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Implicações anestésicas na
miastenia gravis – revisão da literatura
Anesthetics implications in myasthenia gravis – review
Marcelo Fonseca Medeiros1, Marcelo Vaz Nunes2, Luis Gustavo Torres dos Santos 3, Rafael Bahia Ravaiane3
DOI: 10.5935/2238-3182.20160010
RESUMO
1
Médico Anestesiologista. Título Superior em Anestesio- Miastenia gravis é uma rara doença autoimune que acomete a junção neuromuscular. A
logia – TSA pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia
– SBA. Especialista em Clínica Médica. Instrutor do fraqueza e fadiga muscular são um desafio no manejo anestésico, principalmente pelo
Centro de Ensino e Treinamento – CET/SBA da Santa Casa risco de complicações respiratórias. A escolha da técnica anestésica deve levar em con-
de Belo Horizonte. Anestesiologista do Hospital
Municipal Odilon Behrens. Belo Horizonte, MG – Brasil. sideração a fisiopatologia, o estágio clínico da doença, as drogas utilizadas no tratamen-
2
Médico Anestesiologista. Especialista em Clínica to clínico e suas interações anestésicas. Se o bloqueador neuromuscular for utilizado, a
Médica. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG. Belo Horizonte, MG – Brasil. monitorização do bloqueio neuromuscular é fundamental para uma anestesia segura.
3
Médico especializando em Anestesiologia. CET/SBA da
Santa Casa de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG – Brasil. Palavras-chave: Miastenia Gravis; Miastenia Gravis/cirurgia; Junção Neuromuscular; Bloque-
adores Neuromusculares; Anestesia/métodos; Interações de Medicamentos; Anestésicos.
ABSTRACT
Myasthenia Gravis is a rare autoimmune disease that affects the neuromuscular junc-
tion. The weakness and fatigue of the muscle are a challenge in anesthetic management,
manly for respiratory complications. The choice of anesthetic technique should consider
the pathophysiology, the clinical stage of disease, the drugs used in a clinical treatment
and their anesthetics interactions. If the neuromuscular block was used, the neuromuscu-
lar monotoring is essential for a safe anesthesia.
Key words: Myasthenia Gravis; Myasthenia Gravis/surgery; Neuromuscular Junction;
Neuromuscular Blocking Agents; Anesthesia/methods; Anesthetics; Drug Interactions.
INTRODUÇÃO
A miastenia gravis (MG) é uma rara doença autoimune que acomete a junção
neuromuscular.1,2 A doença apresenta distribuição bimodal, acometendo principal-
mente mulheres na terceira e quarta décadas de vida, na proporção de 3:23 e idosos
entre 60 e 80 anos.4 A prevalência da MG aumentou nas últimas décadas, possivel-
mente pelo envelhecimento da população e maior número de diagnósticos, entre-
tanto, sem aumento correspondente na mortalidade.3
Não existe etiologia definida, sendo relatadas como as possíveis: fatores am-
bientais, agentes infecciosos, principalmente virais5,6, e predisposição genética.7 Os
fatores desencadeantes da doença também são desconhecidos, tendo possíveis
Instituição: associações com uso de antimicrobianos, infecções, estresse emocional, cirurgias,
Centro de Ensino e Treinamento da
Santa Casa de Belo Horizonte
traumas e gestação.8
Belo Horizonte-MG, Brasil A doença é desencadeada por anticorpos contra a junção neuromuscular e esse
Autor correspondente: caráter imunológico é demonstrado pela melhora clínica substancial com o uso de
Marcelo Fonseca Medeiros
E-mail: marcelofonsecamedeiros@gmail.com plasmaférese.9,10 Outro fator que demonstra um possível componente imunológico
são as anormalidades do timo: 75% dos pacientes Clínica da Fundação Americana de Miastenia Gravis
apresentam hiperplasia deste órgão e 10% eviden- (CCFAM), como se segue:
ciam timoma. A timectomia, quando indicada, pode Classificação Clínica da Fundação Americana de
melhorar os sintomas, mas não necessariamente miastenia gravis:
cura a doença.11
Cerca de 80 a 85% dos pacientes apresentam anti- ■■ Classe I – fraqueza ocular, sem comprometimen-
corpos contra receptores nicotínicos (rAch) da placa to de outros músculos.
motora. Os demais 20% evidenciam sorologia nega- ■■ Classe II – fraqueza leve afetando além da mus-
tiva para os rAchs e positiva para anticorpos contra culatura ocular.
