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\ O cinematógrafo visto do Etna1 (1926)

/ Jean Epstein

Sicília! A noite era um olho cheio de olhar. Todos os perfumes


gritavam ao mesmo tempo. Uma mola desmontada parou nosso carro
cercado de lua como de um mosquiteiro. Fazia calor. Impacientes,
os motoristas interromperam a mais bela novela para bater na
carroceria a grandes golpes de chave inglesa, injuriando o Cristo
e sua mãe com uma fé cega. Diante de nós: o Etna, grande ator
que faz brilhar seu espetáculo duas ou três vezes no século e cuja
fantasia trágica eu chegava para cinematografar. Toda uma vertente
da montanha era somente uma gala de fogo. O incêndio se alastrava
ao canto avermelhado do céu. A vinte quilômetros de distância, o
rumor chegava por instantes como de um longínquo triunfo, de
milhares de aplausos, de uma imensa ovação. Qual ator trágico de
qual teatro já conheceu tamanha tempestade de sucesso? A terra
doente, mas dominada, abrindo-se em aclamações. Um calafrio seco
correu subitamente no solo onde pousávamos nossos pés. O Etna
telegrafava os extremos solavancos de seu desastre. Depois fez-
se um grande silêncio no qual se estendeu novamente o canto dos
motoristas.

As estradas do Piemonte subetniano tinham sido fechadas por


precaução. A cada cruzamento, camisas pretas nos pediam nossa
autorização para circular. Mas estes soldados, na sua maioria, não
sabiam ler e o prospecto multicor, com que eu embrulhara meu tubo
de aspirina, impressionava-os mais do que a autêntica assinatura do
Prefeito de Catânia.

1  Até então inédito em português, este texto corresponde ao primeiro capítulo do livro de Epstein

Le cinématographe vu de l’Etna (Paris: Les Écrivains Réunis, 1926), traduzido aqui em sua versão

reeditada no volume Jean Epstein, Écrits sur le cinéma, tome 1 (1921-1953), Paris: Seghers, 1974,

p.131-137.

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Em Linguaglossa, os muladeiros nos esperavam diante do front de
lava negro, sulcado de púrpura como um belo tapete. Essa parede de
brasa avançava por desmoronamentos sucessivos. Sob seu impacto,
as casas, mal protegidas por imagens santas, estilhaçavam com um
barulho de nozes quebradas. Grandes árvores, tocadas em seu pé,
inflamavam-se de repente, da raiz até a copa e queimavam como
tochas, roncando. Amanhecia. Mulas inquietas, ventas esticadas,
deitavam as orelhas. Homens impotentes rondavam.

Belo vulcão! Às suas, eu não vi expressões comparáveis. A queima


cobrira tudo da mesma cor sem cor, cinza, fosca, morta. Cada folha
de cada árvore, a olhos vistos, passava por todas as tintas e todas

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as rachaduras do outono, retorcida, torrada, até cair enfim, ao sopro
do fogo. E a árvore nua, negra, ficava de pé por um instante em seu
inverno ardente. Não havia mais pássaros, não havia mais insetos.
Como o arcabouço de uma ponte sob um caminhão muito pesado,
a terra estriada com finos sulcos era atravessada por um frêmito
contínuo. A lava se propagava com o barulho de milhões de pratos
quebrados de um só golpe. Bolsas de gás se rasgavam assoviando
docemente como serpentes. O cheiro do braseiro, um cheiro sem
cheiro, mas cheio de pontadas2 e de amargor, envenenava os peitos
até o fundo. Sob o céu, pálido e seco, a verdadeira morte reinava.
Batalhões, funcionários, engenheiros, geólogos, contemplavam
essa personagem natural de qualidade, que lhes inspirava, a esses
democratas, uma idéia do poder absoluto e do direito divino.

