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Fundamentos do Direito Constitucional 1

2 Paulo Márcio Cruz


Fundamentos do Direito Constitucional 3

FUNDAMENTOS
DO DIREITO
CONSTITUCIONAL
2ª Edição
Revisada e Ampliada
4 Paulo Márcio Cruz

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ISBN: 85-362-0440-0

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Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco

Cruz, Paulo Márcio.


C957 Fundamentos do direito constitucional./ Paulo Márcio
Cruz./ 2ª edição./ Curitiba: Juruá, 2003.
304p.

1. Direito constitucional. I. Título.

CDD 342
CDU 342
Fundamentos do Direito Constitucional 5

Paulo Márcio Cruz


Doutor e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa
Catarina, Coordenador para o Programa de Mestrado Profissionalizante
em Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, na qual é também
professor de Teoria Política e Teoria e Direito Constitucional nos cursos de
graduação, mestrado e doutorado. É professor convidado das Universidades
de Alicante, na Espanha, e de Perugia, na Itália. Foi Vice-Reitor da UNIVALI
e Secretário de Educação de Itajaí (SC). É autor dos livros Municipalização
da Educação, de 1992, Parlamentarismo em Estados Contemporâneos:
os modelos da Inglaterra, Portugal, França e Alemanha, de 1999,
e Política, Poder, Ideologia e Estado Contemporâneo, de 2000.

FUNDAMENTOS
DO DIREITO
CONSTITUCIONAL
2ª Edição
Revisada e Ampliada

2003
Juruá Editora
Curitiba
6 Paulo Márcio Cruz
Fundamentos do Direito Constitucional 7

Aos meus alunos e alunas, pelo estímulo,


carinho e auxílio na confecção desta obra.
Aos meus colegas professores do Curso de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica e do
Curso de Graduação da Univali.
À Prof.ª Mestre Maria de Assis Strazeio, pela
competente revisão ortográfica.
Ao Prof. Mestre Valdir Colzani, pela ótima
revisão metodológica.
À mestranda Renata Benedet, minha assistente
na Disciplina Teoria Constitucional, pelas anotações e
correções feitas durante as aulas no curso de graduação
em Direito da Univali.
Ao Professor Doutor Álvaro Borges de
Oliveira, à Daniela e à Jaqueline, pelo apoio recebido.
8 Paulo Márcio Cruz
Fundamentos do Direito Constitucional 9

Para Etelvina, Alice, Paula e Lygia, com


amor.
10 Paulo Márcio Cruz
Fundamentos do Direito Constitucional 11

APRESENTAÇÃO

Foi com imensa satisfação que recebi o honroso convite do Dr.


Paulo Márcio Cruz para escrever algumas palavras de apresentação de
seu importante livro “Fundamentos do Direito Constitucional”, que ora
está sendo entregue, em boa hora, à comunidade acadêmica e ao país.
Docente nos cursos de graduação e pós-graduação da Univali,
Paulo M. Cruz soube, com profundidade e competência, não só
problematizar os grandes temas e princípios do Direito Constitucional,
como, sobretudo, recuperar a relevância da discussão constitucional na
sua tradição, seja do Direito Público, seja do próprio estudo das
Instituições Políticas no Brasil. No percurso da obra, fica claro o esforço
de ressaltar o processo histórico do surgimento, dos pressupostos e do
desenvolvimento do Direito Constitucional na construção das instituições
políticas modernas. É uma rica pesquisa que envolve a tradição
constitucionalista ocidental, destacando a função dos poderes do Estado,
a natureza maior e o exercício do poder constituinte, a supremacia
legítima da Constituição e, sobretudo, a problematização acerca da
proteção e garantia dos direitos universais. De fato, dois pontos chamam
a atenção na exposição do conteúdo muito bem distribuído em seus doze
capítulos: Constituição como instrumento de organização da vida
política moderna e os princípios dos direitos fundamentais como base de
inspiração da cultura jurídica ocidental. Os Direitos do Homem, que
compõem o discurso da modernidade, vêm a ser a expressão mais
autêntica e avançada de prerrogativas na organização, reivindicação e
participação social.
Em tempos da desumanização neoliberal-individualista e dos
excludentes processos de globalização, a luta por reconhecimento,
garantia e efetivação dos direitos consagrados constitucionalmente
torna-se, hoje, uma das condições essenciais para o exercício de uma
sociedade democrática no espaço do Estado de Direito.
Certamente, o atual estágio de acumulação flexível do
capitalismo transnacional, as mudanças nas sociedades em
desenvolvimento, o enfraquecimento dos Estados nacionais e a investida
12 Paulo Márcio Cruz

conservadora das teses neoliberais acabaram por impulsionar não só


uma crise de representação política, mas, sobretudo, uma crise que
alcança os processos convencionais de democratização e atravessa as
práticas de legitimação nos Estados sociais de Direito. Assim, o
surgimento de novas formas de dominação e exclusão produzidas pela
globalização e pelo neoliberalismo afetou substancialmente as práticas
políticas, as formas de representação e de legitimação, bem como a
própria instância maior e tradicional de poder, o Estado nacional
soberano. Frente ao declínio das funções convencionais e da inoperância
da democracia formal, abre-se a discussão para o resgate consciente do
espaço público societário, pautado nas diretrizes de uma ordem
constitucionalmente democrática.
A construção e a consolidação de instituições democráticas se
materializam, cada vez mais, com o reconhecimento e a efetivação dos
direitos civis, políticos e sociais presentes e assegurados por um texto
constitucional.
No contexto globalizado, marcado pela crescente
desregulamentação de direitos, ganham significado obras, como a do
Professor Paulo M. Cruz, que reafirmam o poder da Constituição e
apontam o caráter indispensável do Direito Constitucional.
O presente trabalho revela, de forma didática e
metodologicamente bem sistematizada, o Direito Constitucional em todas
suas dimensões, especialmente como disciplina central do Direito
Público, que instrumentaliza a forma e o conteúdo de sua própria
especificidade. Trata-se, portanto, de um livro especializado, voltado a
abrir um diálogo com estudantes e professores. O Autor consegue
estruturar, corretamente, um conjunto básico de assuntos, conceitos e
caracterizações técnicas numa perspectiva interdisciplinar e informativa,
sem deixar de atender a finalidades pedagógicas. Em suma, o Professor
Paulo Márcio Cruz está de parabéns, pois seu “Fundamentos do Direito
Constitucional” é oportuno e bem-vindo para uma aprendizagem séria e
questionadora, destinado tanto ao meio universitário do Direito quanto
à prática jurídica institucional.

Dr. Antonio Carlos Wolkmer


Prof. Titular dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal
de Santa Catarina
Fundamentos do Direito Constitucional 13

NOTA INTRODUTÓRIA À
SEGUNDA EDIÇÃO

Esta segunda edição, além do objetivo geral estabelecido para a


primeira edição, qual seja o de permitir que o Direito Constitucional, a
Teoria Constitucional e a Teoria do Estado possam ser discutidas com
nossos alunos a partir de um compromisso efetivo com a evolução da
Sociedade de maneira geral e não só de alguns setores ou de algumas
áreas do conhecimento, traz o resultado de um intenso exercício de
revisão, ampliação e atualização da obra.
A Ciência Jurídica, no atual Estado Constitucional, tratada de
forma descritiva, crítica e responsavelmente propositiva é base para todas
as outras questões que permeiam a vida social. Entender o Governo e o
Estado, saber como controlá-los e poder discuti-los com propriedade é o
mínimo indispensável a uma Sociedade – como a brasileira – que almeja
alcançar patamares de evolução e desenvolvimento – principalmente
social – muito mais altos e dignos do que os atuais.
Deste modo, a seqüência lógica adotada nesta segunda edição
também procura mostrar estas evoluções ocorridas em diversos países,
tanto durante o constitucionalismo moderno como no contemporâneo.
Um livro de Direito Constitucional, como tradicionalmente é
concebido, no máximo poderia tangenciar alguns aspectos fundamentais,
pois estaria mais preocupado com a discussão das normas positivadas na
Constituição em vigor naquele momento. Este não foi o propósito desta
obra.
Depois de quase duas décadas trabalhando com Teoria Geral do
Estado e Direito Constitucional em cursos de graduação e pós-graduação
e após concluir o Mestrado e o Doutorado em Direito, após escrever dois
livros dedicados à Ciência Política e à Teoria Geral do Estado, finalmente
este objetivo é alcançado: produzir uma obra que possa ser utilizada como
base para o Direito Constitucional em sua acepção mais ampla e, por via
de conseqüência, também para os outros ramos do Direito, principalmente
aqueles pertencentes ao Direito Público.
Há uma sincera esperança de que esta obra possa facilitar
muito o entendimento desta construção político-jurídica que se
14 Paulo Márcio Cruz

convencionou chamar de “Estado Constitucional”, sem o que não será


possível superá-lo.
Este é um livro que pretende servir, ainda, para a análise de
constituições as mais diversas, inclusive com a utilização do método
comparativo, em exercícios analítico-descritivos. O projeto que redundou
nesta obra levou em conta a necessidade, cada vez mais presente, de
estudos constitucionais baseados no Direito Comparado, para que
nossos alunos possam “enquadrar” as constituições nos temas próprios
dos constitucionalismos moderno e contemporâneo e, a partir dos
resultados apurados, “identificar e privilegiar as semelhanças,
considerando as diferenças”1, nas palavras competentes do nosso
querido professor Cesar Pasold.
Não há, atualmente, neste ambiente jurídico cada vez menos
endógeno, como desprezar as possibilidades de fenômenos como a
globalização passarem a estar refletidos no constitucionalismo e nas
constituições, mesmo que com intensidades e pautas variáveis.
Para se alcançar estes fins propostos, foram concebidos doze
capítulos, todos eles considerados estratégicos para a compreensão dos
Fundamentos do Direito Constitucional, nesta perspectiva socialmente
evolucionista e universalizada.
As bases conceituais e a definição do Direito Constitucional
estão tratadas de maneira a permitir a compreensão da evolução do
constitucionalismo e dos motivos burgueses que levaram à sua criação.
Com o Direito Constitucional, e isto é inevitável, está também
tratado o Estado Constitucional burguês, com seus elementos clássicos.
Neste contexto, a obra procura estabelecer os liames entre Estado e
Nação, de forma a acrescentar o fundamental ingrediente cultural à
discussão estatal-constitucional.
Mereceu um capítulo próprio o Poder Constituinte e o
Pensamento de Emmmanuel Sieyès, que estabelece a idéia de existência
de um Poder que cria a Constituição e a organização fundamental de um
Estado. A Teoria do Poder Constituinte está, sem dúvidas, entre aquelas
postulações que ganham vitalidade na medida em que o tempo passa.
Estudá-la, portanto, é fundamental para o entendimento da estrutura
lógica presente nos Estados surgidos após as revoluções burguesas do
século XVIII.
Os temas presentes no capítulo 4 tratam de demonstrar, de forma
sistemática, a evolução do constitucionalismo, através de um tratamento

1
PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: idéias e ferramentas úteis ao
pesquisador do direito. p. 88.
Fundamentos do Direito Constitucional 15

histórico, principalmente a partir da Constituição norte-americana de


1787 e das constituições européias do século XIX.
Os Princípios Constitucionais, que não estavam presentes na
primeira edição, são tratados de maneira sucinta, porém suficiente para
uma adequada conceituação, caracterização e taxionomia dos mesmos,
com o aporte teórico baseado em autores nacionais e estrangeiros.
Tratou-se também de estabelecer as bases conceituais e
caracterizadoras do Estado Moderno e do Estado Contemporâneo,
como forma de distinguir o constitucionalismo liberal clássico do
constitucionalismo social, próprio dos segundo e terceiro quartéis do
século XX. Nesta parte se procurou, também, oferecer alguns subsídios
sobre a intervenção e a regulação estatal, presentes nas constituições
hodiernas.
Desta forma, e para possibilitar o adequado entendimento das
funções do Estado, os poderes instituídos ganham lugar de destaque, junto
com uma pequena discussão acerca do princípio da separação dos
poderes, as suas funções e a discussão deste princípio aplicado aos
sistemas de governo parlamentarista e presidencialista.
Também não se poderia falar de Fundamentos do Direito
Constitucional sem a necessária abordagem da proteção dos direitos e
garantias fundamentais pela Constituição. Nesta parte, a obra permite a
análise de diversos aspectos ligados a este assunto, inclusive com a
inclusão de discussões, mesmo que panorâmicas, sobre direitos
fundamentais de terceira e quarta dimensões.
Fundamental também é a abordagem que faz o livro sobre a
Democracia e o Estado Democrático de Direito. Neste sentido, com uma
razoável consistência, são tratadas a Democracia direta e a
representativa, as eleições e os partidos políticos.
A Constituição e a intervenção do Estado na ordem econômica
e social formam o conteúdo do capítulo 9.
Na parte final, estão discutidas a defesa da Constituição e as
interações do Direito Constitucional com a forma de Estado, assim como
algumas considerações panorâmicas sobre a Constituição e o Direito
Constitucional na ordem internacional.
Nunca é demais ressaltar que esta segunda edição é resultado
de intensas discussões acadêmicas, tanto aqui no Brasil como nas
Universidades de Alicante, na Espanha, e de Perugia, na Itália, nas
quais, nos últimos dois anos, foram desenvolvidos seminários e aulas sob
nossa responsabilidade, o que vem permitindo o intercâmbio de idéias e
acesso à bibliografia estrangeira de vanguarda, fundamentais para uma
proposta bem mais além de um manual de Direito Constitucional.
16 Paulo Márcio Cruz

A delimitação escolhida para o tema não esgota, de forma


alguma, a discussão sobre os fundamentos do Direito Constitucional. O
que se pretende, ao desenvolvê-los da maneira como está feita em todos
os capítulos desta segunda edição, é que continue servindo como uma
efetiva contribuição para tal.
Por último, faz-se extremamente necessário destacar que a
Ciência Jurídica – e o Direito Constitucional – no Brasil, passam por um
momento de intenso vigor e evolução, o que permite antever uma nova fase
para nossos cursos jurídicos, com maior preocupação com qualidade, com
mais apelo à pesquisa, com mais publicações e, principalmente, maior
contribuição para a construção de uma Sociedade e de um país
socialmente justos e efetivamente democráticos.

O Autor
Fundamentos do Direito Constitucional 17

SUMÁRIO

Capítulo 1 – CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O DIREITO


CONSTITUCIONAL..................................................................21
1.1 O Direito Constitucional Como Ramo do Direito Público....................21
1.2 A Origem Histórica do Direito Constitucional.......................................25
1.3 O Conteúdo Material do Direito Constitucional....................................28
1.4 A Definição Formal do Direito Constitucional......................................30
1.5 O Direito Constitucional Como Conjunto de Normas Jurídicas............32
1.6 O Direito Constitucional Como Sistema de Conceitos Jurídicos...........34

Capítulo 2 – ESTADO E DIREITO CONSTITUCIONAL.............................37


2.1 O Estado Como Condição Prévia ao Direito Constitucional.................38
2.2 O Estado Como Forma Específica de Organização...............................39
2.3 O Estado Como Ente Territorial.............................................................42
2.4 O Estado e a Nação Cultural no Constitucionalismo: a População Como
Elemento Estatal.....................................................................................44
2.5 A Soberania Como Poder do Estado......................................................48
2.6 O Estado Como Ordenamento Jurídico..................................................52

Capítulo 3 – O PODER CONSTITUINTE......................................................55


3.1 Nota Introdutória ao Poder Constituinte................................................55
3.2 O Pensamento de Emmanuel Sieyès e a Teoria do Poder Constituinte....57
3.3 Abordagem Conceitual do Poder Constituinte.......................................60
3.4 A Titularidade do Poder Constituinte.....................................................61
3.5 Os Tipos de Poder Constituinte: Originário e Derivado........................63
3.6 Agentes e Métodos de Exercício do Poder Constituinte........................68
3.7 Os Limites do Poder Constituinte..........................................................71

Capítulo 4 – AS FONTES DO DIREITO CONSTITUCIONAL....................77


4.1 A Constituição Como Fonte Primária....................................................77
4.2 O Conteúdo da Constituição..................................................................80
18 Paulo Márcio Cruz
4.3 A Supremacia da Constituição...............................................................81
4.4 A Reforma da Constituição....................................................................83
4.5 A Mutação Constitucional......................................................................86
4.6 As Outras Fontes do Direito Constitucional..........................................87
4.6.1 A Legislação Como Fonte do Direito Constitucional....................88
4.6.2 A Jurisprudência Como Fonte do Direito Constitucional..............92
4.6.3 O Costume e o Direito Constitucional...........................................95

Capítulo 5 – OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS....................................99


5.1 O Conceito e Caracterização de Princípio Constitucional...................101
5.2 Classificação dos Princípios Constitucionais.......................................107
5.3 Uma Síntese Classificatória.................................................................112
5.4 Os Princípios Constitucionais no Constitucionalismo Brasileiro........114

Capítulo 6 – O DIREITO CONSTITUCIONAL E OS PODERES


INSTITUÍDOS DO ESTADO..................................................119
6.1 A Separação de Poderes Como Princípio Básico da Organização Cons-
titucional...............................................................................................121
6.2 O Poder Legislativo – O Parlamento...................................................123
6.3 O Poder Executivo – As Funções do Governo.....................................129
6.4 O Poder Judiciário e a Função Jurisdicional........................................135
6.5 A Independência do Poder Judiciário...................................................136
6.6 A Aplicação do Direito Pelos Juízes....................................................139
6.7 O Controle Externo do Poder Judiciário..............................................142
6.8 A Aplicação do Princípio da Separação dos Poderes – Os Sistemas
Presidencialista e Parlamentarista........................................................143
6.9 Sistemas Racionalizados......................................................................150

Capítulo 7 – O DIREITO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDA-


MENTAIS.................................................................................153
7.1 Concepções Filosófica e Jurídica dos Direitos e Garantias Funda-
mentais.................................................................................................153
7.2 A Tipificação do Conteúdo dos Direitos e Garantias Fundamentais....156
7.3 Os Direitos e Garantias de Liberdade e de Participação: A Primeira
Dimensão..............................................................................................158
7.3.1 Os Direitos e Garantias de Liberdade..........................................158
7.3.2 Os Direitos de Participação ou Direitos Políticos.......................160
Fundamentos do Direito Constitucional 19
7.4 Os Direitos Sociais: A Segunda Dimensão..........................................161
7.5 Os Direitos Difusos e os Direitos Pós-Contemporâneos: A Terceira e
Quarta Dimensões................................................................................163
7.6 Os Direitos e Garantias Fundamentais Como Manifestação Jurídica....165
7.7 A Titularidade dos Direitos e Garantias Fundamentais........................170
7.8 A Defesa dos Direitos e Garantias Fundamentais Pelos Cidadãos......173
7.9 Os Limites Dos Direitos E Garantias Fundamentais............................177

Capítulo 8 – DEMOCRACIA E ESTADO CONSTITUCIONAL................179


8.1 Constituição e Democracia..................................................................179
8.2 A Democracia Direta............................................................................185
8.3 A Democracia Representativa..............................................................190
8.4 Eleições e Democracia.........................................................................195
8.5 Partidos Políticos, Democracia e Constituição....................................206
8.6 O Estado Democrático de Direito........................................................212

Capítulo 9 – A CONSTITUIÇÃO E A INTERVENÇÃO E REGULAÇÃO


DO ESTADO............................................................................217
9.1 A Intervenção do Estado Como Teoria................................................218
9.2 O Desenvolvimento da Intervenção do Estado....................................219
9.3 Regulação Estatal e Autonomia Contratual..........................................225
9.4 A Intervenção Estatal e Direito de Prestação.......................................228
9.5 O Direito de Propriedade e a Intervenção e Regulação Estatal...........231
9.6 A Economia Como Atividade do Estado..............................................235

Capítulo 10 – DIREITO CONSTITUCIONAL E FORMA DE ESTADO......239


10.1 Centralização e Descentralização Como Alternativas Constitucionais...239
10.2 O Estado Centralizado..........................................................................241
10.3 A Descentralização Administrativa......................................................244
10.4 As Diversas Fórmulas de Descentralização Política..........................247
10.5 O Modelo Federal................................................................................249
10.6 As Variações do Modelo Federal.........................................................252
10.7 O Modelo Confederal...........................................................................254

Capítulo 11 – O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE E A DEFE-


SA DA CONSTITUIÇÃO........................................................257
11.1 Pressupostos Teóricos do Controle da Constitucionalidade.................257
20 Paulo Márcio Cruz
11.2 O Controle de Constitucionalidade das Atividades dos Poderes Pú-
blicos....................................................................................................258
11.3 O Modelo Norte-Americano de Controle de Constitucionalidade das
Leis – O Controle Difuso ou Incidental...............................................262
11.4 O Modelo de Controle de Constitucionalidade Por um Órgão Jurisdicional
Especializado – O “Controle Concentrado”..........................................264
11.5 Os Procedimentos de Controle da Constitucionalidade das Leis Pelos
Tribunais Constitucionais.....................................................................268

Capítulo 12 – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO


NA ORDEM INTERNACIONAL............................................275
12.1 Soberania Estatal e Comunidade Internacional....................................275
12.2 Os Direitos Humanos Como Matéria de Proteção Internacional.........278
12.3 Rápidas Considerações Sobre o Direito Internacional Humanitário Co-
mo Instrumento de Proteção aos Direitos Humanos............................282
12.4 A Constituição e as Organizações Supranacionais...............................284

REFERÊNCIAS.................................................................................................289

ÍNDICE ALFABÉTICO.....................................................................................295
Fundamentos do Direito Constitucional 21

Capítulo 1

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
SOBRE O DIREITO CONSTITUCIONAL

1.1 O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO RAMO DO


DIREITO PÚBLICO
O termo “ordenamento jurídico” pressupõe que todas as normas
de um ordenamento jurídico encontram-se intimamente relacionadas, não
sendo possível dividi-las em grupos herméticos e sem comunicação entre si.
Qualquer movimento jurídico, de uma autoridade pública ou de
um particular, supõe a existência de uma pluralidade de normas muito
diferentes. Sejam as normas de aplicação imediata, como é o caso das
civis, administrativas ou penais, por exemplo; ou aquelas que regulam o
próprio procedimento de aplicação e também aquelas que estabelecem
quais as autoridades competentes para cada caso ou para resolver os
conflitos de aplicação.
Todas estas normas jurídicas só serão válidas se houverem sido
aprovadas segundo os procedimentos regulados em normas jurídicas
anteriormente criadas: o Código Civil ou o Código Penal são válidos
porque foram aprovados pelo Poder Legislativo respectivo e, segundo o
procedimento previsto no regimento interno daquela casa legislativa.
Continuando a cadeia normativa, os membros do Poder Legislativo foram
eleitos de acordo com um conjunto de normas jurídicas que
estabeleceram os critérios para o voto e a representação política.
Os exemplos poderiam estender-se indefinidamente, o que
demonstra que a adoção de qualquer decisão jurídica supõe, fatalmente, a
existência de um amplo e complexo ordenamento jurídico, integrado por
normas de conteúdos e matizes diversos, mas todas elas vinculadas entre
si e interdependentes umas das outras.
Em que pese a evidente e necessária inter-relação das normas
componentes do ordenamento jurídico, é tradicional, na prática
22 Paulo Márcio Cruz

acadêmica, e na linguagem usual dos juristas, dividir o Direito em


disciplinas ou ramos, cada um dos quais agrupando conjuntos de normas
jurídicas com características e princípios inspiradores comuns que
justificam sua análise especializada em separado. O caráter
eminentemente prático destas divisões – orientadas principalmente para o
ensino universitário de graduação e pós-graduação – explica que se trata
de classificações abertas e variáveis, segundo épocas, autores e escolas,
de maneira que uma mesma norma pode ser, ou ter sido, objeto de estudo
de diferentes disciplinas.
Possivelmente, a classificação mais geral – e a que se mostra
mais relevante para o estudo do Direito Constitucional – é aquela que faz
a distinção entre Direito Público e Direito Privado. Neste sentido é
importante notar o que escreve Hely Lopes Meirelles, quando ensina que
“O Direito é dividido, inicialmente, em dois grandes ramos: Direito
Público e Direito Privado, consoante sua destinação. O Direito Público,
por sua vez, subdivide-se em Interno e Externo”2.
Esta classificação tem sua origem no precursor
constitucionalismo burguês dos séculos XVIII e XIX.
Atualmente, muitos autores já discutem a superação dessa
dicotomia, defendendo que há um claro movimento de publicização do
Direito Privado e privatização do Direito Público, o que estaria
eliminando esta diferenciação clássica.
Os principais argumentos a favor do fim – ou da gradual
eliminação – da classificação clássica em Direito Privado e Direito
Público estão estribados nas seguintes constatações: a) diversas
atividades, que historicamente foram desenvolvidas pelo Poder Público,
atualmente estão sendo transferidas para a iniciativa privada, desde
serviços públicos essenciais, como a geração e distribuição de energia
elétrica, até penitenciárias; e b) muitos temas que, tradicionalmente,
sempre pertenceram ao âmbito dos códigos reitores do Direito Privado
estão sendo constitucionalizados, ou seja, transferidos para diplomas
normativos típicos do Direito Público.
O que existe, salvo melhor juízo, é um intenso processo de
“terceirização” de várias das atividades típicas do Estado, promovidas a
partir de premissas neoliberais. Este fato, porém, não elimina o caráter
derrogatório e a supremacia do interesse estatal sobre os interesses
privados. Uma escola particular, por exemplo, autorizada pelo Poder
Público, está sujeita a muitos dos princípios típicos do Direito Público.
Um dos aspectos que permitem este raciocínio é a admissibilidade de
Mandado de Segurança quando o responsável pela ilegalidade ou abuso
do poder “for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no
2
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, p. 20.
Fundamentos do Direito Constitucional 23
3
exercício de atribuições do Poder Público” . Ou seja, mesmo que a
atividade seja exercida por um privado, em essência é pública.
Por outro lado, a constitucionalização de alguns temas típicos do
Direito Privado não implica a participação do Estado nas relações jurídicas
daí provenientes4. O que se pode admitir, isso sim, é que determinados
assuntos, antes tratados nas normas infraconstitucionais, atualmente
ganharam status constitucional. Ou seja, mesmo que a previsão seja da
própria Constituição, o Poder Público não fará parte da relação jurídica
proveniente daquele determinado mandamento, que será de Direito
Privado.
Desta forma, sempre com o devido respeito aos publicistas que
tratam do assunto de forma diversa, melhor seria tratar estes temas como
movimentos de terceirização e constitucionalização, já que a dicotomia
clássica Direito Público/Direito Privado permanece.
a) Elementos diferenciadores do Direito Público e do
Direito Privado
Considerando o caráter relativo e mutante desta distinção, torna-
se útil trazer algumas considerações para diferenciar as normas e
instituições jurídicas de um e de outro setor do Direito.
Analisadas sob a ótica do interesse, no âmbito do Direito
Público estão incluídas aquelas normas que defendem ou perseguem um
interesse coletivo, no sentido de criar ou manter condições de caráter
geral, indispensáveis para que cada indivíduo possa perseguir seu
interesse particular. A existência de condições mínimas de liberdade,
segurança, seguridade, salubridade ou defesa, enseja que sejam
estabelecidas normas que passam a ser conhecidas como de Direito
Público.
Além disso, o Direito Público pode ser caracterizado por uma
dimensão ou perspectiva objetiva. A defesa do interesse comum, para
sua maior efetividade, fica confiada ordinariamente a um sujeito
determinado, qual seja, o Poder Público (ou, em termos gerais, ao Poder
do Estado). As normas de Direito Público são, assim, as que regulam a
atividade dos poderes do Estado e a relação destes poderes entre si e
com os cidadãos.
Combinando estes critérios, cabe definir o Direito Público como
o setor do ordenamento jurídico que regula o exercício do Poder do
Estado, orientado para a obtenção de interesses comuns. O Direito
3
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 10.
4
Sugere-se, neste sentido, a leitura das obras Temas de Direito Civil, de Gustavo
TEPEDINO, editada pela Renovar, e Temas atuais de Direito Civil na Constituição
Federal, de Rui Geraldo VIANA e Rosa Maria NERY, editado pela Revista dos Tribunais.
24 Paulo Márcio Cruz