cinase específica do músculo.11 ■■ IIa – afetando predominantemente membros,
No paciente miastênico a menor eficiência da musculatura axial ou ambos. Pode ter menos
transmissão neuromuscular combinada à exaustão envolvimento de musculatura orofaríngea.
pré-sináptica normal resulta na ativação de um nú- ■■ IIb – afetando predominantemente orofarin-
mero cada vez menor de fibras musculares, pelos su- ge, musculatura respiratória ou ambos. Pode
cessivos impulsos nervosos que, por sua vez, levam à ter menos ou igual envolvimento de mem-
fraqueza e fadiga dos músculos esqueléticos. A dimi- bros, musculatura axial ou ambos.
nuição da força muscular e fadiga pioram ao longo ■■ Classe III – fraqueza moderada afetando além da
do dia com o uso repetitivo e apresentam melhora musculatura ocular.
após o repouso. ■■ IIIa – afetando predominantemente membros,
Existem várias formas de acometimento: a fraque- musculatura axial ou ambos. Pode ter menos
za localizada da musculatura ocular (diplopia e ptose), envolvimento de musculatura orofaríngea.
o envolvimento bulbar (disartria e disfagia) e a fraque- ■■ IIIb – afetando predominantemente orofarin-
za muscular generalizada com possível comprome- ge, musculatura respiratória ou ambos. Pode
timento respiratório.10,12-14 Pacientes com MG podem ter menos ou igual envolvimento de mem-
apresentar exacerbações agudas conhecidas como bros, musculatura axial ou ambos.
crises miastênicas, que se manifestam com piora da ■■ Classe IV – fraqueza grave afetando além da mus-
fraqueza muscular e piora do padrão respiratório. culatura ocular.
A gravidade e caráter flutuante dos sintomas da ■■ IVa – afetando predominantemente membros,
MG, assim como a variabilidade de grupos muscula- musculatura axial ou ambos. Pode ter menos
res envolvidos, tornam extremamente difícil a clas- envolvimento de musculatura orofaríngea.
sificação desses pacientes. Classicamente, a escala ■■ IVb – afetando predominantemente orofarin-
de Osserman tenta classificar os pacientes de acordo ge, musculatura respiratória ou ambos. Pode
com o acometimento ocular ou sistêmico, assim como ter menos ou igual envolvimento de mem-
em relação à evolução da doença, conforme se segue: bros, musculatura axial ou ambos.
Classificação de Osserman e Genkins – 1971: ■■ Classe V – definida por intubação, com ou sem
■■ Grau I – ocular pura. ventilação mecânica, exceto quando utilizada de
■■ Grau II a – generalizada leve com lenta progres- rotina no pós-operatório. O uso de cateter de oxigê-
são, sem crises, responsiva a drogas. nio sem intubação classifica o paciente como IV b.
■■ Grau II b – generalizada moderada, com envol-
vimento muscular esquelético e bulbar, mas sem O diagnóstico é baseado na detecção dos anticor-
crises e com respostas limitadas às drogas. pos antirreceptores colinérgicos nicotínicos ou anti-
■■ Grau III – aguda fulminante com rápida progres- corpos anticinase específica do músculo. A adminis-
são para insuficiência respiratória. tração intravenosa de baixas doses de edrofônio (2-8
■■ Grau IV – tardia grave, a qual progride como grau mg) com consequente melhora da força muscular
III, porém fica mais de dois anos como grau I ou II. pode auxiliar no diagnóstico. Em alguns casos faz-
-se necessária a eletroneuromiografia de fibra única,
Com o intuito de tentar uniformizar os grupos de que evidencia fadiga após estímulos repetidos.11-13
pacientes de acordo com a gravidade dos sintomas O tratamento da MG é baseado em quatro medi-
e estabelecer linhas terapêuticas comparáveis, criou- das: tratamento sintomático, imunomodulação crôni-
-se uma nova classificação clínica, a Classificação ca, imunomodulação de inicio rápido e tratamento
cirúrgico. O tratamento sintomático é realizado com não necessitará de suporte ventilatório no pós-operató-
anticolinesterásico, principalmente piridostigmina, rio. Quando a soma estiver entre 10 e 34 pontos, a pro-
com o objetivo de prolongar o efeito da acetilcolina, babilidade de suporte ventilatório após a cirurgia é alta.
melhorando a força muscular. A imunomodulação Lu et al.22 avaliaram fatores de risco para pos-
crônica é feita com a administração de glicocorticoi- sibilidade de falência respiratória na extubação e
des, azatioprina, micofenolato e ciclosporina. Por sua identificaram que níveis elevados na Classificação
vez, a imunomodulação de início rápido é realizada Clínica Americana de Miastenia Gravis é um fator de
com a plasmaférese ou imunoglobulina, ficando re- risco independente.
