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‘Mentiras sinceras não me interessam’

Por Eduardo Ribeiro.


Em resposta ao artigo: Legalização das drogas? A quem interessa?¹ Publicado pela Juventude Revolução - IRJ.

Importante refletir sobre o papel do ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso


no tema da descriminalização do uso de maconha, onde ele tem aparecido
recorrentemente nos últimos meses, sobretudo a partir da mídia e dos debates
provocados pela Iniciativa Latino-Americana Drogas e Democracia, da qual é co-
presidente junto aos ex-presidentes César Gaviria Trujillo (Colômbia) e Ernesto
Zedillo Ponce de León (México).

A preocupação com o fato do ex-presidente tucano e outros reconhecidos


inimigos estarem em campanha em favor da descriminalização da maconha não deve
por si só “servir de aviso aos jovens de que a legalização se trata de uma grande
armadilha”. A armadilha de fato está na política defendida por esses inimigos para um
tema que vem ganhando espaço em diversos lugares do mundo, e bastante entre a
juventude.

O documento Drogas e Democracia: rumo a uma mudança de paradigma, assinado


pela comissão supracitada, mantém intactos os principais mecanismos que tem
alimentado a guerra às drogas, além de corroborar alguns preconceitos em torno de
usuárias/os de drogas ilícitas. Os principais instrumentos jurídicos² que orientam as
políticas sobre drogas ao redor do mundo a partir de uma perspectiva proibicionista
não devem ser alvo de mudanças, segundo sugere o documento. Os países devem
buscar medidas mais flexíveis a partir dos paradigmas já estabelecidos. E dar
continuidade à Guerra.

O documento sequer defende a descriminalização do uso de maconha, reduzindo-se à


possibilidade de avaliar-se a conveniência de descriminalizar o porte para o consumo
pessoal, o que de fato, não se constitui enquanto estratégia de combate ao tráfico.

É necessário desmontar a lógica limitada que não consegue diferenciar a questão das
drogas da questão do tráfico. Deslocar a política de drogas para fora do eixo da
repressão, ou seja, regulamentar por vias administrativas e de saúde pública, por
exemplo, não nos retirará a necessidade de debatermos outras questões
problemáticas para o uso de drogas.
Por isso, devemos diferenciar os efeitos das drogas dos efeitos do tráfico. E aqui
exponho algumas diferenças que acredito serem importantes para contribuir para o
debate.

O consumo de substâncias capazes de alterar o estado de consciência que, ao


atravessar a modernidade recebem o signo de drogas, sempre esteve na humanidade.
Assim, em diferentes épocas, a partir de diferentes substâncias, buscando diferentes
objetivos, a história do uso de drogas é comum com a história da própria humanidade.
Não há registro de um momento histórico onde não houvesse qualquer utilização de
substâncias equivalentes ao que hoje denominamos como droga. O século XX
inaugura, no entanto, uma nova categoria até então exterior ao tema: drogas ilícitas
ou ilegais. Isso se dá em um momento de busca pelo controle do sujeito a partir do
corpo, de seus direitos individuais e suas escolhas, assim como de controle do
mercado das substâncias psicoativas que circulavam de forma não regulada
(formalmente) em praticamente todas as sociedades.

E haviam problemas com esse consumo? Claro. Intoxicação, reações alérgicas,


desenvolvimento de dependência, mas em condições minoritárias e sem a presença do
principal agente contemporâneo do problema das drogas: a criminalidade. E desde o
começo do último século, criamos esse novo problema para o consumo, produção e
circulação de tais substâncias.

A criminalização recaiu sobre determinadas substâncias justamente porque esse é um


ponto importante para a expansão do proibicionismo a partir da lógica do
desenvolvimento do capital: o controle de mercados.

Um olhar atento sobre esse momento onde algumas substâncias são escolhidas pelas
agências internacionais enquanto inimigas da humanidade nos dará um mapa bastante
preciso da presença imperialista no mundo. O combate à produção de coca e de
maconha, por exemplo, será o avalista da presença imperialista em países da América
Latina; o motivo de um investimento massivo em espionagem e militarização pelos
Estados Unidos dos vizinhos ao sul; ingerência em assuntos internos, golpes e
promoção de governos anti-democráticos oriundos da aliança entre as burguesias
nacionais, o grande capital e o governo estadunidense.

