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01 de Junho de 2019
Introdução
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O corpo sempre foi instrumento artístico para diversas linguagens ao longo da história,
no entanto, neste texto é apresentado como obra, a ser fruída pelas estudantes, por meio
da performance.
De acordo com as experiências artísticas de Gilmara Oliveira, a performance entre
adolescentes comumente oprimidas e provenientes de condições sociais
desprivilegiadas, em conflito com a lei, pode ser um meio de empoderamento
consciente e poético, capaz de gerir o entendimento de pertencimento social e afirmação
da própria identidade.
Segundo análise feita por Kathryn Woodward (SILVA, 2007, p.16),
há uma discussão que sugere que, nas últimas décadas, estão ocorrendo mudanças no campo
da identidade - mudanças que chegam ao ponto de produzir uma “crise da identidade”. [...]
Isso implica examinar a forma como as identidades são formadas e os processos que estão aí
envolvidos. Implica também perguntar em que medida as identidades são fixas ou, de forma
alternativa, fluidas e cambiantes.
Como definir a performance, sendo ela um meio híbrido por essência? Sua estrutura está
sendo sempre remontada e reapropriada. Absorvendo as idades e passagens do tempo como
parte de seu composto, o artista produz um elo entre o tempo da história e o tempo presente,
sentido em um corpo também ambíguo. São várias as definições sobre o assunto. Também já
vimos muitas tentativas de formatá-la como um campo artístico específico. Será isto
possível, já que o corpo é transmutável e tem, em sua formulação, a ideia do transgressor de
limites? É com esta característica que ela reage aos inúmeros arquivistas, organogramas e
fichários.
A performance não é! Ela quer ser penetrável, transformadora de espaços, pessoas e mentes.
O ambiente da performance quer ser mutante e mimético. Em sendo ela muito flexível, pode
desenvolver diálogo entre muitas áreas do conhecimento do homem. Mas o que é mais
interessante disto tudo é que este fenômeno acontece principalmente através do poder de
transmissão sensível da presença do corpo, imagem e energia. O corpo do performer envolve
este espaço e o constrói, fazendo-nos perceber tudo como um corpo único. Em sua busca,
muitas vezes, revive o passado e tange o sentimento primal de pertencimento na natureza e
na vida.
observar a arte não significa consumi-la passivamente, mas tornar-se parte de um mundo ao
qual pertencem essa arte e esse espectador. Olhar não é um ato passivo; ele não faz que as
coisas permaneçam imutáveis. [...] A arte é um encontro contínuo e reflexivo com o mundo
em que a obra de arte, longe de ser o ponto final desse processo, age como iniciador e ponto
central da subsequente investigação do significado.
Em contato com os saberes artísticos, portanto, é impossível não se afetar pelos signos
transmitidos, ainda que não se tenha plena consciência.
Com isto, acreditando nas vivências profissionais de Gilmara Oliveira, como Artista da
Performance, que cria suas proposições tratando da violência entre gêneros e do sagrado
feminino, desde 2012, e que trabalha com adolescentes do gênero feminino, em
cumprimento de medida socioeducativa de internação, em uma Unidade de Belo
Horizonte/Minas Gerais, desde 2015, foi que, em 2016, quatro jovens foram
estimuladas a tratarem de suas inquietações, através da arte da ação/performance,
pensando nos passantes das vias públicas como espectadores.
A ideia de ser em local público se deu por diversos fatores, dentre eles:
1. A professora/artista/autora deste, possui maior vivência da performance nestes locais,
acreditando na potência que os mesmos carregam, por lidar com a perfuração da ‘lógica
cotidiana’5;
2. As adolescentes envolvidas já estavam saindo da Unidade, desacompanhadas de
Agentes Socioeducativos, para irem em casa e em cursos externos, o que facilitava a
realização;
3. Os temas emergenciais a serem tratados pelas adolescentes envolviam o
questionamento da transfobia, das regras impostas ao corpo feminino e da legitimação
do funk enquanto cultura da periferia, portanto, tratar de tais assuntos dentro da própria
Unidade de Internação, onde apenas outras adolescentes veriam, não fazia muito
sentido.
As provocações feitas foram a partir da contextualização por vídeos de performances,
enquanto movimento de contestação, advindas dos anos de 1960, além de algumas
dinâmicas de consciência corporal.
Como, dentro do socioeducativo, é complexa a negociação para a realização de
trabalhos em espaços públicos, devido ao direito de uso da imagem das adolescentes, a
não identidade imagética durante as criações foi uma condição colocada pela professora
para evitar o reconhecimento delas.
