sucessivas. Mas sucede que essa
subdivisão permite que se assinalem os caracteres específi
2) A subdivisão ou especialização das profissões. cos do capitalismo.
Os misteres fundamentais da economia fechada se frag Vejamos: quando o capitalismo atravessa sua fase de
mentam, se ramificam, se diferenciam, portanto.
crescimento, no Ocidente, já encontrara a divisão do traba
3) A criação de novas profissões. lho, os misteres.
Com a aparição de novos bens, as profissões se mul Mas, esses crescem à proporção que cresce o capitalis
tiplicam e se subdividem. Exs.: a invenção do fonógrafo, do mo. Essa divisão de misteres atinge em nossos dias a deze
cinema, do rádio. Essa subdivisão é logicamente igual à nas de milhares de especificações.
segunda, embora diferente historicamente.
A realização de um só producto exige dezenas de opera
4) O deslocamento do trabalho. ções distintas (uma camisa tem 39 operações, seg. Aftalion).
Podemos exemplificar com a confecção de roupas e a A divisão do trabalho actualmente pode ser classifica
descoberta da máquina de costura, que reduz o esforço, per
mite a divisão e acrescenta novos elementos como os rea da sob três ângulos:
lizadores de máquinas, permitindo que o trabalho se desloque. 1) do ângulo técnico, a divisão de base é entre uma
5) Seccionamento (formação por secções) da produção. divisão vertical e uma divisão horizontal. Na primeira, te
mos os estágios da fabricação aos processos de operações
Temos, por exemplo, uma construcção mecânica de má productivas. Na segunda, ela é complexa, segundo a natu
quinas, com o acrescentamento de indústrias de transforma reza do producto, segundo a qualidade e as diferenciações
ção, empresas de construcção mecânica, atravessando o pro- qualitativas (fios de diâmetros diferentes, por ex.: na con
ducto oficinas distintas e sucessivas. fecção de tecidos, segundo se destinem para homens ou mu
lheres).
6) Decomposição técnica do trabalho.
Quanto à execução do trabalho e quanto às suas moda
Verifica-se esta, quando, no interior de uma empresa, as lidades, o trabalho, que cabia a um operário, é feito por
modalidades concorrem para a fabricação de um mesmo pro- diversos.
ducto. As operações são confiadas a vários, em vez de serem
confiadas a um só agente económico. Esta modalidade se 2) Do ângulo técnico, uma empresa pode ter especia
assemelha à anterior. A diferença, porém, está em que a de lização vertical ou horizontal, e podemos distinguir a pri
composição técnica se faz no interior de uma mesma em meira, do ângulo técnico. Imaginemos uma empresa de car
presa. nes. Ela cria o gado, aproveita os couros, confecciona os
seus produtos. Mas, se para cada um dos estágios da pro-
Examinemos agora a divisão do trabalho no e em face ducção, corresponde uma empresa independente, não há in
do capitalismo. tegração. Isso nos demonstra que a divisão económica não
Apesar das críticas que se fazem à escola alemã, de coincide de forma alguma com a divisão técnica do tra
vemos, contudo, salientar os benefícios que ela fornece para balho.
a nítida compreensão da divisão do trabalho.
3) Do ângulo social, o agente humano é considerado
Quando estudamos o seccionamento do trabalho e a sua quanto ao estágio de fabricação ou quanto à espécie de tra
decomposição técnica, podemos encontrar aspectos comuns, balho.
202 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
b) entre o homem e a actividade profissional e as é, para os que exigiam além da formação profissional um
relações entre homem e homem para a execução do trabalho vigor físico além do normal.
(Hyacinthe Dubreuil).
Os operários, que produzissem menos que o normal,
Examinemos, primeiramente, o Taylorismo. receberiam menos.
A sistematização do trabalho já vem de épocas ante Desta forma se expulsaria o mau trabalhador.
riores ao capitalismo industrial.