Do outro lado, as substâncias regulamentadas dão um salto no controle do mercado a


partir de grandes corporações, que ao longo do século foram globalizando a cultura
permitida (lícita) para as drogas. Avança sobre inúmeros países o consumo de cerveja,
por exemplo, setor fundamental na mundialização do mercado de drogas lícitas. A
indústria de cigarros também avança, valorizado pela publicidade, por valores e
símbolos de status das produções hollywoodianas. Os Estados Unidos e a Europa que
patrocinam esse processo passam a ser os principais recolhedores de lucros do
mercado das drogas, centralizando as principais marcas de cigarro e cerveja do mundo
(fora as drogas terapêuticas, que apesar de fazer parte desse processo, discutirei em
outro artigo).

Décadas depois, continuam sendo os principais beneficiários do mercado lícito das


drogas (álcool, tabaco, medicamentos) e os maiores consumidores das drogas ilícitas.

Escrevi recentemente um artigo que trata o proibicionismo como estratégia eficaz de


coerção socio-racial, encarceramento em massa e promoção da violência contra
populações vulneráveis, a partir dos argumentos que a definem enquanto um fracasso.

Mas porque a manutenção de uma “guerra sem fim”? O objetivo “racional” da guerra
no século XX, explica Hannah Arendt, é a dissuasão e não, a vitória. As políticas
proibicionistas ao redor do mundo seguem mantidas por serem extremamente
lucrativas para setores importantes do poder. As apreensões, bem como as prisões
realizadas com frequência são meros paliativos que não atingem qualquer mecanismo
central de organização da rede do tráfico. Retiram peças rapidamente repostas pelas
organizações criminosas.

Façamos um exercício simples de reflexão: o tráfico de drogas movimenta cerca de 300


bilhões de dólares anualmente. E quantas pessoas são presas ligadas ao tráfico por
evasão de divisas ou lavagem de dinheiro?

A ação violenta, retomando uma reflexão da filósofa, se desenvolve na perspectiva


meio-fim. No caso em questão, o fim seria um mundo livre de drogas (que volto a
afirmar, não há precedente na história da humanidade). Assim, as justificativas de que
tais substâncias fazem mal a saúde, dopam a juventude ou destroem famílias estariam
comprometidas com este fim determinado. O meio para isso? A guerra.

O que acontece no atual estágio da política de drogas no mundo pode ser entendido
ainda sob a afirmação feita pela própria Arendt, que na ação violenta corre-se o risco
do fim ser suplantado pelos meios que ele justifica. Atualmente, sem ter atingido
quaisquer dos fins de cinquenta anos atrás, os meios estabelecidos (a guerra, a
criminalização, o preconceito) continuam orientando as principais políticas para o
tema das drogas ao redor do mundo.

Importante analisar as diversas iniciativas de regulamentação do uso de drogas ao


redor do mundo, a partir de suas realidades, e gostaria de contestar algumas
informações citadas pelo artigo contra o qual me propus a argumentar. A Holanda não
legalizou a maconha. Atualmente, existe uma política de tolerância a usuárias/os em
ambientes controlados e a permissão de pequenas quantidades para consumo. O fato
de ainda haver vínculo das lojas com o tráfico é justamente por não haver uma
regulamentação da produção naquele país o que ainda permite que este mercado seja
regulado pela informalidade e pela violência. Ainda assim, a Holanda não registra
aumento significativo do uso de maconha.

Em Portugal, que apresenta hoje a iniciativa mais ousada para a redução do uso
problemático de drogas, não há registro do aumento do consumo. Em 2001, o governo
descriminalizou o uso de todas as drogas e no ano passado divulgou os resultados
dessa medida através do Cato Institute. Entre 2001 e 2006, as mortes por overdose
caíram de 400 para 290. De 1999 a 2008, o número de pessoas identificadas com o uso
problemático que passaram por tratamento saltou de 6 mil para 24 mil. E hoje
Portugal é o único país da Europa a registrar queda no consumo de drogas.