Como, paralelamente à enxurrada de lava e nas costas de mulas,


nós subíamos em direção à cratera em atividade, eu pensava em
você, Canudo, que punha tanta alma nas coisas. Você foi o primeiro,
eu creio, a sentir que o cinema une todos os reinos da natureza
em um só, o da maior vida. Ele põe Deus em toda a parte. Diante
de mim, em Nancy, uma sala de trezentas pessoas gemeu em voz
alta, vendo na tela um grão de trigo germinar. Surgido de repente,
o verdadeiro rosto da vida e da morte, o do terrível amor, arranca
tais gritos religiosos. Que igrejas, se nós soubéssemos construí-
las, deveriam abrigar esse espetáculo em que a vida é revelada?
Descobrir inopinadamente, como pela primeira vez, todas as coisas
sob o seu ângulo divino, com seu perfil de símbolo e o seu mais
vasto sentido de analogia, com um ar de vida pessoal, tal é a grande
alegria do cinema. Provavelmente, houve jogos na Antiguidade, e
“mistérios” na Idade Média, que suscitavam assim, ao mesmo tempo,
tanta piedade e tanto divertimento. Na água crescem cristais, belos

2  No original, «picotements». [N.d.T.]

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como Vênus, como ela nascidos, cheios de graças, de simetrias e
das mais secretas correspondências. Jogos do céu, assim mundos
caem - de onde?- , num espaço de luz. Assim os pensamentos e as
palavras. Toda a vida se cobre de signos ordenados. As pedras têm,
para crescer e se unir, gestos bonitos e regulares como os encontros
de lembranças amadas. Anjos submarinos, órgãos de volúpia,
as medusas secretas dançam. Insetos aparecem grandes como
couraçados, cruéis como a inteligência, e se entre-devoram. Ah!
Temo os futuristas que têm a tentação de substituir os verdadeiros
dramas pelos falsos, feitos com qualquer coisa: a aviação e o fogo
central, as hóstias consagradas e a guerra mundial. Receio que eles
escrevam um drama de cabotinagem para os cristais e as medusas
do cinema. O que é necessário imaginar aí? Os cascos de nossas
mulas arranhavam o lugar de uma verdadeira tragédia. A terra tinha
uma figura humana e obstinada. Nos sentíamos em presença de
alguém e à sua espera. Os risos e os apelos deslumbrantes de nossos
oito muladeiros tinham se calado. Caminhávamos no silêncio de um
pensamento tão comum [a nós todos] que eu o sentia diante de nós
como uma décima primeira e enorme pessoa. Não sei se consigo
fazer compreender bem a que ponto isto é cinema, esse personagem
de nossa preocupação. E que personagem? Acontece de estarmos
em presença de um homem idoso e poderoso, apressado, míope e
ruim de ouvido. Você espera uma resposta dele, mas o compreende
menos ainda do que ele a você, provavelmente porque as respectivas
línguas são diferentes e os pensamentos desconhecidos. Eu tinha
também como camarada um chinês muito europeu. Uma manhã
nós estudávamos as flores do jardim botânico: subitamente meu
camarada se enfureceu para valer. Nunca pude penetrar essa cólera
e essa tristeza intransponíveis de que ele se cercou, como seu país
da grande muralha. Assim, frequentemente, a ponta extrema das
sensibilidades nos é inacessível e às vezes uma alma inteira, cheia de

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força e astúcia, nos é vedada. Como diante de uma destas, eu estava
diante do Etna.

Uma das maiores forças do cinema é o seu animismo. Na tela não


há natureza morta. Os objetos têm atitudes. As árvores gesticulam.
As montanhas, como este Etna, significam. Cada acessório se
torna um personagem. Os cenários se fragmentam e cada um de
seus pedaços ganha uma expressão particular. Um panteísmo
surpreendente renasce no mundo e o satura. A erva da pradaria é
um gênio sorridente e feminino. Anêmonas cheias de ritmo e de
personalidade evoluem com a majestade dos planetas. A mão se
separa do homem, vive sozinha, sozinha sofre e se alegra. E o
dedo se separa da mão. Toda uma vida se concentra subitamente
e encontra sua expressão mais aguda nessa unha que atormenta
maquinalmente uma caneta carregada de tempestade. Houve um
tempo, ainda recente, em que não havia dramas americanos sem
a cena do revólver que alguém retirava lentamente de uma gaveta
meio aberta. Eu amava esse revólver. Ele aparecia como o símbolo de
mil possibilidades. Os desejos e os desesperos que ele representava:
a multidão de combinações das quais ele era uma chave; todos os
fins, todos os começos que ele permitia imaginar, tudo isso lhe
conferia uma espécie de liberdade e uma personalidade moral. Uma
tal liberdade, uma alma assim são mais epifenomenais do que as que
supomos nossas?

