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ÁGUA BARRENTA E O MEU DIREITO BEBÊ-LA1

Núbia de Oliveira Santos2

As coisas são porque as vemos,


e o que vemos,
e como vemos,
depende das artes que tenham influído em nós.
(Oscar Wilde)

O cinema, enquanto arte, tem o poder de lançar à vida novas perguntas e como
nasce da problemática da vida, sempre a provoca. Nesta medida, é possível dizer que a
experiência com o cinema nos afeta de diferentes formas. Também Benjamin (1987)
acreditava que o cinema enquanto arte é capaz de atingir o homem na sua sensibilidade
já afetada pelos choques cotidianos da vida moderna. Para este autor,

O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações


exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em
sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso
tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja
realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido (BENJAMIN, 1987,
p.174).

Assim, o cinema nos convida a um novo modo de olhar a complexidade do


mundo, permite diferentes interpretações, comporta vários significados e alcança uma
coletividade na medida em que produz sentidos através de uma memória que é social.
Para Silva e Ferreira (2010), o cinema como prática cotidiana popular de espetáculo,
contribui para o delineamento de marcas indenitárias e sociais dos grupos que compõem
a coletividade do cenário urbano e da sociedade brasileira. (P.146). Nessa perspectiva,
os filmes que tratam de infâncias têm nos feito repensar os diferentes discursos e saberes
produzidos sobre as crianças e como a produção cultural é de grande relevância para
pensar e repensar a infância na atualidade.

Crianças em cena...

1
O filme “Água Barrenta” pode ser acessado em https://vimeo.com/48670719 O texto faz parte do
Projeto “Cinema paraibano e Infância”, coordenado pela equipe da Profa. Virgínia Gualberto – UFPB.
2
Licenciada em Pedagogia e Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1
Imagens desfocadas de um grupo de crianças acordando na rua. Uma cheira cola de
sapateiro, a outra se espreguiça. Um menino, aparentando ser o mais novo do grupo,
levanta e se senta ao lado de uma menina que ainda dorme. Ele pega uma lata de Coca-
Cola e leva ao nariz, cheira duas vezes, e em seguida começa a chorar. A menina acorda
e segue-se o seguinte diálogo entre os dois:

- Ei, por que tu ta chorando hein? Ei Boy, por que tu ta chorando?


- Por que hoje é meu aniversário...
- Chora não, a gente vai lá na padaria pedir um doce pra tu, bora!
- Eu não quero doce não, eu quero Coca-Cola que eu nunca tomei Coca-Cola!
- Tu nunca tomou uma Coca na tua vida?!
- Nunca!
- Toin, Tião, bora ali na padaria... bora pedir uma Coca pra Paulinho. Hoje é o
aniversário dele!

E é com esta imagem inquietante de crianças cheirando cola em uma lata de Coca-
Cola que começa o filme Água Barrenta de Tiago Penna. A trama se passa na cidade de
João Pessoa, na Paraíba e as cenas que se seguem vão dando a visão da sua urbanidade
pela rapidez dos carros e dos ônibus, nos muros pichados, nas grandes avenidas. Bem
como na apresentação dos créditos do filme, todos misturados aos elementos urbanos.
Vamos conhecendo junto com as crianças, que transitam naturalmente pela cidade, os
diferentes bairros com suas belezas e mazelas. É neste cenário urbano que as crianças se
imbuem do desejo de realizar o sonho de Paulinho: tomar uma Coca-Cola. O
posicionamento e o movimento da câmera nos convidam a ser uma delas e a olhar a cidade
em um ângulo que não nos é habitual.
O curta-metragem de aproximadamente 17 minutos, permite muitas leituras, pois
tem como pano de fundo uma realidade social quase que habitual nas grandes cidades
brasileiras: crianças dormindo na rua, cheirando cola de sapateiro, pedindo dinheiro.
Nesse desenrolar, trata também de solidariedade entre pares, de injustiça social, da
condição de uma infância que conhecemos pelos jornais, que presenciamos nos sinais de
trânsito, nos pontos de ônibus, nas portas dos restaurantes, das janelas dos nossos carros
e que, de tanto conhecer, vamos desconhecendo e ignorando.
Ao longo do filme vamos percebendo que as crianças se apropriam dos espaços
da rua através do uso que fazem dele, tendo assim, uma relação pragmática, sendo a rua
nesse sentido, um espaço para a sobrevivência, mas também para a ludicidade.
(MENESES e BRASIL, 1998). Outra questão que o filme nos aponta é que nem sempre