Privado ficaria definido, por exclusão, como o conjunto de normas que


regulam as relações entre indivíduos privados, em defesa de seus
interesses particulares. Interesse comum, Poder do Estado e interesse
privado aparecem, pois, como os critérios diferenciadores. Ou, como
escreveu Franco Montoro, “em síntese, podemos dizer que as relações
sociais em que o Estado, como tal, é parte, são reguladas pelo Direito
Público”5.
Esta vinculação do Direito Público ao interesse comum explica
algumas de suas características, normalmente ausentes das normas de
Direito Privado. Por um lado, se trata de normas de ius cogens6, no sentido
de que seu conteúdo é sempre obrigatório, isto é, os atingidos pelo Direito
não podem escolher entre aplicá-las ou não. Pelo contrário, as normas de
Direito Privado, que regulam relações entre particulares são, muitas vezes,
ius dispositivum, isto é, os atingidos pelo Direito podem eleger entre
submeter suas relações a elas ou estabelecer suas próprias normas de
conduta. Frente ao império da norma jurídica, próprio do Direito Público,
prevalece, como regra, no Direito Privado, a autonomia da vontade.
Vale ressaltar que, quando no âmbito do Direito Público estão
reguladas as relações entre poderes públicos e indivíduos particulares,
estes últimos se encontram, em muitas ocasiões, numa posição de
desigualdade. O ordenamento jurídico, atendendo ao interesse geral
defendido pelos poderes públicos, normalmente outorga a estes uma
situação de proeminência ou vantagem com relação aos particulares. É
normal dizer-se que os poderes públicos, em determinados ordenamentos
jurídicos, como o brasileiro, são derrogatórios e pretorianos, no sentido
de representarem os interesses coletivos.
Poder-se-ia, assim, dizer que há um princípio de favor
Reipublicae, que indica um tratamento diferenciado em favor dos poderes
públicos na sua relação com os particulares, destoando do princípio de
igualdade que caracteriza o Direito Privado.
b) A variação dos âmbitos do Direito Público e do Direito
Privado
Assim considerados, os âmbitos respectivos do Direito Público
e do Direito Privado oscilaram sensivelmente segundo os períodos
históricos. Durante a Idade Média, e até a consolidação da Monarquia
Absoluta (nos séculos XVI e XVII) foi sendo produzida uma considerável
privatização da vida jurídica.
O Poder Político se considerava patrimônio próprio de uma pessoa,
de uma família ou de um grupo e, em conseqüência, as relações políticas ou
5
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito, p. 111.
6
No sentido de “obrigação vinculante”.
Fundamentos do Direito Constitucional 25

de Poder se configuravam como negociáveis, ou objeto de pactos e contratos


submetidos à vontade das partes contratantes, parecidos com aqueles
estabelecidos para as relações comerciais, familiares ou de propriedade.
A consolidação das monarquias absolutas supôs uma mudança
de orientação, e as normas de Direito Público passaram a ser configuradas
como um conjunto normativo com princípios muito diferentes daqueles
que orientavam o Direito Privado: a estrutura do Poder político já não era
o resultado de pactos ou acordos entre iguais, mas sim, fruto da decisão
de uma instância superior, o Rei, com atribuições exorbitantes quando
comparadas com as de outros sujeitos sociais.
Atualmente, o desenvolvimento das organizações públicas e a
intervenção do Estado na vida social e econômica levaram a uma situação
diametralmente oposta àquela existente na Idade Média: a vida do
cidadão passa a ter uma íntima ligação com o Poder Público, enquanto
governante e garantidor do interesse comum.
Desta forma, as normas de Direito Público passam a ter notória
importância. Pode-se dizer que houve uma publicização da vida jurídica.
O Direito Constitucional está incluído, como é a tradição, no
âmbito do Direito Público, junto com outros conjuntos normativos com
suas próprias características (Direito Administrativo, Direito Penal,
Direito Previdenciário etc.) Canotilho ensina que “O direito
constitucional é direito público, qualquer que seja a teoria
preferentemente adotada para alicerçar a distinção entre direito público
e direito privado”7.
Todos estes conjuntos, que se traduzem nas respectivas
disciplinas universitárias, regulam e limitam o exercício do Poder do
Estado (ou, mais amplamente, dos poderes públicos).
Sobre a importância do Direito Constitucional para a perfeita
compreensão do Direito Público, vale acrescentar, para encerrar este item, o
que ensina Paulo Bonavides, quando escreve que
sem o estudo da matéria constitucional ficaria o Direito
Público ininteligível, tanto quanto o Direito Privado sem o
Direito Civil. Não vai, assim, exagero quando se diz que o
alargamento, em cada esfera da vida social, do âmbito de ação
do Estado acarreta considerável aumento da importância do
Direito Constitucional nos estudos jurídicos8.

1.2 A ORIGEM HISTÓRICA DO DIREITO CONSTITUCIONAL

7
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 134.
8
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 21.
26 Paulo Márcio Cruz

Na antigüidade, mesmo com todos os esforços interpretativos,


não havia a idéia de Constituição e, muito menos, de Direito
Constitucional, muito embora a genialidade de Aristóteles tenha realizado
estudos sobre 158 textos escritos ou regras que vigoravam por todo Mar
Mediterrâneo, entre elas a das cidades gregas e a de Cartago 9.
Só com o surgimento da Magna Charta Libertatum, na Inglaterra,
resultado do pacto ou acordo firmado em 1215 entre o Rei João Sem-Terra e
os barões feudais, que estavam inconformados com o aumento abusivo e
súbito dos impostos, pode-se dizer que uma norma com “conteúdo
constitucional” passou a existir e com ela o embrião do Direito
Constitucional.
O Direito Constitucional aparece, portanto, num momento
histórico determinado e com uma finalidade muito clara. Confrontado
com o que ocorre com outros ramos do Direito, alguns deles com muita
tradição na Sociedade ocidental, como o Direito Civil, o conjunto de
normas jurídicas que caracteriza o Direito Constitucional é relativamente
recente, com seu início podendo ser fixado na já citada Magna Charta e
nos documentos da Revolução Inglesa (Petition of Rights, de 1628, e Bill
of Rigths, de 1689). Com maior relevância quanto à criação de modelos
seguidos por outros países, são também relevantes a Independência
Norte-Americana e a Revolução Francesa10.
O nome “Direito Constitucional” foi registrado pela primeira
vez no norte da Itália, região envolvida com as invasões francesas, no fim
do século XVIII, mais exatamente em 1797. Como assinala Dezen Júnior,
neste período “aparece então o Diritto Costituzionale, que será
lecionado por Giuseppe Compagnoni Di Luzo naquele mesmo ano em
Ferrara. Dessa cidade italiana alastra-se a nova matéria para Pavia e
Bolonha, de onde passa à França, depois de 1830”11.
No Brasil, a expressão se fixou definitivamente por volta de
1940, através do desdobramento da disciplina de Direito Público em duas:
Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional.
As normas jurídicas formadoras do Direito Constitucional
surgiram em circunstâncias históricas específicas e com uma finalidade
particular: limitar os poderes do Rei e acabar com a Monarquia Absoluta,
substituindo-a por um regime que tivesse suas bases nas normas jurídicas
orientadas por uma Constituição e que regulassem os poderes públicos e
os direitos dos cidadãos.
Isto não quer dizer que, antes das revoluções dos séculos XVII e
XVIII, não existissem certos precedentes constitucionais, traduzidos por
9
Sugere-se a leitura da obra A Política, de ARISTÓTELES, publicada no Brasil pela
Ediouro, do Rio de Janeiro.
10
CRETELLA JÚNIOR, José. Elementos de direito constitucional. p. 17.
11
DEZEN JUNIOR, Gabriel. Direito constitucional, p. 7.
Fundamentos do Direito Constitucional 27
normas que apresentavam características muito semelhantes, quanto à sua
forma e conteúdo, às do constitucionalismo contemporâneo.
Pode-se falar, desta forma, de um constitucionalismo antigo,
com referência a normas, princípios e resoluções judiciais que, na Idade
Média e inclusive em épocas anteriores, pretendiam regular as atividades
dos poderes públicos, como já foi assinalado, estabelecendo suas
competências e limites. É importante ressaltar que a denominação
“Constitucionalismo Antigo”, assim como a de “Constituição Romana”
ou “Constitucionalismo Medieval”, é meramente indicativa ou
aproximativa, já que, por trás das revoluções do século XVIII, aparecem
normas que podem ser qualificadas adequadamente como Direito
Constitucional, por conta de muitas questões específicas.
Com efeito, o constitucionalismo “moderno” que se manifesta
nas Revoluções do século XVIII apresenta uma característica definidora:
a afirmação radical da liberdade do indivíduo e a existência de alguns
direitos irrenunciáveis deste mesmo indivíduo, como critério essencial da
organização do Estado. Este princípio de liberdade individual se expressa
como a mesma justificativa, em última análise, da existência do Poder
Político.
Deve-se sublinhar que tanto o constitucionalismo “moderno”
como o Poder Político dele decorrente estavam alicerçados nos valores
burgueses de então, que passaram a dominar o Estado através da
Democracia Representativa censitária.
As normas que podem ser qualificadas como de Direito
Constitucional são, desde sua origem, normas que, frente à realidade
existente, buscam expressamente a proclamação e a defesa da liberdade
do indivíduo. Sendo assim, é conveniente assinalar que este raciocínio
está articulado a partir do reconhecimento da necessidade de uma
comunidade política organizada, que proporcione ordem e segurança a
seus membros e que garanta as condições básicas da vida social.
Assim, o constitucionalismo difere radicalmente das correntes
ideológicas que buscam, em última análise, a liberdade do indivíduo perante
o Estado. Pelo contrário, os revolucionários que criaram o primeiro Direito
Constitucional moderno seriam definidos, em termos atuais, como patriotas
nacionalistas, que buscavam uma melhor organização do Estado, através de
sua renovação. Este traço se faz presente nos textos constitucionais iniciais:
a Constituição Norte-Americana de 1787 proclama sua intenção de “formar
uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, afiançar a tranqüilidade
interior, promover a defesa comum, promover o bem-estar geral”12.

12
BRASIL. Constituições do Brasil e constituições estrangeiras, p. 413.
28 Paulo Márcio Cruz

Os textos constitucionais da Revolução Francesa, por seu turno,


se baseavam num expresso sentimento nacional e buscavam a
consolidação do Estado burguês.
A visão moderna do que se denomina Estado de Direito deriva
desse princípio estabelecido pelos contratualistas, ao pressupor que
nenhum Estado encontraria fundamento para seu poder se não tivesse
surgido do livre assentimento de seus cidadãos. Como ensinam Célia
Galvão e Maria Lúcia Montes, “o pacto, como forma de expressão desse
assentimento, estaria não apenas na origem do Estado, mas também, e
sobretudo, na origem da Grande Lei que o constitui e o organiza
formalmente, constituindo ao mesmo tempo a própria nação”13.
Desta forma, num primeiro momento, a defesa da liberdade
individual, numa comunidade politicamente organizada, aparece como o
objeto definidor das normas de Direito Constitucional. É esta
caracterização que permite considerar as normas constitucionais como um
setor do Direito que é objeto de estudo em separado, sendo também as
que dão lugar à dualidade típica do Direito Constitucional, enquanto este
pretenda assegurar, simultaneamente, liberdade e ordem ou igualdade 14.

1.3 O CONTEÚDO MATERIAL DO DIREITO


CONSTITUCIONAL
Considerando sua origem histórica, as normas de Direito
Constitucional se caracterizam por buscar a garantia da liberdade no seio
da comunidade política. Partindo deste objetivo, historicamente definido,
a precisão do que hoje se entende, academicamente, como Direito
Constitucional, pode ser levado a efeito seguindo diversos critérios, não
necessariamente contrapostos, sendo o primeiro deles o critério material.
Desta perspectiva, as normas de Direito Constitucional
definem-se por seu objeto: seriam as normas que regulam as matérias
diretamente vinculadas à garantia básica da liberdade. Daí, destacam-se
dois grupos de normas como originariamente integradas no Direito
Constitucional: as que reconhecem e garantem os direitos individuais e as
que organizam os poderes básicos do Estado.
a) O reconhecimento de direitos
Num primeiro momento, integrariam o Direito Constitucional
as normas que declaram e protegem o Direito dos cidadãos enquanto tais
ou, preferindo, as “posições jurídicas fundamentais” dos cidadãos.

13
QUIRINO, Célia G.; MONTES, Maria L. Constituições, p. 15.
14
A igualdade do primeiro constitucionalismo correspondia à igualdade perante a Lei e
não à igualdade de oportunidades ou igualdade social.
Fundamentos do Direito Constitucional 29

Desde o começo do movimento constitucionalista, a formulação


de uma Declaração de Direitos aparece como a primeira tarefa a ser
levada a cabo para assegurar a liberdade do indivíduo. Trata-se de
enumerar os direitos de todos os cidadãos, isto é, aqueles direitos que são
inerentes a esta condição ou, de forma mais ampla, a todo ser humano,
com a denominação de Direitos do Homem.
Como se percebe, é este tipo de regulamento que diferencia o
Direito Constitucional moderno do constitucionalismo medieval. A Bill of
Rigths de 1689 caracteriza a Revolução Inglesa. A Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, caracteriza a Revolução
Francesa. A Declaração de Direitos do Povo da Virgínia em 1776 e as dez
primeiras emendas à Constituição, aprovadas em 1791, caracterizam o
constitucionalismo norte-americano inicial.
Com efeito, a garantia dos direitos fundamentais aparece como
o aspecto do Direito Constitucional que mais diretamente afeta aos
cidadãos: em alguns países anglo-saxões, a expressão Constitutional Law
se refere principalmente aos mecanismos para a proteção destes direitos.
O Direito Constitucional é, assim, o principal elemento de
materialidade do ordenamento jurídico quando se trata de proteção e
reconhecimento de direitos.
É neste mesmo sentido que se manifesta Norberto Bobbio,
quando leciona que
a Constituição material tem, portanto, condições de se
apresentar como a real fonte de validade do sistema (e,
conseqüentemente, também da Constituição formal), de lhe
garantir a unidade como fundamento de avaliação
interpretativa das normas existentes e de preencher suas
lacunas, de permitir identificar os limites da continuidade e
mudanças do Estado, sendo ela o parâmetro de referência15.
Ainda referindo-se à materialidade da Constituição, Bobbio
leciona que eles “são, portanto, os princípios constitucionais
fundamentais, a que aludimos, que se revestem de essencial importância
na compreensão de uma Constituição. É a estes que havemos de fazer
referência, para distinguir sua essência íntima”16.
O caráter material de uma Constituição é, por assim dizer, seu
núcleo de vinculação real com os movimentos políticos da Sociedade e
com os próprios cidadãos.
b) A organização dos poderes

15
BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de política, p. 260.
16
BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de política. p. 261.
30 Paulo Márcio Cruz

Vinculado com as declarações de direitos, aparece outro tipo de


normas: aquelas que organizam os poderes do Estado. A organização
jurídica do Poder supõe a sua submissão ao Direito e, por conseqüência, sua
limitação em favor da liberdade. São normas de Direito Constitucional,
neste diapasão, aquelas que regulam as linhas básicas das instituições
políticas fundamentais do Estado, assim como a distribuição do Poder entre
elas.
Desta forma, as normas constitucionais atuam tanto no que diz
respeito aos órgãos fundamentais do Estado, como as casas legislativas, o
governo e os tribunais, como no que respeita à configuração territorial do
Estado, como a federação ou o Estado unitário. Neste aspecto, o Direito
Constitucional aparece como herdeiro de algumas normas da Monarquia
Absoluta, que estabeleciam algumas condições inalteráveis de sua
organização, como a indivisibilidade da monarquia, as regras de sucessão,
o caráter confessional do Reino, entre outras.
Algumas constituições, inclusive, como a brasileira de 1824,
foram redigidas tendo como uma das suas finalidades atualizar
teoricamente as velhas instituições existentes nos ordenamentos jurídicos
dos quais haviam se libertado. Pois bem; há uma diferença fundamental
entre as normas jurídicas fundamentais do Antigo Regime 17 e as normas
organizativas ou orgânicas do Direito Constitucional: estas últimas,
comparadas às primeiras, se inspiram no princípio da limitação do Poder,
mediante a divisão e distribuição de poderes.
Esta constatação – divisão do Poder como garantia da liberdade
– é também a que diferencia as normas jurídicas orgânicas de Direito
Constitucional das normas jurídicas fundamentais de regimes autoritários,
seja qual for o nome que tenham.
Esta definição material do Direito Constitucional aparece como
a mais diretamente relacionada com sua origem histórica. Veja-se, por
exemplo, o que está expresso na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, no seu art. 16, quando expressa que “toda sociedade
na qual a garantia dos direitos não esteja assegurada, nem a separação
de poderes estabelecida, não há Constituição”18.

1.4 A DEFINIÇÃO FORMAL DO DIREITO


CONSTITUCIONAL
A evolução histórica do Direito Constitucional tornou possível
que, sem abrir mão do critério material, fossem definidas as normas de
Direito Constitucional desde uma perspectiva formal, dotadas de um status
17
Refere-se à Monarquia Absoluta, cujo período começa a terminar com as revoluções
burguesas do século XVIII e com o surgimento, por conseqüência, do Estado Constitucional.
18
FUNDAÇÃO Emílio Cortezani. Declaração dos direitos do homem e do cidadão, p. 2.
Fundamentos do Direito Constitucional 31

e de uma força especial dentro do ordenamento jurídico que as diferencia e


protege das normas jurídicas não constitucionais: isto quer dizer que as
normas de Direito Constitucional são normas “supralegais”, no mesmo
sentido do que anota Pinto Ferreira, quando escreve que “a supremacia da
Constituição se reflete de duas maneiras diferentes: na supra-legalidade
das suas regras e na imutabilidade relativa dos seus preceitos, assim
dotados de uma superioridade objetiva e concreta na própria vida
social”19.
Estas características formais derivam da posição fundamental
das normas constitucionais, já que representam funções estratégicas ou
definidoras em todo ordenamento jurídico e no sistema político, pois
buscam estabelecer e garantir seus princípios fundamentais,
representados, como já foi assinalado, pela liberdade do indivíduo no seio
da comunidade política organizada. Este caráter fundamental exige uma
especial estabilidade destas normas, representada por instrumentos que
dificultem – ou mesmo impeçam, como nas Cláusulas Pétreas da
Constituição da República Federativa do Brasil – sua alteração ou
revogação.
Por isto, não é estranho que, na prática atual, as normas de Direito
Constitucional, geralmente, sejam definidas como normas hierarquicamente
superiores com relação às restantes normas do ordenamento jurídico. Este
caráter supremo ou superior está refletido em duas peculiaridades:
a) As formas de elaboração e modificação das normas de
Direito Constitucional são diferentes, já que geralmente
muito mais rígidas do que as correspondentes ao restante
das normas de Direito Público e Privado. Isto fica evidente
não apenas no que diz respeito às constituições, mas
também quanto àquelas normas jurídicas especiais, como as
leis orgânicas e as leis complementares. O Direito
Constitucional é formado, muitas vezes, por normas rígidas,
de difícil ou, inclusive, impossível reforma ou revogação;
b) O caráter supralegal das normas de Direito Constitucional
foi consolidado, principalmente, no pós-Segunda Guerra
Mundial, com a introdução de procedimentos destinados a
assegurar a efetiva proeminência das normas constitucionais
em relação ao restante do ordenamento jurídico. Deste
modo, a introdução de controles de constitucionalidade
sobre as demais normas jurídicas do ordenamento, para
impedir que estas contradigam o disposto na Constituição,
passou a ser regra, em grande parte dos países do Ocidente.
Este controle, como será visto com mais detalhes em

19
FERREIRA, Luís Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno, p. 133.
32 Paulo Márcio Cruz

capítulo específico, em sua forma mais desenvolvida, é


levado a efeito por órgãos legislativos e/ou judiciários.
O critério formal – é a supralegalidade, que conduz à rigidez e ao
controle de constitucionalidade das normas jurídicas – é tecnicamente mais
preciso quando o objetivo é definir um setor do ordenamento como Direito
Constitucional. Já o critério material suscita muitas discussões com outras
ciências e áreas do conhecimento. Não obstante, é um critério – o formal –
que deve ser matizado ou, pelo menos, empregado cuidadosamente.
Em alguns ordenamentos jurídicos, as normas que regulam os
aspectos básicos relativos à liberdade dos cidadãos e as instituições
políticas e jurídicas fundamentais são normas com uma formalidade
comum, ordinária, como as demais e sem rigidez ou controle de
constitucionalidade. Tal seria o caso da Inglaterra, por exemplo, cujas
normas de Direito Constitucional são reformáveis ou revogáveis como
qualquer outra.
Por outro lado, quando se confere um caráter de supralegalidade
às normas de Direito Constitucional, seus conteúdos são, em muitos
casos, especificados por outras normas não-constitucionais que, na
prática, podem ter, sem dúvida, uma notável relevância. Neste caso, um
critério estritamente formalista não corresponderia à realidade. Assim, é
importante trazer a impressão de José Afonso da Silva sobre este assunto,
quando escreve que “consideradas do lado de sua hierarquia, só desse
lado, pode-se aceitar a doutrina de Miguel Reale de que se trata de leis
paraconstitucionais, eliminando o ‘ordinárias’ da expressão, ou mesmo
a de Pontes de Miranda, que as considera leis intercalares; ou Burdeau,
que diz serem leis de hierarquia intermediária”20.
A compreensão do que, academicamente, pode ser definido
como um ramo do Direito que possui o nome de Direito Constitucional
exige, pois, a combinação de critérios formais e materiais. Disto resulta,
como proposição aproximada, a conclusão de que se integram no
Direito Constitucional aquelas normas que regulam e garantem a
liberdade do indivíduo numa comunidade política organizada, os
direitos e garantias fundamentais dos cidadãos perante o Estado e a
distribuição do Poder entre seus principais órgãos. São normas que, por
seu caráter fundamental e definidor do sistema jurídico, normalmente
possuem caráter de normas superiores, considerados seu nível
hierárquico e sua força vinculante.

