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O Cinematógrafo Visto Do Etna PDF
O Cinematógrafo Visto Do Etna PDF
/ Jean Epstein
1 Até então inédito em português, este texto corresponde ao primeiro capítulo do livro de Epstein
Le cinématographe vu de l’Etna (Paris: Les Écrivains Réunis, 1926), traduzido aqui em sua versão
reeditada no volume Jean Epstein, Écrits sur le cinéma, tome 1 (1921-1953), Paris: Seghers, 1974,
p.131-137.
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Em Linguaglossa, os muladeiros nos esperavam diante do front de
lava negro, sulcado de púrpura como um belo tapete. Essa parede de
brasa avançava por desmoronamentos sucessivos. Sob seu impacto,
as casas, mal protegidas por imagens santas, estilhaçavam com um
barulho de nozes quebradas. Grandes árvores, tocadas em seu pé,
inflamavam-se de repente, da raiz até a copa e queimavam como
tochas, roncando. Amanhecia. Mulas inquietas, ventas esticadas,
deitavam as orelhas. Homens impotentes rondavam.
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as rachaduras do outono, retorcida, torrada, até cair enfim, ao sopro
do fogo. E a árvore nua, negra, ficava de pé por um instante em seu
inverno ardente. Não havia mais pássaros, não havia mais insetos.
Como o arcabouço de uma ponte sob um caminhão muito pesado,
a terra estriada com finos sulcos era atravessada por um frêmito
contínuo. A lava se propagava com o barulho de milhões de pratos
quebrados de um só golpe. Bolsas de gás se rasgavam assoviando
docemente como serpentes. O cheiro do braseiro, um cheiro sem
cheiro, mas cheio de pontadas2 e de amargor, envenenava os peitos
até o fundo. Sob o céu, pálido e seco, a verdadeira morte reinava.
Batalhões, funcionários, engenheiros, geólogos, contemplavam
essa personagem natural de qualidade, que lhes inspirava, a esses
democratas, uma idéia do poder absoluto e do direito divino.
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como Vênus, como ela nascidos, cheios de graças, de simetrias e
das mais secretas correspondências. Jogos do céu, assim mundos
caem - de onde?- , num espaço de luz. Assim os pensamentos e as
palavras. Toda a vida se cobre de signos ordenados. As pedras têm,
para crescer e se unir, gestos bonitos e regulares como os encontros
de lembranças amadas. Anjos submarinos, órgãos de volúpia,
as medusas secretas dançam. Insetos aparecem grandes como
couraçados, cruéis como a inteligência, e se entre-devoram. Ah!
Temo os futuristas que têm a tentação de substituir os verdadeiros
dramas pelos falsos, feitos com qualquer coisa: a aviação e o fogo
central, as hóstias consagradas e a guerra mundial. Receio que eles
escrevam um drama de cabotinagem para os cristais e as medusas
do cinema. O que é necessário imaginar aí? Os cascos de nossas
mulas arranhavam o lugar de uma verdadeira tragédia. A terra tinha
uma figura humana e obstinada. Nos sentíamos em presença de
alguém e à sua espera. Os risos e os apelos deslumbrantes de nossos
oito muladeiros tinham se calado. Caminhávamos no silêncio de um
pensamento tão comum [a nós todos] que eu o sentia diante de nós
como uma décima primeira e enorme pessoa. Não sei se consigo
fazer compreender bem a que ponto isto é cinema, esse personagem
de nossa preocupação. E que personagem? Acontece de estarmos
em presença de um homem idoso e poderoso, apressado, míope e
ruim de ouvido. Você espera uma resposta dele, mas o compreende
menos ainda do que ele a você, provavelmente porque as respectivas
línguas são diferentes e os pensamentos desconhecidos. Eu tinha
também como camarada um chinês muito europeu. Uma manhã
nós estudávamos as flores do jardim botânico: subitamente meu
camarada se enfureceu para valer. Nunca pude penetrar essa cólera
e essa tristeza intransponíveis de que ele se cercou, como seu país
da grande muralha. Assim, frequentemente, a ponta extrema das
sensibilidades nos é inacessível e às vezes uma alma inteira, cheia de
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força e astúcia, nos é vedada. Como diante de uma destas, eu estava
diante do Etna.