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as crianças que habitam as ruas são abandonadas pelas famílias ou não têm onde morar.
Leal (2008) afirma que a literatura sobre meninos e meninas de rua faz menção a prática
de “aventurar-se” pelas ruas, longe de casa, desde a incorporação da fuga no cotidiano da
família. E o contato com a família não desaparece com o contato com a rua. (p.11), sendo
como afirma o autor, importante considerar a relação familiar como complementar e
concomitante com a rua. Nesse sentido, a rua não é representada como um espaço
totalmente separado e potencialmente negativo, mas que tem também sua importância
como espaço de constituição de relações sociais, valores e estratégias (p.17). No caso de
Paulinho, este tem família e mãe preocupada que não esquece o dia do seu aniversário. E
no grupo de crianças de que faz parte, ele encontra proteção, solidariedade e estabelece
vínculos.
Água Barrenta nos convida a rever tanto nossas concepções de crianças e de
infância e de tudo aquilo que desejamos para elas. Ao longo da jornada das crianças
vamos, juntamente com elas, sofrendo e ao mesmo tempo nos indignando a cada tentativa
frustrada na busca da realização do desejo de Pulinho.
A concepção de infância não é natural. A perspectiva de perceber não uma visão
única de infância, mas de “infâncias” no plural e abordagens sobre diferentes perspectivas
se pauta em considerar as diferentes condições de existência em que as crianças se
encontram. Parece-nos muito óbvio pensar como, naquela cena retratada no filme, que
crianças em situação de falta e de abandono, possam querer “apenas” tomar uma Coca-
Cola. O paradoxo do sentimento está justamente na crítica ao líquido por muitas vezes
este chegar tão facilmente à boca das crianças e tendo presença maciça nas festas de
aniversários infantis. Nesse sentido, é precisamente nesse “apenas” que o filme
descortina aquilo que da criança nos escapa,
na medida em que inquieta o que sabemos (e inquieta a soberba da nossa
vontade de saber), na medida em que suspende o que podemos (e a
arrogância da nossa vontade de poder) e na medida em que coloca em
questão os lugares que construímos para ela (e a presunção da nossa
vontade de abarcá-la). (LARROSA, 2001, p. 185).

Assim, Paulinho no seu desejo tão legítimo, juntamente com os seus amigos, nos
mostra um outro lado da história. Uma história vivida por aquelas crianças, que nos
convida perceber que o que até então nomeávamos como “apenas”, para o menino
significava “tudo”. Um tudo que também se relativiza, pois já na primeira tentativa de
realização do desejo, em vez de comprar a tão desejada Coca-Cola com o dinheiro que
conseguiram a duras penas pedindo no transito, Paulinho, ou Boy como é chamado pelos

