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João Cassiano e a adesão aristocrática ao monacato na Gália (século V)

Resumo
No início do século V, homens provenientes da aristocracia galo-romana
adotavam o monaquismo. O fenômeno ocorreu em meio a acontecimentos que
impactava negativamente na situação econômica e política de segmentos da elite local,
resultando na busca por alternativas viáveis de distinção e prestígio. A vida monástica
era percebida por esse grupo social como opção nesse cenário adverso.
Foi nesse contexto que João Cassiano escreveu sua obra destinada ao público
monástico. Tendo em vista a audiência que pretendia alcançar, condicionou sua
produção intelectual de maneira a justificar a legitimidade da adesão aristocrática ao
monaquismo, forma de vida de caráter ascético. O objetivo do presente artigo é analisar
a posição de João Cassiano em relação à participação de aristocratas no movimento
monástico na Gália de seu tempo.
Palavras-chave: João Cassiano, aristocracia, monaquismo.

John Cassian and the aristocratic accession to monasticism (Vth century)


Abstract
At the beginning of the 5th century, men from the Gallo-Roman aristocracy
adopted the monasticism. The phenomenon occurred in the middle of the events that
impacted negatively on the economic and political situation of segments of the local
elite, resulting in the search for feasible alternatives of distinction and prestige. The
monastic life was perceived by this social group as an option in this adverse scenario.
It was in this context that John Cassian wrote his work intended for the monastic
audience. In view of the audience intended, he prepared his intellectual production in
such a way as to justify the legitimacy of the aristocratic accession to monasticism, the
way of life of ascetic character. The objective of this article is to analyze John Cassian’s
position in relation to the participation of aristocrats in the monastic movement in the
Gaul of his time.
Palavras-chave: John Cassian, aristocracy, monasticism.