servado para pacientes de difícil controle ou que se Outros critérios para extubação de pacientes com
apresentem com crise miastênica. A timectomia está MG são propostos. A extubação deve prosseguir após
indicada em pacientes com timoma e aqueles com serem alcançados nível normal de consciência, volu-
doença generalizada e grave, visando reduzir o nível me corrente de, no mínimo, 5 mL.kg, ventilação es-
de anticorpos contra receptores de acetilcolina.11,12,16,17 pontânea com PaCO2 ≤ 50 mmHg, PO2 ≥ 90 mmHg e
frequência respiratória ≤ 30 incursões.min-1. É crucial
que se faça monitorização da função neuromuscular
MANEJO ANESTÉSICO NA MIASTENIA GRAVIS para garantir que não haja bloqueio residual antes de
promover a extubação.10,23 Uma medida de sequência
A escolha da técnica anestésica nos pacientes com de quatro estímulos SQE ≥ 0,9 seria segura para tal fim.
miastenia gravis é desafiadora. Deve-se ter em mente a O tipo de tratamento realizado também deve ser
fisiopatologia da doença e sua alteração no funciona- discriminado. A maioria dos pacientes estará usan-
mento da placa motora, bem como as possíveis intera- do inibidores da acetilcolinesterase, como a piridos-
ções dos vários agentes anestésicos na função muscular. tigmina, e menos comumente a neostigmina. A piri-
Além disso, o próprio tratamento da MG com anticoli- dostigmina atua inibindo tanto a acetilcolinesterase
nesterásicos pode influenciar o manejo anestésico.13,18 como a pseudocolinesterase. Como consequência
Avaliação pré-anestésica detalhada é de extre- há alteração na hidrólise da succinilcolina e do
ma importância nos casos de MG. Faz-se necessário BNM adespolarizante mivacúrio10, potencializando
determinar o grau de fraqueza muscular e os grupos sua ação.24 A manutenção da piridostigmina até o
musculares envolvidos. Quantificar a função pulmo- dia do procedimento não é consenso entre os auto-
nar é importante em todos os estágios da doença.19 res10; os pacientes em uso desses inibidores podem
Testes de função respiratória podem ser úteis20, aju- ter diminuição da resposta à neostigmina no perio-
dando a determinar uma possível necessidade de peratório, dificultando ainda mais a reversão do blo-
ventilação prolongada no pós-operatório.13 queio neuromuscular13 e com risco de desencadear
Leventhal et al.21 elaboraram uma pontuação crise colinérgica.
para predizer a necessidade de suporte ventilatório A crise colinérgica ocorre quando há superdo-
no pós-operatório em pacientes com MG submetidos sagem de anticolinesterásico, manifestando-se com
à timectomia: sialorreia, sudorese excessiva, cólicas abdominais,
urgência urinária, bradicardia, fasciculações e fra-
Tabela 1 - Pontuação para predição da necessida- queza muscular. O tratamento é de suporte, incluin-
de de ventilação mecânica no pós-operatório de do intubação traqueal e atropina10,13 até a interrupção
Miastenia Gravis
dos sintomas colinérgicos. A diferenciação entre as
Fatores de Risco Pontos crises miastênica e colinérgica pode ser realizada
Duração da doença > 6 anos 12 com a administração de dose única de edrofônio.
História de doença pulmonar crônica 10 Com isso haveria melhora dos sintomas da miastenia
Dose diária de piridostigmina > 750 mg 8 e agravamento dos sintomas colinérgicos.
Capacidade vital > 2,9 L 4 A monitorização perioperatória deve contemplar
Total de pontos 34 a mínima necessária exigida pela Resolução do CFM
Fonte: adaptada de Leventhal et al. 21 nº 1802/06.25 Atenção especial deve ser prestada ao
grau de bloqueio neuromuscular. Parâmetros clíni-
Caso o paciente tenha pontuação de seus fatores cos têm se mostrado insuficientes em predizer a res-
abaixo de 10, provavelmente poderá ser extubado e posta individual aos bloqueadores neuromusculares.