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amigos, surpreende e decide comprar pães para matar a sua fome matinal e a dos amigos.
Um gesto que se aproxima das afirmações de Meneses e Brasil (1998, p.6) as alianças e
parcerias das crianças na rua são mecanismos de proteção, constituindo-se enquanto
redes de relações que estruturam o seu mundo vivido.
É possível afirmar que no mundo atual, a criança desde muito pequena tem sua
formação atrelada a uma íntima relação com a cultura do consumo. Quais os efeitos do
consumo de massa na experiência da criança? Que lugar lhe é reservado perante os apelos
do consumo? E em se tratando de crianças em situação de exclusão social, como se
constrói a sua subjetividade no que se refere às práticas de consumo? Que é, no contexto
dessas indagações desejar uma Coca-Cola?
Já na primeira cena o diretor nos coloca diante de um jogo de imagens, no qual o
menino cheira Cola em uma lata de Coca-Cola. Ali se encontram o almejado e o interdito
misturados, sendo a cola o proibido e a Coca-Cola o desejado. Um ilegal e ilícito,
contrário ao direito e à ordem e outro legal, lícito, permissível e ambicionado por
Paulinho, personagem central da trama.
A Cola de Sapateiro, produto tóxico, volátil, pertencente ao grupo dos inalantes é
uma droga psicotrópica feita à base de vários solventes orgânicos como o tolueno e n-
hexana. Dentre os seus efeitos nocivos estão convulsões, delírios, alucinações,
insuficiência renal, perda de consciência, problemas na memória, falta de equilíbrio e até
a morte. No Brasil, desde 2006, teve pela ANVISA (Agencia Nacional de Vigilância
Sanitária) sua venda proibida para menores de 18 anos. É a quarta droga mais consumida
no país, ficando atrás do tabaco, álcool e da maconha.
Já a Coca-Cola, uma das bebidas mais consumidas no mundo, como o próprio nome
sugere, até os dias atuais traz consigo a marca de já ter utilizado cocaína como matéria-
prima em sua fórmula secreta. No Brasil, a Coca-Cola tem em sua história a marca da
proibição. Como nos esclarece Campos-Toscano (2008) em 1939, Getúlio Vargas assinou
um decreto em que modificava o uso de aditivos químicos em refrigerantes,
estabelecendo percentuais de ácido fosfórico coincidentes com a Coca-Cola. (p.67). A
mesma autora nos conta ainda que, também o governador de São Paulo, Jânio Quadros,
já chegou a proibir a sua fabricação assim como anúncios anônimos, que imitavam a
logomarca e o leiaute da bebida, que já foi acusada de causar câncer sendo até hoje alvo
de discursos antiimperialistas que desprezam o nacionalismo americano.
Segundo Campos-Toscano (2008) é verdade que na versão original da Coca-Cola
continha uma pequena quantidade de extrato de coca, apresentando, portanto, um traço

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de cocaína. Mas, no início do século XX esse componente foi eliminado, embora a bebida
ainda hoje contenha outros extratos derivados da folha de coca. Assim, Cola de Sapateiro
e Coca-Cola, ambos com afeitos viciantes em diferentes graus, carregam em sua história
o peso e a sombra da ilegalidade, aparecendo no filme como elementos importantes.
Retomando ainda os estudos de Campos-Toscano (2008), esta afirma que a Coca-
Cola foi criada em 1886, mas foi somente no século XX, com a globalização do comércio
e da comunicação, que ela se sobressaiu como uma das bebidas mais conhecidas
mundialmente e reconhecida como um símbolo do capitalismo norte-americano. Tendo a
sua entrada no Brasil somente na década de 1940, esse líquido negro é encontrado
facilmente e muitos que o apreciam não conhecem a história da sua evolução (nem de sua
fórmula).

A Coca-Cola ainda é símbolo do melhor e do pior na Civilização


Americana e Ocidental. Sua história muitas vezes é a narrativa
engraçada de um grupo de homens obcecados em colocar o banal
refrigerante ao ‘alcance do braço do desejo’. E, ao mesmo tempo, é um
microcosmo da história americana. A bebida não só alterou hábitos de
consumo, como criou atitudes em relação ao lazer, ao trabalho, à
publicidade, ao sexo, à vida familiar e ao patriotismo.
(PENDERGRAST, APUD CAMPOS-TOSCANO, 2008).