Enfim, quando o homem aparece inteiro é a primeira vez que o vemos


com um olho que não é, ele tampouco, um olho humano. O lugar para
mim de pensar a mais amada máquina viva foi essa zona de morte
quase absoluta que cercava a um ou dois quilômetros as primeiras
crateras. Os cirurgiões mais cuidadosos preparam campos operatórios
menos assépticos. Eu estava deitado na cinza morna e móvel como
um pelo de animal grande. A duzentos metros, as correntezas do

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fogo surgiam de uma fenda quase circular e desciam a encosta,
formando um rio vermelho como as cerejas maduras e largo como
o Sena em Rouen. Os vapores cobriam o céu inteiro com um branco
de porcelana. Pequenas rajadas de vento bravo e fétido levantavam
turbilhões de cinza que volteavam rentes ao solo, estranhas gaivotas
vivendo nas beiras da labareda maior. Os muladeiros seguravam
pelas ventas as mulas que não havia onde amarrar e que queriam
fugir. Guichard, meu operador, como as crianças que brincam muito
perto do fogo e a quem, dizem, vai acontecer desgraça, filmava uma
fusão cujo valor ninguém adivinhou. Um homem alto apareceu de
repente através das fumaças, saltando com uma incrível temeridade,
de rochedo em rochedo, à beira da cratera, como o anjo da guarda
bizarro desse lugar, é bem verdade, mais propício do que qualquer
outro às transmutações da magia. Ele se aproximava a grandes
passadas. Era idoso e seco, coberto de cinza até entre os pelos de
sua barbicha, com o branco dos olhos muito vermelho, roupas aqui
e ali arruivascadas e o ar geralmente feiticeiro. Não estou certo se
não era um verdadeiro diabo, mas ele se dizia um geólogo sueco.
Falando comigo, ele fazia gestos com um termômetro metálico
comprido como um guarda-chuva. Há uma semana este homem vivia
muito calmo, na única e imediata companhia do vulcão. A alguns
passos de lá ele acampava sob uma tenda onde se via a noite tão
claramente como o dia e que o frêmito do solo sacudia com uma
corrente de ar contínua. Seus bolsos estavam cheios de pedaços
de lava e de papeis. Puxando seu relógio, ele anotou exatamente a
hora de nosso encontro. Ele fez com a sua mão em corneta um alto
falante e com a boca quase sobre a minha orelha, gritou palavras
que eu quase não ouvi: “Hoje parece que tudo deve ficar calmo. Mas
ontem, um jornalista italiano desceu daqui meio louco”. Eu já o sabia:
ao subirmos, nós o cruzamos descendo com seus guias, abalado e
falante. Onde nós estávamos, o barulho era o de uma centena de

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correntezas queimando um viaduto metálico. Em alguns minutos,
tal estrondo se tornou silêncio, propício à imaginação. E por toda a
parte se estendiam as cinzas.

Na antevéspera pela manhã, como eu deixava o hotel para essa


viagem, o elevador estava parado desde as seis horas e meia, entre
o terceiro e o quarto andares. O porteiro da noite, já por três horas
prisioneiro da cabine, agitava sua figura deplorável e soprava suas
queixas na altura do tapete. Para descer, tive que tomar a escada
grande ainda sem rampa, onde os operários cantavam injúrias a
Mussolini. Essa imensa espiral de degraus dizia a vertigem. Todo
o poço da escada estava coberto de espelhos. Eu descia cercado de
mim-mesmos3, de reflexos, de imagens de meus gestos, de projeções
cinematográficas. Cada curva me surpreendia sob outro ângulo. Há
tantas posições diferentes e autônomas entre um perfil e um três
quartos de costas quantas são as lágrimas no olho. Cada uma dessas
imagens só vivia por um instante. Tão logo percebida, logo perdida
de vista, já outra. Só minha memória fixava uma delas em meio à sua
infinitude, e tornava a perder duas a cada três. E havia as imagens
das imagens. As terceiras imagens nasciam das segundas. A álgebra
e a geometria descritiva dos versos apareciam. Certos movimentos
se dividiam nestas repetições: outros se multiplicavam. Eu deslocava
a cabeça e, à direita, só via a raiz desse gesto, mas à esquerda ele
se elevava à sua oitava potência. Olhando um depois o outro, eu
tomava uma outra consciência de meu perfil. Vistas paralelas se
respondiam exatamente, repercutiam, reforçavam-se, apagavam-se
como um eco, com uma rapidez bem maior que a dos fenômenos da
acústica. Gestos pequeníssimos tornavam-se muito grandes, assim
como na Latomia do Paraíso, graças à sensibilidade da rocha, as

3  No original, «entouré de moi-mêmes», a expressão moi-même usada com valor expressivo como um

substantivo no plural [N.d.T.].