Ainda devido a questões relacionadas a essa complexidade, apenas uma estudante
concretizou seu desejo de expressão corporal em via pública.
Ao longo deste artigo, contextualizaremos as medidas punitivas proeminentes em
espaços de privação de liberdade, e, na sequência, a performance realizada pela
estudante em via pública e as consequências de bancar tal desejo, por parte da
professora.
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Este termo é utilizado pela pesquisadora por entender a lógica cotidiana das ruas como local de
passagem daqueles que trafegam rumo a seus compromissos diários e ou esporádicos, sem
muita preocupação com o entorno, ou seja, mais focados em seu destino. Ao realizar
performance em vias públicas, a perfuração acontece por meio da ressignificação do espaço pelo
corpo em ação, impondo aos passantes o desvio de trajeto ou mesmo do olhar. Isto causa uma
ruptura no entendimento espacial daqueles que por ali coexistem, caminham diariamente.
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Na prática não é bem isso que ocorre, e, além de prestação de serviço em troca de
benefícios como uma das maneiras aplicáveis de controle dos corpos, adolescentes
portadores de doença ou deficiência mental não recebem tratamento individual
especializado, a não ser por meio de medicação como forma de controle, e visitas
semanais ao Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM).
Segundo Sandra Maciel Almeida, diretora em Educação, que investigou em seu
doutorado a situação educacional de jovens e mulheres em privação de liberdade, em
2013 utilizando uma abordagem etnográfica de pesquisa, cuja síntese foi publicada no
livro Mulheres Invisíveis (FACALDE, 2016, Cap. 2, p. 52),
e, que a desobediência tem consequência para as jovens, que podem ficar trancadas em seus
quartos como forma de punição [...] porém, mesmo reconhecendo a violência no tratamento
e os privilégios ou não (de acordo com a obediência às regras), a jovem entrevistada afirma
que o agente é justo.
Essa fala revela que o ato restritivo do corpo e da conduta é uma forma de reduzir o corpo a
objeto de poder e de manipulação, tanto em sua forma quanto em seu lugar. Esse corpo não
possui um ser que o habita, pois se torna tão somente propriedade de quem detém o poder
sobre ele.
Paulo Marco Ferreira Lima, Procurador de Justiça Criminal em São Paulo, que
corrobora com a temática da Violência Contra a Mulher, especificamente, aponta
(LIMA, 2013, p. 46)
que de fato, a dominação masculina sobre o feminino é executada de forma contínua para
que essas se percebam e concordem com os esquemas naturais das diferenças anatômicas dos
órgãos sexuais e da divisão social do trabalho, o que leva a toda uma percepção diferente de
como devem ser os comportamentos feminino e masculino, que acabam por aceitar sua
condição de forma inconsciente, alimentadas essas razões costumeiramente pela família e
depois por toda a ordem social, com suas instituições, como a Igreja, a Escola e o Estado.
A sociedade brasileira avançou nas conquistas de direitos das mulheres nas últimas
décadas, mas essa evolução não significa ausência de disparidade entre gêneros.
Combater o preconceito, diminuir os índices de violência, aumentar a participação
feminina na política, dentre tantas outras questões, ainda são metas a serem atingidas
para reduzir as relações de controle do que é oriundo, ou não, à mulher.
Essa mudança de objetivo acontece no meio da representação: nos vemos fazendo outra coisa,
fazendo a nós mesmos de uma maneira que não era exatamente o que tinha imaginado para nós.
[...] Então, em primeiro lugar e acima de tudo, dizer que a identidade de gênero é performativa,
é dizer que ela é um tipo de representação; [...]além disso, verifica-se que não pode haver
reprodução de normas generificadas sem a representação corporal dessas normas, e quando esse
campo de normas se rompe, mesmo que provisoriamente, [...] podemos ver claramente o
surgimento de transgênero, genderqueer, butch, femme e modos hiperbólicos ou dissidentes de
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Artista Argentina, graduada em Dança pelo FACE - Formação de Artistas Contemporâneos em Buenos
Aires.
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Outra razão para o uso da rua como espaço de criação entre as adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa, se deve ao fato de, durante as discussões sobre
performance, nas aulas de arte, terem surgido desejos de fala por meio do corpo, acerca
de temas emergenciais para cada uma, que não teria o mesmo sentido/impacto, caso
fossem abordados nas dependências da Unidade. Dentre os temas de interesse, temos o
questionamento da transfobia, a reflexão sobre as regras impostas ao corpo feminino na
sociedade, e a importância de legitimação do funk enquanto cultura da periferia. Não
que tais questões não precisem ser discutidas nestes espaços socioeducativos, mas sim
em função do nível de alcance da rua e pelo fato de as adolescentes envolvidas já
estarem em processo de desligamento de suas medidas.