A Coca-Cola, tem ainda sido alvo de críticas de médicos e educadores quanto à


sua utilização por crianças, principalmente pelo alto teor de açúcar e do seu controverso
poder viciante, mas, apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas, de sabão
Aristolino e plástico mastigado, como afirma Clarice Lispector em seu livro “A hora da
Estrela” (1995), tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e subserviência.
(...). Ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente. (p.38).
A Coca-Cola, como um importante símbolo do consumo já consolidado em nossa
sociedade, cumpre muito bem o seu papel no marketing comercial, ou seja, procura, como
afirma a autora, trazer o mundo de sonhos e de imaginação para seu consumidor, através
da construção organizada das imagens, levar à crença no consumo, fazendo com que
enunciatário deseje beber uma Coca-Cola, mesmo que não seja sua real necessidade.
(p.16).
Por outro lado, parece ser outro o contexto em que a necessidade do consumo é
apresentada no filme, cabendo problematizar a partir das ideias de Canclini (1999). Para
este autor consumir é participar de um modo de disputa por aquilo que a sociedade
produz e pelos modos de usá-los (p.54). Sendo o consumo definido como o conjunto de

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processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos.
(p.77).
Para Canclini (1999) o consumo é estudado como lugar de diferenciação e
distinção das classes e dos grupos. Ele destaca a existência de uma lógica que reside na
construção dos signos de status e na forma de consumi-los. Para ele, esta lógica é regida
não pela satisfação de necessidades, mas pela escassez desses bens e pela impossibilidade
de todos possuírem. (SANTOS, 2005). Desta forma, pode-se afirmar que Paulinho, ao
escolher tomar uma Coca-Cola no dia do aniversário revela que sabe o que está sendo
definido e considerado como socialmente valioso.
Assim, ter acesso a um bem de consumo como a Coca-Cola é, para Paulinho, um
lugar de realização. A aquisição desse bem de consumo tão valorizado publicamente se
configura como uma participação em um cenário de disputa no campo do que é produzido
pela sociedade, ao mesmo tempo em que denota uma distinção simbólica. Aí reside a
importância política de poder consumir, pois esta possibilidade articula-se com a noção
de cidadania erigida em um mundo onde o sentido dos bens é compartilhado, onde, como
afirma Canclini, existe uma lógica na construção dos signos de status e na maneira de
comunicá-los (p.79). Os bens de consumo servem de ferramenta de diferenciação na
medida em que os membros da sociedade compartilham seus sentidos. Se esses só fossem
compreensíveis à elite ou à maioria que os utiliza não serviria como instrumento de
diferenciação,(...) logo é possível afirmar que no consumo se constrói parte da
racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade.
Nesse sentido, no filme, as condições de vida daquelas crianças como pano de
fundo para o inusitado desejo de Paulinho, naquele dia especial, colocam em xeque a
“facilidade” de uma crítica ao consumismo, principalmente no que se refere às crianças e
à sua suposta vulnerabilidade aos mecanismos de mercado, em que o desejo é quase
sempre atravessado por uma lógica consumista.

O dia do aniversário como salvo-conduto para realização de um desejo

O dia do aniversário em um contexto social delimita a passagem do tempo e para


a criança esse dia revela o seu crescimento, a concretização de mais um ano de vida. No
caso de Paulinho e como é retratado no filme Água Barrenta, esse aspecto não aparece,
ou seja, não interessa quantos anos ele está fazendo, e qual o significado social atribuído

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ao aniversário enquanto uma data cronológica, mas o seu acontecimento como algo que
poderia de alguma forma justificar a sua demanda infantil. Entretanto,

O aniversário representa um papel importante no processo de socialização da


criança, na medida em que a posiciona em sua família, na sua rede de amigos
e na cultura em que está inserida. É um acontecimento que também posiciona
a criança histórica e psicologicamente em relação a si mesma e àqueles com
quem convive. (SANTOS, 2013, p.256)