1.5 O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO CONJUNTO


DE NORMAS JURÍDICAS

20
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 243.
Fundamentos do Direito Constitucional 33

Na atualidade, nos países dotados de regimes constitucionais


democráticos, as normas de Direito Constitucional podem ser definidas
como autênticas normas jurídicas, traduzíveis em mandamentos
concretos, cujo não-cumprimento é suscetível de sanção, determinada por
um órgão jurisdicional.
Esta situação é fruto de uma longa evolução histórica. Durante
muito tempo, grande parte das normas de Direito Constitucional não
tinham força vinculante, pois eram normas inacabadas e imperfeitas.
Pode-se dizer que “orientavam”, mas não “obrigavam”.
Os documentos jurídicos que acompanham o aparecimento do
regime constitucional – Declaração de Direitos, Constituições, Estatutos –
continham, em grande parte, proclamações ideológicas e programas de
governo. Naquele momento de ruptura com o Antigo Regime, os textos que
refletem o novo constitucionalismo pretenderam, acima de tudo, expressar os
princípios através dos quais seria regida a nova comunidade política. A
leitura destes documentos mostra que, na realidade, pretendiam orientar os
poderes públicos, muito mais do que criar normas cujo cumprimento fosse
efetivamente exigível através de um sistema de garantias jurídicas stricto
sensu.
As Declarações de Direitos apareceram como proclamações
solenes, mas usualmente não pretendiam criar, pelo menos de imediato,
direitos exigíveis perante os tribunais. As Declarações se remetem, como
técnica geral, à lei complementar, para que seja esta que precise o alcance
e garantias de direitos que tão solenemente passaram a ser reconhecidos.
Naquela época, a parte organizativa ou orgânica do novo Direito
Constitucional, que estabelecia a organização dos poderes do Estado, era
de difícil controle pelos tribunais.
Esta constatação não significa que estas Declarações e
Constituições careciam de eficácia. A experiência histórica mostra que
muitos destes documentos contribuíram significativamente para a
transformação dos ordenamentos jurídicos e que seus mandamentos
foram realmente cumpridos. Dallari proporciona uma boa base
doutrinária para esta afirmação ao escrever que “proclamadas como
normas jurídicas, anteriores aos Estados, elas devem ser aplicadas
independentemente de sua inclusão nos direitos dos Estados pela
formalização legislativa”21.
Isto se realizou através da aplicação que os governos fizeram das
mesmas, sem outro controle que o derivado da opinião pública. A aplicação
e interpretação do Direito Constitucional ficava por conta das forças
políticas dominantes em cada momento. A efetividade das normas

21
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 179.
34 Paulo Márcio Cruz

constitucionais dependia, em grande parte, do acatamento voluntário e


espontâneo por parte dos setores políticos.
Esta situação mudou significativamente – principalmente ao
longo do século XX – devido a dois fatores:
1 – a extensão do conceito de Direito Constitucional como um
Direito “mais forte”, cuja efetiva supremacia deveria ser garantida. Por isso,
como se disse, foram criados, na maioria dos países ocidentais, sistemas de
controle para a adequação da atuação dos poderes públicos ao Direito
Constitucional. Qualquer desvio em relação a estes objetivos passara a ser
punido pelos tribunais. Como conseqüência, estes tribunais passaram a
estabelecer a interpretação “correta” destas normas, determinando, de
maneira estável, seu conteúdo, através de uma série de precedentes
vinculantes. Daí que a mera interpretação, pela opinião pública ou de atores
políticos, através da imprensa ou dos doutrinadores, é substituída pela
segurança jurídica das decisões realizadas pelos tribunais sobre o conteúdo
dessas normas;
2 – a tendência ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da
proteção dos direitos individuais conduziu a que, em muitos casos, eles
fossem dotados de eficácia direta e imediata através de sua transformação
em normas constitucionais. Isto significa que foram abertas possibilidades
de os cidadãos retirarem direitos diretamente destas normas para os
invocarem ante os poderes públicos e que estes devem aplicar tais normas
como Direito imediato e vinculante22. Neste sentido, o Direito
Constitucional se converte em matéria de índole eminentemente prática, que
afeta de modo imediato os interesses e problemas dos cidadãos. A contínua
invocação e aplicação das normas de Direito Constitucional em
procedimentos de todo tipo (administrativos e judiciais) e sua
transcendência para a defesa de interesses e direitos individuais e coletivos
obrigam a que o estudo destas normas não se conforme apenas com
afirmações ideológicas ou de preferência política pessoal. Pelo contrário, o
conhecimento de qual seja, na realidade jurídica atual, o conteúdo do Direito
Constitucional implica a determinação de pautas objetivas de interpretação,
aceitas pelos atores jurídicos (juízes, governantes, legisladores), retiradas da
prática acumulada e que, efetivamente, sirvam para oferecer soluções
solidamente fundamentadas aos problemas que afetam, continuamente, a
aplicação das normas constitucionais23.

22
De maneira geral, a doutrina classifica as normas constitucionais como de “eficácia plena”
e de “eficácia contida”, dependendo da possibilidade de sua auto-aplicação ou não. Alguns
setores ainda criam sub-classificações para as segundas.
23
Sobre isto ver Elementos de teoria geral do estado, de Dalmo de Abreu DALLARI,
nas p. 174-180.
Fundamentos do Direito Constitucional 35

1.6 O DIREITO CONSTITUCIONAL COMO SISTEMA DE


CONCEITOS JURÍDICOS
O Direito Constitucional, desta forma, estaria configurado como
um conjunto de normas com vocação para aplicação efetiva, respaldado
pela existência de alguns órgãos que velam pelo seu cumprimento e que
podem impor sanções caso isto não aconteça.
Pois bem; como já foi dito, trata-se de normas que respondem a
reivindicações de valores, isto é, que pretendem conseguir alcançar
objetivos que justifiquem a sua existência. O Direito Constitucional
responde a um modelo definido de convivência, baseado no
reconhecimento dos direitos, na liberdade da pessoa e na limitação,
divisão e responsabilidade do e pelo Poder do Estado.
As técnicas do Direito Constitucional não são aplicáveis em
regimes autoritários. Quando estes adotam documentos jurídicos de
índole constitucional, ou são normas que não são cumpridas ou
funcionam para estabelecer partido único e negar direitos fundamentais.
Enfim, este tipo de norma conduz ao autoritarismo.
As técnicas e conceitos empregados pelas normas de Direito
Constitucional respondem, portanto, a objetivos e valores políticos: são
técnicas e conceitos que resultam, em muitos casos, de longas experiências
históricas. Quando uma Constituição (a Constituição da República
Federativa do Brasil, no seu art. 1º) prevê que “a República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito..”24.
emprega termos que têm um significado complexo, como “República
Federativa”, “Estado Democrático de Direito”. Mas a Constituição não
pode, obviamente, levar a cabo a definição de cada um destes termos.
Parte, pelo contrário, de que o significado de cada um destes conceitos dá-
se por entendido. Não fosse assim, as normas de Direito Constitucional se
transformariam em tratados doutrinários25.
O Direito Constitucional aparece, então, como um direito cujos
termos, técnicas e conceitos respondem a construções teóricas e
valorativas prévias. Por isto sempre foi possível afirmar que a
compreensão do significado de uma norma constitucional exige uma
“compreensão prévia” das categorias 26 e conceitos operacionais27 que
emprega.

24
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 3.
25
Sobre isto ver a obra Direito constitucional, de J. J. Gomes CANOTILHO, na p. 108.
26
Sobre isto ver PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica, p. 27.
27
Sobre isto ver PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica, p. 39.
36 Paulo Márcio Cruz

Isto não significa que esta “compreensão prévia” e a


correspondente compreensão das normas de Direito Constitucional fiquem
à mercê da sensibilidade ou agudeza intelectual de quem as aplica. O
Direito Constitucional é fruto de uma evolução histórica, cujas etapas
principais foram desenvolvidas em muitos e diferentes países.
Como conseqüência, muitos conceitos básicos do léxico
constitucional – como Democracia, República, Federação etc. –
assumiram um formato comum a muitos ordenamentos jurídicos. Criou-
se, assim, uma linguagem comum para o Direito Constitucional. E não é
só isso: um bom exemplo deste fenômeno encontra-se no Tratado da
União Européia de 07.02.1992 (Tratado de Maastricht), que reconhece,
em sua cláusula F, a existência de “tradições constitucionais comuns aos
estados membros como princípios gerais do Direito Comunitário”28.
O aparecimento e consolidação deste acervo comum de
conceitos operacionais para categorias do Direito Constitucional, colhido
nas normas de diferentes países, pode ser explicado por diversas causas.
Primeiro, pelas situações e problemas similares enfrentados por países da
mesma área cultural. Em segundo lugar, pelo fenômeno de difusão
cultural, surgido devido à integração social, política e científica entre os
diversos países desta mesma área cultural. Na verdade, é raro que as
normas constitucionais criem ou “inventem” técnicas ou instituições
novas.
A peculiaridade de cada ordenamento constitucional reside,
especialmente, na forma através da qual combina diversos elementos,
tomados da própria história e experiência ou da história e experiência de
outros países.
A linguagem comum do Direito Constitucional surge também do
trabalho de instituições internacionais, cujas deliberações devem ser
acatadas por muitos países que adotam as terminologias aplicáveis e
compreensíveis, dando lugar a que se possa dispor de uma série de
conceitos operacionais de Direito Constitucional, de valor admitido e
compartilhado, que funcionam como verdadeiras ferramentas de
interpretação.
Estas ferramentas têm, cada uma delas, um significado
estabelecido pela tradição, pela doutrina, pela legislação e pela
jurisprudência, nos últimos duzentos anos, pelo menos nos países ocidentais.
A interpretação das normas constitucionais exige, portanto, que se
parta do conhecimento do sistema de princípios por elas utilizados, já que,
conforme Luís Roberto Barroso,

28
PORTUGAL. Comissão das Comunidades Européias. Compreender Maastricht, p. 14.
Fundamentos do Direito Constitucional 37

ao intérprete constitucional caberá visualizá-los em cada caso e


seguir-lhes as prescrições. A generalidade, abstração e
capacidade de expansão dos princípios permite ao intérprete,
muitas vezes, superar o legalismo estrito e buscar no próprio
sistema a solução mais justa, superadora do summum jus,
summa injuria29/30.
A grande maioria destes princípios tem já um significado
perfeitamente reconhecível, não só na tradição jurídica brasileira mas
também, e geralmente, em todo o Ocidente.
Feitas estas considerações de caráter introdutório, caracterizador
e conceitual, vai-se tratar, no próximo capítulo, de estudar o Estado como
marco fundamental do Direito Constitucional.

29
Esta expressão latina significa que “o excessivo apego à lei gera injustiça”.
30
BARROSO, José Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, p. 150.
38 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 2

ESTADO E DIREITO CONSTITUCIONAL

Antes de se iniciar qualquer discussão sobre o Estado, é preciso


advertir que há, atualmente, muitos questionamentos sobre a sua
atualidade como modelo de construção político-jurídica.
O Estado Constitucional, surgido das revoluções burguesas do
século XVIII, foi concebido para atender aos interesses de uma determinada
classe social – a burguesia – e permitir a acumulação ilimitada de riqueza nas
mãos daqueles que tivessem “virtudes” para tanto. Ou seja, o Estado, desde
sua gênese, tem vocação para ser concentrador de riquezas e excludente.
Atualmente, a impressão que se tem é que o Estado não
consegue mais dar respostas minimamente consistentes à Sociedade. Nos
países ricos, ele está a serviço dos conglomerados financeiros e
industriais e dominado por seus tentáculos. Nunca tão poucos tiveram
tanto, e tantos tiveram tão pouco. Os problemas sociais aumentam em
proporções nunca vistas. O Leviatã começa a entrar naquela que talvez
seja sua última crise.
Tudo leva a crer que o principal fator destas crises cíclicas
esteja localizado exatamente no próprio Estado. Ou, melhor dizendo, é o
próprio Estado.
Pode-se especular, já sem muita preocupação com erro essencial,
que o Estado esteja exaurido. Acabou. Dallari, em seu O Futuro do
Estado, mesmo que com muitas ressalvas, faz um apelo à reflexão
escrevendo o seguinte:
E se for aceita, finalmente, a teoria de que o Estado foi criado
apenas para assegurar a existência de uma ordem social
injusta, pretendendo-se que ele seja removido para que as
injustiças desapareçam, será necessário indagar das
possibilidades concretas de sua eliminação, tendo em vista as
condições do mundo atual31.
31
DALLARI, Dalmo de Abreu. O futuro do Estado. p. 112.
Fundamentos do Direito Constitucional 39

O quadro político e econômico mundial atual exige, cada vez


mais, uma posição de decidido questionamento sobre a existência do
Leviatã. O que para Hobbes era apenas uma figura de mitologia ou de
predição, hoje é bem real e ameaçador.
Os motivos pelos quais o Estado Constitucional burguês foi
concebido, há mais de dois séculos, como o individualismo, capitalismo,
economia de mercado e acumulação de riqueza ilimitada, em suas versões
globalizadas, podem determinar seu desaparecimento. O Leviatã
contemporâneo continua a se alimentar destes ingredientes.
Entretanto, não há como superá-lo sem estudá-lo, conhecê-lo e
criticá-lo. É fundamental, então, discutir-se o Estado e o Direito
Constitucional, já que são categorias que vivem numa espécie de
comensalismo jurídico.

2.1 O ESTADO COMO CONDIÇÃO PRÉVIA AO DIREITO


CONSTITUCIONAL
Como dito acima, o Estado Constitucional surgiu num momento
– final do século XVIII – e num contexto – Europa Ocidental e a América
do Norte – nos quais estava firmemente consolidado como forma de
organização típica da comunidade política. Como conseqüência deste
fato, a realidade estatal é configurada, desde o princípio, como o marco
do Direito Constitucional. Neste sentido, Bonavides diz que “a origem da
expressão Direito Constitucional, consagrada há mais de um século,
prende-se ao triunfo político e doutrinário de alguns princípios
ideológicos na organização do Estado moderno”32.
O constitucionalismo pretendeu – e pretende – organizar e
reformar o Estado e não, de modo algum, suprimi-lo. Por esta razão, os
regulamentos que pretendeu introduzir para os Poderes Públicos referiam-
se aos poderes do Estado, herdados, em muitos casos, do Antigo Regime
(Rei, Parlamentos, Tribunais etc.), e a garantia almejada da liberdade dos
cidadãos dentro e em relação a este mesmo Estado.
O Estado deve ser considerado, deste modo, como uma
realidade concreta na base de formação do Direito Constitucional e assim
está colocado até este momento. A primeira Constituição escrita do
continente europeu, a francesa de 1791, se auto-intitulou como “lei
constitucional do Estado”, como estava previsto no art. 3º, seção 1ª,
capítulo IV, Título III. No preâmbulo da Constituição de Cadiz 33, de 1812,
estava previsto que “as Cortes decretam a seguinte Constituição política
32
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 22.
33
Durante a ocupação francesa na época de Napoleão, Cadiz se transformou na capital da
Espanha livre e, em 1812, as Cortes reunidas na cidade aprovaram a primeira Constituição
liberal espanhola.
40 Paulo Márcio Cruz

para o bom Governo e reta Administração do Estado”. Mais de dois


séculos depois, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu
Título III, trata “Da Organização do Estado”34.
As normas de Direito Constitucional, praticamente sem
exceção, descrevem como “Estado” a forma de organização política da
Sociedade. Inclusive quando, a partir do segundo quarto do século XX,
surgiram constituições que ampliaram o raio de ação das normas
constitucionais. A partir deste momento, a transcendência e a relevância
do Estado condicionaram decisivamente a forma e o conteúdo destas
normas. Outro exemplo é a criação, em alguns lugares do planeta, de
comunidades políticas supra-estatais, como a União Européia, nas quais
as organizações estatais seguirão, ainda por muito tempo, desempenhando
um papel preponderante.
O conceito de Estado e categorias afins – como Estado Nacional
ou Soberania Estatal – são, pois, conceitos anteriores ao Direito
Constitucional. São conceitos empregados em ocasiões com significados
muito diferentes e não somente na linguagem comum. Por conta deste fato
é preciso definir, pelo menos, o núcleo da noção de Estado, compartilhada
geralmente pela doutrina e pelos discursos constitucionais formais. Não há
aqui a pretensão de tratar de Teoria do Estado, mas simplesmente destacar
aquele conteúdo comum do conceito que resulta imprescindível para
compreender seu significado dentro das normas de Direito Constitucional.

2.2 O ESTADO COMO FORMA ESPECÍFICA DE


ORGANIZAÇÃO
O conceito de Estado é empregado, em muitas ocasiões, para
referências àquelas organizações comunitárias que alcançam um nível de
organização superior ao meramente familiar ou de parentesco. Foi assim
com a polis grega, como Cidade-Estado, ou com os impérios
mesopotâmicos, egípcio ou romano, ou com os reinos estamentais feudais
da Idade Média. O Estado seria equivalente a qualquer forma de
organização política. Como variável desta concepção foi a de que o
“Estado” é sinônimo de toda organização política fundada e regulada pelo
Direito. Onde haveria Direito, haveria Estado.
Estas concepções são úteis na linguagem comum e em
disciplinas não jurídicas – como a Ciência Política, a Antropologia
Política e a História – porém não respondem ao significado técnico do
termo tal como se emprega nas normas e na doutrina jurídica. A base
desta afirmação está no fato de que a forma de organização política da
Sociedade humana, que corresponde ao Estado, surge num momento
34
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
17.
Fundamentos do Direito Constitucional 41

histórico específico, entre os séculos XVI e XVII, e que se diferencia


claramente das formas anteriores de organização política, como ensinam
Lênio Streck e Bolzan de Morais, ao afirmarem que “nessa linha, é
importante registrar que, naquilo que se passou a denominar de Estado
Moderno, o Poder se torna instituição (uma empresa a serviço de uma
idéia, com potência superior a dos indivíduos)”35.
A palavra “Estado” para designar unidades políticas
independentes, como está consagrada no livro O Príncipe de Nicolau
Maquiavel, editado em 1513, se generaliza a partir dos Tratados de
Westfalia36, de 1648. Esta data já serve para indicar algumas das
características que se vinculavam ao uso do conceito de “Estado”. A paz
da Westfalia veio para acabar com as guerras religiosas na Europa e para
estabelecer um mapa com fronteiras fixas, como ensina Dalmo Dallari 37.
A partir deste evento, a posição jurídica dos habitantes da
Europa e sua relação com os poderes públicos estaria determinada por sua
vinculação a unidades políticas territoriais, submetidas, cada uma delas, a
um poder único e absoluto. A concepção da comunidade política como
uma comunidade definida territorialmente e submetida, exclusivamente,
ao poder real estabelecido em seu território se converteu, definitivamente,
a partir de 1648, no eixo da nova organização política da Europa e,
posteriormente, de quase todas as partes do planeta.
Esta concepção da comunidade política como Estado –
resultado do processo que começa no século XV e atinge seu auge no
século XVII – supôs uma considerável inovação com respeito às formas
de organização política anteriores à ocidental, como a Cidade-Estado,
característica da Antigüidade e a Comunidade Cristã, típica da Idade
Média. Para se compreender a novidade que foi o surgimento da
organização estatal, assim como suas características, faz-se mister uma
consideração sobre as formas políticas anteriores:
a) a comunidade política organizada em forma de polis38 – a
Cidade-Estado – se baseava na existência de um conjunto de
fatores comuns, de caráter pessoal, que definiam um grupo,
usualmente reduzido, de indivíduos, diferentes dos
35
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral do
estado, p. 26.
36
Série de acordos assinados por Suécia, França, Espanha, Sacro Império Romano e
Países Baixos, pondo fim à Guerra dos Trinta Anos. Ficou reconhecida a soberania dos
estados alemães do Sacro Império Romano. Os Países Baixos e a Suíça foram declarados
repúblicas independentes, garantida a liberdade religiosa para os calvinistas e luteranos na
Alemanha.
37
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. p. 44-45.
38
Sobre isto ver CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado
contemporâneo, p. 68.
42 Paulo Márcio Cruz

“estrangeiros” ou “estranhos”, normalmente pela religião,


língua ou vínculo familiar. A comunidade, assim definida, era
realmente uma comunidade “total”, de vida social, política,
religiosa e econômica. A polis bastava-se em si própria e
rejeitava os “estranhos” ou “estrangeiros”.
Esta forma de comunidade explica a existência de regras – e
autoridades – governando grupos de indivíduos, apesar de
sua estreita coexistência. Isto ocorria nas cidades gregas
com os estrangeiros que não se consideravam membros da
comunidade e cujo status era transmitido de geração em
geração, como na civitas romana, na qual somente os
cidadãos romanos integravam a república;
b) a organização política que caracterizava o mundo ocidental
desde o fim do Império Romano até a Idade Moderna foi
constituída sobre diferentes bases. Por um lado, a memória
mítica do Império Romano como comunidade universal, a
unidade religiosa derivada da extensão do cristianismo
romano a toda Europa Ocidental, a existência de uma língua
comum – o Latim – no mundo erudito e a sujeição universal
à autoridade da Igreja – com o Papa como chefe visível –
deram lugar ao nascimento de uma consciência de
Comunidade Cristã, com duas autoridades supremas: o
Imperador – do Sacro Império Romano Germânico – e o
Papa. Mas junto com esta consciência de comunidade
religiosa e cultural, a pluralidade e a debilidade dos centros
de poder davam lugar a uma complexa rede de relações de
sujeição dentro do mesmo território. Os indivíduos deviam
obediência a diversas autoridades, segundo sua situação
social, religiosa ou ocupacional e, ainda, por laços de
dependência ou lealdade pessoal. Desta forma, junto a uma
autoridade teoricamente geral – o Rei – se configuravam
autoridades paralelas, muitas vezes mais poderosas, como a
da Igreja ou da nobreza. Por outro lado, a comunidade
política, identificada como Reino ou Império, coincidia com
a comunidade religiosa, o que supunha a exclusão,
marginalização e – na pior das hipóteses – o extermínio
daqueles não crentes;
c) frente a tal situação, o Estado que se consolida no século
XVII, e que em alguns aspectos responde pelo seu conceito
atual, aparece quando a comunidade política se define,
fundamentalmente, em função da sujeição comum a um
poder político, que exerce sua autoridade em um
determinado âmbito e sobre todos aqueles que se situem
Fundamentos do Direito Constitucional 43

nele, fosse qual fosse sua condição pessoal. Isto,


considerando as guerras religiosas que haviam assolado a
Europa durante mais de um século, teria um enorme
impacto, pois permitiria que num mesmo Estado e sob um
mesmo poder, convivessem pacificamente, na maioria das
vezes, grupos religiosos muito diferentes, mas cujas
diferentes crenças não os impediriam de pertencer a uma
mesma comunidade política, definida pela existência deste
poder absoluto e soberano, e não pela religião ou por outro
fator subjetivo39.
Uma definição do conceito jurídico de Estado, que permita
compreender seu uso no Direito Constitucional, será, via de regra, muito
genérica, já que se refere a ordenamentos variados, elaborados em
situações históricas muito diferentes. Não obstante, é possível assinalar
alguns elementos comuns deste conceito, definindo o Estado como a
organização territorial de uma comunidade, dotada de um poder soberano
e de um ordenamento jurídico próprio. Cada um destes elementos requer
uma análise particular.