Ainda faz-se necessário ressaltar que, oportunizar a estas meninas o direito de voz no
espaço urbano por meio da arte, representa visibilizar o invisível. Djamila Ribeiro,
filósofa e ativista brasileira, afirma que “como expressar-se não é um direito garantido a
todos e todas, [...] a discussão sobre liberdade não pode ser pautada unicamente no
direito – não absoluto – de expressar opiniões.” (RIBEIRO, 2017, p. 89). Assim, o
espaço público na realização dos trabalhos com as adolescentes, representava uma
estratégia de reversão deste quadro, valorizando seus corpos como lugar de fala.
Como dentro do socioeducativo é complexa a negociação para a realização de trabalhos
corporais em espaços públicos, comuns, partilhados, devido ao direito de uso da
imagem das adolescentes, menores de idade, em cumprimento de medida, a não
identidade imagética por meio de máscara/touca ninja foi explorada nas proposições,
como uma espécie de marca do coletivo que surgiu entre elas (efêmero e sem nome),
evitando assim o reconhecimento delas nestes espaços.
Ao iniciar a fala sobre performance, as provocações feitas pela professora para ativar a
criatividade das adolescentes, foram a partir da contextualização por vídeos de ações
performáticas, enquanto movimento de contestação, advindas dos happenings e do
movimento Fluxus dos anos de 1960.
O primeiro priorizava ações coletivas de improviso, e Jorge Glusberg, autor argentino,
editor, curador, professor e artista conceitual, esclarecia que o happening era uma
espécie de colagem de ações de impacto. (GLUSBERG, 2005, p.34)
Uma declaração assinada por cinquenta autores de happenings da América, Europa e Japão
trouxe, em 1965, essas definições sobre o gênero:
Articula sonhos e atitudes coletivas. Não é abstrato nem figurativo, não é trágico nem cômico.
Renova-se em cada ocasião. Toda pessoa presente a um happening participa dele. É o fim da noção de
atores e público. Num happening, pode-se mudar de “estado” à vontade. Cada um no seu tempo e
ritmo. Já não existe mais uma “só direção” como no teatro ou no museu, nem mais feras atrás das
grades, como no zoológico.
A arte Fluxus não leva em consideração a distinção entre arte e não arte, não leva em
consideração a indispensabilidade, a exclusividade, a individualidade, a ambição do artista;
não considera toda pretensão de significação, variedade, inspiração, trabalho, complexidade,
profundidade, grandeza e institucionalização. Lutamos, isso sim, por qualidades não
estruturais, não teatrais e, por impressões de um evento simples e natural, de um objeto, de
um jogo, de uma gag. Somos uma fusão de Spike, Jones, vaudeville, Cage e Duchamp.
A produção de categorias pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status
de “forasteiros”, de acordo com o sistema social vigente, garante um certo controle social. A
classificação simbólica está, assim, intimamente relacionada à ordem social. Por exemplo, o
criminoso é um “forasteiro” cuja transgressão o exclui da sociedade convencional,
produzindo uma identidade que, por estar associada com a transgressão da lei, é vinculada ao
perigo, sendo separada e marginalizada. A produção da identidade do “forasteiro” tem como
referência a identidade do “habitante do local”.
Assim, no caso específico de Maria, Gilmara faz a leitura de que suas escolhas
performáticas evidenciam um desejo de ruptura com a leitura social de que quem dança
funk e circula em vias públicas trajando cropped e short esteja disponível e possa ser
taxada de vadia, puta, vagabunda, dentre outros codinomes que reforçam o preconceito
eminente em relação ao corpo feminino em exposição, sua objetificação sexual, além da
cultura do estupro.
Seguindo com a narrativa, Maria selecionou as canções de seu interesse para que a
professora montasse um pot-pourri com as mesmas. No dia da ação, Gilmara levou a
touca ninja, para preservação da identidade da jovem menor de idade, e um vestido
longo para que a mesma não chamasse tanta atenção antes da ação iniciar. A chegada
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até o local foi de viatura, apesar de, na ocasião, a adolescente já estar tendo saídas para
curso e para visitar a família, desacompanhada.