Ao escrever o seu monumental História do Declínio e Queda do Império


Romano, o historiador oitocentista Edward Gibbon identificava como principais
aderentes aos primeiros impulsos monásticos grupos socialmente desfavorecidos. Na
perspectiva adotada pelo estudioso, os desprivilegiados e despossuídos adotavam o
monacato impulsionados pelo fanatismo, pela superstição e pela preferência por uma
vida de obediência cega à pobreza e aos perigos do militarismo. 1 Tal hipótese foi
elaborada a partir do pressuposto de que a expansão do cristianismo em Roma, ao
difundir modos de pensar das massas, contribuiria no processo de decadência imperial. 2
A perspectiva negativa de Gibbon a respeito do monaquismo estava atrelada à relação
que estabelecia entre o advento da fé cristã e o suposto ocaso civilizacional que
acompanhou o colapso do Império Romano.
Posteriormente, em meados do século XIX, o conde Charles de Motanlembert
apresentava uma interpretação distinta. Em sua interpretação, a comunidade cristã das
três primeiras centúrias seria composta inteiramente por percussores dos monges, tendo
em vista a perseverança dos fieis nos preceitos evangélicos e na heroica resistência à
cruel perseguição pagã. Com a paz concedida à Igreja pelo imperador Constantino e a
conclusão da missão dos mártires, os monges prosseguiriam com o trabalho espiritual
fidedigno às Escrituras, mas em nova forma. O conde de Motanlembert reconhecia a
ampla participação de setores da elite ocidental no movimento monástico nascente.
Entretanto, interpretava o fenômeno como o abandono de uma posição privilegiada no
século em favor de uma pobreza ascética decorrente do fervor espiritual . 3 Esta leitura
positiva do monacato advinha de alguém cuja trajetória política e intelectual esteve
sempre comprometida com a Igreja: o conde de Motanlembert era um importante
partidário do movimento católico liberal francês, tendo atuado como teórico e
parlamentar desse grupo.
Os dois autores acima expostos representam duas linhas interpretativas opostas
que predominaram por longo tempo: uma que denunciava o movimento monástico
conforme as orientações teóricas e interesses de grupos críticos do clero católico; 4 outra
1
Edward Gibbon se deteve sobre o assunto no capítulo XXXVII do seu estudo. Cf.: GIBBON, Edward.
The history of decline and fall of the Roman Empire. Disponível em:
http://www.gutenberg.org/files/734/734-h/734-h.htm Acessado em : 8 de agosto de 2018.
2
Esse modelo explicativo foi definido por Peter Brown como “two-trier” model, que tinha em David
Hume uma referência importante. Cf.: HUME, David. História natural da religião. São Paulo: UNESP,
2005; BROWN, Peter. Society and the holy in Late Antiquity. Berkeley, Los Angeles: University of
California, 1982. p. 3-21.
Para uma análise sobre a perspectiva de Gibbon sobre o tema, cf.: PEDRAZA VELÁSQUEZ, Juan
Manuel. El cristianismo en la obra de Edward Gibbon; un acercamiento a la historiografía de la
ilustración. In: ORDÓÑEZ AGUILAR, Manuel. Ensayos sobre historiografía del Renacimiento a la
Ilustracion. 2013. p. 201-232.
3
MONTALEMBERT, Charles. Monks of the West, from St. Benedict to St. Bernard. Boston: Marlier,
Callanan & Co., 1860
4
Cabe salientar o papel de setores humanistas e protestantes na constituição dessa perspectiva
historiográfica na modernidade, particularmente na abordagem negativa sobre o fenômeno monástico de
que exaltava os méritos espirituais dos que aderiam à vida monacal, num tom
apologético e favorável à Igreja. A segunda teve particular vitalidade no decorrer do
século XX por conta do engajamento acadêmico de clérigos católicos, sobretudo
beneditinos.5 Entretanto, a partir do século passado, especialistas apresentaram
abordagens que se distanciavam das duas que então predominavam, tendo como
referência as novas orientações teóricas e metodológicas desenvolvidas na
historiografia. Com isso, outras teses foram formuladas: algumas postulam o
monaquismo como um movimento contestatório;6 outras, que o despontar da ascese
cristã era uma resposta psicológica a uma “era de ansiedade”; 7 houve ainda aqueles que
empreenderam análises que se detiveram nos aspectos performativos, fenomenológicos
ou discursivos do ascetismo monástico.8
Alinho-me aqui aos estudiosos que propõe uma compreensão do fenômeno
monástico a partir das especificidades conjunturais das localidades em que emergiu e da
inserção social e institucional dos agentes envolvidos. 9 Por isso, é pertinente que a
historiadores oitocentistas. Cf.: ZELLER, Winfred. The protestant atitude to monasticism, with special
reference to Gerhard Tersteengen. The Downside Review, v. 93, n. 3112, p. 178-192, 1975; BURTON-
CHRISTIE, Douglas. Scripture and quest for holiness in Early Christian monasticism. Oxford:
Oxford University, 1993. p. 11-16; CLARK, Elizabeth A. Founding the Fathers. Early Church History
and protestant professors in nineteenth-century America. Philadelphia: University of Pennsylvania,
2011. P. 271-313.
5
São os casos, por exemplo, dos trabalhos de Adalbert de Vogüé, García Columbás, Jean Leclerq e
Columba Stewart. Cf.: VOGUÉ, Adalbert de. L´influence de Saint Basile sur le monachisme d´Occident.
Revue Bénédictine, v. 113, n. 1, p. 5-17, 2003; COLUMBÁS, García M. El monacato primitivo.
Madrid: BAC, 1998; LECLERCQ, Jean. O amor às letras e o desejo de Deus: iniciação aos autores
monásticos da Idade Média. São Paulo: Paulus, 2012; STEWART, Columba. Cassian the monk. New
York, Oxford: Oxford Universit, 1998; Idem. Oração e comunidade na tradição beneditina. Juiz de
Fora: Subiaco, 2006.
6
Como, por exemplo: BLÁZQUEZ MARTÍNEZ, José Maria. El monacato de los siglos IV, V y VI como
contracultura civil y religiosa. In: Intelectuales, ascetas y demônios al final de la Antigüedad. Madrid:
Cátedra, 1998. P. 221-255; JONES, A. H. M. The Later Roman Empire 284-692. Oxford: Basil
Blackwell, 1964, 2v. v.2. p. 932.
7
Rostovtzeff caracterizou a adesão dos romanos ao cristianismo como uma busca individual por refúgio
psicológico num contexto histórico desalentador. Seguindo a perspectiva de Rostovtzeff, Dodds
relacionaria o advento do ascetismo cristão ao cenário de angústia do período. Cf.: O segundo autor, em
particular, destacou-se nessa perspectiva por empregar o conceito de Age of Anxiety para contextualizar o
avanço do cristianismo. Cf.: ROSTOVTZEFF, M. I. História de Roma. Rio de Janeiro: Zahar, 1961. p.
281; DODDS, E. R. Pagan and Christian in an age of anxiety. Cambridge: Cambridge University,
1965.
8
Dentre os quais, cito: HARPHAM, Geoffrey Galt. The ascetic imperative in culture and criticism.
Chicago, London: University of Chicago, 1993; LEYSER, Conrad. Authority and ascetiscim from
Augustine to Gregory the Great. Oxford: Oxford University, 2000; DRIVER, Steven David. The
reading of Egyptian monastic culture in John Cassian, 1995. Tese (Doctor of Philosophy) – University of
Toronto, 2005; VALANTASIS, Richard. Constructions of power in asceticism. Journal of American
Academy of Religion, v. 63, n. 4, p. 775-821.
9
Essa perspectiva se desenvolve a partir da renovação dos estudos sobre o período propiciadas pelo
projeto tardo-antigo de Peter Brown. Como exemplo de estudos com esse enfoque, cf.: ROUSSEAU,
Philip. Ascetics, authority, and the Church in the age of Jerome and Cassian. Notre Dame: University
of Notre Dame, 2010; MATHISEN, Ralph W. The ideology of monastic and aristocratic community in
Late Roman Gaul. Polis, n. 6, p. 203-220, 1994; DIETZ, Maribel. Wandering monks, virgins and
análise do monacato na Gália no século V considere o perfil de quem compunha o
movimento naquele espaço: homens provenientes dos círculos aristocráticos, sem a
integração daqueles de origem desafortunada. A produção literária voltada para o
público monástico era condicionada pelos fatores que impeliam esses privilegiados a
adotar a vida monacal – afinal, para que os textos fossem lidos e aceitos pela audiência
pretendida deveria se apresentar apta a atender suas demandas. Sob esse viés, proponho
avaliar a posição de João Cassiano, monge marselhês do início do século V, frente à
adesão de aristocratas da região ao monaquismo.10
A documentação a ser empregada neste estudo consiste nos dois documentos que
João Cassiano redigiu visando audiências monacais. O primeiro é a O De institutis
coenobiorum et de octo principalium vitiorum remediis, escrita provavelmente entre os
anos de 420 e 424,11 consistindo numa resposta à requisição do bispo Castor de Apt por
orientações para a conduta ascética num mosteiro então recém-fundado. Seu conjunto é
composto por doze livros, sendo os quatro primeiros dedicados a aspectos diversos da
vida monacal e os oito últimos, a orientar o asceta no combate contra os principais
vícios.12 O outro consistia nas Collationes Patrum, que escreveu provavelmente entre os
anos 426 e 428. O material consistia num conjunto de vinte diálogos que, segundo o
autor, reproduziriam os ensinamentos sobre a vida monástica que recebeu de
proeminentes monges do deserto em sua jornada no Oriente.13