Com o sistema Taylor, o operário perde toda iniciativa
Frederic Winslow Taylor (1856-1915) quis, pela apli e passa a ser apenas um mecanismo organizado no conjunto.
cação à actividade industrial do método científico, obter um
aumento do rendimento material, consequentemente da ren Não é possível dar ao Taylorismo um quadro completo,
tabilidade, com um aumento de ganho em moeda para o em porque tal matéria pertenceria, por seus aspectos, mais à
presário, do qual se beneficiaria o trabalhador pelo aumen Tecnologia que propriamente à Economia.
to do salário. Consistia o "sistema Taylor" na aplicação Por isso os aspectos tecnológicos quanto à organização,
dos conhecimentos científicos à indústria, aumentando a ren divisão das funções dirigentes e controladoras, a ordem de
da e os salários, desfazendo, assim, o antagonismo entre o fabricação, a contabilidade, o fichário, instructores, etc, dei
patronato e o proletariado. Verificou Taylor, como traba xam de ser examinados por ser matéria que ultrapassa os
lhador, que o trabalho, em todas as oficinas, não dava toda limites desta obra e que também, devido às grandes contri
renda máxima. A má vontade do trabalhador, o descuido, buições, é complexa e vária.
o pouco caso, tudo isso influía para que o trabalhador não
tirasse o maior rendimento da sua força de trabalho. Mas podemos salientar que teve o Taylorismo uma pro
pagação imensa, primeiro nos Estados Unidos, espalhanào-
Juntava a esses factores, a ignorância técnica, a má -se depois pelo mundo.
organização da produção, da ordem de fabricação, cujas in
terrupções eram contínuas. Os trabalhadores resistiram desde logo nos Estados Uni
dos ao taylorismo, obtendo até algumas leis a seu favor, no
O estudo dos movimentos do trabalhador levou-o a no Parlamento.
tar movimentos inúteis, mal aproveitados, esforço despendi
do sem proveito. Fundavam-se os operários em sua luta contra o Taylo
rismo em constatações de caráter científico, o que levou a
Depois de feito esse estudo, verificou o tempo em que muitas empresas em não empregá-lo, receosas de represá
tais movimentos se processam, comparando-os entre os diver lias dos trabalhadores.
sos trabalhadores, até atingir a uma base segura.
Hoje mesmo, só parcialmente é aplicado nas grandes
Completados esses estudos por outros, foi possível, nos empresas.
Estados Unidos primeiramente, aplicar ao trabalhador as
condições das máquinas, o trabalho mecanizou-se totalmente. Realmente se deve considerar que o Taylorismo havia
Verificou ainda Taylor que os salários eram pagos dentro trazido benefícios quanto ao aspecto quantitativo em geral.
de uma média pouco variável. Era necessário atrair para Quadruplicara o rendimento de muitas funções. Não é, po
as oficinas os melhores, e para tanto era necessário criar rém, apenas esse aspecto que se deve considerar. O homem
o salário diferencial, que permitisse obter do operário o é o mais importante, porque nunca se deve esquecer que a
rendimento máximo. Esse suprimento deveria ser de 30% Economia é feita para o homem e não o homem para a Eco
para os trabalhos fáceis e de 60% para os mais difíceis, e nomia. Por outro lado, o taylorismo malogrou em muitas
que exigissem formação profissional ou vigor físico além do ocasiões e, sobretudo, serviu para esgotar a capacidade cria
normal. E de 100% para os demasiadamente difíceis, isto dora do operariado, torná-lo mecânico cada vez mais, tirar-
206 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 207
-lhe o espírito de iniciativa e de criação. Taylor dizia que agente humano às condições e aos meios de trabalho; con
um operário em muitas funções, deve "assemelhar-se inte centração das empresas e a criação de laços entre elas, so
lectualmente a um boi" e "trabalhar com os companheiros, bretudo com as que anteriormente eram concorrentes, e que
ombro a ombro, ajudados, guiados pelos instrumentos." se tornam, depois, cooperantes.