2.3 O ESTADO COMO ENTE TERRITORIAL


Em última análise, o Estado é uma organização e, portanto, seus
componentes são os sujeitos organizados, as pessoas que integram esta
organização. Apesar disto, fala-se, em sentido figurado, do território como
“elemento” do Estado. Apesar de se tratar de uma expressão
aproximativa, mostra-se muito útil para evidenciar o caráter fundamental
que possui a definição do Estado como ente territorial, isto é, como
organização assentada num território ou espaço concreto, sobre o qual
exerce seu poder de forma exclusiva. Pode-se dizer que, sem território,
não há Estado. O exemplo mais emblemático é o dos palestinos e de
Yasser Arafat com sua OLP40 que, sem território, não podem ser
reconhecidos como detentores de um Estado.
É assim também para Dallari, ao escrever que
a afirmação da soberania sobre determinado território parece,
em princípio, uma diminuição, pois implica o reconhecimento
de que o poder será exercido apenas dentro daqueles limites de
espaço. Entretanto, foi com essa delimitação que se pôde
assegurar a eficácia do poder e a estabilidade da ordem.
Assim, pois, a afirmação da noção de território foi uma
39
Para uma melhor compreensão deste assunto, sugere-se a leitura da obra Política,
poder, ideologia e estado contemporâneo, cuja referência completa está contemplada na
bibliografia deste livro.
40
Organização para a Libertação da Palestina.
44 Paulo Márcio Cruz

decorrência histórica, ocorrendo quando os próprios fatos o


exigiam41.
Este caráter se expressa ao menos de três formas diferentes, a
saber:
a) a definição territorial do Estado o diferencia de outras
formas anteriores de organização política. O poder do
Estado é exercido sobre todos os que se encontrem em um
determinado território, independente das qualidades
pessoais dos governantes e dos governados e dos vínculos
que entre eles possam existir. Ao obedecer às autoridades do
Estado, não se obedece a uma ou várias pessoas em virtude
de suas características ou dotes pessoais, mas sim, porque
estas exercem um poder que, por definição, abarca a todos
aqueles situados no âmbito territorial. As condições
pessoais, tanto daquele que exerce a autoridade como
daqueles que obedecem, são irrelevantes para a submissão a
um poder definido territorialmente. A autoridade dos
poderes do Estado não depende de relações, vínculos ou
promessas de fidelidade pessoais a um chefe, senhor ou
caudilho (sistema de organização política dos grupos
germânicos na época das invasões bárbaras ao Império
Romano, traduzido posteriormente na fidelidade ao senhor
feudal), nem de pactos ou acordos entre grupos, subscritos
como contratos renováveis ou rescindíveis (sistema
contratualista medieval), nem de obrigações ou convicções
religiosas (o Rei como cabeça secular da comunidade
religiosa). Resumidamente, pode-se dizer que o poder
estatal se exerce automaticamente sobre tudo aquilo que se
situa dentro de um determinado âmbito territorial. A
territorialidade, desta forma, viabiliza a obediência à
autoridade ao despersonalizá-la;
b) da perspectiva do ordenamento jurídico, o território cumpre
uma função essencial: estabelece os limites dentro dos quais
são impostos, de maneira exclusiva, os poderes do Estado e
são aplicadas suas normas. Este raciocínio supõe a
racionalização da distribuição de poder entre comunidades
políticas. A generalização do fenômeno estatal promoveu
um “loteamento” da superfície emersa do planeta – e de
grande parte dos mares – entre Estados, com exceção do
despovoado continente antártico. Já não há “espaços
abertos”, territórios sem Estado. Mesmo os complicados
Estados africanos, alguns quase desaparecidos, ainda
41
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 73.
Fundamentos do Direito Constitucional 45

persistem e subsistem. Esta delimitação concreta dos limites


territoriais estatais não deixa de trazer consigo problemas
muito intrincados, objeto de preocupação do Direito
Internacional. Exemplos destes problemas podem ser
observados nas disputas pelos mares territoriais, pelos
espaços aéreos e pelo uso do subsolo;
c) o caráter fundamental do território como limite – ou como
definidor dos limites – ao poder do Estado, isto é, além de
exercer o império sobre as pessoas que nele habitam,
também exerceria o domínio sobre este mesmo território, na
forma de um Direito de uso e de sua disponibilidade. O
Estado, sem dúvidas, pode ser proprietário de partes do
território que se integrem a seu patrimônio. Mas também,
exerce o domínio através de outras formas jurídicas, que
não são equivalentes à propriedade, mas que implicam a
capacidade de uso e disponibilidade. Assim, os Estados
podem ceder parte de seus territórios a outros Estados ou os
direitos relativos à exploração dos bens porventura
existentes no seu território. Em todo caso, este domínio
estatal sobre o território não se equipara à propriedade ou a
outro Direito real. O Estado não é, de forma geral, “dono”
(proprietário) de seu território.
A relevância do território do Estado explica a preocupação dos
textos constitucionais ao referir-se a ele, principalmente quando existem
ou existiram disputas históricas por território. Nestes casos, as
Constituições se referem expressamente aos limites do território do
Estado. Um caso paradigmático é a Constituição da República Federal da
Alemanha, oficialmente conhecida como Lei Fundamental de Bonn, que,
em vários artigos, a exemplo do de número 23, prevê o âmbito territorial
do Estado federal alemão e sua reunificação42.
Em países sem conflito territorial ou com um âmbito territorial
historicamente consolidado, como o Brasil, os textos constitucionais não
fazem referência aos limites do território.

2.4 O ESTADO E A NAÇÃO CULTURAL NO


CONSTITUCIONALISMO: A POPULAÇÃO
COMO ELEMENTO ESTATAL
O Estado é uma forma de organização humana. O elemento
humano, a população, é, por óbvio, o pressuposto imprescindível da
42
Sobre isto ver a obra Elementos de direito constitucional da República Federal da
Alemanha, de Konrad HESSE, p. 82 e s. A referência completa desta obra encontra-se na
bibliografia deste livro.
46 Paulo Márcio Cruz

existência estatal, com Dallari afirmando que “é unânime a aceitação da


necessidade do elemento pessoal para a constituição e existência do
Estado, uma vez que sem ele não é possível haver Estado e é para eles que
o Estado se forma”43. Mesmo assim, o conceito de “povo” ou população do
Estado tem algumas características especiais no Estado Constitucional44.
No Estado Absoluto, antes, portanto, do Estado Constitucional,
a população do Estado era definida como o conjunto de sujeitos (ou
súditos) do poder real. Era a submissão a este poder o laço de união dos
componentes da organização estatal, independentemente de outras
considerações de ordem lingüística, cultural ou histórica. Com efeito, era
um fenômeno comum a coexistência, sob o mesmo poder real e no
mesmo Estado, de grupos étnicos e lingüísticos muito variados.
O surgimento do constitucionalismo supôs uma alteração na
condição jurídica da população com relação ao Estado. Os documentos
constitucionais se referem, de diversas formas, à existência de uma
comunidade definida e organizada politicamente. O Estado já não agrupa
os súditos de um soberano, mas sim, organiza uma comunidade que se
auto-define como tal. A Constituição francesa de 1958, por exemplo, em
seu art. 1º prevê que “A República e os povos dos territórios
ultramarinos que, por ato de livre determinação, aceitam a presente
Constituição e instituem uma comunidade. A Comunidade baseia-se na
igualdade e solidariedade dos povos que a constituem”45. As referências
ao “povo” ou à Nação são comuns nas Constituições desde a norte-
americana de 1787 até as de nossos dias.
É necessário assinalar que, quando se fala de Nação como
designação da comunidade política que se organiza em forma de Estado,
pode-se estar tratando de algo muito diferente do “povo” ou da
população. Falar da Nação supõe aceitar a existência de uma coletividade
que é algo mais que um mero agrupamento de indivíduos: supõe aceitar
que esta coletividade tem características próprias, que justificam sua
organização como Estado46. O conceito de Nação como elemento
formador do Estado consolida-se na obra de Emmanuel Joseph Sieyès e
na sua teoria do Poder Constituinte, que será o objeto do próximo
capítulo.
43
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 81.
44
Para uma análise mais profunda do Estado Constitucional, sugere-as a obra Elementos
de teoria geral do estado, de Dalmo de Abreu DALLARI, p. 168 e s., cuja referência
completa está na bibliografia deste livro.
45
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 447.
46
Para uma revisão mais completa sobre Nação e Nacionalismo e além do que será tratado
nos próximos parágrafos, sugere-se a leitura da obra Política, poder, ideologia e estado
contemporâneo, p. 165 e s., cuja referência completa encontra-se na bibliografia deste
livro.
Fundamentos do Direito Constitucional 47

Durante o século XIX, o movimento nacionalista, que chegou


até nossos dias, partiu de duas premissas relacionadas entre si. A primeira
delas define a Nação pela existência de um conjunto de características
culturais, étnicas, religiosas e, principalmente, lingüísticas, comuns a um
grupo social determinado. A segunda é aquela que prevê que toda
entidade nacional, assim definida (como comunidade lingüística e
cultural), tem direito a converter-se em Estado ou, preferindo, a
organizar-se de forma estatal.
Este ponto de vista, tratado pelos publicistas como o “princípio
das nacionalidades”, teve uma notável influência na história política e
constitucional, tendo dado lugar à formação e dissolução de entidades
estatais e se encontra refletido em proclamações formais, como os
quatorze pontos do Presidente Woodrow Wilson47, em 1917.
A configuração atual de muitos Estados europeus é resultado de
movimentos de caráter nacionalista que buscavam a organização estatal
de grupos étnicos e culturais antes divididos – como a Alemanha e a Itália –
ou a independência de grupos deste tipo integrados em Estados
multiétnicos, como foi com o Império Austro-Húngaro e, mais
recentemente, com a União Soviética. O movimento nacionalista também
matizou o processo de descolonização na Ásia, na África e na América
Central e do Sul.
Atualmente é muito difícil admitir que a remissão dos textos
constitucionais à Nação como base humana do Estado seja equivalente a
uma noção linguístico-cultural48. O conceito de Nação como grupo
homogêneo, definido por características socioculturais ou religiosas
comuns não se conjuga facilmente com a realidade dos Estados
contemporâneos, por conta dos seguintes pontos:
a) em alguns casos, a proclamação ou reconhecimento, de uma
entidade nacional, foi produzida em países com uma clara
pluralidade de comunidades culturais. Este é o caso, por
exemplo, da Espanha e da Bélgica. Nestes casos, a
Constituição reconhece o pluralismo cultural interno, ao
admitir a existência, dentro da Nação, de comunidades – no
47
Thomas Woodrow Wilson, político norte-americano, nascido em Staunton, Virgínia, em
1856 e morto em Washington, D. C., em 1924, foi presidente dos Estados Unidos de 1913
a 1921. Professor de Direito, História e Economia Política, foi presidente da Universidade
de Princeton de 1902 a 1910 e governador de New Jersey de 1910 a 1912. Como
Presidente criou o Sistema Federal de Reservas – o Banco Central, aprovou a legislação
trabalhista e a Lei Seca. Declarou guerra à Alemanha em 1917 e, após o fim da Primeira
Guerra Mundial, estimulou a Criação da Liga das Nações, precursora da Organização das
Nações Unidas atual.
48
Sobre isto ver, em especial, a obra Fundamentos de ciência política, coordenada por
André de Blas GUERRERO e Jaime Pastor VERDU, p. 133 e s.
48 Paulo Márcio Cruz

caso da Bélgica – e nacionalidades – no caso da Espanha –


com características culturais próprias;
b) os movimentos migratórios foram os grandes responsáveis
pela eliminação da homogeneidade cultural. É cada vez maior
o número de Estados que começaram sua trajetória histórica
com uma população mais ou menos homogênea cultural,
étnica e lingüisticamente que, com as seguidas ondas
migratórias, tiveram alterada esta composição nacional. Em
muitos casos, os novos grupos nacionais permanecem
intactos, mesmo convivendo sob um mesmo Estado, ou
fazendo parte da mesma “Nação Jurídica”;
c) as tentativas de manter uma identificação jurídica entre
“Nação” e “grupos étnico-culturais” acabaram por dividir a
população do Estado em castas, segundo sua maior ou
menor vinculação ao grupo “nacional”. Os exemplos da
Alemanha de Hitler e do apartheid na África do Sul são
eloqüentes a este respeito. Ao contrário, as constituições dos
Estados democráticos se baseiam na igualdade e não
discriminação, condenando os tratamentos desiguais por
motivos étnicos, religiosos etc., ou seja, precisamente
através daqueles motivos que se associam ao feito
“nacional”.
O conceito jurídico-constitucional de Nação não pode, desta
forma, referir-se a diferenças de caráter étnico, cultural, religioso ou
lingüístico. A identificação entre Nação Cultural e Nação Jurídica e
Política é, de certa forma, questionável. Por isto, a referência à Nação
como base humana da organização estatal não pode ser entendida além de
uma referência à Nação Jurídica. Isto sim, é compatível com populações
mono ou plurinacionais. O relevante é que uma comunidade humana
pode se definir juridicamente com a proclamação constitucional do
caráter “nacional” da população do Estado, com este resolvendo – ou pelo
menos minorando – o problema das disputas entre nações, na mesma
linha teorizada por Hegel49.
49
Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, filósofo alemão nascido em Stuttgart, em 1770 e
morto em Berlim, em 1831, propôs um sistema metodológico destinado a “pensar a vida”
– de modo a colocar o ser e o pensamento, opondo-os num primeiro momento e depois
superando esta posição – na medida em que o mundo, o conhecimento desse mundo e o
discurso pelo qual esse conhecimento se exprime são concebidos como o
desenvolvimento do Conceito. Este procedimento é a obra máxima de HEGEL, A
Fenomenologia do espírito, de 1807. Propondo-se a expor o desenvolvimento do
conceito, o sistema hegeliano engloba a totalidade: exterioridade e interioridade se juntam,
do mesmo modo que sujeito e objeto, no absoluto que é o nível do Discurso. Este
procedimento por oposição e englobamento das oposições, tanto no plano do
entendimento como no da história, HEGEL chamou de “dialética”. A dialética não é um
Fundamentos do Direito Constitucional 49

Logicamente, esta definição pode acontecer num momento


histórico determinado – independência ou secessão de um Estado já
constituído – ou pode expressar-se através de um processo histórico, com
a convivência política que forja uma comunidade cuja existência é aceita
e estimulada por seus membros. A partir deste ponto de vista, a Nação
seria um fenômeno dinâmico, de aprovação sucessiva. Para Marcelo
Caetano, “é que em muitos casos, em vez de ser a Nação que dá origem
ao Estado, é o Estado que, depois de fundado, vai pelo convívio dos
indivíduos e pela unidade de governo criando a comunidade nacional: é
o que se passa, por exemplo, nos Estados Unidos da América”50.
Esta consideração da Nação como, essencialmente, uma
“comunidade política”, que se desprende dos textos constitucionais, não
faz supor que pertencer a coletividades étnicas, culturais, religiosas ou
lingüísticas seja irrelevante do ponto de vista constitucional. Muitas
coletividades nacionais continuam mantendo um alto grau de
homogeneidade, pelo menos em países pequenos, de maneira que neles
há uma correspondência entre Nação Jurídica e Nação Cultural.
Pertencer a um grupo étnico-cultural dentro de um Estado
implica a existência de reconhecimento e proteção pelo Direito estatal. A
existência de nacionalidades, ou comunidades culturais e lingüísticas
dentro da Nação Jurídica – o Estado –, reconhecidas pelas normas de
Direito Constitucional, é traduzida pelo status peculiar destas
comunidades, estabelecido como garantia dos direitos culturais de seus
membros de manter sua identidade nacional.

2.5 A SOBERANIA COMO PODER DO ESTADO


A característica mais evidente do Estado burguês
contemporâneo, como forma de organização política, é o tipo de poder
que exerce territorialmente, independente das características, pessoais ou
sociais, dos membros da população do Estado. A evolução histórica
definiu o poder do Estado com um adjetivo que pretendeu resumir suas
capacidades essenciais: o poder do Estado seria um poder soberano.
A idéia de poder soberano, no sentido de poder supremo e
irresistível desenvolveu-se historicamente na medida em que um dos
poderes medievais, o do Rei, cresceu com a idéia do absolutismo,
assumindo funções públicas em caráter de exclusividade, como a
administração da justiça, emissão de moeda, manutenção de forças
armadas, entre outras, o que o situava acima das demais instâncias de
poder e organizações.
método que supõe apenas a exterioridade do entendimento em relação ao objeto, mas é o
próprio movimento do Conceito, a própria vida do sistema, porque o Absoluto é o sujeito.
50
CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional, p. 123.
50 Paulo Márcio Cruz

O conceito de soberania aparece definitivamente concebido por


Jean Bodin51, em sua obra Os seis livros da república, de 1575. Foi um
conceito elaborado num determinado momento histórico, quando se
produzia a afirmação da monarquia absoluta como regime de governo
capaz de assegurar a paz social, tanto frente às guerras religiosas como
diante de potenciais invasores ou poderes externos, como o Papado de
Roma.
Por isso a soberania aparecia como uma prerrogativa – ou um
poder – suprema, tanto frente a instâncias interiores como exteriores.
Este caráter supremo, predicado que num primeiro momento foi
do “soberano”, foi mantido como prerrogativa estatal e teve acolhida nos
textos constitucionais desde 1789 até nossos dias, normalmente com a
indicação de que a soberania pertence à Nação, como está, por exemplo,
previsto na Constituição Política da República do Chile, em seu art. 5º, o
qual prevê que “a soberania reside essencialmente na Nação”52.
O conceito e o exercício da soberania evoluíram historicamente,
tendo começado com a Monarquia Absoluta e posteriormente absorvidos
pelo constitucionalismo, tanto quanto às suas dimensões como quanto a seu
titular concreto – primeiro o Rei e depois a Nação – dentro do Estado. Assim,
a soberania pode ser definida como poder de
autodeterminação. É o poder que tem uma comunidade
nacional alçada em Estado, de dizer aos demais Estados que é
senhora do seu destino político, não admitindo qualquer
interferência exterior nos assuntos de seu exclusivo interesse 53,
nas palavras de Paulo Napoleão Nogueira da Silva.
a) A dimensão interna da soberania
A soberania se afirmou como poder supremo frente a todas as
outras instâncias ou organizações no âmbito estatal. Isto supôs, no que
respeita à Monarquia Absoluta, a supremacia do Monarca frente às
estruturas de poder feudais e estamentais, como a nobreza, as cidades livres,
as corporações profissionais e a Igreja. No Estado Moderno, a soberania
estatal foi interpretada como um poder legitimamente irresistível, com suas

51
Jean BODIN, economista e jurista francês, nasceu em Angers, em 1529 e morreu em
Laon, em 1596. Professor de Direito em Toulouse, depois advogado em Paris, publica em
1568 sua Réponse au paradoxe de Monsieur Malestroit: l’enrichissement de toutes
choses et le moyem d’y remédier, uma das primeiras obras de economia política, na qual
pôs em relevo o papel da moeda. Conselheiro do Duque de Aleçon (1517), defende a
liberdade de consciência durante as Guerras de Religião. Procurador do Rei em Laon, sua
principal obra é La République, de 1578, uma espécie de “anti-Maquiavel”, tendo
alcançado êxito mundial e fundando os princípios do pensamento político moderno.
52
CHILE. Constituição política da República do Chile, p. 219.
53
SILVA, Paulo Napoleão Nogueira. Elementos de direito público, p. 65.
Fundamentos do Direito Constitucional 51

resoluções, através do aparato estatal, ganhando caráter geral e


incontestável.
Esta afirmação não deve confundir a soberania com o despotismo.
A atribuição ao Estado de um poder soberano é compatível, como será visto
adiante, com a divisão de competências entre órgãos estatais (a divisão ou
separação de poderes). A Monarquia Absoluta implicava a identificação do
Rei com o poder soberano como um poder pessoal com um titular
individual, na linha do “O Estado sou eu”, de Luís XIV. Como escreveu
Sahid Maluf, “eram os monarcas acreditados como representantes de Deus
na ordem temporal, e na sua pessoa se concentravam todos os poderes. O
poder de soberania era o poder pessoal do rei e não admitia limitações”54.
Os movimentos revolucionários dos séculos XVIII e XIX
buscavam despojar o monarca destes poderes soberanos. Os textos
constitucionais atribuíram a soberania a outros titulares, refletindo as
mudanças na distribuição do poder político. Por este motivo, os textos
constitucionais emprestavam especial ênfase à atribuição da soberania à
comunidade como um todo, assim como explica Dallari ao escrever que
no combate da burguesia contra a monarquia absoluta, que
teve seu ponto alto na Revolução Francesa, a idéia de
soberania popular iria exercer grande influência, caminhando
no sentido de soberania nacional, concebendo-se a nação como
o próprio povo numa ordem55.
A confrontação entre as teses e textos que mantinham a soberania
real e os que defendiam a soberania nacional e, posteriormente, a soberania
do povo, tinha assim uma base ou fundamento político evidente. Ao longo
do desenvolvimento do constitucionalismo, a proclamação da soberania real
desapareceu, ou se converteu numa forma meramente retórica, sendo
substituída pela afirmação da soberania nacional, como na Bélgica, na
França e na Espanha, ou da soberania popular, como na Grécia e em
Portugal.
Deve-se fazer outra observação: poder soberano não deve ser
confundido com poder ilimitado. Uma das fronteiras evidentes impostas
ao poder soberano é o Direito Internacional. O poder soberano está
circunscrito à área de abrangência do poder estatal. Além disto, outro
elemento limitador são os direitos inalienáveis da pessoa humana, que
não podem ser perturbados por nenhum sujeito, público ou privado,
traduzidos, hoje, em normas de Direito Constitucional.
É verdade que a limitação do poder soberano equivale
unicamente a uma autolimitação voluntariamente querida pelo Estado e,
por isto, teoricamente revogável. Mas é possível afirmar que, hoje em dia,
54
MALUF, Said. Teoria geral do estado, p. 31.
55
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 67.
52 Paulo Márcio Cruz

a existência de valores compartilhados de caráter supra-estatal (pelo


menos no âmbito da cultura ocidental) torna inaceitável para a
comunidade internacional um retrocesso quanto à limitação do poder
estatal frente aos direitos fundamentais dos cidadãos.
b) A dimensão externa da soberania
A afirmação da soberania do Monarca no Estado Absoluto tinha
uma segunda intenção, dirigida ao plano internacional. A soberania
significaria independência frente a qualquer outro poder externo (reinos,
impérios, Papado). O conceito de soberania destruía juridicamente o que
as guerras religiosas haviam quebrado na prática, ou seja, o conceito de
República Cristã e da cristandade política, ao negar qualquer
subordinação do soberano ao Papa.
A titularidade da soberania, na sua dimensão externa, se perfila,
com mais clareza ainda que em sua dimensão interna, como atributo do
Estado enquanto organização. Foi, por outro lado, um princípio zelosamente
mantido como chave na prática do Direito Internacional. A própria Carta de
constituição das Nações Unidas, em seu art. 21 consagra que “a
organização está baseada no princípio de igualdade soberana de todos os
seus membros”. A independência e a soberania mostram-se como conceitos
estreitamente vinculados, já que o poder soberano é aquele radicalmente
independente de qualquer outro poder, ingerência ou intervenção externa.
Isto, como foi dito, considerando-se a existência de uma ordem ou Direito
Internacional. O que acontece é que cada Estado está subordinado ao
Ordenamento Jurídico ou Direito Internacional, não a um ente estranho ou
estrangeiro.
Não obstante, e em que pese o fato de que o princípio de
soberania estatal continua sendo o critério central das relações
internacionais, deve-se também, neste mister, tecer algumas
considerações.
A interdependência entre os diferentes Estados faz que todos
eles devam ter em conta a reação da comunidade internacional no
momento de adotar decisões as mais diversas. Mais precisamente, o
desenvolvimento de organizações internacionais levou muitos Estados a
renunciarem – implícita ou explicitamente – à sua independência de ação,
em muitas áreas, em favor de outros países – no caso de alianças militares
com países mais fortes – ou em favor de organizações de Estados, cujo
exemplo mais paradigmático é o da União Européia.
Sobre esta interdependência, Sahid Maluf anota que “assim, o
poder de soberania exercido pelo Estado encontra fronteiras não só nos
Fundamentos do Direito Constitucional 53

direitos da pessoa humana como também nos direitos dos grupos e


associações, tanto no domínio interno como na órbita internacional”56.
Esta renúncia pode encontrar uma expressão jurídica na medida
em que são transferidas, para as citadas organizações, faculdades
consideradas como inerentes à soberania. Um bom exemplo disto é o que
está disposto no art. 24, alínea 1, da Lei Fundamental de Bonn 57. Maluf
explica que “atualmente, as nações integram uma ordem continental, e,
dentro dessa ordem superior, o poder de autodeterminação de cada uma
limita-se pelos imperativos da preservação e da sobrevivência das demais
soberanias”58.
Como resultado deste processo de internacionalização dos Estados
contemporâneos, poderes que antes eram atribuídos ao Rei, à Nação, ao Povo
ou ao Estado, estão agora, inclusive juridicamente, transferidos para outras
esferas. Assim, a soberania atual não se caracteriza como uma qualidade
inalterável, que pode definir-se como um conteúdo permanente e
indissolúvel. Muito pelo contrário. Muitos dos poderes do Estado Nacional,
como o de legislar, tributar ou julgar, hoje, estão transferidos a outras
instâncias.
Assim, a soberania se configura como um conjunto de poderes
historicamente exercidos pelo Estado e que, em princípio, só a ele
correspondem. Excepcional e expressamente, estes poderes podem ser
transferidos a outras instituições.
Também deve-se ter em conta a relativização do conceito
clássico de soberania diante do processo de globalização econômica, pois
já não são os governos do Estado que manejam sozinhos os rumos da
economia. Os “mercados” podem, atualmente, inviabilizar muitos
Estados, principalmente os ditos emergentes ou em desenvolvimento.
Como é óbvio, isto pode supor, num futuro não muito
longínquo, a alteração da concepção básica do próprio Estado.