1. Aristocracia e monaquismo na Gália


O monacato cristão é um fenômeno que emergiu inicialmente no Oriente: suas
primeiras manifestações ocorreram no Egito e na Síria, 14 tendo posteriormente se
dispersado ao redor do Mediterrâneo. Desde as primeiras referências documentais ao
pilgrims. Ascetic travel in Mediterranean world 300-800. University Park: The Pennsylvania
University, 2005; PLATTE, Elizabeth L. Monks and matrons: the economy of charity in the Late Antique
Mediterranean. Ann Arbor, 2013. Dissertação (Doctor of Philosophy) – University of Michigan, 2013;
TEJA, Ramón. Los origenes del monacato y su consideracion social. XX Siglos, v. 5, n. 21, p. 4-13, 1994.
10
Utilizo o conceito de aristocracia com base nas reflexões de Joseph Morsel. Cf.: MORSEL, Joseph. La
aristocracia medieval. El dominio social en Occidente (siglos V-XV). València: Universitat de
València, 2008. p. 9-18.
11
GUY, Jean-Calude. Introduction. In.: Institutions Cénobitiques. Paris: Cerf, 1965. p. 7-19. p. 11.
12
São eles: gastrimargia, fornicação, avareza, cólera, tristeza, acedia, vanglória e orgulho. A escolha
desses vícios decorria do uso por João Cassiano da obra de Evágrio Pôntico como referência.
13
Para este artigo, consulto as edições bilíngues publicadas na coleção Sources Chrétiennes da Éditions
du Cerf, onde constam edições críticas em latim e suas traduções para o francês. As citações diretas em
português, recorro às traduções disponibilizadas nas edições publicadas pela Subiaco, preparadas a
partida da versão francesa da Cerf. Cf.: JOÃO CASSIANO. Instituições Cenobíticas. Juíz de Fora:
Subiaco, 2015; Idem. Institutions Cénobitiques. Paris: Cerf, 1965 ; Idem.Conférences. Paris: Cerf,
1959, 3v; Idem. Conferências. Juiz de Fora: Subiaco, 2011, 3v.
Esclareço, ainda, que refiro-me aos documentos pelas siglas Inst. e Coll., respectivamente.
movimento, seus adeptos eram referidos como homens que renegavam o século e a
carne com vistas à contemplação divina.15 Na literatura ascética cristã, a conversão ao
monaquismo era caracterizada como a adoção de uma nova forma de vida, mais elevada
que aquela do mundo. Ou seja, tornar-se monge implicaria numa radical transformação
voluntária de si mesmo e da maneira como se vivia, tendo como fundamento o
compromisso assumido em se esforçar por conformar toda a própria existência a
diretrizes morais superiores.16
Na Gália, a emergência da forma de vida monástica ocorreu em meio a
acontecimentos que impactavam na situação econômica e política de segmentos da elite
regional. Se o monaquismo na região foi composto por homens provenientes das
camadas superiores, era porque esses viam na participação no movimento como opção
viável para atender suas demandas ante esse novo cenário. Cabe, portanto, considerar a
situação das elites galo-romanas anteriormente ao século V e avaliar como as
transformações conjunturais resultaram em mudanças nesses grupos.
De acordo com Michelle Salzman, o último terço do século IV foi o período em
que o poder imperial se fez mais presente na região, proporcionando ampliação das
oportunidades de serviço às elites provinciais, sobretudo às meridionais. Salzman
aponta que diversos fatores favoreceram a ascensão de grupos aristocráticos locais nesse
contexto: o status que a cidade Trier adquiriu como capital imperial e centro social e
cultural, a presença de um grande exército na área do Reno e o florescimento das
escolas de retórica no sul da Gália.17 Contudo, no século V, principalmente pelo
afastamento da corte imperial e pela presença germânica na região, houve uma redução
das oportunidades para a aristocracia galo-romana, tal como transformações nos
critérios de reconhecimento social dessa elite. Uma vez que parâmetros tradicionais de
distinção social não necessariamente estavam mais disponíveis para a elite, tais como