O Taylorismo trouxe uma superexcitação dos trabalha A racionalização do trabalho não encontrou resistên
dores, uma fadiga extrema e o esgotamento. Temos o Tay cias sérias da parte do trabalhador, que nela colaborou até,
lorismo em sua forma soviética no movimento "stakhano- por encontrar muitas soluções que lhe eram benéficas.
vista", na Rússia, cujos salários são diferenciais, e é tam
bém uma superexcitação da capacidade productiva do tra
balhador, levando-o ao esgotamento. A HUMANIZAÇÃO DO TRABALHO
menta a que o liga ao Estado: em suma, êle sai de um pa Pensa Dubreuil que é possível organizar uma autonomia
ternalismo para outro maior). técnica e contábil das oficinas, como já se fêz na Creusot,
em França.
As observações de Dubreuil, como de muitos outros,
vieram comprovar as teses já expostas por Kropotkin. O Cada serviço compra dos outros as matérias e máquinas
trabalho de jnaior rendimento é o trabalho mais livre. O de que necessita, e vende os productos que fabrica. Pensa
trabalho servil foi sempre pouco fecundo, como o é o traba Dubreuil, assim, eliminar o salário. Grupos de trabalhado
lho salariado. Os que, em nossas sociedades, "fazem o má res livres contractam sua producção com a direcção, perma
ximo de sua actividade, dão o seu máximo, são os que tra necendo senhores da nomeação de seus chefes se necessá
balham sem o peso de qualquer constrangimento: o campo rios, e da repartição do producto total obtido. Dubreuil ci
nês no campo, o sábio ou o artista em seu laboratório ou ta várias experiências já efectuadas, como contractos de
oficina." comandita para a composição em tipografias, contractos en
tre empregados e empregadores, etc. Desta forma, prevê
As observações feitas até entre nós revelaram a capa a libertação de três dependências do trabalho no capitalismo:
cidade criadora dos nossos trabalhadores quando livres, mas a dependência técnica, a dependência jurídica e a dependên
quando têm com consciência ética dessa liberdade. cia económica. A primeira se dá pelos contractos, a se
gunda é substituída por uma relação comercial entre o pro
Tais opiniões encontram bases psicológicas para justi prietário dos meios de producção e dos grupos de operários
ficá-las. livres; a terceira, singularmente reduzida, porque se dá, em
Eesumamo-las : vez de um salário miserável, uma repartição livre. Dessa
forma, seria transformada a usina industrial capitalista
1) O trabalhador não assalariado, mas organizado sob num centro de colaboração.
a forma de cooperação, é um productor cuja remuneração não
é exclusivamente fixa. Pesa sobre ela um "risco", mas tem Que resultaria daí? O factor humano seria utilizado
uma "margem de esperança". para sua plena iniciativa, sob sua inteira responsabilidade
e liberdade, animando a vida autónoma dos trabalhadores,
Pode o trabalhador melhorá-la, aumentá-la. Ela é um os quais ficariam associados às transformações da Técnica
prolongamento da sua personalidade. e do maquinismo, sem a necessidade de ressentimentos nem
de resistências.
2) O trabalho é uma actualização ão homem quando
êle é livre, porque este se afirma. Não é um instrumento A disciplina seria aceita, porque lhes seria útil, além
de ganho apenas, mas uma realização da personalidade. de poderem por si mesmos escolherem os melhores para
Dubreuil não foi um homem de gabinete, mas um operário guiá-los no trabalho.
que viveu entre operários e estudou sua capacidade, seus an
seios, sua psicologia e as conclusões que tirou são comprova Desta forma, a oficina seria uma escola para a vida
das por outros estudiosos, que não esquecem nunca que a social, uma actividade plenamente humana, sob a base da
Economia foi feita para o homem e não o homem para a responsabilidade e da solidariedade. Esse plano de humani
Economia. zação do trabalho, libertàriamente organizado, poderia ser
aplicado em qualquer sistema económico, salvo ao que dese
Julgam muitos que a libertação do operário do salário, jasse fundar-se sobre um autoritarismo absoluto, como é o
isto é, do comprador do seu trabalho, só será obtida, pelo caso do socialismo autoritário (marxista, hitlerista, e t c ) .