2.6 O ESTADO COMO ORDENAMENTO JURÍDICO


O Direito Constitucional é parte integrante do ordenamento
jurídico estatal59. O Estado é concebido assim nas normas constitucionais
não só como fenômeno político ou de poder (comunidade organizada em
um território, com uma autoridade soberana), mas também como um
56
MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. p. 38.
57
Ver HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da
Alemanha, p. 99.
58
MALUF, Said. Teoria geral do estado, p. 38.
59
Para uma melhor compreensão sobre o ordenamento jurídico, ver a obra de Norberto
BOBBIO, denominada de Teoria do ordenamento jurídico.
54 Paulo Márcio Cruz

fenômeno jurídico: como um ordenamento jurídico. Esta concepção de


Estado está traduzida em afirmações constitucionais explícitas, como no
art. 20 – A, da Lei Fundamental de Bonn, na qual está disposto que “no
âmbito do ordenamento constitucional, o Estado protege os recursos
naturais da vida...”60.
Um ordenamento jurídico, como se sabe, é formado por normas
jurídicas inter-relacionadas, de forma que cada uma delas tenha sentido
com relação às demais: o sistema, em seu conjunto, determina a posição e
o significado de cada um de seus elementos. De fato, toda organização
supõe um ordenamento ou conjunto de normas coordenadas que tornam
possível sua própria existência e funcionamento. O ordenamento estatal
apresenta características próprias, derivadas da mesma concepção do
Estado como organização soberana.
O ordenamento jurídico estatal se apresenta como um
ordenamento originário, no sentido de que não necessita nem depende de
nenhum outro ordenamento alheio a ele61. Os ordenamentos de outras
organizações aparecem, assim, como criados, permitidos ou tolerados
pelo ordenamento estatal. Empresas, associações, sindicatos,
organizações religiosas, entre outras, possuem seus próprios
ordenamentos, mas estão “dentro” do ordenamento jurídico estatal, no
sentido de que não podem, pelo menos, contrariar as regras estabelecidas
por ele.
Claro que o ordenamento jurídico estatal encontra-se inserido
no ordenamento jurídico internacional, porém, por conta do princípio da
soberania dos Estados, não se pode dizer que o ordenamento estatal
derive ou dependa dele. Ordenamento jurídico estatal e ordenamento
jurídico internacional configuram-se como âmbitos distintos, sem
qualquer tipo de subordinação.
Como todo ordenamento, o ordenamento jurídico estatal aparece
como um conjunto ou sistema que forma uma unidade, no sentido de que
suas normas respondem a pautas – ou linhas – comuns, que justificam sua
consideração como um todo. Estas linhas comuns derivam da mesma
natureza do Estado como comunidade política organizada. A saber:
a) quanto ao seu conteúdo, o ordenamento jurídico estatal é a
expressão de cada comunidade – ou nação – política
estatal62. Com isto pode-se afirmar que, forçosamente, este
ordenamento reflete a vontade política de uma comunidade
quanto a seus valores e objetivos essenciais, ou seja, as
60
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 149.
61
Ver o Capítulo 3 deste livro, quando trata do Poder Constituinte Originário.
62
Ver a obra Política, poder, ideologia e estado contemporâneo, de Paulo Márcio
CRUZ, p. 181 e s.
Fundamentos do Direito Constitucional 55

decisões básicas que configuram este Estado e que


conferem unidade e coerência à sua organização. Estas
decisões versarão sobre os valores nos quais se funda (como
o capitalismo, o jusnaturalismo, o socialismo etc.) e sobre a
distribuição do poder social e político. O ordenamento
jurídico é, necessariamente, um reflexo da realidade material
obtida através das decisões políticas, da Constituição
material ou da articulação institucional. É esta realidade que
torna possíveis a unidade e a coerência das normas deste
mesmo ordenamento.
b) quanto à sua forma, a unidade do ordenamento jurídico
estatal se traduz num sistema ordenado de produção de
normas jurídicas. Estas serão formal e materialmente
válidas enquanto geradas ou produzidas de acordo com os
procedimentos e pelos órgãos previamente estabelecidos.
Como conseqüência, o ordenamento jurídico estatal se
configura (de acordo com o conhecido esquema proposto
por Hans Kelsen63) de forma escalonada. Uma norma
jurídica é válida na medida em que é gerada segundo o
disposto em uma norma jurídica de escalão superior, que
por sua vez deriva de outra norma superior a ela, e assim
sucessivamente. Na prática, a validade de todo o sistema
jurídico depende de sua vinculação – formal e material – a
uma norma fundamental, que definiria tanto os valores e
decisões básicas do ordenamento como o sistema de criação
das normas que o integram.
Como se nota, ao se conceber o Estado como ordenamento
jurídico, pode-se definir o conceito e função do Direito Constitucional
como o ramo do Direito que estabelece ou possui os elementos
fundamentais do ordenamento jurídico estatal, tanto em relação aos
valores e objetivos quanto aos mecanismos de produção de normas,
expresso através da organização e repartição do poder. Na grande maioria
dos Estados ocidentais, esta função está atribuída a uma norma
fundamental, com designação própria, como é o caso da própria
Constituição.
Diante desta afirmação sobre o caráter sistêmico do
ordenamento jurídico estatal – com uma norma fundamental ou
63
Hans KELSEN, jurista austríaco naturalizado norte-americano, nascido em Praga, em
1881 e morto em Orinda, Califórnia, em 1973. Estudioso de Filosofia do Direito e autor
da Constituição da Áustria de 1920. Chefe da chamada escola de Viena, elaborou um
sistema logicamente rigoroso sobre os postulados do positivismo jurídico, afirmando que
a única fonte do Direito é o Direito Positivo. Escreveu Teoria pura do direito, sua obra
clássica, entre muitas outras.
56 Paulo Márcio Cruz

Constituição no ápice ou no centro deste sistema – torna-se fundamental


conhecer as concepções sobre a teoria do Poder Constituinte em Sieyès e
outros autores e, portanto, da origem do constitucionalismo moderno, o
que será objeto do próximo capítulo deste livro.
Fundamentos do Direito Constitucional 57

Capítulo 3

O PODER CONSTITUINTE

3.1 NOTA INTRODUTÓRIA AO PODER


CONSTITUINTE
A Revolução Francesa, iniciada em 1789 provoca profundas
alterações nas instituições francesas da época e contribui
inequivocamente para transformar a própria Europa. As noções de
política e Poder sofrem mudanças muito significativas.
Na França, entre 1789 e 1815, surgem poucas obras de doutrina
política, e as que aparecem estão profundamente marcadas pela
Revolução. Uma das perguntas mais freqüentes nos meios acadêmicos da
época era se o correto seria “fazer a Revolução, lutar contra ela ou
simplesmente viver”64. Além disso, a guerra deixaria pouco tempo para a
reflexão aos pensadores e anula os ideólogos profissionais do país.
Considerado este viés meio “pessimista” do movimento
revolucionário francês, o relato científico sobre as doutrinas políticas
erigidas na Revolução poderia ser bastante sucinto, já que limitado pela
apatia ou desinteresse dos pensadores da época.
Porém não foi exatamente o que aconteceu. Dependendo do
enfoque e da amplitude que se queira dar, é preciso reservar muito
espaço, em qualquer relato científico, para as idéias políticas que se
formaram entre 1789 e 1815. Datam deste período os principais conceitos
para categorias políticas fundamentais, como Estado Constitucional,
Poder do Estado, Poder Político, Direitos Fundamentais, Liberalismo,
Nação Política, Constituição Civil, a “descristianização” do Estado e,
principalmente, o culto à Razão.
As idéias estabelecidas neste período foram expressas em
muitos textos famosos, como a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão e a Preâmbulo e o Título Primeiro da Constituição Francesa de
64
PANDRÉS, José Luiz. La revolución francesa. p. 25.
58 Paulo Márcio Cruz

1791, mas o mais importante foi o famoso panfleto de autoria de


Emmanuel Joseph Sieyès65, intitulado Qu’est-ce que le tiers état? (A
Constituinte Burguesa, na sua versão brasileira), de 1789.
Sieyès estabelece a doutrina da soberania da Nação, dizendo
que “em toda Nação livre – e toda Nação deve ser livre – só há uma
forma de acabar com as diferenças que se produzem com respeito à
Constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é à própria
Nação”66 Foi com essa posição que Sieyès concebeu, racionalmente, o
princípio da soberania da Nação como instrumento de legitimação para a
instituição do Estado Constitucional. Esta nova forma de organização
político-jurídica da Sociedade moderna, segundo Dallari, ao ser
concebida “no sentido de Estado enquadrado num sistema normativo
fundamental, é uma criação moderna, tendo surgido paralelamente ao
Estado Democrático e, em parte, sob influência dos mesmos
princípios”67, através de um Poder político e metajurídico, inato ao
cidadão.
Sieyès forjou uma concepção racionalista, utilitária,
individualista e fundamentalmente voltada para um produto jurídico, no
sentido de ter a capacidade de produzir a norma jurídica fundamental – a
Constituição –, da Nação.
Sieyès desconsidera a história. Na sua obra Qu’est-ce que le
tiers état? Não há nenhuma alusão ao desenvolvimento das instituições
nem ao papel histórico da nobreza ou da monarquia. A história começa
em 1789. As causas dos conflitos que desaguaram na Revolução Francesa
eram irracionais e, desta forma, irrelevantes e inaceitáveis.
O começo da obra de Sieyès está dedicado a demonstrar a
importância e utilidade da burguesia e a inutilidade da nobreza parasita.
Para Sieyès, o argumento da utilidade é o principal entre todos por ele
utilizados para defender sua tese.
A vontade nacional, para Sieyès, é o resultado das vontades
individuais, assim como a Nação é o conjunto dos indivíduos. A Nação é
um conjunto de indivíduos – 25 ou 26 milhões, com exceção de 200 mil
nobres ou sacerdotes. A força está no número, já que todos os homens,

65
EMMANUEL JOSEPH SIEYÈS, político francês nascido em Frejus, em 1748 e morto
em Paris, em 1836, foi vigário-geral de Chartres, em 1789, ano da revolução burguesa.
Eleito deputado do Terceiro Estado pelos parisienses desempenhou um papel decisivo em
junho de 1789, na transformação dos Estados Gerais em Assembléia Nacional e na
resistência ao Rei absolutista. É dele a teoria do Poder Constituinte, que até hoje preside
os processos de constitucionalizações democráticas, expresso na sua obra Qu’est-ce que
le tiers état? ou A Constituinte Burguesa em sua versão em português.
66
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. p. 113.
67
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. p. 168.
Fundamentos do Direito Constitucional 59

burgueses, nobres ou sacerdotes, teriam somente um voto (cada homem


um voto)68.
Nota-se que Sieyès se preocupa em estabelecer um
entendimento de igualdade político-jurídica a partir da igualdade
perante a lei. Em sua obra famosa ele pergunta e responde: “O que é
uma Nação? Um corpo de associados que vivem sob uma lei comum e
representados pela mesma legislatura” 69. Dessa forma, ele ressalta a
importância da lei. Sua perspectiva é puramente jurídica. Não foi
objetivo da obra qualquer tipo de análise econômica ou social: o
Terceiro Estado é apresentado como um bloco monolítico de 25 ou 26
milhões de indivíduos iguais.
A única distinção feita na obra é a que contrasta “privilegiados”
com “não privilegiados”.
O espírito de Sieyès é o espírito da Revolução Francesa, que
representa melhor do que ninguém a burguesia francesa da época, com
posses mas desejosa da garantia do direito de propriedade, e esse Terceiro
Estado, que desejou e fez a revolução. Referindo-se à essa obra, Manoel
Gonçalves Ferreira Filho escreve que “na verdade, esse livro foi o
manifesto da Revolução Francesa; está como manifesto para ela assim
como está o de Marx para a Revolução Russa”70.
A secularização da doutrina de Sieyès, no entanto, deu-se pela
intensa propagação da sua tese sobre o Poder Constituinte, espécie de
síntese de tudo o que foi proposto por ele.

3.2 O PENSAMENTO DE EMMANUEL SIEYÈS E A TEORIA


DO PODER CONSTITUINTE
Poucos meses antes da deflagração da Revolução Francesa,
Sieyès publicou seu folheto intitulado Qu’est-ce que le tiers état? ou O
que é o Terceiro Estado?, na sua versão brasileira, que, como já
assinalado, foi um dos mais famosos estopins revolucionários,
representando um verdadeiro manifesto de reivindicações da burguesia na
sua luta contra o privilégio e o absolutismo
Para Sieyès, a nação – ou o povo – se identificava com o
Terceiro Estado (ou burguesia), como explica Hermann Heller, quando
escreveu que “na Revolução Francesa, o setor burguês do povo que
chegou a adquirir uma consciência política, a nação na acepção

68
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. p. 67.
69
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. p. 69.
70
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 11.
60 Paulo Márcio Cruz

francesa, conseguiu alcançar para si a decisão consciente sobre a forma


de existência do Estado e, com isso, o poder constituinte”71.
Sieyès demonstra isso em sua obra, afirmando que o Terceiro
Estado suportava todos os trabalhos particulares (a atividade econômica,
desde a exercida na indústria, no comércio, na agricultura, nas
profissões científicas e liberais e até nos serviços domésticos) e ainda
exercia a quase totalidade das funções públicas, excluídos apenas os
lugares lucrativos e honoríficos, correspondentes a cerca de um
vigésimo do total, os quais eram ocupados por membros dos dois outros
estados – o alto clero e a nobreza – que eram, no seu entender,
privilegiados sem méritos.
Os nobres e o alto clero, privilegiados, constituíam um corpo
estranho, que nada fazia e poderia ser suprimido sem afetar a essência da
Nação. Muito pelo contrário, pois as coisas poderiam andar melhor sem o
estorvo desse conjunto parasita.
Embora o Terceiro Estado possuísse todo o necessário para
constituir uma Nação, ele nada era na França daquela época, pois a
nobreza havia usurpado os direitos do povo, oprimindo-o, instituindo
privilégios e exercendo as funções vitais no serviço público. Contra esta
situação, o Terceiro Estado reivindicava apenas uma parte do que, por
justiça, lhe caberia. A burguesia não queria ser tudo mas, no mínimo,
escolher seus representantes no próprio Terceiro Estado, ter igual número
de deputados que os outros dois estados e poder ter as votações nos
Estados Gerais por cabeça, não por ordem.
Sieyès escreveu, a propósito do referido no parágrafo anterior,
que “não é possível apreciar as verdadeiras opiniões desta a não ser
pelas reclamações autênticas que as grandes municipalidades do reino
dirigiram ao governo. O que se vê nelas? Que o povo quer alguma coisa
e, na verdade, muito pouco”72.
O revolucionário francês escreveu também que o povo
quer ter verdadeiros representantes nos Estados Gerais 73, ou
seja, deputados oriundos de sua ordem, hábeis em interpretar
sua vontade e defender seus interesses. Mas de que serviria
participar dos Estados Gerais se ali predomina interesse
contrário ao seu. Só iria consagrar, com sua presença, a
opressão de que seria eterna vítima74.
Sobre o desigual poder de decisão, Sieyès anotou que,
71
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. p. 326.
72
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. p. 77.
73
Estado Gerais era a reunião de representantes franceses para as deliberações do reino
durante a Monarquia Absoluta.
74
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. p. 78.
Fundamentos do Direito Constitucional 61

desse modo, é certo que não possa vir a votar nos Estados
Gerais, se não tiver uma influência pelo menos igual à dos
privilegiados, e com um número de representantes igual ao das
outras duas ordens juntas. Todavia, esta igualdade de
representação se tornaria perfeitamente ilusória se cada câmara
votasse separadamente75.
Assim, Sieyès conclui escrevendo que “o Terceiro Estado pede,
pois, que os votos sejam emitidos por cabeça76 e não por ordem”77
Procurando fundamentar estas reivindicações no Direito, Sieyès
desenvolveu o seu pensamento jurídico nos dois capítulos finais do
famoso folheto, partindo do modo representativo de governo para chegar,
pela primeira vez, a uma distinção entre o Poder Constituinte e os poderes
constituídos.
Sieyès distinguiu três épocas na formação das sociedades
políticas. Na primeira, há uma quantidade de indivíduos isolados que,
pelo fato de quererem reunir-se, têm todos os direitos de uma nação,
restando apenas exercê-los. Na segunda época, reúnem-se para deliberar
sobre as necessidades públicas e os meios de provê-las. A sociedade
política atua, então, por meio de uma vontade real comum 78. Na terceira
época, surge o governo exercido por procuração: os representados
escolhem seus representantes para velar por suas necessidades. Neste
momento já não atua uma vontade comum real, mas sim, uma vontade
comum representativa. Os representantes não a exercem por direito
próprio e nem sequer têm a plenitude do seu exercício.
Em última análise, ao procurar fundamentar juridicamente as
reivindicações da classe burguesa, Sieyès foi buscar fora do ordenamento
jurídico positivo, que ele considerava injusto, um Direito superior, o
Direito Natural do povo de autoconstituir-se, a fim de justificar a
renovação da mesma ordem jurídica, ou seja, através do Poder
Constituinte.
O pensamento de Sieyès desenvolveu-se nos moldes do
racionalismo iluminista cartesiano, do contratualismo e da ideologia
liberal da época. Ele dedicou-se a construir um conceito racional de Poder
Constituinte, levando em conta o problema da sua natureza e da sua
titularidade, bem como apresentando a sua solução. Durante muito tempo
a doutrina tradicional desenvolveu os ensinamentos de Sieyès. Com o
surgimento do positivismo jurídico como produto do liberalismo burguês,

75
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. p. 78.
76
Por ordem eram os votos dados pelas classes como um todo. Desta forma, a nobreza e o
alto clero, sempre unidas, venciam todas as votações.
77
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. p. 78.
78
Sobre isto ver J. J. Gomes CANOTILHO, em seu Direito Constitucional, p. 93 e s.
62 Paulo Márcio Cruz

começou a ser questionada a natureza jurídica do Poder Constituinte, já


que, admitindo-se a positividade como o único modo de ser do Direito e
sendo certo que o Poder Constituinte é anterior ao Direito Positivo, não
poderia ele ser um poder jurídico79.
Depreende-se daí que o Poder Constituinte Originário – a
princípio – não está, necessariamente, obrigado pela ordem pretérita e,
portanto, não se funda em nenhum poder jurídico.
O Poder Constituinte é, assim, um poder advindo da soberania
natural do conjunto da Sociedade, que é seu titular e legítimo exercitador80.

3.3 ABORDAGEM CONCEITUAL DO PODER


CONSTITUINTE
O Poder Constituinte é, de modo geral, a expressão máxima da
soberania nacional se concebido como elemento fundamental para criação
do Estado.
Bobbio escreve que “o Poder Constituinte é pois,
absolutamente, livre no fim e nas formas através das quais ele se
explica”81.
O Poder Constituinte está baseado numa vontade absolutamente
primária, no sentido de que ele tira apenas de si próprio e não de qualquer
outra fonte os seus limites e suas formas de ação. “É, esse poder, inerente
à nação, que constitui o Poder Constituinte e dá origem à Constituição e,
portanto, aos poderes constituídos”82.
Pode-se portanto, afirmar que toda nova formação estatal passa
a existir através da aplicação de um Poder Constituinte. Tal poder é
catalogado entre as fontes de produção do Direito positivo.
Por essa razão, como anota Reis Friede,
não é correto afirmar que a Constituição seja a lei máxima de
um Estado, porquanto, pelo menos em sua origem, o poder
constituinte pode estabelecer, de forma efetiva, regulamentos
79
Denota-se, daí, uma contradição metodológica e axiológica, já que o Direito Positivo
tem sua gênese ligada ao Estado Constitucional, que por sua vez tem sua origem no Poder
Constituinte.
80
Natural no sentido de escatológico. O primeiro Liberalismo acreditava que sua
proposição era perfeita e, portanto, natural. Origina-se desta concepção, por exemplo, a
categoria Juiz Natural e que é artificial, considerando a simples conclusão de que
“ninguém nasce juiz”. Foi o Estado Liberal que passou a entender que seria “natural” o
juiz membro de um de seus poderes, o Judiciário, pois “natural” seria ele próprio (o
Estado Liberal).
81
BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de política. p. 61.
82
SOUZA, José P. G. Dicionário de política. p. 420.
Fundamentos do Direito Constitucional 63

normativos caracterizadores do próprio Estado, criando tal


concepção a partir da prévia existência de uma Nação
(necessariamente não dotada de uma Constituição) ou mesmo
recriando idêntica concepção a partir da existência de um
Estado anterior (já dotado, portanto, de uma Constituição)83.
É possível discordar de Reis Friede, já que o Poder Constituinte
não é lei ou qualquer outro instrumento jurídico. É, como o próprio nome
acentua, um Poder da Nação que existe antes de qualquer ordenamento
jurídico, na proposição de Sieyès.
Desta forma, se o Poder Constituinte, através de sua
manifestação ilimitada e soberana, pode conceber o próprio Estado como
organização política e jurídica, pode-se afirmar, com mais segurança, que
ele pode modificar o ordenamento jurídico-constitucional que já existe no
Estado, produzindo uma nova Constituição que revogará a anterior para
todos os efeitos e formas.
Apesar destas considerações, é preciso assinalar que foi a partir
da Constituição formal – ou do Estado Constitucional –, surgida das
revoluções burguesas do século XVIII, que a existência de uma norma
jurídica fundamental – uma Constituição, portanto – e, por via de
conseqüência, do Poder Constituinte, passou a ser aceita e compreendida na
sua exata dimensão, tornando possível o estabelecimento de uma teoria
sobre este assunto.
Mesmo assim, é também necessário sublinhar que o Poder
Constituinte só é exercitado em ocasiões muito especiais. Momentos
histórico-políticos muito intensos, marcados por movimentos sociais
convulsivos, crises institucionais de muita gravidade ou mesmo pela
formação de um novo Estado, não são absorvíveis pelo ordenamento
jurídico vigente. Celso Bastos adita que
nesses momentos, a inexistência de uma Constituição (no caso
de um novo Estado) ou a imprestabilidade das normas
constitucionais vigentes para manter a situação sob a sua
regulação fazem eclodir ou emergir este Poder Constituinte,
que, do estado de virtualidade ou latência, passa a um
momento de operacionalização do qual surgirão as novas
normas constitucionais84.

3.4 A TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE

83
FRIEDE, Reis. Lições objetivas de direito constitucional. p. 78.
84
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. p. 19.
64 Paulo Márcio Cruz

A titularidade do Poder Constituinte, em qualquer de suas


modalidades, pertence sempre ao povo, enquanto comunidade de
cidadãos eleitores e componentes da Nação.
A “vontade constituinte” deve ser sempre identificada com a
vontade do povo, que a exprime através de diversas e numerosas formas,
como nas Assembléias ou Convenções Constituintes.
A titularidade do Poder Constituinte não é da Assembléia ou
Convenção Constituinte, já que estes últimos são, ao contrário, órgãos aos
quais são atribuídas competências e não qualquer outra prerrogativa. É o
mesmo liame representativo que depois foi empregado à Democracia.
Da mesma forma, o Congresso Nacional não é o titular do poder
de reforma constitucional, chamado de Poder Constituinte de 2º grau do
tipo derivado ou reformador. É somente o instrumento de que se vale o
povo, na qualidade de titular do Poder Constituinte para, através dele,
exercê-lo concretamente. Reis Friede explica, sobre isto, que “por esta
razão específica é que o denominado ‘coeficiente de legitimidade’ de
uma Constituição deve ser sempre aferido em função da adequação e da
subordinação de seus preceitos ao consenso dos governados”85.
O estudo do Poder Constituinte não pode, portanto, prescindir
da noção de povo como sujeito e titular soberano do poder, ainda que, em
algumas formas ou métodos, o Poder Constituinte, esteja, de alguma
forma, afastado deste mesmo povo.
Há uma outra dificuldade para estabelecer a titularidade do
Poder Constituinte, que Manoel Gonçalves Ferreira Filho chama de
“caráter ideológico do debate”86. O autor considera que a análise
ideológica do Poder Constituinte conduz a uma triste e frustrante
conclusão, já que não seria possível, a partir desse ângulo específico,
determinar quem é o titular do Poder Constituinte num estudo
exclusivamente científico.
Ferreira Filho aponta o povo como titular do Poder Constituinte,
mas ressalta a dificuldade para a conceituação dessa categoria. Os
doutrinadores têm feito um grande esforço nesse sentido, “mas a
obscuridade permanece relativa ao que é povo”87. Ainda segundo o autor,
o único ponto positivo da análise ideológica da titularidade do Poder
Constituinte é constatação praticamente geral de que o consentimento da
Nação é fundamental para que possa ser produzida uma Lei Magna. Sem
esse consentimento, mesmo que seja indireto, não existe Constituição.