Nesse dia, Paulinho se situa em um lugar diferente em relação às outras crianças


na mesma situação. Aquele dia lhe dá o direito de reivindicar a realização de um desejo,
e nesse sentido, o dia do seu aniversário é um salvo-conduto para merecer tomar uma
Coca-Cola.
“Toin, Tião bora alí na padaria... bora pedir uma Coca pra Paulinho. Hoje é o
aniversário dele!”. Já nessa fala de uma das crianças, o dia do aniversário aparece como
uma justificativa para que o desejo da Paulinho seja realizado. Sem dinheiro, as crianças
partem tendo o dia do aniversário com um forte argumento para fazer o que parece já
estarem habituadas: pedir.
No contexto em que se encontram as crianças, poder tomar uma Coca-Cola no dia
do aniversário passa a configurar-se como um direito, “Tu nunca tomou uma Coca na tua
vida?!”, Essa surpresa da companheira de Paulinho pode revelar o quanto é corriqueiro
tomar uma Coca-Cola, mas ao mesmo tempo o desenrolar da história vai mostrando que
para aquelas crianças esse ato banal, não seria tão fácil. A cada tentativa frustrada, vamos
conhecendo um pouco da realidade do que passam as crianças em situação de rua, sem
direito a alimentação e habitação.
Em nossas experiências reais com crianças que vivem na rua, o argumento da
fome é o mais usado quando nos interpelam, “me dá um trocado, estou com fome!”. Ou
“compra um pão pra mim!”. Mas na história de Paulinho e dos seus três companheiros,
esse argumento parece não mais comover. Em outra tentativa, as crianças entram em um
bar onde dois homens almoçam enquanto o dono reclama do governo. Ao ver as crianças
entrando o dono atrás do balcão grita:

- Que isso moleques? Vamos... Dão o fora daqui! Aqui não é lugar pra vocês, não!
Vão embora, vão, vão, vão! Lava, lava, lava!
As crianças paradas no balcão nem se mexem. Uma delas diz:
- Tio me dá o que comer, eu tou com fome,

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Pulinho completa:
- Eu tou morrendo de sede
Dono do bar:
- Cadê o dinheiro?!
- Tem dinheiro não... Responde um dos meninos.
- Se não tem dinheiro, não tem comida! – diz Seu Manoel
Um dos clientes do bar interfere:
- Eu deixo um restinho pra tu pirralho!
A menina fala: Vai Tio, hoje é aniversário dele ó!
- E eu com isso?! Vão dando o fora, vão. Vão s’imbora, vão! – brada Seu Manoel
Paulinho continua:
- Tou morrendo de sede, moço, por favor!
Um dos clientes outra vez interrompe:
- Vai Manoel, dá um negócio pra eles, não custa nada!
O outro cliente completa:
- Vai Manoel! É aniversário do menino!
- Manoel se convence: Ta bem, mas só hoje! Vou dar pra cada qual uma coxinha...
- Agora... Vão comer lá fora!

O visível o constrangimento das crianças, demonstra o reconhecimento dos seus


lugares e do significado do que viria seguir. Todos os amigos esperam, como que dando
coragem a Paulinho que, envergonhado, parado no balcão, se revela:
- Moço, me dá uma Coca? Tanto o dono do bar quanto os clientes riem as
gargalhadas. - Ta vendo a folga?” Diz o dono do bar, e contrariando alguns dos
slogans conclamados pela Coca-Cola ao longo da sua existência (“Sede não tem
estação”, “O melhor amigo que a sede já teve”, “Sede pede mais nada”, Coca-
Cola tem o sabor para a sede) completa:
- O que mata sede aqui é agua, meu filho e coloca sobre o balcão um copo de água
para Paulinho, que, desconsolado, toma um gole.