artesanato. Tal não se poderia dar, pois o artesão, no mer
cado de trabalho, não poderia competir com as grandes em Mas, mesmo numa organização de Estado socialista pla
presas e suas unidades. nificado, em que se respeitasse o trabalhador, a disciplina
210 MA~RIO FERREIRA DOS SANTOS
elevadas da neotécnica e da biotécnica, cujos ensaios já fo nas aos trabalhadores com o decorrer do tempo, mas, sobre
ram feitos. tudo, ao patronato, que aumentou de poder económico e po
Daí o resultado da chômage (desemprego). lítico. A máquina permitiu o grande desenvolvimento da
agricultura que, sobretudo nos Estados Unidos, penetrou
A reintegração dos trabalhadores se processa então: num período industrializado, que permite a producçao extra
1) pelo desenvolvimento da empresa, seu crescimento; ordinariamente aumentada sem os prejuízos que decorriam
da paleotécnica.
2) pela propagação do aumento. Dá-se uma propa
gação técnica e económica no capitalismo. Assim, quando * * *
uma empresa é deficitária, ela diminui suas compras, e di
funde o deficit às outras que lhe são subsidiárias. Quando Durante o progresso do maquinismo, verificado no pe
aumenta seu rendimento, compra mais às empresas que lhe ríodo da paleotécnica, a luta contra a máquina levou a afir
são superiores e aumenta o escoamento. Se eleva os salá mar a conveniência de um retorno para benefício das po
rios, aumenta o poder de compra dos operários, criando no pulações sacrificadas. Retorno esse que deveria ser orien
vos escoamentos, que se difundem a outras, e sucessiva tado para a formação de pequenas oficinas de artesãos, co
mente. (Estamos considerando aqui um aumento teal de mo vemos na obra de Sombart.
salários e oportunamente veremos porque chamamos a aten Sobre este ponto, muito teremos ainda que dizer, por
ção para este aspecto). que o artesanato não pode ser repelido simplistamente. sem
3) Pela aparição de novos misteres, profissões novas. ser examinado com o máximo cuidado, e veremos que Som
bart tinha muitos pontos que merecem a nossa mais com
pleta atenção, pois atravessamos uma época de transição
O desenvolvimento do maquinismo trouxe todos esses da grande concentração industrial para a descentralização,
problemas de desemprego que já vimos acima, provocando como já o sentia Kropotkin no século passado, a qual será
revoltas de trabalhadores, ataques às máquinas, sabotagem, acentuada e permitida pelo desenvolvimento da energia nu
destruição, etc. A máquina aumentava o número de ne clear e outras energias, em vésperas de serem descobertas
cessitados, esta era a observação que se fazia. Realmente, e utilizadas.