85
FRIEDE, Reis. Curso de direito constitucional e de teoria geral do estado. p. 44.
86
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 29.
87
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 29.
Fundamentos do Direito Constitucional 65

Assim, diante do debate sobre o “consentimento” da Nação, é


importante trazer algumas considerações sobre teses que não
concebem, necessariamente, o povo como titular direto do Poder
Constituinte. O mais emblemático exemplo é o polêmico
constitucionalista Carl Schmitt88, que diz ser o Poder Constituinte a
vontade política cuja força ou autoridade é capaz de adotar concreta
decisão de conjunto sobre modo e forma da própria existência política,
“determinando assim a existência da unidade política como um todo”89 O
Poder Constituinte, para Schmitt, é um poder jurídico, uma vez que não
haveria separação entre o jurídico e o político, apesar de não depender de
ninguém nem de nenhuma regulamentação prévia. Ainda segundo o autor
alemão, este Poder é unitário e indivisível: não se acha coordenado com
os outros poderes divididos – legislativo, executivo e judiciário – mas
serve de fundamento a todos os poderes constituídos. Seria também
permanente, inalienável e não poderia ser absorvido ou consumido.
Note-se que o titular do Poder Constituinte, na tese de Schmitt,
seria aquele ou aqueles que possuíssem o poder legítimo, fosse qual fosse
o meio para alcançar esta legitimação, direto ou indireto. Como escreve
Celso Bastos, “assim, o decisionismo de Carl Schmitt serviu para
justificar, mais tarde, o totalitarismo nazista, atribuindo ao Führer a
titularidade do poder constituinte”90.
Finalmente, deve-se anotar que, no mundo contemporâneo, a
titularidade do Poder Constituinte tende a possuir duas respostas: uma
autoritária e outra democrática. A primeira funda a titularidade do Poder
Constituinte no princípio minoritário de autoridade. A segunda, ao
contrário, localiza a titularidade no princípio majoritário de Nação.

3.5 OS TIPOS DE PODER CONSTITUINTE: ORIGINÁRIO E


DERIVADO
É pacífico o entendimento na doutrina sobre a existência destes
dois “tipos” de Poder Constituinte.

88
Carl SCHIMITT, nascido em Bremen, em 1988, e morto em Berlim, em 1985, é um dos
mais destacados pensadores alemães no âmbito da Teoria do Estado e da Ciência Política.
Durante os anos da República de Weimar, sua Teoria da Constituição, de 1928, e outras
obras, como A Ditadura, de 1921, O Conceito do Político, de 1928, Legalidade e
legitimidade, de 1932, entre outras, tiveram uma grande influência no pensamento
político ocidental, o que contribuiu para a crise do Estado Liberal de Direito. O caráter
radical de seu pensamento, quase sempre expresso com muito brilhantismo e eficácia, põe
em evidência as contradições da teoria política liberal. Foi acusado, sempre de maneira
inconsistente, de fornecer amparo teórico ao nazismo e a outras ditaduras.
89
SCHMITT, Carl. Teoria da Constituição, p. 159.
90
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 26.
66 Paulo Márcio Cruz

O Poder Constituinte Originário, ou de primeiro grau, destina-se


a instaurar o Estado e inaugurar a ordem jurídica da Sociedade
politicamente organizada. Como escreve Reis Friede, “é um poder de
decisão, cujo exercício antecede, necessariamente, a formulação do
próprio Texto Constitucional”91.
O outro “tipo” de Poder Constituinte, o Derivado, pressupõe
uma Constituição já em vigor, que lhe dá os limites e lhe impõe os modos
de atuação. É um poder essencialmente jurídico, de exercício contido, que
sofre as restrições definidas na própria Constituição e deixadas nela pelo
Poder Constituinte Originário, que lhe é superior. Muito corretamente é
chamado de Derivado, pois deriva – ou remanesce – do Originário.
a) O Poder Constituinte Originário
O exercício do Poder Constituinte Originário decorre, sem
dúvidas, de um poder supra ou metajurídico, de conteúdo exclusivamente
político e sociológico, sem qualquer traço estatal, não estando sujeito a
qualquer outro poder preexistente.
Assim, o Poder Constituinte Originário, ou de 1º grau, está
habilitado a instaurar o Estado e inaugura uma nova ordem jurídica. É um
poder de decisão, como foi dito, que está acima de qualquer Constituição.
O Poder Constituinte Originário poderá ser fruto da necessidade
de fundar o Estado ou de produzir uma nova Constituição a um Estado já
constitucionalizado, através de um processo de revolução.
Desta forma, o Poder Constituinte Originário está dividido em
duas espécies: o Poder Constituinte Originário Fundacional e o Poder
Constituinte Originário Revolucionário. Boa parte dos autores não adota
tal classificação, entendendo que não há distinção entre eles. Mas há, com
a devida vênia, algumas distinções bastante perceptíveis.
1 – Poder Constituinte Originário Fundacional
Quando um Estado é fundado, seja por independência, secessão
ou qualquer outro processo de aquisição de soberania, o Poder Constituinte
que preside a elaboração da primeira Constituição do novo país é,
efetivamente, diferente daquele exercido quando da re-constitucionalização
por um processo revolucionário, como será visto no item seguinte.
O Poder Constituinte Originário Fundacional é diferente do
Originário Revolucionário nos seguintes aspectos:
I – Quando da elaboração da primeira Constituição de um
Estado, não há tradições jurídicas próprias a serem
consideradas;

91
FRIEDE, Reis. Lições objetivas de direito constitucional. p. 81.
Fundamentos do Direito Constitucional 67

II – Não há poderes constituídos que possam exercer qualquer


tipo de pressão sobre o Poder Constituinte Originário
Fundacional;
III – Institutos jurídicos criadores de direitos adquiridos não
estão presentes e não causam constrangimentos ao Poder
Constituinte Originário Fundacional;
IV – Não há um ordenamento jurídico-constitucional anterior
que possa servir de paradigma à elaboração da
Constituição, permitindo completa liberdade de
proposição e criação ao Poder Constituinte Originário
Fundacional.
Por ser um poder político e sociológico, o Poder Constituinte
tende a “desamarrar-se” de qualquer ordem jurídica anterior. É neste
sentido que o Poder Constituinte Originário Fundacional é mais
“soberano” que o Poder Constituinte Originário Revolucionário.
Como forma de exemplificar o Poder Constituinte Originário
Fundacional, pode-se utilizar a Constituição Norte-Americana aprovada
em 17.09.1787 e a Brasileira de 1824. Em ambos os casos, os
condicionamentos a qualquer ordenamento anterior foram praticamente
inexistentes. Mesmo com relação à Inglaterra e Portugal.
2 – Poder Constituinte Originário Revolucionário
Este outro “tipo” de Poder Constituinte Originário manifesta-se
quando, num determinado Estado, um processo revolucionário rompe
com a ordem constitucional anterior e exige uma nova Constituição para
a implantação de um novo ordenamento jurídico-constitucional.
Nestes casos, diferentemente de quando se manifesta o Poder
Constituinte Originário Fundacional, a elaboração da nova Constituição
fica, inexoravelmente, vinculada a parâmetros anteriores impregnados na
cultura geral da Sociedade.
Teoricamente, o Poder Constituinte Originário Revolucionário é
tão ilimitado quanto o Fundacional mas, na prática, não é bem assim.
Para se caracterizar corretamente o Poder Constituinte
Revolucionário, é necessário identificar o evento que alavanca a
revolução92 no seio da Sociedade.
b) Poder Constituinte derivado

92
Revolução num sentido amplo, muito além do tradicional, que vincula o termo com o
uso necessário da força. Para a caracterização do Poder Constituinte Revolucionário,
revolução pode ser também uma mudança radical nas concepções de base da Sociedade
que leve à substituição do status quo estatal vigente.
68 Paulo Márcio Cruz

O Poder Constituinte abordado no item anterior, o Originário, é


assim qualificado para denotar oposição ao Poder Constituinte Derivado,
ou Instituído, ou Reformador, ou Remanescente, que são as diversas
denominações dadas a este “tipo” de Poder Constituinte.
Ao estabelecer a Constituição, o Poder Constituinte Originário
institui poderes, seguindo, normalmente, a clássica tripartição proposta
por Montesquieu93, instituindo um Poder Executivo, um Poder Judiciário
e um Poder Legislativo, que são organismos do Estado com funções
próprias e definidas.
Alguns autores, como Manoel Gonçalves, entendem que a
Constituição também institui o Poder Constituinte, escrevendo que “em
regra geral, ela institui também um outro poder, que é o Poder
Constituinte, usualmente denominado Poder Constituinte Instituído ou
Derivado”94. Não há, neste livro, disposição de entender desta forma,
com todo o respeito à posição de Ferreira Filho.
O Poder Constituinte Derivado é instituído pelo Poder
Constituinte Originário, que instituiu a Constituição, seja qual for o modo
de exercício utilizado.
Concorda-se, isto sim, com a natureza jurídica do Poder
Constituído Derivado. Ele é um poder jurídico, pois está sujeito e
limitado pela Constituição.
Não há razão em se acreditar que o Poder Constituinte
Originário, emanado diretamente da Sociedade ou de quem está
exercendo o poder do Estado naquele momento e, portanto, sendo qual
seja o modo de seu exercício, faça remanescer na Constituição um poder
mais forte e amplo que o dele próprio. Isto contraria toda racionalidade da
proposta de Sieyès, com a devida vênia àqueles que pensam o contrário.
Para esta obra, portanto, o Poder Constituinte Originário é
ilimitado, metajurídico e instituidor. Já o Poder Constituinte Derivado é
limitado, jurídico e instituído.
O que se pode, efetivamente, é estabelecer uma taxionomia para
o Poder Constituinte Derivado, o que ajuda bastante a sua compreensão.
Desta forma, seriam as seguintes as suas espécies.
1 – Poder Constituinte Derivado Decorrente

93
É muito importante ressaltar que a tese da tripartição do poder do Estado, concebida por
Montesquieu, talvez já não atenda à complexidade do Estado Contemporâneo. Há uma
sensação de que “faltam poderes”. Se não, como tratar, neste próximo milênio, da mídia,
do Ministério Público, do mundo virtual, da globalização, só para trazer alguns temas que
estão, quase sempre, fora do âmbito dos três poderes tradicionais?
94
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 102.
Fundamentos do Direito Constitucional 69

Esta espécie de Poder Constituinte Derivado destina-se, nos


Estados federais, como o Brasil, à elaboração das constituições dos
Estados federados e das leis orgânicas dos Municípios. Note-se que ele é
diferente daquele utilizado para realizar modificações no âmbito da
própria Constituição que o instituiu, já que está condicionado pela
autonomia das unidades federadas.
2 – Poder Constituinte Derivado Revisor
Assim como o constituinte originário de 1988 trouxe inovações
dignas de nota, também produziu alguns equívocos que, de certa forma,
são muito prejudiciais ao constitucionalismo brasileiro.
Um destes equívocos, na ótica do autor deste livro, foi a forma
encontrada para estabelecer o Poder Constituinte Derivado Revisor.
Esta espécie de Poder Constituinte Derivado destina-se, como
sugere o próprio nome, a revisar a Constituição. Para melhor
entendimento: o Poder Constituinte Originário entende que a
Constituição, de tempos em tempos, deve ser revisada, de modo a adaptá-
la aos progressos conseguidos pela Sociedade e a corrigir eventuais
problemas de origem.
Revisar não significa, necessariamente, reformar. São coisas
distintas. Veja-se o que acontece com o processo de manutenção dos carros
de passeio: alguém leva o carro para a revisão para saber o que é preciso
reformar (no sentido de substituir, suprimindo ou acrescentando). Sendo o
processo correto, o estabelecimento que está realizando a revisão consulta o
proprietário para saber de sua disposição para realizar a reforma.
Trazendo o raciocínio, agora, para o exercício do Poder
Constituinte Derivado Revisor, o processo de revisão constitucional é
diferente e antecede o de reforma. Revisar significa detectar os pontos
que possam estar necessitando de reforma e, após estabelecido o elenco
de itens que devem ser submetidos a ela, submetê-los ao devido
processo para apreciação de emendas constitucionais, previsto na
Constituição.
Assim, a revisão instrui a reforma.
A revisão pode ser realizada com quórum mais brando do que a
reforma, desde que se entenda que revisar não é reformar.
Na maioria dos países que adotam o instituto da Revisão
Constitucional, este processo ocorre, regularmente, em períodos
determinados de tempo. Além disto, não há um outro processo, diferente,
para reforma. Um bom exemplo é a atual Constituição da República
Portuguesa.
Os exemplos de constituições estrangeiras serviram para inspirar
o constituinte originário brasileiro de 1988, mas em nenhuma delas
encontra-se a deturpação do quórum e da votação única que foi
70 Paulo Márcio Cruz

estabelecida para a revisão na Constituição da República Federativa do


Brasil de 1988.
Os autores consultados, entre eles Gomes Canotilho 95, não vão
tão longe na diferenciação entre revisão e reforma, porém não admitem,
em nenhum momento, que a revisão possa alterar a Constituição com
procedimento diferente daquele previsto para a aprovação de emendas
constitucionais.
3 – Poder Constituinte Derivado Reformador
O Poder Constituinte Derivado Reformador96 é aquele destinado
a reformar os dispositivos constitucionais através de emendas
constitucionais.
A emenda representa o processo ordinário, com quórum especial,
para a alteração da Constituição, respeitados os limites previstos no
próprio texto constitucional.
O Poder Constituinte Derivado Reformador está
irrefutavelmente adstrito aos limites previamente estabelecidos pelo
Poder Constituinte Originário.

3.6 AGENTES E MÉTODOS DE EXERCÍCIO DO PODER


CONSTITUINTE
O agente do Poder Constituinte Originário, pela concepção usual,
é, em termos efetivos, uma parcela da Sociedade – popularmente
designada de povo – que, sendo portadora propositiva ou ainda simples
restauradora de uma proposta de organização política, a partir dela
estabelece o novo ordenamento constitucional, através de um expresso ou
tácito consentimento social.
Este consentimento social cria as condições de legitimidade –
ou de consenso – para a manifestação do Poder Constituinte Originário,
que passa a operar a serviço de uma proposta política para a organização
da Sociedade. Não raramente são utilizados mecanismos legitimadores
como o Referendo e o Plebiscito como forma de manifestação expressa
dos cidadãos. Em outros casos, como aconteceu no Brasil em 1988, a
legitimação foi tácita, com a promulgação da nova Constituição pela
Assembléia Nacional Constituinte.
Normalmente o Poder Constituinte Originário se manifesta
através de uma revolução, nos processos de re-constitucionalização do
Estado. Neste caso, o titular do Poder Constituinte – a Sociedade –
95
CANOTILHO, J. J. Gomes & MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição, p. 289.
96
Na maioria das constituições estrangeiras o Poder Constituinte Derivado não está dividido
como no Brasil, existindo um processo para a reforma, previsto no art. 60 da Constituição da
República Federativa do Brasil, e outro para revisão, este inserto no art. 3º do ADCT.
Fundamentos do Direito Constitucional 71

identifica-se por excelência com o agente do Poder Constituinte. Assim,


segundo o entendimento de vários autores, somente através da revolução
– armada ou não – é que, de fato, um grupo constituinte logra impor ou
restaurar a idéia de Estado.
Deve-se, entretanto, ressaltar que nem sempre o Poder
Constituinte Originário manifesta-se da forma relatada acima. Pode
acontecer que um determinado grupo de poder possa, eventualmente,
estabelecer uma nova Constituição, sem usar a força ou mobilização
popular e sem o consentimento próprio e expresso do titular do Poder
Constituinte, ou seja, a Sociedade eleitora.
Reis Friede, comentando esta exceção, explica que
tal se dá, segundo alguns autores, quando o titular do Poder
Constituinte consente, ainda que de forma implícita, em deixar
a critério de um grupo de pessoas, fiel a uma idéia diversa de
organização política, o estabelecimento de uma nova
Constituição, como, alguns entendem, historicamente sucedeu
na França de 195897.
Pode ocorrer também que o Poder Constituinte Originário de
um Estado conceda poderes constituintes para a constitucionalização de
outro Estado. Isto ocorreu com muitas colônias que receberam soberania
concedida pelo Estado matriz, numa tranqüila e pacífica transposição da
condição de Colônia para a de Estado Soberano.
Em qualquer hipótese, o elemento principal que deve ligar o
agente ao titular do Poder Constituinte deve ser sempre a legitimidade.
Para uma melhor compreensão sobre este assunto, pode-se
classificar os métodos de exercício do Poder Constituinte em pelo menos
dois diferentes ramos: os métodos clássicos e os revolucionários. Sendo
assim, é possível relacionar os seguintes métodos de exercício do Poder
Constituinte Originário:
a) O método revolucionário
O “direito de revolução”, como o de resistência, como aborda
Manoel Gonçalves Ferreira Filho98, é o último recurso à disposição da
Sociedade para defender seus legítimos interesses, já que mesmo uma
Constituição promulgada e popular pode, com o passar do tempo, perder
seu vínculo de legitimidade original, assim como uma Constituição
outorgada e imposta pode, dependendo dos acontecimentos histórico-
sociais, tornar-se plenamente legítima com o decorrer do tempo de sua
própria vigência e também com as modificações culturais da Sociedade.

97
FRIEDE, Reis. Curso de direito constitucional e de teoria geral do estado. p. 47.
98
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 35.
72 Paulo Márcio Cruz

A revolução é o método de exercício do Poder Constituinte


legítimo por excelência, ainda que esta revolução tenha sido estimulada e
financiada por uma minoria. A revolução logra o seu intento e alcança sua
legitimidade identificando, em última análise, o agente do Poder
Constituinte como titular incontestável deste poder político.
Há, nestes momentos de revolução, uma intensa interação entre
as diversas fontes sociais de poder, que suplantam as fontes jurídicas que
estão por ser revogadas.
b) Os métodos da outorga e bonapartista
Destarte os inúmeros e crescentes defensores do método
revolucionário de exercício do Poder Constituinte Originário – com ou
sem o uso da força –, subsistem, inequivocamente, pelo menos, três
outros métodos clássicos de exercício do Poder Constituinte.
1 – Método da Outorga
Este método clássico é caracterizado pela existência de um
agente do Poder Constituinte – seja qual for – que, em determinado
momento impõe ao povo uma nova Constituição sem que este participe
direta ou indiretamente do seu processo de elaboração.
Trata-se, portanto, de um método no qual – diferentemente do
revolucionário – não há qualquer identidade prévia entre o titular – o
povo – e o agente – o ditador da nova Constituição – do Poder
Constituinte. É um método que, necessariamente, só se legitima – se este
for o caso – depois de todo o processo de outorga estar concluído.
2 – Método Bonapartista
Utilizado por Napoleão Bonaparte, o método consiste na ampla
consulta à Sociedade – titular do Poder Constituinte – para saber se esta
concorda em transferi-lo para uma pessoa ou grupo de pessoas que, em
seu nome, outorgue ou promulgue uma nova Constituição.
Esta “transferência” da capacidade de exercício do Poder
Constituinte se dá através de plebiscito.
Uma variação deste método, com um perfil mais atual, é a
utilização do referendo como instrumento legitimador para o exercício
autocrático do Poder Constituinte. A França de De Gaulle foi palco de
muitos referendos constitucionais. Até que a reprovação de uma proposta
por um deles determinou a queda do próprio De Gaulle99.
c) Método da Assembléia Nacional Constituinte

99
Sobre isto ver CRUZ, Paulo Márcio. Parlamentarismo em Estados contemporâneos:
os modelos da Inglaterra, França, Portugal e Alemanha. p. 115.
Fundamentos do Direito Constitucional 73

Este método consiste na convocação de uma Assembléia


Nacional Constituinte, com caráter amplo, genérico e irrestrito, destinada
a, democraticamente, discutir, votar e promulgar uma nova Constituição.
Para o correto exercício deste método, a Assembléia Nacional
Constituinte não pode, em hipótese alguma, ser confundida com o Poder
Legislativo – o Congresso Nacional no Brasil –, uma vez que o Poder
Constituinte Originário não deve ser exercido pelo mesmo órgão que
exercerá, posteriormente, o Poder Constituinte Derivado.
Foi o que aconteceu com a Assembléia Nacional Constituinte
brasileira instalada em 1987 e destinada a elaborar a Constituição de
1988. Por ter sido congressual – formada pelos membros do Congresso
Nacional – e por ter contado com 1/3 de senadores sem autorização do
povo para exercer o Poder Constituinte Originário, desde que foi
promulgada sofre contestações quanto à sua legitimidade.
Outro problema havido com a Assembléia Nacional
Constituinte brasileira de 1987/88 foi quanto à sua forma de convocação.
A boa técnica constituinte sempre indicou que a melhor forma
de convocar um Assembléia Nacional Constituinte é a consulta direta ao
povo, titular e maior interessado em todo processo de
reconstitucionalização do Estado, estabelecendo também as regras para o
seu funcionamento, o que pode ser feito através de um Plebiscito.
A convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte por
uma emenda constitucional, como aconteceu em 1986 no Brasil, votada
por parlamentares e sem consulta à Sociedade, na condição de titular do
Poder Constituinte, não é a forma adequada para se chegar à plena e
necessária legitimidade, sobretudo quando exercido pelo próprio Poder
Legislativo. A tendência, nestes casos, confirmada no caso brasileiro de
1988, é pela manutenção e/ou criação de privilégios que maculam e
quitam legitimidade de todo processo constituinte.
Vale destacar, finalmente, que o processo constituinte brasileiro
de 1988 conjugou o método revolucionário e o da Assembléia Nacional
Constituinte para o exercício do Poder Constituinte. Foi revolucionário no
que diz respeito ao frustrado movimento da Diretas Já, de 1984, quando a
Sociedade passou a, efetiva e explicitamente, rejeitar a Constituição de
1967, modificada pela ampla emenda de 1969. Foi um “momento
revolucionário” pacífico, mas muito intenso. Mas foi também de
Assembléia, com a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte
através de emenda constitucional, apesar de não ter sido submetida a
referendo popular.

3.7 OS LIMITES DO PODER CONSTITUINTE


74 Paulo Márcio Cruz

a) Os limites ao Poder Constituinte Originário


A principal questão que se coloca é a seguinte: o Poder
Constituinte Originário é limitado ou ilimitado?
Para essa questão, como acontece quando se discute teses tão
importantes como a do Poder Constituinte, existem respostas diferentes,
conforme o ponto de partida filosófico sobre a natureza do Poder
Constituinte, como abordado por Manoel Gonçalves Ferreira Filho 100.
Para a doutrina positivista, o Poder Constituinte é, por natureza,
ilimitado, já que não existem limites jurídicos estabelecidos. Assim, pela
ótica positivista, não há Direito que possa ser invocado contra o Poder
Constituinte Originário.
Ferreira Filho anota que a não-limitação jurídica ao Poder
Constituinte Originário é uma questão lógica, o que não significa que não
existam limites morais (através dos juízos de valores). O autor escreve
que a questão desses limites morais é um outro aspecto dessa discussão.
“Mas diria um positivista que isto é um problema metajurídico”101.
A defesa de Sieyès sobre o caráter ilimitado e incondicionado
do Poder Constituinte e adotada pelo positivismo, tem merecido,
atualmente, muitas reservas em muitos de seus aspectos.
Em primeiro lugar, este consenso fundamental contratualmente
estabelecido, para usar a linguagem de Canotilho 102, não pode, em
primeiro lugar, ignorar a existência de elementos que restringem o
conteúdo das normas jurídicas através da realidade fática e da natureza de
uma determinada Sociedade.
A ação do Poder Constituinte Originário não pode, desta
forma, ser considerado como algo hermético ou uma criação do Direito
a partir do nada. Existem limites de fato ao Poder Constituinte. Como
escreve Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
os limites de fato estão em que, quem estabelece uma
Constituição não pode chocar-se frontalmente com as
concepções mais arraigadas – a cosmovisão – da comunidade,
porque, do contrário, não obterá a adesão dessa comunidade
para as novas instituições, que permanecerão letra morta,
serão ineficazes103.
Assim, pode-se dizer que a criação de uma Constituição está
condicionada por fatores naturais, econômicos e culturais

100
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 70.
101
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 70.
102
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. p. 115.
103
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 71.
Fundamentos do Direito Constitucional 75

Canotilho, ao abordar os limites do Poder Constituinte, trabalha


também com o chamado “dado antropológico”104, salientando que a
legitimidade da Constituição estará ameaçada se não forem considerados
fatores ligados ao comportamento, à motivação e à visão de mundo do
homem que compõe a Nação. Ele explica que, por exemplo, “nos
quadrantes culturais e antropológicos portugueses o poder constituinte
não poderia ‘reconhecer’ a poligamia como base da familia” 105
Não se pode desprezar, como fator limitador ao Poder
Constituinte Originário, aquelas instituições que possuem raízes
sociológicas muito profundas e que determinam a maioria das relações
sociais, como a família e a propriedade. Ou mesmo as projeções
antropocêntricas do homem baseadas na razão e na capacidade do homem
de realizar seus objetivos relativos ao mundo e à vida.
Por fim, é importante indicar as limitações de ordem moral,
ética e jurídica ao Poder Constituinte. A moral atua no sentido de
estabelecer os valores irrenunciáveis da Nação, como a liberdade e a
igualdade, por exemplo. Os limites éticos são aqueles ligados aos
comportamentos sociais que a Nação estabelece como indicados para o
desenvolvimento da Sociedade como reunião de homens estritamente
interessados na manutenção e no aperfeiçoamento de seus valores.
Quanto ao sentimento jurídico que limita o Poder Constituinte
Originário, este guarda estreita ligação com os padrões éticos e morais,
numa relação tripartida como aquela que defende Pasold em seu conceito
de ética. Logo, o que a Nação considera, intrinsecamente, justo ou
injusto, ou ser direito ou não ser direito, limita de forma inegável o Poder
Constituinte Originário.
b) Os limites ao Poder Constituinte Derivado
A melhor abordagem sobre os limites do Poder Constituinte
Derivado é aquela que pode ser encontrada na obra de Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, denominada O Poder Constituinte106.
O Poder Constituinte Derivado, na maioria dos países
ocidentais, principalmente na Europa Continental e na América do Sul,
apresenta limitações de fundo e de forma.
Por ser, como o próprio nome diz, derivado, subordinado e
condicionado do e pelo Poder Constituinte Originário, está sujeito aos
limites estabelecidos na própria Constituição.

