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EXTRA CLASSE Dezembro/2013 EXTRA CLASSE Dezembro/2013

ENTREVISTA José Martins Filho


Por César Fraga de riqueza. É de princípio. De valorização da ma- que já o fizeram. Creches nos locais de trabalho gia, as variáveis são inúmeras e não se pode dizer
cesar.fraga@sinprors.org.br ternidade, da paternidade e do compromisso com o para as mães (a CLT estabelece que isso é preciso, que uma criança que sofreu abandono vai ser mais

J
outro. Crianças são terceirizadas nas favelas, onde mas os próprios sindicatos e as mães aceitam uma sofrida que outra que sofreu menos ou mais. Isso
osé Martins Filho é médico pediatra, lecionou por 35 anos na são entregues a vizinhos, parentes, ou nas mansões pequena e irrisória quantia em dinheiro em subs- depende de cada criança. Do resto da família, dos
Unicamp, onde atua como professor convidado da Pós-graduação mais ricas, onde quem as cuida são as babás. Claro tituição à necessidade de ter creches próximas a pais priorizarem as atividades infantis, das crian-
em Saúde da Criança e do Adolescente e pesquisador do Centro que, dependendo da classe, variam os motivos. Às elas...). Quando isso é cumprido, as mães faltam ças se sentirem amadas. Porque eu sempre digo:
de Investigação em Pediatria, do qual foi fundador e primeiro vezes por questão de sobrevivência, de desemprego, menos ao trabalho, as crianças crescem mais feli- não basta amar uma criança. Ela precisa saber que
presidente. Ex-diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, foi de falta de licença-maternidade, outras vezes por zes, e têm menos doenças.  é amada. No meu livro você encontra um capítulo
também vice-reitor e reitor (1994-1998). Pró-reitor acadêmico da Uni- compromissos sociais e até por futilidades. Mães chamado A Gênese da violência na primeira infância.
versidade Cruzeiro do Sul por oito anos, atualmente é assessor acadêmico
do reitor da Unifeo (SP). Possui vasta produção científica, sendo autor de
livros sobre pediatria e educação universitária. É autor de Lidando com
que realmente não queriam ter esse compromisso e
delegam os cuidados. Não amamentam etc. ‘‘As crianças precisam Crianças rejeitadas, não amadas, sem carinho, têm
tendência a desenvolver claramente muito mais

Crianças, conversando com os pais, obra vencedora do Prêmio Jabuti EC – Como alertar para o problema sem jo-
brincar, ter tempo para ficar comportamentos antissociais e agressividade no
futuro. Os ingleses mostram em trabalhos de se-
em 1996; e Filhos, amor e cuidados: reflexões de um pediatra; além de
um dos primeiros livros sobre amamentação: Como e por que amamentar
gar a “culpa” sobre mães, pais e familiares, se é com seus pais, que precisam guimento de décadas mais dificuldades escolares,
que é possível? mais problemas profissionais, mais desemprego,
(1986). Possui mais de uma centena de trabalhos publicados dentro e fora Martins Filho – Essa questão da culpa per- saber priorizar essa atitude e mesmo mais problemas conjugais. Na verdade,
do país. Lançou recentemente A criança terceirizada – os descaminhos
das relações familiares no mundo contemporâneo, já em sua 6ª edição
meia sempre todas as dezenas de entrevistas que de apoiar e ficar com seus quem não sente que é amado tem dificuldade de

filhos sempre que podem’’


já dei para jornais, tevês, revistas. O que eu penso amar. Há coisas interessantes. Crianças colocadas
e segunda reimpressão, um ano depois de seu lançamento. O livro integra é que a sociedade humana, ao se defrontar com em creches durante todo o dia, segundo alguns
uma série sobre o tema que inicia em Quem cuidará das crianças? e problemas críticos existenciais, sempre tenta ver se trabalhos, podem até ter dificuldades de crescer

Foto: Valter Campanato/ABr


Cuidado, afeto e limites - uma combinação possível, esse úl- pode se eximir de culpabilidade ou de possíveis res- adequadamente. Afeto nutre.
timo escrito em co-autoria com Ivan Capellato. Martins Filho ponsabilidades pessoais pelo que está acontecendo.