O aniversário parece ocupar para as crianças o lugar de uma experiência que as


coloca sempre em relação ao outro (SANTOS, 2013, p.166). No filme, o “só hoje” de Seu
Manoel manifesta que uma exceção foi aberta pelo inusitado do dia. Ao mesmo tempo o
aniversário vale, mas não vale o que se considera melhor para o outro, não vale a decisão
e o desejo do outro como regra do dia. Assim, a indignação das crianças diante da
insensibilidade de Seu Manoel ganha potência justamente por que essa regra social não
foi considerada.
Nos discursos produzidos pela narrativa do filme, a Coca-Cola ganha destaque.
Nas mãos de um outro menino, seu líquido não tem serventia, vira lixo, o que interessa é
lata que serve para ser reciclada. Nessa cena, em que Paulinho, ao vê-la abandonada em
um banco, corre na esperança de satisfazer sua vontade que é logo frustrada, vai

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aparecendo como a Coca-Cola para Paulinho, se configura como supérfluo aos olhos dos
outros. Talvez por isso ele tente justificar a sua reivindicação pelo dia do aniversário:

Como é teu nome moleque?


- Paulo Henrique, me dá 1 Real!
- Pra que tu quer 1 Real?
- Pra comprar uma Coca-Cola que hoje é meu anivers...
- Coca-Cola Boy?! (risadas) Aí não dá boy! Pede ali pros grã-finos véi!

Heslon (2007) afirma que o aniversário tem muito a nos revelar sobre a nossa
época. Para ele o aniversário traz o indivíduo à singularidade da sua origem, pois: [...]
situa-lhe na escala das idades, reinscreve-lhe no longo tempo do calendário e o destaca
de outras pessoas com outras datas de nascimento. Ele é, portanto, constitutivo de
identidades individuais. (p.26.).
E naquela condição, o que o dia do seu aniversário revelava a Paulinho?
Retomando a ideia de pensar a infância e a diversidade das condições de existência em
que vivem as crianças, falar de aniversário de crianças hoje é falar de um fenômeno onde
se integra a expansão de um mercado para a infância, do qual, a meu ver, as crianças
naquelas situações do filme não estão excluídas. Isto porque sua vivência estará
impregnada desta lógica do consumo seja no plano do desejo ou da real possibilidade de
aquisição dos produtos a ela apresentados. (SANTOS, 2005, P. 49). E foi justamente no
Mcdonalds, rede emblemática desse imenso mercado, que as crianças foram impedidas
de entrar pelas condições de serem crianças “de rua”, ainda que tivessem dinheiro. É essa
condição de criança de rua que ele, Paulinho é o que é, igual a todos os outros que vivem
em igual condição. Isso pode ser percebido na fala do policial, numa cena em que ele,
Paulinho é acusado de roubo: “menor”, “tudo cheira cola, dá tudo na mesma”, “diga com
quem andas que te direi quem és...”, Ou na fala de um pai, que ao ver Paulinho se
aproximar da janela do carro onde estava seu filho segurando um jogo eletrônico, grita:
“que é isso moleque?! Quer levar um tiro é?! Esse moleque tava querendo roubar o
brinquedo do nosso filho... Vou chamar a polícia viu moleque...!”
Aí reside a lógica perversa da sociedade do consumo na qual os lugares sociais já
são demarcados. Entretanto, paradoxalmente, é do seu lugar já demarcado, em torno de
um discurso onde são corriqueiras as palavras Febem, grupo de extermínio, violência,
desconfiança, injustiça, ameaça que o desejo de Paulinho emerge. “Coca-Cola Boy?! Aí
não dá boy!”. Que desejo cabe na desigualdade? O argumento do aniversário faz Paulinho
ser visto e reconhecido em um contexto de invisibilidade e descaso por parte daqueles

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que se deparam com ele nas ruas. E é com esse argumento que Paulinho nos mostra que,
apesar de tudo, somos sujeitos das nossas vivências. Através da busca de um
reconhecimento afetivo que é o seu aniversário, Paulinho busca também um
reconhecimento social, uma inclusão na dinâmica social e afirma que, mesmo aquilo que
chamamos de água barrenta, ele tem o direito de bebê-la.

Referências

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publicitário, considerações sobre as propagandas da Coca-Cola. Tese de Doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de
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CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadão: conflitos multiculturais da


globalização. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 1999.

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file:///C:/Users/Nubia/Downloads/4306-10051-2-PB.pdf

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