Como o quarteirão da Praça Sete é fechado, o carro estacionou a certa distância e a
professora acompanhou a adolescente, junto a dois agentes socioeducativos, mais um
segundo educador que trabalhava no Sistema. Já no local, a touca ninja foi colocada na
estudante, o som ligado, e só então, a adolescente deixou cair o vestido revelando o traje
de seu interesse e as inscrições no corpo.
Maria dançou o medley de funk e, ao término, colocou o vestido; a professora desligou
o som e o recolheu, deu as mãos à adolescente e conduziu-a de volta ao veículo. Apenas
após a viatura se deslocar daquela quadra, a touca foi retirada da cabeça da jovem.
Várias pessoas filmaram a ação com seus celulares, inclusive os agentes que
acompanhavam e o educador. Este último, disponibilizou o vídeo no youtube, com
senha, e compartilhou o link em um grupo de whatsapp composto por seis professores
da Escola que atuavam dentro do Sistema. Uma destas pessoas, incomodada com o
vídeo, sem procurar saber do contexto e de tudo o que fora trabalhado, enviou o link e a
senha ao Ministério Público, em caráter de denúncia, alegando a exposição da menor.
Com isso, a professora foi chamada e precisou se defender apresentando o projeto no
qual se embasava, e, apesar de ter conseguido se justificar e receber a permissão para
continuidade da proposta, a direção da Escola pediu que o mesmo fosse
temporariamente interrompido ‘até que a poeira abaixasse’.
No ano seguinte, em 2017, houve a tentativa de retomada da proposta, no entanto, ficou
claro que o vínculo com a Escola caracterizava-se como o real problema apesar de
terem alegado questões de segurança.
Mesmo com as barreiras que impediram a continuidade da proposta, carregamos como
hino o pensamento de Barbosa (2010, p.70), que entende que, “encorajar o processo
criativo permite aos alunos chegarem a novas respostas para a realidade percebida,
podendo até mesmo mudá-la ou transformá-la”.
Diante deste histórico, ficamos com o relato de Maria, que afirma ter se sentido
importante ao realizar a ação e que, dançar sem que ninguém a tocasse, havia sido muito
bom.
As demais adolescentes, apesar de não conseguirem concretizar suas ações em vias
públicas, assistiram à performance de Maria por vídeo, alegando terem gostado e se
sentido representadas, porém gostariam de ter tido a oportunidade de realizar suas
proposições.
Considerações Finais
Referências
BARBOSA, Ana Mae. Teoria e Prática da Educação Artística. São Paulo: Cultrix,
2010. p. 70
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas – notas para uma teoria
performativa de assembleia.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
DEWEY, John. Arte como Experiência. Tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.
LIMA, Paulo Marco Ferreira. Violência Contra a Mulher. São Paulo: Editora Atlas,
2013.
LINKE, Inês; MENDES, Eloisa Brantes; ROCCO, Marcelo; CIOTTI, Naira. Políticas
do espaço: desordem e emergências da performance. Revista ouvirouver, Uberlândia,
v. 13, n. 1, 2017. p. 66-77.
ROLLA, Marco Paulo. O corpo da performance. Revista UFMG, Belo Horizonte, vol.
19, n.1 e 2, 2012. p.124-129.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Nunca fomos humanos - nos rastros do sujeito. Org. e trad.
Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais
(org.) Rio de Janeiro: Vozes, 2007.
THORNTON, Timothy N.; CRAFT, Carole A.; DAHLBERG, Linda L.; LYNCH,
Barbara S.; & BAER, Katie, eds. Best practices of youth violence prevention: A
sourcebook for community action. Atlanta, Ga: Centers for Disease Control and
Prevention, National Center for Injury Prevention and Control; 2002. In: TREMBLAY,
Richard E. Enciclopédia sobre o desenvolvimento na primeira infância. Ed./Trad. São
Paulo: Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. 2010.p. 8.
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PERFORMANCE ART – Uma Vivência no Socioeducativo
PERFORMANCE-ART – A Socio-educational Experience
PERFORMANCE ART - Una vivencia en el Socioeducativo
Resumo
Abstract
The aim of one of the art classes among teenagers in internment with socio-educational
measures in Belo Horizonte, given by Gilmara Oliveira in 2016, was to work the
performance as art-life and its possible definitions. The lesson happened, and many
ideas emerged among the adolescents, demanding a deepening of the experience about
the art of action. From the memorial rescue, there were propositions that came up
against the particularities of each one of the girls and it was possible to perceive, as to
speak through the body, to improve the self-confidence between them. What is
described throughout the text is not intended to be conclusive.
Keywords: Art; Performance; Class; Socio-educational.
Resumen