104
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. p. 116.
105
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. p. 116.
106
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. p. 108-116.
76 Paulo Márcio Cruz

Deve-se ressalvar que as limitações do Poder Constituinte


Derivado é diretamente proporcional à rigidez da Constituição quanto à
sua reforma.
Em primeiro lugar, é preciso analisar as limitações de fundo,
que impõem a subordinação do Poder Constituinte Derivado, como poder
jurídico, à Constituição.
A observação inicial é que existem limites explícitos e
expressos ao Poder Constituinte Derivado reformador, revisor e
decorrente, presentes na própria Constituição.
Como exemplos, pode-se apresentar aqueles existentes na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Como limites
ao Poder Constituinte Reformador, destinado a emendar a Constituição,
os exemplos estão no art. 60, § 1º, ao prever que “a Constituição não
poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de
defesa ou de estado de sítio”107. e no § 4º, ao determinar que “não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a
forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e
periódico; III – a separação dos Poderes; IV – os direitos e garantias
individuais”108.
Já os limites ao Poder Constituinte Derivado Decorrente,
destinado à elaboração das constituições do Estados federados e das leis
orgânicas dos Municípios, estão presentes nos arts. 25 e no art. 11,
caput do Ato das Disposições Transitórias. Este último, por exemplo,
estabeleceu que “cada Assembléia Legislativa, com poderes
constituintes, elaborará a Constituição do Estado, no prazo de um ano,
contado da promulgação da Constituição Federal, obedecidos os
princípios desta”. Neste caso, há dois tipos de limitações: um temporal,
considerando-se que foi estabelecido o prazo de um ano para a sua
promulgação e outro de conteúdo, já que a elaboração da Constituição
do Estado federado esteve condicionada aos princípios estabelecidos na
Constituição da República.
Para a elaboração das leis orgânicas dos Municípios, além das
limitações impostas pela Constituição da República, também atuaram
aquelas existentes nas próprias constituições estaduais. O parágrafo único
do art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias diz que,
“promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no
prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de
discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na
107
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
26.
108
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
35.
Fundamentos do Direito Constitucional 77
109
Constituição Estadual” . Estão presentes, portanto, uma limitação
temporal (seis meses para a elaboração) e as limitações de conteúdo, com
a elaboração das leis orgânicas subordinadas ao disposto na Constituição
da República e na Constituição do respectivo Estado Federado.
Por último, deve-se discutir os limites impostos ao Poder
Constituinte Derivado Revisor, seguramente o mais polêmico. A revisão
constitucional, talvez pelos problemas havidos na Assembléia Nacional
Constituinte, não ocupou o lugar de destaque como em outros países,
principalmente em virtude do quórum diferente daquele previsto para a
reforma.
De qualquer maneira, a principal limitação – ou a única –
explícita ao processo de revisão – ou ao Poder Constituinte Revisor – foi
de ordem temporal, já que o art. 3º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias limitou-se a prever que “a revisão
constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação
da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do
Congresso Nacional, em sessão unicameral” 110. Ou seja, uma única
revisão.
Além do limite temporal, explícito, atuaram limites implícitos,
já que foram aplicados, para a revisão única, também aqueles
estabelecidos para o processo de reforma, já destacados acima.

109
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
76.
110
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
92.
78 Paulo Márcio Cruz
Fundamentos do Direito Constitucional 79

Capítulo 4

AS FONTES DO DIREITO CONSTITUCIONAL

Estabelecidas as premissas básicas para o surgimento da


Constituição moderna, como foi analisado no capítulo anterior, com o
Poder Constituinte servindo de tese básica para tal entendimento, faz-se
mister abordar a Constituição como fonte primária do Direito
Constitucional e as demais fontes que alimentam este ramo do Direito.
As fontes do Direito, caso sejam tratadas com o devido
rigorismo técnico, são os modos de criação – e de revelação, como
prefere Jorge Miranda111 – de normas jurídicas e apontam para a lei, para
o costume e para a jurisprudência, não necessariamente nesta ordem.
Com base na lógica jurídica ocidental contemporânea, a
Constituição, a lei infra-constitucional, a jurisprudência e o costume estão
presentes no Direito Constitucional como suas fontes. Mesmo nos
sistemas positivos mais radicais, nenhuma delas pode ser excluída.
Claro que, se observado a partir do Direito Inglês, por exemplo,
há uma inversão de valor no que diz respeito às fontes do Direito
Constitucional: lá, a lei formal desempenha papel ainda incipiente, como
será visto mais adiante.

4.1 A CONSTITUIÇÃO COMO FONTE PRIMÁRIA


As normas integrantes do Direito Constitucional, que definem
os valores e princípios essenciais do ordenamento jurídico e regulam a
organização e distribuição dos poderes do Estado vêm se expressando,
historicamente, de formas muito distintas.
Entre estas formas destaca-se uma que pode ser considerada
como a fonte por excelência do Direito Constitucional, chegando mesmo
a determinar seu nome. A fonte essencial do Direito Constitucional, na
imensa maioria dos Estados contemporâneos, – o Brasil incluído –, é o
111
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. p. 112.
80 Paulo Márcio Cruz

texto da Constituição escrita, organizado sistematicamente, unificado, que


tem uma força superior vinculante e cuja reforma depende de ritos
especiais e com um grau de dificuldade, normalmente, muito elevado, se
comparado com o processo legislativo infraconstitucional.
Este emprego do termo Constituição, num sentido formal e
estrito, veio substituir outros usos do conceito que foram aplicados em
épocas pretéritas. Foi empregado para, por exemplo, mostrar a forma
como estava repartido o poder num Estado: mas para isto é preferível – e
mais conveniente – o termo “regime político”. Noutras ocasiões, o termo
Constituição foi associado à organização política da Sociedade: neste
caso, o termo é mesmo “Estado”. Mais recentemente se passou a fazer
diferença entre “Constituição Formal” – para designar a norma explícita e
escrita – e “Constituição Material” – para indicar as autênticas relações
de poder na Sociedade. Tal diferenciação não é relevante numa
perspectiva jurídico-positiva, apesar de relevante para a Política
Jurídica112.
As relações “fáticas” de poder podem dar lugar a situações de
dependência efetiva, de subordinação ou de obediência, mas por si só não
dão lugar a obrigações jurídicas, exigíveis ante órgãos jurisdicionais e
cujo descumprimento provoque sanções baseadas no Direito. A
Constituição é concebida hoje, de maneira geral, como uma norma
jurídica superior.
Há casos em que a Constituição não é um texto unificado e
codificado. O caso mais emblemático é o do ordenamento jurídico
britânico. Aquele país possui normas constitucionais representadas por
diversos documentos – muitos deles históricos – que não estão
sistematizados como um código, ainda que periodicamente isto seja
proposto pelos ingleses. A “Constituição” inglesa, portanto, é escrita. Não
é, isto sim, codificada.
Deve-se ter em conta que o caso britânico é uma exceção num
panorama caracterizado pelo predomínio de constituições escritas.
A preferência por um texto escrito, único e solene, para
estabelecer os princípios e regras do ordenamento jurídico, aparece com o
início do constitucionalismo, “sistema político que surgiu como oposição
ao Absolutismo e princípio hoje universalmente consagrado, o qual se
fundamenta na limitação do poder dos governantes pela Carta
Constitucional”113.
A independência norte-americana se firma definitivamente com
a Constituição, ainda em vigor, de 1787. A revolução francesa nos textos
constitucionais de 1791, 1793 e 1795. Isto foi fruto, sem dúvidas, da
112
Sobre isto ver MELO, Osvaldo Ferreira. Fundamentos da política jurídica, 136 p.
113
MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionário de política, p. 26.
Fundamentos do Direito Constitucional 81

firmeza e possibilidade de conhecimento da forma escrita e solene, mas


também foi uma derivação de precedentes históricos, principalmente
medievais, que se tornaram símbolos de conquistas diante da monarquia
absoluta.
Ao longo da Idade Média, reis e imperadores formalizaram
acordos com representantes de algum ou de alguns dos estamentos sociais
– nobreza, clero ou burguesia – registrados em documentos escritos. Estes
documentos tinham natureza jurídica peculiar e se referiam a aspectos
parciais do regime político, mas eram considerados normas vinculantes,
inalteráveis unilateralmente pela vontade real. O documento mais
conhecido é a Magna Charta Libertatum, aprovada pelos barões, na
Inglaterra, em 1215, para limitar o poder do rei João Sem-Terra.
Estes documentos foram perdendo sua plena eficácia com o
surgimento da monarquia absoluta. Mesmo assim, por ocasião de
revoluções e convulsões ocorridas dentro desta, foram aprovados textos
normativos que pretendiam regular, por escrito, a organização política das
monarquias, ou pelo menos seus aspectos mais importantes. Exemplo
disto foi o Instrument of Government, da República Inglesa de
Cromwel114, em 1634. Isto mostra que a idéia de uma regulação
fundamental escrita estava presente no cotidiano político europeu de
então.
Em que pese a inquestionável influência que esta tradição
exerceu no estabelecimento das constituições escritas, a partir do século
XVIII, deve-se recordar que os documentos medievais e os textos
constitucionais posteriores possuem diferenças fundamentais. Os pactos
medievais eram acordos parciais que afetavam nichos muito específicos
da comunidade política, estabelecendo direitos e privilégios para setores
sociais minoritários, sem a pretensão da extensão destes para toda a
Sociedade.
114
Oliver CROMWEL, nascido em Huntington, em 1599, e morto em Londres, em 1658,
lorde-protetor da Inglaterra, Escócia e Irlanda, foi eleito para o Curto e depois para o
Longo Parlamento, em 1640. Apoiou o Partido Puritano contra a arbitrariedade
monárquica e contra o episcopado anglicano. Na guerra civil (1642-1646), revelou
excepcional competência militar e política. Cromwel saiu-se vencedor também na segunda
guerra civil, em 1648, iniciando um processo de depuração do Parlamento, eliminando a
Câmara dos Lordes e condenando Carlos I à morte em 1649. O Estado Inglês adotou então
o nome de Comonwealth. Membro, ao mesmo tempo, do Parlamento e do Exército,
concentrou em suas mãos, a partir desta data, o verdadeiro poder. Partilhou o poder com
um Conselho constituído por 21 membros e um Parlamento de 460 deputados, eleitos por
um rigoroso sufrágio censitário, encarregado do Poder Legislativo, principalmente em
matéria financeira (Instrument of Government, de 1653). Em 1655, o regime transformou-
se numa truculenta ditadura militar, mas a forte personalidade de Cromwel conseguiu
manter a unidade da Comonwealth. O período de Oliver Cromwel no poder na Inglaterra
corresponde a um fundamental período da afirmação da burguesia como classe emergente
e de sua inserção nas esferas de comando do Estado.
82 Paulo Márcio Cruz

As Constituições escritas, ao contrário, foram adotadas a partir


de uma perspectiva muito diferente. Prevaleceu, neste caso, a convicção
comum do jusnaturalismo contratualista de que a fonte da sujeição
política só pode ser o consentimento dos governados ou, em outros
termos, que o estabelecimento de regras gerais para toda comunidade só
se legitima pelo acordo geral de seus membros.
Assim, as regras que fixam os elementos essenciais da
comunidade – a organização dos poderes e os direitos fundamentais dos
cidadãos – só podem ser considerados legítimos e exigíveis quando
tenham sido adotados com a participação e consentimento de todos os
segmentos da comunidade política. Em teoria, prevaleceu a doutrina do
pacto ou contrato como fundamento da ordem política e que tem sua
mais alta expressão na obra de Jean-Jacques Rousseau, denominada O
Contrato Social115.
Na prática, esta tendência ficou evidente com a adoção de
acordos entre os colonizadores britânicos da América do Norte,
estabelecendo, por consenso, regras gerais de organização da Colônia.Esta
corrente conduziu, portanto, à aprovação, pela comunidade, da Norma
Fundamental escrita e solene, já não como um pacto entre setores parciais
da Sociedade, como no caso dos documentos medievais, mas sim, como
acordo decisório, de toda a Nação e para toda a Nação. É como ensina
Pinto Ferreira ao escrever que “a norma fundamental, a Grundegel de
Kelsen é a Constituição, mediante a qual as demais regras jurídicas são
criadas, devendo pôr-se de acordo com a lei fundamental, a fim de que
tenham validade, ou força obrigatória, e sejam garantidas pelo Estado”116.

4.2 O CONTEÚDO DA CONSTITUIÇÃO


Apesar de o conceito comum de Constituição como Norma
Fundamental ser amplamente adotado, sua expressão prática varia
significativamente de país para país e, inclusive, dentro de um mesmo
país, de forma diacrônica. Principalmente, varia a extensão dos textos
constitucionais e a amplitude das matérias por ele acolhidas. Algumas
constituições são concisas, como a Constituição Norte-Americana de
1787, que contou, originariamente, com somente 13 artigos
(posteriormente foram acrescentadas 28 emendas, até agora), regulando
aspectos muito genéricos da organização política.
Pelo contrário, outras constituições são autênticos códigos,
comparáveis aos códigos civis, penais ou processuais. A Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, para ficar num exemplo caseiro,

115
ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social: princípios de direito político, 145 p.
116
FERREIRA, Luiz Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. p. 74.
Fundamentos do Direito Constitucional 83

tem 325 artigos, se contados os do Ato das Disposições Constitucionais


Transitórias.
Em que pese esta diversidade, é possível esboçar um conceito
de Constituição, geralmente aceito em nosso universo jurídico, como um
texto escrito e sistematizado e com um conteúdo mínimo comum,
derivado de sua própria natureza e função. Sendo a Constituição a norma
por excelência do Direito Constitucional, pode-se identificar seu
conteúdo nas matérias próprias deste ramo do Direito, tal como foi
identificado historicamente. Estas matérias implicam os seguintes
aspectos:
1 – a definição dos valores e princípios básicos da
comunidade política. Historicamente, o constitucionalismo
parte da idéia de liberdade e da garantia dos direitos do
indivíduo. Esta idéia de liberdade, expressa numa
declaração de direitos, costuma funcionar como elemento
inspirador e unificador do ordenamento jurídico-
constitucional. Seria a parte “dogmática” da Constituição;
2 – a busca da liberdade, que se realiza dentro do ordenamento
jurídico, com as constituições definindo os aspectos básicos
do mesmo. Referem-se também aos elementos territorial e
populacional do Estado, assim como àqueles fatores que
devem conferir unidade e coesão à comunidade política;
3 – como elemento comum, tanto na garantia da liberdade
como na estrutura do ordenamento jurídico, as constituições
organizam os poderes do Estado – sua “parte orgânica” –
sobre o postulado de Montesquieu da divisão dos poderes.
Esta ordenação não serve somente para proteger a liberdade
dos cidadãos, ao distribuir eqüitativamente o poder, mas
também representa uma organização do sistema de fontes do
Direito. A distribuição de poderes supõe atribuir a diversos
sujeitos a capacidade de adotarem decisões juridicamente
vinculantes. Isto implica estabelecer os sujeitos competentes
para elaborar as normas e estabelecer os procedimentos a
que devem ajustar-se. A Constituição, desta forma, se
transforma na norma que determina como devem ser
elaboradas as demais normas do ordenamento jurídico.

4.3 A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO


A ordenação dos poderes do Estado pela Constituição tem como
conseqüência a submissão destes aos mandamentos constitucionais. Isto
significa que as previsões constitucionais não podem ser contrariadas pelas
ações dos poderes do Estado, já que a Constituição os cria e regulamenta, no
84 Paulo Márcio Cruz

mesmo sentido que leciona José Afonso da Silva quando escreve que isto
“significa que a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do
país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na
medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos”117.
Fosse de outra forma, as previsões constitucionais seriam
inúteis. Os poderes do Estado e suas ações têm sua legitimidade derivada
da Constituição, que é a norma-base que os habilita para atuarem. Caso
um poder público atue fora dos limites fixados pela Constituição, sua
atuação não pode ser considerada legítima – nem constitucional –, pois
carecerá de base ou justificação legal.
Isto é aplicável a todos os poderes do Estado, já que eles, sem
exceção, criam normas jurídicas em menor ou maior intensidade. Estas
normas devem, necessariamente, para não desorganizar o sistema
positivado, obedecer às diretrizes constitucionais. Deste modo, a
Constituição se configura como norma suprema, com um status superior
ao resto do ordenamento jurídico.
A afirmação da supremacia da Constituição é algo que se
configura como um “desiderato lógico” de toda teoria constitucional, pois
resulta do fato de ser esta Constituição a “norma das normas”. Ou, como
afirma Canotilho,
é communis opinio da doutrina que a uma lei fundamental
pertence determinar vinculativamente as competências dos
órgãos de soberania e as formas e processos do exercício do
poder. Desde as constituições liberais dos finais do século XVIII
e princípios do século XIX, que os documentos constitucionais
estabelecem a modelação da estrutura organizatória dos poderes
públicos (partie organique, Plan other Frame of Government,
Zuständigkeitsordnung, parte orgânica da constituição)118.
Apesar deste traço lógico, as constituições escritas, em sua
maioria, trazem previsões expressas sobre sua própria supremacia. A
Constituição norte-americana de 1787, em seu art. 7º declara que
esta Constituição e as leis complementares e todos os tratados já
celebrados ou por celebrar sob a autoridade dos Estados Unidos
constituirão a lei suprema do país; os juízes de todos os Estados
serão sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em
contrário na Constituição ou nas leis de qualquer dos Estados119.
No mesmo sentido, a Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em
117
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, p. 47.
118
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, p. 73.
119
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 429.
Fundamentos do Direito Constitucional 85

seu art. 1º, estabelece que “o Presidente da República, o Presidente do


Supremo Tribunal Federal e os membros do Congresso Nacional
prestarão o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição,
no ato e na data de sua promulgação”120.
A supremacia constitucional se manifesta, por um lado, na
determinação formal de como devem ser criados e funcionar os poderes
públicos, que deverão ater-se, em suas funções, aos mandamentos
constitucionais. Isto significa que a Constituição regula os poderes do
Estado, mas não pode ser afetada por eles. Os procedimentos ordinários
de criação e modificação de normas não são, desta forma, aplicáveis à
norma constitucional, já que faz parte de um Direito “mais alto” que o
resto das normas jurídicas do Estado.
Além do que foi articulado acima, a supremacia constitucional é
uma supremacia material, enquadrando os poderes públicos de modo a
não permitir que eles atuem contra seus princípios e valores. A
Constituição é, assim, a norma habilitadora da atividade dos poderes
públicos instituídos e o limite de suas atuações. A importância prática
desta supremacia é traduzida na possibilidade de declarar
inconstitucionais e nulas as normas que contradigam a Constituição,
através de jurisdições constitucionais concentradas ou difusas.
Esta posição de supremacia é que caracteriza atualmente as
normas constitucionais, quando comparadas com as outras normas
presentes no ordenamento jurídico. Desta forma, a inclusão de qualquer
matéria na Constituição, independente da amplitude desta previsão, supõe
sua conversão em norma constitucional, dotada de valor mais alto e
protegida pela supremacia da Constituição.
É de se ressaltar também que há um Direito Constitucional
Civil, um Direito Constitucional Administrativo etc., composto por
normas integradas na Constituição que contêm os princípios superiores de
cada setor do ordenamento jurídico.

4.4 A REFORMA DA CONSTITUIÇÃO


A Constituição, como a imensa maioria das normas jurídicas,
nasce com vocação de permanência e estabilidade. A aspiração à
segurança jurídica é característica comum nas manifestações do Direito.
Mas este fato não impede a constatação, desde logo, de que toda norma
jurídica, aí incluída a Constituição, pode ser alterada pelas mudanças
sociais ou pela vontade política da comunidade.

120
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 109.
86 Paulo Márcio Cruz

Desta maneira, tornaram-se normais, nas constituições modernas


e contemporâneas, previsões relativas à sua modificação, inclusive com os
procedimentos específicos para tanto, que, na maioria das vezes, possuem
requisitos muito mais complexos do que aqueles exigidos para a criação ou
reforma das outras normas jurídicas infraconstitucionais. No dizer de José
Afonso da Silva, “a rigidez e, portanto, a supremacia da constituição
repousam na técnica de sua reforma (ou emenda), que importa em
estruturar um procedimento mais dificultoso, para modificá-la”121.
A introdução destas previsões e procedimentos responde, por um
lado, a um objetivo evidente: viabilizar a mudança e, ao mesmo tempo, a
continuidade da legitimidade jurídica do ordenamento. É possível que, por
erro em sua concepção original, pelo surgimento de circunstâncias
imprevistas ou pela mudança nas preferências da Sociedade, seja imposta
uma mudança no ordenamento jurídico fundamental da comunidade
política.
O objetivo fundamental do Direito é manter a paz civil e
promover a justiça, e isto se consegue com muito mais facilidade quando
as regras para alteração no ordenamento jurídico são previamente
determinadas e aceitas.
É inerente à Constituição sua condição de norma maior do
ordenamento jurídico e, como já foi dito, sua capacidade de vincular os
poderes instituídos às suas previsões. Por isto os poderes do Estado estão
sujeitos à Constituição sem poder modificá-la. Como conseqüência deste
fato, as constituições encomendam sua eventual reforma não ao Poder
Legislativo ordinário mas a um poder especial, denominado de Poder
Constituinte Derivado, que, como já visto no capítulo 3, remanesce na
Constituição por vontade do Poder Constituinte Originário.
Da supremacia formal da Constituição deriva, portanto, a
rigidez constitucional, que implica sua inalterabilidade caso não sejam
cumpridos determinados e extraordinários requisitos.
Estes requisitos, normalmente, consistem em maiores exigências
de apoio – parlamentar ou popular – para a aprovação de reformas à
Constituição, como maiorias qualificadas ou referendo popular. Estas
dificuldades têm como objetivo fazer que a reforma tenha o maior grau de
materialidade possível, refletindo, da maneira mais precisa, aquilo que a
Sociedade resolveu modificar no texto constitucional. Sobre esta necessária
conexão, Celso Bastos assinala que “a Constituição não é, portanto, um
instrumento em si mesmo conservador ou revolucionário. Isto vai depender

121
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, p. 57.
Fundamentos do Direito Constitucional 87

do conteúdo que ela vier a assumir e sobretudo da forma por que for
vivenciada”122.
Claro que o processo de confecção de lei infraconstitucional
também tem como objetivo refletir, com a maior fidelidade possível, a
vontade da comunidade política. Porém, considerada a transcendência das
normas jurídicas constitucionais, é lógico que, para sua confecção ou
reforma, seja exigido um maior grau de certeza na manifestação da
vontade popular, com a introdução de exigências, como votações duplas e
maioria qualificada, que não são aplicáveis ao processo legislativo
normal.
É importante ressaltar que as maiorias qualificadas, exigidas
para a reforma constitucional, destinam-se a evitar que maiorias eventuais
e sem estabilidade possam alterar as regras de procedimento e as bases
sobre as quais se assenta a comunidade política. Nas constituições que
tenham surgido de acordos muito amplos, com diversos setores da
Sociedade, estes pressupostos são de fundamental importância.
A Constituição se mostra, assim, como um acordo básico que
está acima das conjunturas de maioria política e que só pode ser
reformada se as bases deste acordo forem reproduzidas, de modo a
preservar o entendimento original entre maiorias e minorias. Esta
necessidade é mais evidente quando a reforma constitucional acontece em
Estados federais, nos quais a rigidez constitucional também procura
salvaguardar os interesses dos Estados ou unidades federadas.
Como conseqüência, a distinção clássica entre constituições
flexíveis – reformáveis conforme o processo legislativo ordinário – e
constituições rígidas – que só podem ser reformadas através de um
procedimento especial – não tem, atualmente, muita valia. Pode-se falar,
hoje, isto sim, é dos diversos graus de rigidez, segundo a intensidade da
dificuldade do procedimento de reforma com relação ao procedimento
legislativo ordinário.
Vale ressaltar que alguns países, como os da Escandinávia,
possuem constituições que podem ser consideradas flexíveis, com um
modelo de ordenamento jurídico sem hierarquia, com a norma fundamental
orientando o sistema mas não o obrigando. As regras de rigidez
encontradas em outros sistemas, portanto, não podem ser aplicadas
automaticamente neste ordenamento. Mas são exceções num mundo
ocidental quase todo ele ocupado por constituições rígidas, mesmo que em
graus variáveis.