A Suíça na década de 90, implementou uma medida ousada para usuárias/os de


heroína, estabelecendo praças para o consumo regulado, com segurança e seringas
limpas. Uma passagem da história onde a mídia propagandeava os zumbis
da Platzspitz, em Zurich. Mais a medida de fato era restrita e pouco oportuna, o que
levou o governo a fechar a praça em 1992. Medidas e resultados bem diferentes da
realidade portuguesa ou holandesa hoje.

Constatado os efeitos perversos da proibição, por que a juventude brasileira deve se


posicionar a favor da regulamentação de outras drogas no país, como já acontece com
o álcool e tabaco? Dentre inúmeras razões, enumero a seguir algumas:

Primeiro. Precisamos interromper o brutal genocídio da juventude negra nas periferias


das grandes cidades brasileiras. O combate ao comércio e uso de drogas é um
poderoso instrumento de coerção sócio-racial, que tem ceifado a vida de milhares de
jovens todos os anos no Brasil. O encarceramento em massa é outro efeito colateral do
proibicionismo. E dos dois lados da guerra quente, traficantes e policiais, a população
negra, sobretudo, segue perdendo vidas.
Segundo. A proibição não acabou com a demanda. No entanto, empurrou o controle
do mercado para a ilegalidade, onde a regulação se dá através da violência, dando uma
gigantesca contribuição para o comércio ilícito de armamentos.

Terceiro. A ilegalidade estimula a corrupção das instituições judiciárias, policiais, além


de recentemente, destinar vultuosos recursos para eleição de parlamentares
comprometidos com interesses do tráfico.

Quarto. A regulamentação deve permitir o estabelecimento pelo Estado de


mecanismos de estímulo ao não uso de drogas, através de programas de informação
qualificada acerca dos efeitos do uso e abuso de cada substância. Assim como
acontece hoje, a decisão pelo uso de cada droga continuará sendo individual, mas
poderá ser feita de forma mais equilibrada, reconhecendo-se os verdadeiros riscos, e
possíveis benefícios.

Quinto. Os recursos gerados pelo mercado controlado de outras drogas poderá ser
investido em programas de tratamento para usuários problemáticos, na circulação de
informações qualificadas e na pesquisa científica para o tema.

Não podemos agir de forma sectária, como se aqueles que estivessem discutindo “que
a violência ligada ao tráfico tem destruído a vida de grande parcela da juventude”
como a afirma o artigo, tem interesses contrários a manifestantes que levantavam a
bandeira da legalização. Limitada essa afirmação.

Nós estamos nas ruas justamente porque discordamos radicalmente da violência


enquanto política de Estado. Levantamos a bandeira dos direitos e não das drogas. E
concordamos que a juventude de fato precisa de emprego, cultura, diversão e arte!
Mas ela só terá acesso a esse conjunto de direitos se estiver viva. E livre!

Eduardo Ribeiro é estudante de história da Universidade Federal da Bahia, militante da Articulação de Esquerda-PT e faz parte do
Coletivo Ganja Livre.

¹CHANDRETTI, Priscila e CUPOLLILO, LUÃ. Legalização das drogas? A quem interessa? Publicado
em http://www.juventuderevolucao.org/index.php?option=com_content&task=view&id=974
²Esses mecanismos, são as três convenções das Nações Unidas sobre o tema das drogas: a Convenção Única sobre
Entorpecentes (1961), a Convenção Sobre Substâncias Psicotrópicas (1971) e a Convenção contra o Tráfico Ilícito de
Drogas Narcóticas e Substâncias Psicotrópicas.

Referências:

ARENDT, Hannah. Da violência. Ed. Universidade de Brasília, 1985. Trad. Maria Cláudia Drummond Trindade.

SANTOS, Eduardo Ribeiro dos. O fracasso de um sucesso. Publicado em: http://coletivoganjalivre.wordpress.com/o-


fracasso-de-um-sucesso/?preview=true&preview_id=412&preview_nonce=30ffb1b0b8

VARGAS, Eduardo Viana. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das drogas. In:
CARNEIRO, Henrique, FIORE, Maurício, GOULART, Sandra, LABATE, Beatriz Caiuby e MACRAE, Edward (orgs.) Drogas
e Cultura – Novas Perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008.

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