14
Historiadores levantaram diversas hipóteses explicativas para as origens do monaquismo cristão. Para
um panorama dessas hipóteses, cf.: COLUMBÁS, op. cit. p. 9-10; DUNN, Marilyn. The emergence of
monasticism. From the Desert Fathers to the Early Middle Ages. Malden: Blackwell, 2003. p. 1-2.
Goehring contestou a pertinência da questão, argumentando que a questão do surgimento do movimento
monástico deveria ser abandonada. Cf.: GOEHRING, James E. Ascetics, society and the desert: studies
in Early Egyptian monasticism. Harrisburg: Trinity, 1999. p. 5.
15
Sobre a questão, cf.: JUDGE, E.A. The earliest use of monachos for “monk” (P. Coll. Youtie 77) and
the origins of monasticism. Jahrbuch für Antike und Christentum, n. 20, p. 73-89, 1977; MORARD,
Françoise. Encore quelques réflexions sur monachos. Vigiliae Christianae, v. 34, n. 4, p. 395-401, 1980.
16
Nesse sentido, a forma de vida monástica adotava termos similares aos promotores das formas de vida
das escolas filosóficas helenísticas e romanas. Cf.: HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia
antiga. São Paulo: É Realizações, 2014.
17
SALZMAN, Michele Renne. The making of a Christian aristocracy. Cambridge, London: Havard
University, 2004. p. 86-90.
riqueza e ocupação de ofícios imperiais, a adoção da vida religiosa e a obtenção de
cargos eclesiásticos representavam uma alternativa viável de manutenção da posição
privilegiada.18
A adesão ao monaquismo era uma das possibilidades então disponíveis às elites.
A produção intelectual cristã que versava sobre essa forma de vida incorporou e
reforçou os valores que demarcavam a posição superior da elite romana, além de
empregar referências culturais da paideia aristocrática.19 No empreendimento desses
autores em defender a compatibilidade entre ofício clerical e distinção aristocrática, o
paraíso era caracterizado como uma estrutura hierárquica, mas que não necessariamente
corresponderia àquela existente no mundo. Logo, o status aristocrático, tal como os
crivos tradicionais de distinção social, não seriam transferidos imediatamente para o
pós-vida – e, ainda, pouco significariam no porvir. Conforme apresenta Goodrich, os
valores relacionados à honra mundana eram qualificados como instáveis, enquanto a
busca espiritual era defendida como preferível.20
Portanto, num contexto em que os antigos parâmetros de distinção social e
oportunidades já não estavam mais disponíveis para representantes da aristocracia da
Gália, a adoção do ascetismo era apresentada como alternativa viável e segura pelos
autores cristãos da região. Segundo a avaliação de Goodrich, esse novo modelo era
atraente, uma vez que prometia à elite local uma honra celestial que não cessaria sequer
com a morte.21 A perspectiva cristã proporcionava, ainda, elementos para justificar a
manutenção de uma posição de superioridade social quando a adoção da vida ascética
era impulsionada pelas adversidades do momento. Villegas Marín apontou que monges
de origem aristocrática apresentavam seu próprio fracasso na carreira política ou a perda
das possessões para os germanos como um chamado da graça divina para a renúncia
ascética.22
18
MATHISEN, Ralph W. Roman aristocracy in barbarian Gaul: strategies for survival in an age of
transition. Austin: University of Texas, 1993. p. 89-104.
19
CRUZ, Marcus. Religião Tardo Antiga e a cristianização do Império Romano. Revista Territórios e
Fronteiras, v. 3, n. 2, p. 295-315, 2010; SALZMAN, op. cit. p. 201-202.
20
GOODRICH, Richard J. Contextualizing Cassian. Aristocrats, asceticism, and reformation in fifth-
century Gaul. Oxford: Oxford University, 2007. p. 22
21
Ibidem. p. 30-31.
22
VILLEGAS MARÍN, Raúl. Diversae svnt vocationes: la experiencia personal de la salvación en
algunos autores provenzales del siglo V y la oposición a la teología agustiana de la gracia. In: BENOIST,
S. CAUWENBERGHE, C. Hoët-Van (eds.). La vie des autres. Histoire, prosopographie, biographie
dans l´Empire Romain. Lille: Septentrion, 2013. p. 307-328.
Um dos autores contemporâneos a João Cassiano que estava alinhado com essa perspectiva foi o leriense
Euquério de Lyon. Para suas ponderações numa abordagem do gênero, cf.: EUQUÉRIO DE LYON. Du
mépris du monde et de la philosophie du siècle. In: Du mépris du monde. Paris: Nouvelles Éditions
Latines, 1950. p. 31-66.
Apesar do discurso que exaltava a indiferença monástica às dignidades terrenas,
os monges galo-romanos os egressos da elite regional preservavam suas afiliações,
perspectivas e metas. Como resultado, aplicava-se uma ascese mais branda e, em alguns
casos, mantinham-se aspectos da conduta distintiva da elite secular, como a prática do
otium.23 Essa era uma das razões que desencadearam a resistência por parte dos monges
da Gália em relação aos modelos monacais mais rigoristas provenientes do Oriente
constatada por J. F. Kelly.24
O espaço monasterial provia aos bem-nascidos em dificuldades de prestígio por
uma forma de vida que tendia a ser reconhecida como moralmente superior, respaldando
a obtenção de cargos imbuídos de deveres pastorais. Logo, adentrar no claustro seria a
etapa de novo cursus honorum, cujo ápice seria a prestação de serviço à comunidade de
fieis na condição episcopal. A manutenção de dinâmicas sociais seculares e a distinção
espiritual da forma de vida, apesar das premissas teóricas que opunham os dois
elementos, era o que propiciava a ascensão clerical dos monges.
Foi para essa audiência de monges aristocráticos que João Cassiano escreveu as
Inst. e as Coll. A aceitabilidade de seus escritos estava condicionada pela sua aptidão em
subsidiar teoricamente as demandas partilhadas pelo grupo a que pretendia alcançar.
Nos documentos que redigiu, apresentou argumentos favoráveis à adesão aristocrática
ao monacato e às aspirações monásticas de ascensão sacerdotal. Para avaliar a maneira
como João Cassiano discorreu sobre tais tópicos, cabe antes compreender as relações
que manteve com a aristocracia monástica galo-romana.