Agentes anestésicos podem alterar a atividade da grau de resposta aos bloqueadores neuromusculares
placa motora e alguns autores, como Mann et al. 26, nos pacientes com miastenia gravis.
sugerem que a monitorização neuromuscular com a O uso de bloqueadores neuromusculares em pa-
sequência de quatro estímulos (SQE, TOF) seja rotina cientes com MG tem sido associado a elevada taxa
nos pacientes com MG, devendo ser instituída logo de extubação malsucedida e maiores tempos de ven-
na indução anestésica. tilação mecânica pós-operatória e de internação.18
O uso de halogenados na MG tais como sevoflu- Quando for necessário utilizar esses agentes, reco-
rano, isoflurano, desflurano, enflurano ou halota- menda-se que sejam administrados aqueles de curta/
no interferiu na transmissão neuromuscular, tanto intermediária duração, tais como mivacúrio, atracú-
in vitro, quanto in vivo. Na prática, isso pode ser rio, cisatracúrio, rocurônio e vecurônio e, em meno-
percebido com a redução dose-dependente na re- res doses, aliado à monitoriação neuromuscular.10
lação T4/T1 durante anestesia com esses agentes. A reversão do BNM com o uso de anticolines-
Importante lembrar que esses inalatórios podem terásicos é controversa12, pelo risco de desenca-
aumentar os efeitos dos BNMs adespolarizantes.27 deamento de crise colinérgica. Recentemente foi
Entretanto, não há evidências clínicas significativas introduzido no mercado o sugammadex, uma ga-
de bloqueio neuromuscular residual pós-operatório maciclodextrina quimicamente modificada capaz
ocasionado exclusivamente por isoflurano, sevoflu- de encapsular agentes adespolarizantes esteroidais,
rano ou desflurano.13 como o rocurônio e vecurônio. Foram demonstra-
Entre os fármacos venosos para indução e ma- das por vários autores a segurança e efetividade de
nutenção, o propofol parece ser a melhor opção. seu uso nos pacientes com MG.29
Ele não demonstra alterar a função neuromuscular13 Vymazal et al.30 anestesiaram 117 pacientes com
e tem a capacidade de diminuir os reflexos das vias MG usando rocurônio 0,6 mg.kg-1 e sugammadex 2
aéreas, permitindo boas condições de intubação na mg.kg-1 ou 4 mg.kg-1, dependendo do grau de bloqueio
maioria dos pacientes. Seus perfis farmacodinâmico medido pela SQE. Não foi observado qualquer sinal
e farmacocinético permitem rápida recuperação da de curarização residual ou depressão respiratória no
consciência, dos reflexos de via aérea e retorno à pós-operatório. O estudo também não registrou caso
ventilação espontânea.18 de reintubação nas primeiras 48 horas ou casos de
Com a preocupação de se evitar depressão res- pneumonia nas primeiras 120 horas. A reversão do
piratória pós-operatória, o uso de opioides com po- bloqueio neuromuscular com o sugammadex foi con-
tencial de acúmulo deve ser evitado. O remifentanil fiável, previsível e rápida, sem a necessidade de haver
apresenta perfil farmacológico adequado para anal- redução na dose de indução do rocurônio.
gesia no perioperatório.28
Analgesia peridural mostra benefícios nos pa-
cientes com MG tanto durante a cirurgia como no CONCLUSÃO
pós-operatório, para o melhor controle da dor e me-
lhora da função ventilatória. Os anestésicos locais O manejo de um paciente portador de MG re-
(AL) do tipo éster são metabolizados por pseudoco- quer a compreensão da fisiopatologia da doença e
linesterases, devendo ser evitados em pacientes em o conhecimento da interação entre os agentes anes-
tratamento com anticolinesterásicos. Os ALs do tipo tésicos mais comumente usados e o tratamento da
aminoamida, como a ropivacaína e bupivacaína, são MG. As alterações musculares devem ser levadas em
seguros para o uso em MG.10 consideração para a escolha da técnica anestésica,
O equilíbrio entre a perda de receptores de ace- priorizando o uso de fármacos sem grande potencial
tilcolina e a atividade dos receptores remanescentes de acúmulo e de rápida eliminação. Caso seja neces-
determina os sintomas clínicos e a sensibilidade aos sário o uso de BNM, é prudente monitorizar o grau
bloqueadores neuromusculares.26 A diminuição do de bloqueio neuromuscular e certificar-se de que não
número e função desses receptores na placa motora haja bloqueio residual no momento da extubação.
interfere na resposta à acetilcolina, aumenta a resistên- O sugammadex é uma escolha segura e confiável
cia aos BNMs despolarizantes, como a succinilcolina, na eventualidade da necessidade de reversão de blo-
e aumenta a sensibilidade aos BNMs adespolarizan- queio neuromuscular pelo rocurônio ou vecurônio
tes.24 Há uma heterogeneidade de apresentações no em pacientes portadores de MG.