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fogo surgiam de uma fenda quase circular e desciam a encosta,
formando um rio vermelho como as cerejas maduras e largo como
o Sena em Rouen. Os vapores cobriam o céu inteiro com um branco
de porcelana. Pequenas rajadas de vento bravo e fétido levantavam
turbilhões de cinza que volteavam rentes ao solo, estranhas gaivotas
vivendo nas beiras da labareda maior. Os muladeiros seguravam
pelas ventas as mulas que não havia onde amarrar e que queriam
fugir. Guichard, meu operador, como as crianças que brincam muito
perto do fogo e a quem, dizem, vai acontecer desgraça, filmava uma
fusão cujo valor ninguém adivinhou. Um homem alto apareceu de
repente através das fumaças, saltando com uma incrível temeridade,
de rochedo em rochedo, à beira da cratera, como o anjo da guarda
bizarro desse lugar, é bem verdade, mais propício do que qualquer
outro às transmutações da magia. Ele se aproximava a grandes
passadas. Era idoso e seco, coberto de cinza até entre os pelos de
sua barbicha, com o branco dos olhos muito vermelho, roupas aqui
e ali arruivascadas e o ar geralmente feiticeiro. Não estou certo se
não era um verdadeiro diabo, mas ele se dizia um geólogo sueco.
Falando comigo, ele fazia gestos com um termômetro metálico
comprido como um guarda-chuva. Há uma semana este homem vivia
muito calmo, na única e imediata companhia do vulcão. A alguns
passos de lá ele acampava sob uma tenda onde se via a noite tão
claramente como o dia e que o frêmito do solo sacudia com uma
corrente de ar contínua. Seus bolsos estavam cheios de pedaços
de lava e de papeis. Puxando seu relógio, ele anotou exatamente a
hora de nosso encontro. Ele fez com a sua mão em corneta um alto
falante e com a boca quase sobre a minha orelha, gritou palavras
que eu quase não ouvi: “Hoje parece que tudo deve ficar calmo. Mas
ontem, um jornalista italiano desceu daqui meio louco”. Eu já o sabia:
ao subirmos, nós o cruzamos descendo com seus guias, abalado e
falante. Onde nós estávamos, o barulho era o de uma centena de
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correntezas queimando um viaduto metálico. Em alguns minutos,
tal estrondo se tornou silêncio, propício à imaginação. E por toda a
parte se estendiam as cinzas.
3 No original, «entouré de moi-mêmes», a expressão moi-même usada com valor expressivo como um
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palavras sussurradas na Orelha de Dionísio, o tirano, se avolumam
e urram com toda a força4. Essa escada sendo o olho de outro
tirano, ainda mais espião. Eu o descia como que através das facetas
óticas de um imenso inseto. Outras imagens, por seus ângulos
contrários, se recortavam e se amputavam; diminuídas, parciais, elas
me humilhavam. Pois é o efeito moral de um tal espetáculo que é
extraordinário. Cada vista é uma surpresa desconcertante que ultraja.
Jamais eu me vira tanto, e me olhava com terror. Eu compreendia
esses cães que latem e esses macacos que babam de raiva diante
de um espelho. Eu me acreditava um, e percebendo-me outro, esse
espetáculo rompia todos os hábitos de mentira que eu chegara a criar
para mim mesmo. Cada um desses espelhos me apresentava uma
perversão de mim, uma inexatidão da esperança que eu tinha em
mim. Esses vidros espectadores me obrigavam a me olhar com sua
indiferença, sua verdade. Eu aparecia para mim numa grande retina
sem consciência, sem moral, com sete andares de altura. Eu me via
privado de ilusões alimentadas, surpreso, desnudado, arrancado,
seco, verdadeiro, peso líquido. Eu teria corrido longe para escapar a
esse movimento de parafuso em que eu parecia afundar rumo a um
centro horrível de mim mesmo. Uma tal lição de egoísmo às avessas
é impiedosa. Uma educação, uma instrução, uma religião, tinham me
consolado pacientemente de existir. Tudo devia recomeçar.
4 Epstein alude aqui a uma antiga prisão de Siracusa, hoje sítio histórico e arqueológico muito visitado,
em que um fenômeno de propagação acústica permitiria, segundo a lenda, ao tirano Dionísio (431-367
a.C.) escutar do lado de fora da caverna (num ponto batizado assim de “Orelha de Dionísio”) o que
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não choram perturbam-se. Não se deve ver nisso um mero efeito
da presunção de si próprio e de uma vaidade exagerada. Pois a
missão do cinema não parece ter sido compreendida exatamente.
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pouco que se detenha nessa constatação, toda comparação entre
o teatro e o cinema se torna impossível. A essência mesma desses
dois modos de expressão é diferente. Assim, a outra propriedade
original da objetiva cinematográfica é essa força analítica. A arte
cinematográfica deveria depender dela. Que pena!
5 No original, «ce regard de verre nous perce à son jour d’ampères». [N.d.T.].
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