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palavras sussurradas na Orelha de Dionísio, o tirano, se avolumam
e urram com toda a força4. Essa escada sendo o olho de outro
tirano, ainda mais espião. Eu o descia como que através das facetas
óticas de um imenso inseto. Outras imagens, por seus ângulos
contrários, se recortavam e se amputavam; diminuídas, parciais, elas
me humilhavam. Pois é o efeito moral de um tal espetáculo que é
extraordinário. Cada vista é uma surpresa desconcertante que ultraja.
Jamais eu me vira tanto, e me olhava com terror. Eu compreendia
esses cães que latem e esses macacos que babam de raiva diante
de um espelho. Eu me acreditava um, e percebendo-me outro, esse
espetáculo rompia todos os hábitos de mentira que eu chegara a criar
para mim mesmo. Cada um desses espelhos me apresentava uma
perversão de mim, uma inexatidão da esperança que eu tinha em
mim. Esses vidros espectadores me obrigavam a me olhar com sua
indiferença, sua verdade. Eu aparecia para mim numa grande retina
sem consciência, sem moral, com sete andares de altura. Eu me via
privado de ilusões alimentadas, surpreso, desnudado, arrancado,
seco, verdadeiro, peso líquido. Eu teria corrido longe para escapar a
esse movimento de parafuso em que eu parecia afundar rumo a um
centro horrível de mim mesmo. Uma tal lição de egoísmo às avessas
é impiedosa. Uma educação, uma instrução, uma religião, tinham me
consolado pacientemente de existir. Tudo devia recomeçar.

O cinematógrafo, bem melhor ainda que um jogo de espelhos


inclinados, proporciona tais encontros inesperados consigo mesmo.
A inquietude diante de sua própria cinematografia é súbita e geral. É
uma anedota agora comum a dessas pequenas milionárias americanas
que choraram ao se verem pela primeira vez na tela. E aqueles que

4  Epstein alude aqui a uma antiga prisão de Siracusa, hoje sítio histórico e arqueológico muito visitado,

em que um fenômeno de propagação acústica permitiria, segundo a lenda, ao tirano Dionísio (431-367

a.C.) escutar do lado de fora da caverna (num ponto batizado assim de “Orelha de Dionísio”) o que

diziam os presos do lado de dentro. [N.d.T.]

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não choram perturbam-se. Não se deve ver nisso um mero efeito
da presunção de si próprio e de uma vaidade exagerada. Pois a
missão do cinema não parece ter sido compreendida exatamente.

A objetiva da câmera é um olho que Apollinaire teria qualificado


de surreal (sem nenhuma relação com esse surrealismo de hoje),
um olho dotado de propriedades analíticas inumanas. É um olho
sem preconceitos, sem moral, isento de influências, e ele vê no rosto
e no movimento humanos traços que nós, carregados de simpatias
e antipatias, de hábitos e reflexões, não sabemos mais ver. Por

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pouco que se detenha nessa constatação, toda comparação entre
o teatro e o cinema se torna impossível. A essência mesma desses
dois modos de expressão é diferente. Assim, a outra propriedade
original da objetiva cinematográfica é essa força analítica. A arte
cinematográfica deveria depender dela. Que pena!

Se o primeiro movimento diante de nossa própria reprodução


cinematográfica é uma espécie de horror, é que, civilizados,
mentimos cotidianamente os nove décimos de nós mesmos (sem
que seja necessário citar as teorias de Jules de Gaultier ou as de
Freud). Mentimos sem mais saber. Bruscamente este olhar de vidro
nos penetra com sua luz amperizada5. É nessa potência analítica
que se encontra a fonte inesgotável do futuro cinematográfico.
Villiers nunca sonhou uma tal máquina de confessar as almas. E vejo
bem futuras inquisições arrancarem provas comprometedoras de
um filme em que um suspeito aparecerá capturado, esfolado, traído
minuciosamente e sem parti pris por esse tão sutil olhar do vidro.

Traduzido do francês por Íris Araújo e Mateus Araújo.

5  No original, «ce regard de verre nous perce à son jour d’ampères». [N.d.T.].

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