Foto: Arquivo pessoal


concedeu entrevista exclusiva ao Extra Classe via e-mail, Entretanto, o que sinto também, como professor EC – Como desatar esse nó para conciliar a
no final de novembro. universitário há quase 50 anos, é que tentamos não vida profissional e familiar diante do crescente
sentir culpa por eleger tanta gente incompetente e consumo do tempo pelo trabalho, principal-
corrupta para nos governar ou decidir sobre nossas mente com as novas tecnologias, que levam os
leis, tentamos não sentir culpa quando vemos pes- profissionais para muito além das suas jornadas?
soas embriagadas dirigindo e matando inocentes Martins Filho – O primeiro passo é saber
ou quando percebemos claramente a degradação que o problema é sério e existe. As crianças pre-

Os
do meio ambiente. Não sentimos culpa por fumar, cisam brincar, ter tempo para ficar com seus pais,
o que traz sérias consequências para a saúde. É que precisam saber priorizar essa atitude de apoiar
uma questão de consciência do que é prioritário e EC – Que reflexos essa terceirização, a au- e ficar com seus filhos sempre que podem. Muitas
do que queríamos quando decidimos ter um filho. sência dos pais no dia a dia, provocam na criança pessoas enchem as crianças de brinquedos, mas

filhos
Nas vezes em que a gravidez foi inesperada, claro e no futuro jovem-adulto? não brincam com as crianças. Há, hoje, um mo-
que é mais difícil ainda de resolver o problema. Martins Filho – Existem centenas de tra- vimento, nascido na Inglaterra, que está chegando
É preciso lutar pelo direito da mulher poder ficar balhos, em todo o mundo, que analisam esses as- ao Brasil do “Slow Parents”, ou seja, dos pais para-
com seu filho. Licença-maternidade igual a países pectos. Como sempre, em medicina e em biolo- rem de ser apressados, de brincarem com as crian-
EC

terceirizados
EC – Como enfrentar o fenômeno da tercei- na infância e na vida adulta. E o pior é que não cuidar imediata, do que a atenção com o ser que coloca-
rização das crianças? bem de um filho, não educá-lo (e isso dá trabalho), ram no mundo. Um mercado de trabalho terrível,
José Martins Filho – É preciso ver qual é o pro- não participar da vida dele, é também não se preocu- que não valoriza a maternidade, pelo contrário, não
blema, se tem solução, e ter a coragem de enfrentá-lo par com a vida futura. Com a humanidade, e com a permite que a mulher possa exercer plenamente a
abertamente, sem subterfúgios. Quando faço confe- família, que é, sem dúvida, a célula fundamental dessa maternidade, amamentando exclusivamente até
rências ou palestras por todo o Brasil, vejo gente que nossa sociedade que vive uma crise muito grave. seis meses e ficando perto de seu filho, pelo menos
se entusiasma e aplaude e gente que tenta se defender. nos primeiros dois anos de vida, como outras so-
Dizem: “Ah, mas eu preciso ganhar dinheiro... tenho EC – Como o senhor sintetizaria a terceiri- ciedades permitem e dão até dois anos ou às vezes
que ter celular, automóvel, bons colégios, boa comida zação crescente das crianças pelas famílias? mais de licença-maternidade. Acho que quem não
etc. etc. E por isso não dá para fazer isso tudo que Martins Filho – Acontece por vários moti- quer se submeter ao cuidado das crianças nesse
vocês falam a respeito da terceirização”. Infelizmente, vos: por uma família que está sendo desconstruída, período, que acha isso chato, ruim, desagradável,
sou obrigado, muitas vezes, a dizer que ter um filho é como atestam vários pensadores e escritores, pelo penoso, deveria pensar muito antes de ter um filho.
uma das decisões mais sérias que se pode e se deve to- consumismo exagerado do mundo de hoje, por
mar, e que é melhor não ter um filho do que, tendo-o, uma visão muito pessoal e eu diria até um pouco EC – Em que classes sociais é mais comum
não poder acompanhá-lo, acariciá-lo, amamentá-lo, egoísta dos adultos que, como sempre na história e quais as razões?
enfim, cuidar dele, principalmente nos primeiros anos da humanidade, valorizam mais seu momento de Martins Filho – Infelizmente, a terceirização
de vida. Isso é fundamental para a saúde dessa criança vida, sua necessidade de obter prazer e satisfação existe em todas as classes sociais. O problema não é