2. As relações de João Cassiano com monges de origem aristocrática


João Cassiano provavelmente nasceu no início da década de 360, numa
localidade ainda incerta para os especialistas.25 Por volta de 380, João Cassiano
ingressou num mosteiro em Belém junto ao seu companheiro Germano, onde
permaneceram por pouco tempo. Após receberem permissão de seu abade para saírem
do mosteiro, os dois circularam pelo Egito até o fim da quarta centúria, tendo contato
com diversos mosteiros da região. Depois de passagens por Constantinopla e Roma,

23
MATHISEN, Ralph W. The ideology of monastic and aristocratic community in Late Roman Gaul.
Polis, n. 6, p. 203-220, 1994.
24
KELLY, J.F. The gallic resistance to Eastern Asceticism. Studia Patristica, v. 17, p. 506-510, 1982.
25
Para um panorama desse debate, cf.: YEVADIAN, Maxime. Sur la patrie de Jean Cassien et la tradition
manuscrite du De viris inlustribus de Gennade de Marseille. Provence historique, v. 253, p. 373-401,
2013.
João Cassiano se estabeleceu definitivamente num mosteiro nos arredores de Marselha,
importante centro urbano da época, em meados de 410.26
Ralph W. Mathisen argumentou que no período romano era comum que
representantes da aristocracia com perfis e interesses similares se associassem para
buscarem os mesmos objetivos e competirem com outros agrupamentos. Esses
agrupamentos eram descritos como amicitia ou, mais pejorativamente, como factio.27 O
clero galo-romano, oriundo da elite secular, incorporou a prática do faccionalismo. 28
Após sua fixação na Gália, João Cassiano buscou se inserir nessas redes de relações de
promoção mútua existentes entre o clero, tal como pode ser atestado pelos preâmbulos
que redigiu.
As Inst. de João Cassiano foram escritas por requisição do bispo Castor de Apt.
O Praefatio do documento é iniciado com alusão à sabedoria que Salomão teria
recebido de Deus, conforme narrado no Antigo Testamento. A despeito de sua sapiência,
Salomão solicitou ajuda ao rei de Tiro para a construção de um templo, tendo recebido
em resposta o serviço de Hiram. Após a menção ao episódio das Escrituras, João
Cassiano, exaltou esse rei por não desdenhar os conselhos de um homem humilde e de
outra terra, mesmo dispondo de sabedoria divinamente inspirada. Apoiando-se nessa
narrativa, o autor equivaleu o bispo Castor a Salomão e a si mesmo a Hiram, avaliando
positivamente que tenha sido requisitado pelo prelado.29
Em sua análise do praefatio das Inst., Goodrich sublinhou que a correspondência
apresentada pelo marselhês entre a sua relação com Castor e a de Salomão com Hiram
indicava um desnível entre as duas partes. Enquanto a figura de Salomão era exaltada,
Hiram era qualificado com termos que insinuavam sua inferioridade ante o rei. Na
avaliação de Goodrich, João Cassiano recorreu a artifícios retóricos comuns à elite
educada para acentuar o mérito de Castor, o patrono que possibilitaria sua inserção
numa rede eclesiástica importante. Tal como Salomão se tornou responsável pela obra
empreendida por Hiram, Castor seria quem prestaria contas pelo redigido por João
Cassiano; assim, a requisição do bispo de Apt derivaria do reconhecimento da aptidão
do autor para escrever sobre o que foi demandado.30