já vimos que, na paleotécnica, o maquinismo trouxe males Os prejuízos, que trouxe o maquinismo, levaram a mui
imediatos aos trabalhadores, embora, com o tempo, se cor tos a pensar em suster a marcha do desenvolvimento técnico,
rigissem esses males, sem, no entanto, resolvê-los. como foi preconizado por Caillaux, Duhamel, etc. Até leis
Entretanto, a máquina devia servir ao homem e acabará que interditam o emprego de máquinas foram elaboradas,
por servir-lhe, porque essa será a grande conquista dos que como se deu nos Estados Unidos e na Alemanha hitlerista,
se interessam verdadeiramente pela solução racional e jus por considerarem que aquelas, em certo grau, geram dese
ta dos problemas humanos. quilíbrios económicos e a mecanização da vida. Essa me
canização da vida, que é o grande problema da actualidade,
Permitiu o maquinismo que houvesse um desenvolvi não pode ser resolvida por proibições, mas por novas for
mento extraordinário do rendimento material, que se abris mas de cooperação e de libertação do trabalhador. Condi
sem novas indústrias, e que se actualizassem possibilidades ções de trabalho, tais como o trabalho 'parcelado, em oposi
até então em estado apenas latente. ção ao trabalho sintetizado do artesão, afirmam muitos, ti
Melhorou-se o padrão de vida dos trabalhadores, em ra ao trabalhador o gosto pelo trabalho, tornando-o insatis
bora criasse dependências para aqueles. Diminuíram-se as feito. Realmente, há certo trabalho parcelado que oferece
horas de trabalho, graças ao desenvolvimento da luta dos esse mal. Henri de Man, estudando o trabalho, concluiu que
trabalhadores, sem que se prejudicasse o "standing" das po quando o operário consegue atingir uma obra bela, sente a
pulações (padrão de vida). A máquina não beneficiou ape- satisfação do artesão. Não devemos nunca esquecer que o
216 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS TRATADO DE ECONOMIA 217
homem não é uma máquina, mas um ser que aprecia, valo Por esse estudo, além da especialização a que se devota, re
ra. O trabalho, sem valorizações estéticas, é desagradável, cebe o operário uma cultura geral, capaz de orientá-lo em
porque não oferece satisfações mais profundas ao trabalha novas experiências.
dor e transforma-o apenas num instrumento.
Entretanto, Gastef, do Instituto Central do Trabalho de
Por isso, o trabalho parcelado oferece tantos inconve Moscou, fêz uma crítica dos esforços realizados, declarando
nientes, que são agravados pelo trabalho repetido, pois não que, apesar de tudo, os operários continuavam dominados
havendo a variação, a constância da função acaba por secar pela mística da predestinação profissional, do fatalismo so
a capacidade imaginativa e criadora do homem. A repeti cial, próprio dos países capitalistas. Pensa Gastef que uma
ção rítmica, se permite que o homem pense e crie durante reconstrução socialista só se poderá dar através de uma in
sua realização, oferece, no entanto, graus de agradabilidade, tegral transformação do homem. "Devemos adoptar um
como já vimos. No entanto, ela suaviza o trabalho parce voluntarismo integral e não constatar o que é, mas concluir
lado e repetido. O trabalho mecânico, o emprego da força o que pode vir-a-ser."
da máquina, permitiu que melhorassem as condições do tra
balho. Temia Gastef a adaptação do homem à coisa, do homem
à técnica, sem respeito do próprio homem. Gastef conside
O estudo sobre as condições do trabalho deve prosse rou uma planificação integral, unindo ao mesmo tempo o sis
guir e prossegue levado a efeito por operários e cientistas, tema e o homem com o fim exclusivo de rendimento, o que
mas deve ser orientado sempre pelo que não cansamos de não passa da transposição no plano socialista da racionali
repetir: o homem deve ser considerado como hierarquica zação capitalista. Segundo os estudos de Fridman e de
mente superior à Economia. Rubínstein, a experiência russa, longe de representar uma
Muitos afirmam que a máquina é culpada da desrurali- socialização, tornou-se apenas uma planificação, mantendo
zação (abandono do campo). Realmente o é, mas em parte, o mercado e o preço que ela, de início, quisera excluir.
porque antes do capitalismo mecanizado já havia essa des-
ruralização, que foi por este acentuada. A descentraliza A concepção técnica dos marxistas não é nova como eles
ção da indústria permitirá a ruralização, e veremos quais julgam, mas apenas um conjunto heterogéneo da técnica
as maneiras concretas de realizá-la, sem desconsiderar as capitalista. "A técnica é uma forma de conhecimento acti
grandes experiências de descentralização realizadas nos Es vo", proclamam. Outro não era o pensamento de Descar
tados Unidos. tes, que afirmava que, conhecendo-se as propriedades das
coisas tão distintamente como conhecemos os diversos mis
Muitos afirmam que tal não se pode dar devido às exi teres dos nossos artesãos, poderemos tornar-nos como senho
gências de carácter económico. Aceitam, assim, a opinião res e possuidores da natureza.