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EXTRA CLASSE Dezembro/2013

ENTREVISTA
ças. De brincar de coisas antigas, jogos, futebol, que acontece hoje se deve ao abandono, essa falta se olham e se perguntam. “Ah, vá, você acha que
pular corda, mas não entregar os eletrônicos para de cuidado e presença familiar de pai e mãe, que eu nasci para ser babá, para ser vaca de leite e ficar
os filhos para que eles se divirtam sozinhos. Mas começou há algumas décadas. Muitos dos pais de com um bebê pendurado no seio”? É algo com-
isso é uma questão de conscientização. As pessoas hoje que terceirizam foram crianças sem vínculo, plexo. Certa vez, numa escola em que eu dava uma
querem ficar ricas para dar presentes para os filhos sem afeto e sem presença de pai e mãe, infeliz- conferência fui interrompido por uma mulher que
ou querem acompanhá-los em seu crescimento e mente. Formam um ciclo vicioso. Se não inter- me disse: “mas veja só, essa escola é péssima. Meu
desenvolvimento? rompermos isso agora, tudo tende a piorar. Não filho tem três anos e eles ainda não ensinaram a
lhe parece que a violência está crescendo sem con- usar os talheres para comer”. Veja, ela queria que
trole? Pois é, a terceirização também.  a escola fizesse o que ela deveria estar fazendo.
‘‘Crianças rejeitadas, não EC – Como o senhor classifica as diferenças
Limites, paciência, controle, alegria, respeito pelo
outro têm que ser ensinados pela família.
amadas, sem carinho, têm entre o papel do pai e da mãe?
Martins Filho – É para ser politicamente EC – Qual o papel da escola e dos professo-
tendência a desenvolver correto ou responder como pediatra estudioso res nesse contexto?
claramente muito do desenvolvimento infantil? O politicamente
correto é dizer que ambos são iguais e que pai e
Martins Filho – Professores e escola têm que
ensinar a ler, escrever,  fazer esportes, exercícios,
mais comportamentos mãe, desde o nascimento, têm que se revezar no socializar com outras crianças, respeitar o colegui-
cuidado com o filho. Como estudioso do desen- nha etc... É um absurdo culpar um professor ou
antissociais e agressividade volvimento infantil, digo que mãe é fundamental, uma escola pela violência estudantil ou por com-
no futuro’’ principalmente nos primeiros dois anos de vida
e fundamentalmente nos primeiros seis meses,
portamentos antissociais. Isso vem de casa. As
famílias não podem e não devem delegar para as
quando a amamentação exclusiva é fundamental escolas o preparo e o desenvolvimento psicossocial
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