26
Conforme as datas apresentadas por: STEWART, op. cit. p. 3-12.
27
O uso do termo amicitia ou factio estava condicionado à posição de quem enunciava no contexto:
utilizava-se o primeiro em referência aos aliados e o segundo, aos oponentes.
28
MATHISEN, Ralph W. Eccleciastical factionalism… op. cit. p. 1-3.
29
Inst. Praefatio. p. 22-25.
30
GOODRICH, Richard J. Underpinning the text: self-justification in John Cassian´s ascetic prefaces.
Journal of Early Christian Studies, v. 13, n. 4, p. 411-436, 2005. p. 413-420.
As Coll. possuía três prefácios, cada um servindo de introdução a um conjunto
de conferências e dedicando a monges e bispos. O primeiro, que abarcava das Coll. I a
X, estava dedicado aos bispos Leôncio e Heládio; o segundo, que contemplava das Coll.
XI a XVII, aos monges lerienses Honorato e Euquério; o terceiro, que abrangia as
últimas Coll. XVIII a XXIV, a Joviniano, Minérvio, Leôncio e Teodoro, monges da ilha
de Hyères. A menção aos nomes era acompanhada de uma exaltação às virtudes dos
sujeitos, com elogios à sua prática ascética ou à capacidade de desempenhar sua
autoridade em favor da promoção espiritual dos fieis.
As dedicatórias do marselhês a figuras monásticas e episcopais nos preâmbulos
da sua obra monástica constituem indicativos das relações que João Cassiano buscou
estabelecer a fim de obter suporte. Cabe salientar, em particular, que as honras que
prestou eram destinadas a bispos e monges oriundos de Lérins31 ou de mosteiros
associados. Desde o entorno do ano 420, os monges de Lérins adquiriram influência
crescente na Gália, sobretudo pela ocupação de cargos episcopais em sés de destaque,
principalmente Arles. O prestígio oriundo da adoção da vida monástica, a condição
aristocrática comum aos membros do mosteiro e os laços sanguíneos 32 eram fatores de
atratividade do mosteiro para segmentos da elite galo-romana. A ascensão desse grupo
foi propiciada pela solidariedade e partilha de interesses entre os lerienses e o apoio que
recebia por parte da elite ocupante de destacados ofícios seculares.33
Portanto, João Cassiano inclinou-se à inserção numa facção eclesiástica
composta por monges aristocratas que angariavam cada vez mais apoio e que tendiam a
ocupar cargos clericais relevantes. A partir dessa inferência, concluo que as
circunstâncias em que Inst. e as Coll. foram redigidas impeliram o autor a endossar a
legitimidade da profissão monacal exercida por tais monges. Por isso, articulou
argumentos que justificassem o mérito de origem privilegiada.

3. A legitimidade do monge de procedência aristocrática

31
A comunidade de Lérins foi fundada no início do século V por Honorato, na ilha de Lerina, atualmente
conhecida como São Honorato, situada num arquipélago na costa sul da Gália. O estabelecimento do
mosteiro foi feito em companhia do monge Caprásio e teve o consentimento do bispo Leôncio de Frejùs.
Ao agrupamento, juntaram-se parentes de Honorato, dentre os quais se destacou Hilário, e representantes
da elite galo-romana.
32
Alguns dos monges de Lérins eram parentes. Esse é o caso, por exemplo, de Euquério, que ingressou na
comunidade junto aos seus filhos Verano e Salônio.
33
A respeito da formação e do aumento do prestígio e influência da facção leriense na época em que João
Cassiano compôs sua obra, cf.: MATHISEN, Eccleciastical factionalism... op. cit. p. 69-140.
Sendo o marselhês participante das disputas eclesiásticas da Gália do seu tempo,
sua produção estava em conformidade com sua inserção naquela correlação de forças.
Seu alinhamento favorável à facção leriense estava em consonância com a sua posição à
adesão da aristocracia galo-romana ao monacato – que era favorável, tendo em vista ser
essa a procedência social dos grupos com o qual estava coligado. João Cassiano
abordou a questão, contemplando dois aspectos: a conversão monacal incitada pelas
necessidades materiais como vocação legítima, conforme exposto na Coll. III; e as
críticas às fundações monacais por quem não atendesse a um determinado perfil, ideia
melhor elaborada nas Inst. Em ambos os casos, João Cassiano debatia os parâmetros a
partir dos quais um adepto do monaquismo poderia ser reconhecido pelo seus pares
como um monge genuíno.
A ideia de múltiplas vocações foi elaborada foi elaborada pelo autor num
contexto controvérsia doutrinal que opunham os monges galo-romanos a Agostinho de
Hipona e seus seguidores. A querela dizia respeito ao papel da graça na salvação
humana.34 Os agostinianos afirmavam o papel soberano da graça divina, que
independeria de qualquer ação humana. Os monges da Gália, por sua vez, alegavam que
a graça apenas realizava o chamado ao aperfeiçoamento e auxiliava na empreitada
espiritual, cabendo o homem escolher por atender à convocação divina e se empenhar
em sua própria progressão. Fatores conjunturais da Gália que propiciaram a desavença
monástica em relação a aspectos das teses agostinianas, dentre eles, a composição social
do movimento na região. O reconhecimento da importância da agência humana na
salvação propiciava a reivindicação de mérito espiritual por parte dos monges pelo seu
esforço de aperfeiçoamento – o que corroborava a posição de distinção que almejavam.
João Cassiano participou dessa controvérsia, estando favorável aos seus conterrâneos.
O marselhês definiu nas Coll. que a salvação decorreria de três etapas:
primeiramente, do chamado pela graça divina, que poderia se manifestar de diversas
maneiras; em seguida, das oportunidades concedidas por Deus para que o seu chamado
fosse obedecido; por fim, caberia ao homem usar do seu livre-arbítrio para atender o

34
A querela foi desencadeada pelas teses desenvolvidas por Pelágio, na qual se afirmava o dever do fiel
de compor uma elite ascética que desprezaria esse mundo, o que relativizava o papel da graça divina na
salvação. Sobre a controvérsia, houve intensa produção acadêmica. Dentre os estudos disponíveis,
destaco: GIOANI, Stéphane. Moines et évêques em Gaule aux Ve et VIe siècles: la controverse entre
Augustin et les moines provençaux. Médiévales, n. 38, p. 149-161, 2000; WEAVER, Rebecca Harden.
Divine grave and human agency. A study of semi-pelagian controversy. Macon: Mercer University,
1998; BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2017. p. 425- 469.
chamado da graça. Dessa maneira, o autor atribuía dimensão fundamental ao empenho
humano em busca pela salvação, mas sem desacreditar o papel da graça.35
Villegas Marín relacionou a divergência doutrinal dos monges da Gália,
incluindo João Cassiano, com a formulação de uma teoria sobre as múltiplas vocações,
que legitimaria a presença de aristocratas em dificuldades no movimento monástico. 36
Na obra do marselhês, o tema consta na Coll. III. João Cassiano elencou três fatores
possíveis que impeliriam o fiel à renúncia ascética: o chamado direto de Deus por meio
de uma inspiração, a exortação das pessoas santas e as necessidades materiais. Sobre
esse terceiro, o marselhês escreveu:

Enredados que estávamos pelas riquezas e prazeres deste mundo, de


repente, cai sobre nós a provação, concretizada ora pela ameaça de um
perigo mortal, ora pela perda ou confisco dos bens, ora ainda pelo
sofrimento ou pela morte de entes queridos. Então nós, que tínhamos
deixado de seguir a Deus na prosperidade, somos impelidos, na
infelicidade, a correr para ele contra nossa vontade. 37

Na avaliação do autor, apesar das duas primeiras motivações aparentarem serem


superiores à terceira, não assegurariam a perseverança e a perfeição. Aquele que se
convertesse pela necessidade poderia progredir espiritualmente, enquanto o que aderisse
ao monaquismo por via supostamente mais nobre poderia decair. João Cassiano
exemplifica essa ideia narrando a trajetória do abade Moisés:

Nada faltou ao abade Moisés, que viveu na parte deste deserto que
chamamos Cálamo, para se tornar um santo consumado. No entanto, foi
pelo medo da morte, que o ameaçava pelo homicídio cometido, que ele se
refugiou no mosteiro. Ali, no entanto, assumiu tão bem essa conversão
iniciada por necessidade que, por sua força de ânimo, transformou-a
numa firme decisão de sua vontade, chegando ao mais alto cume da
perfeição.38

35
Para uma síntese recente da posição de João Cassiano a respeito, cf.: WEAVER, op. cit.
36
VILLEGAS MARÍN, op. cit.
37
“(...) cum diuitiis mundi huius uel uoluptatibus obligati ingruentibus repente temptationibus, quae uel
mortis pericula conminantur uel amissione bonorum ac proscriptione percutiunt uel carorum morte
conpungunt ad deum, quem sequi in rerum properitate contempsimus, saltim inuiti properare
conpellimur”. Cf.: Coll. III. p. 142-143. Tradução da edição publicada pela Subiaco.
38
“Nec enim abbati Moysi, qui habitauit in loco istius heremi qui Calamus nuncupatur, quicquam defuit
ad perfectae beatitudinis meritum, quod metu mortis quae ei propter homicidii crimen intentabatur
inpulsus ad monasterium decucurrit. Qui ita necessitatem conuersionis adripuit, ut eamn in uoluntatem
prompta animi uirtute conuertens ad perfectionis fastigia summa peruenerit”. Cf.: Coll. III. p. 144.
Tradução da edição publicada pela Subiaco.
Ao apontar que empenho no aperfeiçoamento seria mais importante que a razão
que impulsionaria o sujeito à vida monacal, João Cassiano justificava o mérito dos
monges aristocráticos pelo esforço disciplinar posterior à conversão. O final da Coll.
XXIV respaldava a proeminência monástica ante outras figuras de posição destacada e a
nobilitas de quem adere a esse modo de vida, a despeito do seu aspecto modesto:

Não é a glória humana, decerto, que eles [os monges] procuram, mas
mesmo assim impõem respeito aos poderosos e juízes, até em meio aos
extremos da perseguição. A obscuridade de seu nascimento ou sua
condição servil bem poderia tê-los tornado desprezíveis por sua origem
modesta, inclusive a pessoas da classe média, caso eles houvessem
permanecido na vida secular. Mas a milícia do Cristo enobreceu-os. E
ninguém mais ousa erguer críticas à sua posição social, ninguém se atreve
a contrapor-lhes a pequenez de sua procedência. O opróbrio de uma
condição muito simples, que ao restante dos homens causa embaraço e
desonra, torna-se, além disso, para os servos de Cristo, um novo título de
nobreza e glória.39

De acordo com a passagem citada, a adoção da profissão monacal alçava o


sujeito a um patamar elevado incontestável, tendo como base crivos distintos daqueles
presentes na hierarquia social secular. Entretanto, João Cassiano não respaldava todas as
práticas monacais de seu tempo. Ao contrário: em seus escritos, expunha críticas ao
movimento na Gália, destacando a falta de legitimidade de alguns mosteiros. Partindo
da premissa de que a vivência monástica genuína estaria em conformidade com a
tradição dos Pais e de que a liderança ascética exigia preparação prévia, João Cassiano
desqualificou a aptidão dos fundadores de mosteiros da sua região:

Nesse outro ponto também, esforçar-me-ei por satisfazer à sua ordem: se


talvez, nessas regiões tiver constatado algo não bem fundado conforme o
exemplo dos anciões numa antiquíssima constituição, mas ter sido
supresso ou acrescentado conforme o julgamento de cada fundador de
mosteiro, eu o acrescentarei ou retirarei fielmente segundo a regra dos
mosteiros mais antigos que vimos no Egito ou na Palestina. Pois não
creio absolutamente que uma fundação recente tenha podido encontrar
nas regiões ocidentais das Gálias algo de mais razoável e de mais perfeito
que essas instituições segundo as quais permanecem os mosteiros
39
“Postremo ut iam disputationis huius sermo claudatur, nonne, obsecro, etiam in hoc centuplam gratiam
euidentissime qui fideliter Christo deseruiunt consequuntur, dum pro nomine eius a summis principibus
honorantur, ac licet ipsi humanam gloriam non requirant, nerabiles tamen etiam in persecutionum
angustiis iudicibus cunctis ac potestatibus fiunt, quprum uilitas etiam mediocribus forsitan despicabilis
esse potuisset uel pro obscuritate natalium uel pro condicione seruili, si in saeculari conuersatione
manissent? Per Christi autem militiam nobilitatis nemo status calumniam commouere, nemo
obscuritatem generis audebit openere: quin potius illis ipsis uilissimae condicionis obprobriis, quibus
confundi et dehouestarei ceteri solent, Christi famuli gloriosius nobilitantur”. Cf.: Coll. XXIV. p. 204-
205. Tradução da edição publicada pela Subiaco.
fundados pelos Pais santos e espirituais, desde o início da pregação
apostólica até os nossos dias.40

Portanto, a inexperiência e as inovações daqueles que fundavam comunidades e


assumiam o governo dos monges eram objetos de críticas na obra de João Cassiano.
Conrad Leyser apontou que a ênfase na necessidade da perícia ascética e do respeito à
tradição eram elementos de salvaguarda contra lideranças monásticas oponentes.41
Nesse sentido, o marselhês articulava elementos favoráveis à presença aristocrática nos
círculos monacais, desde que atendessem a determinados critérios, vinculados na
própria obra de João Cassiano, para que fossem reconhecidos como monges autênticos.

4. Conclusões
No início do século V, parcela da aristocracia da Gália estava em dificuldades
em decorrência das transformações que então ocorriam na região. O monaquismo,
forma de vida ascética oriunda do Oriente e promovida como superior à vida secular, foi
percebido por alguns membros dessa elite como alternativa viável para assegurar
prestígio e distinção naquele cenário. Os intelectuais cristãos galo-romanos recorriam a
referências da paideia da elite em favor da conversão ascética, articulando-as de
maneira a reforçar a posição destacada dos monges ante a Ecclesia – mesmo quando a
adoção do monaquismo fosse resultado de fracasso político ou perda das possessões.
João Cassiano, autor das Inst. e das Coll., estabeleceu-se nos arredores de
Marselha por volta dessa época, após sucessivos deslocamentos. Após sua fixação,
aproximou-se dos círculos monásticos e clericais capitaneados pelos influentes
lerienses, que então prevaleciam sobre outras facções eclesiásticas concorrentes na
correlação local de poderes. Em seus escritos, João Cassiano argumentou de maneira a
endossar a legitimidade do monaquismo praticado por quem ingressasse no movimento
para fugir de dificuldades no século.
A elaboração dessa justificativa por João Cassiano ocorreu em consonância com
a posição dos monges da Gália na querela sobre a graça divina, provocada pela resposta

40
“In eo quoque tuis paeceptis satisfacere studebo, ut, si quid forte non secundum typum maiorum
antiquíssima constitutione fundatum, sed pro arbítrio unikuscuiusque instituentis monasterium uel
deminutum uel additum in istis regionibus conprobauero, secundum eam quam uidimus monasteriorum
regulam per Aegyptum uel Palaestinam antiquitus fundatorum fideli sermone uel adiciam uel recidam,
nequaquam enim credens rationabilius quippiam uel perfectius nouellam constitutionem in occiduis
Galliarum partibus repperire potuisse quam illa sunt instituta, in quibus ab exordio praedicationis
apostolicae a sanctis ac spiritalibus patribus fundata monasteria ad nos usque perdurant”. Cf.: Inst.
Praefatio. p. 30-31. Tradução da edição publicada pela Subiaco.
41
LEYSER, op. cit. p. 33-61.
de Agostinho de Hipona às teses de Pelágio e seus seguidores. Em conformidade com a
dissensão galo-romana, o marselhês defendeu que cabia à graça convocar e auxiliar o
homem para a salvação, sendo responsabilidade humana atender ao chamado divino e se
empenhar no próprio aperfeiçoamento espiritual. Acrescentou à sua argumentação a
ideia de múltiplas vocações: Deus poderia fazer seu chamado de diversas maneiras,
inclusive pela imposição de perdas materiais; não importaria tanto a motivação que teria
impelido o sujeito ao monaquismo, mas seu esforço em progredir.
Embora o posicionamento do autor endossasse a legitimidade da profissão
monacal dos aristocratas em situação adversa, sua abordagem possibilitava a
desqualificação de experiências ascéticas que não se adequassem a determinado modelo
– aquele vinculado em sua própria obra. No decorrer de sua obra, principalmente nas
Inst., João Cassiano criticou o movimento monástico na Gália, afirmando que os
fundadores de mosteiros locais eram inexperientes e observavam inovações ao invés das
tradições. Portanto, se por um lado corroborava a adesão aristocrática ao monaquismo,
proporcionava aos seus coligados subsídios teóricos para a condenação de eventuais
competidores, aristocratas que também adentravam no movimento em busca de
alternativas.

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