marxista, porque se fundam num dos postulados do materia
lismo histórico: o da determinação económica e técnica do ho Não procuram os marxistas verificar o que há de co
mem, que passa a ser coisa e não pessoa. Não se acuse, po mum entre o capitalismo e a planificação. Tudo o que sai
rém, o marxismo de ser culpado dessa interpretação exotéri de suas mãos julgam que é socialismo. Permanecem em
ca (pois há um marxismo exotérico e um esotérico, um para pé: o preço, expressão monetária da relação de troca, o
as massas, e outro para as camadas realmente cultas). Não preço como expressão da tensão entre os bens e as necessi
é apenas a técnica que determina tal coisa, mas sim as rela dades, e a técnica, que não diverge da empregada nos países
ções de producção e de troca, e nessas relações, para se ser capitalistas. A concepção paleotécriica da indústria pre
dialéctico, não se pode deixar de considerar os complexos domina na organização da indústria russa, megatérica, quan
aspectos sociais e culturais. Para evitar os malefícios do titativa. E se hoje se dá alguma descentralização é apenas
trabalho parcelado, fragmentário, organizaram os russos a motivada pelo perigo dos bombardeios aéreos, e não para
educação politécnica do operário, de fecundas consequências. resolver os malefícios da concentração industrial.
218 MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS
É a propriedade considerada economicamente como o A lei sanciona o poder de disposição do agente sobre o
poder de disposição económica de um bem por parte de um bem. Quando chegamos a este ponto, temos então a pro
agente económico. priedade privada.
Mas a lei vai além da economia. O direito supera o
Essa disposição toma diversas formas: conceito económico de propriedade, porque, no direito, há
É consumo, quando o agente o emprega para satisfação juízos de valor.
de uma de suas necessidades, sem intermediários. É uso, Ela liga a propriedade a algo que transcende a base
quando aplicado para a satisfação de suas necessidades, sem económica, dá-lhe valores tais como "prolongamento da pes
que êle desapareça logo ao primeiro emprego. É transfor soa ou do indivíduo", ligam-se à moral, às ideias, que lhe
mação ou modificação material, quando são transformados dão conteúdos novos, sagrados, fortalecendo, com isso, o
bens indirectos em bens directos ou bens de consumo ou poder económico sobre o bem.
chamados também bens de primeiro grau. É emprego, quan
do se aproveita do bem para com êle obter outros por meio
de troca.
Do ponto de vista económico, a propriedade se encontra
em todo sistema económico, quer na economia fechada, quer
no artesanato, quer na capitalista, quer na socialista, de toda
espécie.
Não há funcionamento económico sem o poder de dispo
sição dos bens, isto é, sem a propriedade económica. Não
há actividade económica sem atribuição de bens a sujeitos
económicos.
São essas razões que levam a alguns socialistas moder
nos a falar em socialização dos meios de producção e na ma
nutenção da propriedade dos bens de consumo. Os católi
cos sociais defendem a propriedade pessoal, mas negam (al
guns ao menos) a propriedade capitalista como existe actual
mente.
Precisamos agora estudar a diferença entre a proprie
dade económica e a propriedade capitalista.
Como instituição social, a propriedade concreta não é
apenas um poder de disposição. Incluem-se nela ainda o
conjunto da esquemática e das condições culturais superve
nientes.
Podemos distinguir o conteúdo psicológico de o conteú
do jurídico na propriedade. O diretor de uma fábrica, psi
cologicamente, considera-a dele. Fala em "minha fábrica",
como também o faz o operário, o camponês, que sentem co
mo "seus" os locais de trabalho.
TRATADO DE ECONOMIA 225