para o desenvolvimento biopsicossocial da crian- e familiar das crianças. Isso é papel de pai e mãe.
ça. O pai não pode amamentar. A criança intraú- Às vezes, as coisas são muito mais graves, quando
tero ouviu os sons do corpo da mãe, da voz, ela as famílias estão totalmente rotas e a alienação pa-
quer continuar nesse colo enquanto puder. Cla- rental aparece.
ro que o pai pode ajudar a mãe a cuidar. Mas a
substituição da mãe é muito difícil, embora em EC – Existe uma crise da família moderna?
alguns casos raros, por morte e por falta de uma Que consequências culturais esse modelo gera?
avó, o pai substitui. Claro que à medida que o Martins Filho – Sim, há uma crise eviden-
bebê se transforma em pré-escolar e escolar o pai te na família moderna. Isso está sendo avaliado,
vai assumindo as funções. A sociedade atual pa- estudado e discutido em milhares de trabalhos
rece estar desconstruindo a família, o pai perdeu científicos. Há um desconhecimento total da res-
a autoridade, e a mãe tem muita dificuldade de ponsabilidade das pessoas em relação aos seus
dar carinho, amamentar. Até porque é explorada rebentos. Não sou moralista, mas sou obrigado a
e não tem o direito de poder ficar com o seu fi- dizer para muitas pessoas que me procuram que
lho. É realmente complexo. Quando você vê um as coisas têm que ser melhor discutidas. Hoje, se
casal que está feliz com a chegada de um bebê, casa sem pensar, às vezes, quase sem se conhecer
percebe que não se discute quem é quem. Am- o outro e também já se faz isso porque as pessoas
bos cumprem o papel que o filho deseja. Proteção, já vão pensando que casamento é algo passageiro
atenção, carinho e amamentação. Pai e mãe são e fácil de romper. Tudo bem se não há filhos por
EC – Na vida real é possível equacionar importantes e isso deve continuar para o resto da perto. Quando há, existe sempre um sofrimento.
o tempo nos aspectos quantitativos e qualita- vida. Hoje, entretanto, o que se vê são quase 50% Dificilmente você conversa com uma criança cujos
tivos no que se refere à atenção aos filhos? De dos casamentos desfeitos às vezes antes dos cinco pais estão separados, principalmente se há litígio
que forma? anos. Há uma preocupação dos adultos: “eu mere- grave como muitos que eu vejo todos os dias, em
Martins Filho – É uma questão de tomada ço ser feliz e quero ser independente; quero meu que ela não mostre sua tristeza e sinta certa culpa.
de consciência da importância da infância e do quinhão de alegria e prazer imediato, agora”! E Ela sempre imagina que tem a ver com a sepa-
que queremos para nossos filhos, nossa família e isso, infelizmente, com um filho para criar, nem ração dos pais. Ter filho é uma responsabilidade
nossa sociedade. Eu acho e digo isso, apesar de sempre é possível. E por aí vamos.  muito grande. É preciso pensar, muito, antes de se
ser criticado, que um dos maiores problemas da colocar alguém neste mundo.
violência urbana, ao lado das injustiças sociais, é EC – E a escola no meio disso tudo, de certa
o desamor e a falta total de conhecimento sobre
a importância do vínculo e do afeto. Se você fi-
forma, fica sobrecarregada com funções que es-
tão além da sua alçada? Quais seriam?
‘‘Limites, paciência, controle,
car atento aos crimes violentos, matança de crian- Martins Filho – Escola ensina. A família alegria, respeito pelo outro
ças,  latrocínios etc., vai perceber que os autores educa. É incrível como algumas pessoas pensam
sempre foram provavelmente seres desamados e que os filhos em tempo integral numa creche a têm que ser ensinados pela
abandonados desde a mais tenra infância. Em um
levantamento que fiz com alguns criminosos vio-
partir dos três ou quatro meses vão ser felizes. Esse
período é o pior período para uma criança sair do
família, que não deve delegar
lentos, muitos deles nunca chamaram ninguém de colo da mãe e ser desmamado, pois é uma fase em à escola o desenvolvimento
mãe, nunca foram amamentados ou acariciados, que as defesas imunológicas ainda não estão se de-
não foram amados. A solução é desenvolvimen- senvolvendo e tudo depende do colo, da proteção psicossocial e familiar
to emocional e educacional. As pessoas têm que e do leite da mãe. As pessoas não querem ouvir das crianças’’
ser preparadas para serem pais ou mães. Muito do isso. Quando falo para algumas plateias, as pessoas
EC
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