122
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, p. 47.
88 Paulo Márcio Cruz

É muito freqüente encontrar constituições que trazem cláusulas


pétreas, como é o caso da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, em seu art. 60, § 4º, que diz o seguinte:
Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente
a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos poderes;
IV – os direitos e garantias individuais123.
Também na Lei Fundamental de Bonn, a Constituição da
República Federal da Alemanha, em seu art. 79.3, pode-se encontrar
previsão semelhante, com o seguinte teor: “(3) É inadmissível qualquer
revisão desta Lei Fundamental que afete a divisão da Federação em
‘Länder’ ou a participação, por princípios, dos ‘Länder’ na legislação ou
os princípios consagrados nos arts. 1º e 20”124.
Em outras constituições, não há a previsão de cláusulas pétreas,
mas existe a determinação de que algumas partes da Constituição serão
mais difíceis de serem modificadas. Desta forma, alguns aspectos do
universo constitucional estariam ultraprotegidos, até o extremo de tornar
impossível sua alteração.

4.5 A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL


Este item é deveras interessante por conta de sua abordagem
distinta da reforma ou revisão constitucional.
A denominada “mutação constitucional” significa a mudança ou
alteração do conteúdo constitucional sem que se altere sua redação (diferente
da reforma constitucional, na qual se altera o teor dos dispositivos
constitucionais diretamente, através da adição de emendas feitas ao texto da
Constituição). A mutação constitucional equivale, desta forma, a uma
mudança de sentido – ou de entendimento e interpretação – das previsões
constitucionais.
Normalmente são expostas duas vias de mutação constitucional:
o desuso na aplicação de determinados preceitos e a reinterpretação de
seu conteúdo.
Quanto ao desuso, apesar de não se poder confundi-lo com a
possibilidade de produção de normas infraconstitucionais

123
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 44.
124
ROGEIRO, Nuno. A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, p. 193.
Fundamentos do Direito Constitucional 89

inconstitucionais, pois não é o caso, deve-se pensar no sentido da previsão


constitucional que caduca devido ao seu anacronismo, por exemplo.
Com relação à mutação constitucional por reinterpretação,
deve-se considerar que os próprios conceitos do Direito Constitucional
são herança de uma tradição histórica, que os foi moldando de acordo
com uma evolução cultural e social que chega até nossos dias. Desta
forma, é possível conceber-se que termos constitucionais baseados nesta
tradição continuam experimentando um desenvolvimento na consciência
social, de maneira que seu conteúdo se veja aumentado ou diminuído.
A mudança no significado de uma previsão constitucional pode
representar, como conseqüência, a alteração deste dispositivo que o
contém. A garantia que esta mudança é real e geral – e de que não se trata
de um acidente de maioria – só pode residir na sua admissão de modo
expresso e formal. A via empregada para que isto ocorra é a jurisprudência
constitucional, que tem assim uma importância decisiva na adaptação da
Constituição às mudanças de comportamento e de mentalidade da
Sociedade.

4.6 AS OUTRAS FONTES DO DIREITO


CONSTITUCIONAL
Atualmente, a Constituição é, sem dúvida, a principal fonte do
Direito Constitucional. Entretanto não é a única. Há circunstâncias que
justificam a busca em outras fontes que, por sua importância, devem estar
presentes no Direito Constitucional, mesmo que ausentes do texto
constitucional vigente.
Em primeiro lugar, deve-se considerar que as peculiaridades do
desenvolvimento histórico de alguns países proporcionaram a ausência de
um texto constitucional formal ou positivo. O caso da Inglaterra é o mais
citado. Trata-se de países que, sem dúvidas, têm um Direito
Constitucional, mesmo quando este Direito se expresse através de outros
meios ou instrumentos normativos, legais ou consuetudinários 125,
diferentes da Constituição.
Mas, mesmo em países que adotam constituições codificadas,
positivas e formais, o Poder Constituinte Originário pode ter-se valido de
outras fontes para estabelecer os alicerces fundamentais do ordenamento
jurídico. Mesmo com muitos capítulos, uma Constituição não consegue
ter em seu texto todas as regulamentações necessárias à organização
política da Sociedade e do Estado, algumas delas fundamentais.

125
Consuetudinário no sentido de baseado no costume como fonte da jurisprudência.
Sobre isto ver O Direito Inglês, de René DAVID, 120 p.
90 Paulo Márcio Cruz

Também não podem as constituições formais excluir as


possibilidades de mudanças que exijam adaptações no ordenamento jurídico,
mas sem reformar a Constituição. Nestes casos, muitos ordenamentos
preferem fazer uso de outras normas e integrá-las ao espectro da
constitucionalidade.
É importante assinalar que as normas constitucionais empregam
conceitos e se referem a valores aos quais se atribui um determinado
significado em cada Sociedade e momento. Precisar este significado
pressupõe um trabalho de interpretação, sempre considerando que a lenta,
mas inegável, mudança nas pautas culturais da Sociedade altera o
significado dos conceitos constitucionais, que passam a ser reinterpretados.
Desta forma, pode-se considerar como fonte – direta ou indireta
– do Direito Constitucional, a interpretação que das normas
constitucionais fazem os tribunais e a doutrina.
Por último, deve-se fazer referência ao crescente
desenvolvimento das relações internacionais e à progressiva criação de
uniões e organizações supranacionais, fato que está dando lugar,
principalmente a partir do último quarto do século XX, ao surgimento de
normas de caráter internacional, que se revelam vinculantes para os
poderes públicos e para a Sociedade privada dos Estados-membros.
Isto cria a necessidade de se considerar como fontes adicionais
do Direito Constitucional os acordos internacionais e as normas e
decisões oriundas das instituições criadas pelos respectivos tratados.
Trata-se, neste último caso, de um desenvolvimento
relativamente novo e, por isto, que precisa de um tratamento especial,
como será visto no capítulo 12 deste livro. Assim, o presente capítulo
trata de analisar a Lei, a Jurisprudência e o Costume como possíveis
fontes do Direito Constitucional, deixando para o capítulo específico o
exame das fontes de caráter inter ou supranacional.

4.6.1 A Legislação Como Fonte do Direito Constitucional


Lei e Constituição representam dois tipos de normas
formalmente diferentes. A Constituição, como obra do Poder
Constituinte, estabelece um Poder Legislativo, fixando suas competências
e limites. A Lei, por sua vez, aparece como obra do legislador instituído,
em virtude das atribuições a ele conferidas pela Constituição. Por isto está
subordinado a esta mesma Constituição.
Materialmente, a Constituição regula os elementos que são
considerados fundamentais para o ordenamento jurídico. À Lei é confiada
a configuração do resto deste mesmo ordenamento, como regra geral.
Fundamentos do Direito Constitucional 91

Isto não significa que a Lei “desenvolva” a Constituição, no


sentido de limitar-se a ampliar e especificar as normas nela contidas. O
legislador atua dentro dos limites constitucionais, vinculando-os em
virtude da posição superior ocupada pela Constituição no ordenamento
jurídico em vigor. Dentro destes limites, o legislador dispõe de liberdade
de configuração e criação própria, sem limitar-se a “desenvolver” as
normas constitucionais.
a) As leis formalmente reforçadas: complementares
ou orgânicas
Em que pese a diferença formal entre norma legal e
constitucional, há ocasiões em que a Lei se configura como parte do Direito
Constitucional. Com efeito, em alguns ordenamentos – como o brasileiro, o
francês, o italiano e o espanhol126, por exemplo – a Constituição prevê, para
a regulamentação de aspectos de relevância fundamental, a criação de
normas de caráter legal.
Esta “relevância fundamental” pode ser traduzida como as
características especiais e formais que a Constituição confere a
determinadas leis.
Diferentemente do procedimento legislativo ordinário, a
Constituição dos países citados cria um tipo especial de leis, denominadas
leis complementares e orgânicas, como na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, que exigem, para sua aprovação ou
modificação, um procedimento de maior rigidez ou dificuldade que o
requerido para as leis ordinárias.
Esta rigidez está presente na exigência de maiorias qualificadas,
acima daquela maioria simples exigida para a aprovação de leis
ordinárias. Estas leis se situam, desta forma, quanto à sua rigidez, numa
posição intermediária entre a Constituição e as leis ordinárias.
A Constituição Brasileira de 1988, como exemplo, prevê, em
seu art. 69, o seguinte: “As leis complementares serão aprovadas por
maioria absoluta”127.
Também como exemplo, a Constituição Espanhola, em seu art.
81, item 2, diz o seguinte: “A aprovação, modificação ou derrogação das
leis orgânicas exigirá sempre maioria absoluta do Congresso, numa
votação final sobre o conjunto do projeto”128.

126
Sobre o ordenamento jurídico espanhol, ver a obra de José Chofre SIRVENT,
denominada Significado e función de las leyes orgánicas, 335 p.
127
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 46.
128
GUERRA, Luiz López. Constitución espanhola.., p. 74.
92 Paulo Márcio Cruz

As leis orgânicas previstas na Constituição brasileira de 1988


também possuem, todas elas, processo qualificado para aprovação.
A razão para este status diferenciado para as leis
complementares e orgânicas é óbvia: a necessidade de que as matérias
reguladas por este tipo de lei tenham uma certa estabilidade, própria de
seu caráter fundamental e, por outro lado, em virtude deste caráter, que
elas disponham de uma ampla legitimidade, traduzida na exigência de
quórum especial para votação e aprovação.
Com este quórum qualificado, também fica assegurada uma
ampla maioria, o que significa uma garantia maior para todo o regime
democrático representativo. Estas leis complementares e orgânicas criam,
portanto, um “Direito mais forte” e ficam colocadas numa posição
especial no ordenamento jurídico, posição esta que também está garantida
pela jurisdição constitucional.
Com efeito, a oposição de uma Lei ordinária a uma Lei
Complementar ou a uma Lei Orgânica, significa também sua oposição à
própria Constituição. Se esta ordena que determinadas normas, regulando
certas matérias, só podem ser aprovadas por leis complementares ou
orgânicas, a intromissão de uma Lei ordinária em matéria reservada às
complementares ou orgânicas supõe uma contravenção direta de um
dispositivo constitucional. Em outras palavras, uma Lei ordinária não
pode opor-se ao disposto numa Lei Complementar ou numa Lei Orgânica,
desde que aprovadas segundo os ditames constitucionais e as normas
jurídicas reguladoras do processo legislativo.
b) As dificuldades no uso de leis complementares e
orgânicas
A remissão pela Constituição a futuras leis complementares ou
orgânicas não deixa de enfrentar alguns problemas de interpretação, com
sua utilização tendo sido já muito criticada.
Duas sérias objeções podem ser aduzidas a esta técnica: a
primeira diz respeito à diminuição do âmbito de atuação do princípio
democrático. A exigência de maiorias qualificadas representa uma
exceção ao princípio democrático quando esta maioria qualificada cria tal
dificuldade para a aprovação da lei que um grupo reduzido de
representantes pode efetivamente bloquear a vontade majoritária do
Parlamento.
Um exemplo disto é a exigência de dois terços que havia na
Constituição brasileira de 1967. Dois terços significa algo como sessenta
e seis por cento (66%) do total. Assim, se a maioria for de “somente”
sessenta e cinco por cento (65%), uma minoria de trinta e cinco por cento
(35%) pode impedir a sua aprovação.
Fundamentos do Direito Constitucional 93

A segunda objeção tem relação com a primeira e consiste no


perigo de que uma maioria eventual e conjuntural, sem consistência, se
aproveite deste momento de desorganização política da maioria real
para aprovar leis complementares ou orgânicas em desacordo com a
vontade da maioria da Sociedade. Uma vez aprovadas, estas mesmas
forças políticas, provavelmente minoritárias, usariam seu peso para
manter em vigor uma lei sabidamente também minoritária. É uma
situação difícil de acontecer, mas já há precedentes em muitos países
que adotam em suas constituições a regulamentação por leis
complementares ou orgânicas.
Estes perigos são inegáveis e exigem uma especial vigilância
por parte dos órgãos jurisdicionais e de representação política, que devem
evitar que sejam reguladas tanto por lei ordinária matérias reservadas à
Lei Complementar ou Orgânica, como sejam reguladas por Lei
Complementar ou Orgânica matérias fora do âmbito destes tipos de
normas.
Chofre Sirvent alerta sobre esta possibilidade no ordenamento
espanhol, dizendo que o art. 81 da Constituição Espanhola não contém
mais do que uma resposta parcial sobre quais são as matérias reservadas à
Lei Orgânica – que, no caso brasileiro, equivale à Lei Complementar – e
ensina que “o último inciso deste preceito – e os outros previstos na
Constituição – permite compor uma heterogênea lista de condições que
tornam duplamente necessário o esforço da doutrina para ordenar e
precisar o âmbito reservado à dita Lei”129.
Apesar disto, é certo também que o caráter “de consenso” de
muitas constituições modernas, exige fórmulas que possibilitem a
existência de uma “margem de manobra” ao legislador para que configure
algumas instituições, sem tropeçar na rigidez própria das normas
constitucionais. Por outro lado, quanto mais rígido for o processo de
criação ou modificação, maior a garantia de um amplo apoio à norma,
com várias tendências políticas participando dela.
c) A Lei nos casos de ausência de Constituição
positivada
Por último, deve-se ressaltar uma situação realmente
excepcional: a daqueles casos em que a ausência de uma Constituição
escrita confere especial relevância a determinadas normas jurídicas que
estabelecem elementos-chave do ordenamento. É – entre outros – o caso
do Direito Constitucional britânico, no qual determinadas leis, como o
Act of settlement, de 1701 e os Parliament Act, de 1911 e 1949, que
cumprem funções atribuídas, em outros ordenamentos, à Constituição 130.

129
SIRVENT, José Chofre. Significado e función de las leyes orgánicas, p. 103.
94 Paulo Márcio Cruz

Estas leis carecem de supremacia expressa, mas na prática elas


possuem um valor supralegal. Como resultado de uma arraigada tradição,
a reforma destas leis provoca a dissolução do Parlamento e novas eleições
nas quais os eleitores terão oportunidade de analisar as propostas contra e
a favor da reforma, de maneira que o seu pronunciamento eleitoral
também é um pronunciamento sobre a mudança na Lei.
Com uma lição muito interessante, René David, em seu O
Direito Inglês, explica a concepção do ordenamento jurídico britânico
escrevendo que
não há, na Inglaterra, códigos como encontramos na França, e
apenas em matérias especiais foi feito um esforço para
apresentar o direito de forma sistemática. Não é isso um acaso.
A concepção do direito que os ingleses sustentam é, de fato, ao
contrário da que prevalece no continente europeu,
essencialmente jurisprudencial, ligada ao contencioso131.

4.6.2 A Jurisprudência Como Fonte do Direito


Constitucional
A evolução do constitucionalismo colocou em evidência a
importância da jurisprudência para a determinação e previsão do que deve
entender-se como Direito Constitucional. Como ensina Jorge Miranda,
“nada impede que surja costume jurisprudencial constitucional a partir
da interpretação ou de uma integração feita pelos tribunais”132.
A este respeito, o papel das decisões dos tribunais é tão
relevante no Direito Constitucional como nas outras áreas do Direito. A
aplicação, por parte dos tribunais, das normas constitucionais, faz que o
alcance das mesmas fique convenientemente determinado, assim como a
interpretação que se lhes deve dar. A eficácia do Direito, vale lembrar,
depende de sua aplicação judicial em cada caso concreto. Isto, tanto com
relação à jurisprudência dos tribunais ordinários quanto à jurisdição
especial exercida pelos tribunais constitucionais.
A importância prática das decisões dos tribunais constitucionais
conduz à conclusão de que estas decisões sejam importantes fontes do
Direito Constitucional. Quando um julgador aplica e interpreta a
Constituição num caso concreto, está criando normas constitucionais de
alcance geral, referentes, normalmente, à estrutura e princípios básicos do
Estado.

130
Sobre isto ver CRUZ, Paulo Márcio. Parlamentarismo em Estados contemporâneos,
p. 42.
131
DAVID, René. O direito inglês, p. 3.
132
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. p. 130.
Fundamentos do Direito Constitucional 95

Caso se fosse considerar a teoria pura, os julgadores deveriam


limitar-se a aplicar as normas preexistentes a casos singulares. Quando a
norma geral a aplicar é a Constituição, deve-se entender que esta só pode
ser criada pelo Poder Constituinte e não pelo julgador. Este aplica o
Direito, mas não o cria.
Entretanto, sem dúvidas que tal posição teórica dificilmente será
aceita hodiernamente, tanto no âmbito do Direito Constitucional como em
outros ramos do Direito. Para aplicar a um caso concreto um ditame
constitucional, é preciso previamente definir qual é o conteúdo deste ditame.
E isto, evidentemente, não pode ser uma tarefa meramente automática.
Por um lado, será necessário levar a cabo as tarefas usuais de
“integração” da norma constitucional, ou seja, determinar qual é esta
norma, tendo em conta os diversos preceitos constitucionais que versam
sobre esta matéria. Além disto, esta tarefa deve ser realizada com base em
preceitos que possuem uma notável complexidade e uma considerável
carga técnica e valorativa.
É como se pronuncia Quiroga Lavié quando ensina que
a jurisprudência promove uma interpretação construtiva dos
numerosos conceitos indeterminados contidos numa
Constituição. A jurisprudência constitucional integra e
desenvolve os princípios de direito público que estão implícita
ou explicitamente contidos no texto constitucional133.
Como os conceitos constitucionais são resultado de um
processo de criação intelectual historicamente condicionado, seu
significado não é imediatamente evidente. Em muitos casos não há,
sequer, um significado fixo, já que está submetido a uma contínua
evolução. Deve-se considerar, por exemplo, a dificuldade para se definir
o sentido de conceitos como os das categorias contidas no art. 1º da
Constituição da República Federativa do Brasil, como “soberania”,
“cidadania”, “dignidade da pessoa humana” e “pluralismo político” 134.
De outra parte, já há uma suficiente perspectiva histórica para
comprovar que os mesmos conceitos não possuem, hoje, o mesmo
significado que tinham, por exemplo, há cinqüenta e cinco anos, logo
após a Segunda Guerra Mundial. Para continuar com este raciocínio, o
conceito do termo “soberania” não é igual para os países que compõem
a União Européia e para os países sul-americanos não pertencentes ao
Mercosul.
É necessário não só precisar o significado das normas
constitucionais mas também, no caso de constituições com razoável
133
LAVIÉ, Humberto Quiroga. Lecciones de derecho constitucional, p. 5.
134
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 1.
96 Paulo Márcio Cruz

longevidade – que com a complexidade e velocidade de mudança do


mundo atual também é relativa – adequar este significado ao valor ou uso
real destes conceitos em cada momento.
Esta fixação e adequação, que são levadas a efeito pela
jurisprudência, não criam ou modificam normas constitucionais, porém
vinculam os poderes do Estado a estas decisões.
No constitucionalismo contemporâneo se acentua a tendência ao
estabelecimento dos órgãos jurisdicionais como supremos intérpretes da
Constituição. A interpretação levada a efeito por estes órgãos, em muitos
ordenamentos jurídicos, se impõe também aos demais poderes do Estado.
É como no caso alemão. Hesse leciona que
interpretação constitucional é concretização. Exatamente aquilo
que, como conteúdo da Constituição, ainda não é unívoco, deve
ser determinado sob a inclusão da ‘realidade’ a ser ordenada.
Neste aspecto, a interpretação jurídica tem caráter criador: o
conteúdo da norma interpretada conclui-se primeiro na
interpretação; naturalmente, ela tem também somente neste
aspecto caráter criador: a atividade interpretativa permanece
vinculada à norma135.
A relevância da jurisprudência como efetiva fonte de normas
constitucionais – ainda que, em teoria, se limite a revelar o que já está na
Constituição – não deixa de suscitar alguns problemas, sobretudo de
segurança jurídica. O questionamento é no sentido de se saber como um
mandamento constitucional, criado pelo Poder Constituinte, com pretensão de
permanência, pode estar sujeito a uma interpretação variável por um órgão
jurisdicional.
A resposta a esta pergunta só pode ser obtida a partir da forma
de atuação dos tribunais constitucionais. Estes devem atuar não segundo
seu próprio arbítrio mas sim, justificando suas decisões e fixando critérios
razoáveis de interpretação, que vinculam o mesmo tribunal no futuro.
Isto está de acordo com o que pensa Hesse, que se manifesta
afirmando que
o intérprete não pode compreender o conteúdo da norma de um
ponto situado fora da existência histórica, por se assim dizer,
arquimédico, senão somente na situação histórica concreta, na
qual ele se encontra, cuja maturidade informou seus conteúdos
de pensamento e determina seu saber e seu (pré)-juízo. Ele
entende o conteúdo da norma de uma (pré)-compreensão, que
primeiramente lhe torna possível olhar a norma com certas

135
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da
Alemanha, p. 61.
Fundamentos do Direito Constitucional 97

esperanças, projetar-se um sentido do todo e chegar a um


anteprojeto que, então, em penetração mais profunda, carece
da confirmação, correção e revisão até que, como resultado de
aproximação permanente dos projetos revisados, cada vez, ao
‘objeto’, determine-se univocamente a unidade do sentido136.
Esta interpretação e adaptação paulatina dos preceitos
constitucionais é o que converte a Constituição numa “norma viva”, fazendo
que constituições muito antigas, como a norte-americana, possam continuar
em vigor e regular uma Sociedade muitíssimo diferente daquela que a
elaborou137.

4.6.3 O Costume e o Direito Constitucional


É muito difícil aceitar o costume como fonte do Direito
Constitucional desde uma perspectiva do constitucionalismo moderno e
contemporâneo. Em outros ramos do Direito é mais fácil se admitir a
possibilidade do costume como fonte de regras jurídicas, surgindo como
elemento material – a repetição de uma conduta – e de um elemento de
caráter psicológico, representado pela convicção arraigada da
obrigatoriedade da conduta repetida.
Mas, dadas as características do Direito Constitucional, é
praticamente inaplicável, em seu âmbito, a teoria geral do costume como
fonte do Direito. Mesmo assim, autores como Jorge Miranda discutem
com muita ênfase esta questão. O autor português assim se expressa sobre
a polêmica em torno do costume como fonte do Direito Constitucional:
As divergências dizem respeito não tanto à figura do costume
constitucional quanto à sua extensão e, particularmente, às
modalidades que pode revestir. O ponto mais sensível e
delicado consiste em saber se pode aceitar-se ou não a
formação de costume constitucional contra legem (que seria
costume contra Constitutionem), seja o costume positivo ou
criador de novas normas ou o costume negativo (ou desuso)138.
Certamente em outras épocas – principalmente no caso
britânico, no qual o costume é especialmente importante – pôde-se
considerar que a reiteração de uma determinada prática por parte dos
poderes superiores do Estado daria lugar à conversão desta prática em
regra vinculante para estes mesmos poderes. A conduta reiterada se
converteria, desta forma, em regra constitucional aceita e vinculante.
136
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da
Alemanha, p. 61-62.
137
Para outra abordagem da Jurisprudência, ver WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia,
estado e direito, p. 171 e s.
138
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, p. 117.
98 Paulo Márcio Cruz

Alguns autores contemporâneos, como Paulo Bonavides, numa


posição bastante questionável em sistemas de decisões judiciais baseadas
em normas de direito positivo, defendem que o costume aplicável ao
Direito Constitucional não é o costume dos “privados”, mas sim dos
“públicos”. O autor escreve que
Heras139 entende que o costume constitucional guarda traços
peculiares, e estes ordinariamente não acompanham as demais
normas de Direito Consuetudinário. Tais traços vêm a ser: a) a
criação pública, pelos instrumentos da autoridade, e não pelos
particulares, contrastando a publicidade do costume
constitucional com o anonimato de que a tradição reveste o
costume no Direito Privado; b) a racionalidade, pois o Direito
Constitucional é mais racional do que tradicional e nele a
prática cede à convicção jurídica e o fato à intenção; c) a
brevidade, uma vez que o costume se afirma como tal em
espaço mais curto de tempo, e d) a flexibilidade, oriunda da
natureza política ou do conteúdo do costume constitucional,
relativo sempre a questões públicas fundamentais140.
Sem dúvidas, no momento atual e à luz das características que
hoje assume o Direito Constitucional, baseado no Poder Constituinte da
Comunidade e dotado de uma força vinculante superior, o papel do
costume fica bastante relativizado como fonte do Direito Constitucional.
Isto tanto no que se refere ao costume que contrarie a Constituição como
ao que a complete ou que a desenvolva ou interprete 141.
Na verdade, o que pode ocorrer é a apropriação do costume pelo
intérprete da Constituição. Esta sim, é uma posição consolidada em
diversos ordenamentos jurídicos. O costume, por si só, dificilmente
poderá servir de fonte primária do Direito Constitucional em sistema nos
quais prevaleça o Direito positivo.
Desde uma perspectiva de legitimidade política, fica muito difícil
admitir que possam ser criadas normas fundamentais que não provenham da
vontade da Sociedade, mas da prática de alguns órgãos ou poderes públicos.
A criação de normas constitucionais pela via consuetudinária suporia, com
efeito, deixar nas mãos de alguns indivíduos a elaboração de normas
fundamentais para a organização da comunidade política. Isto é
especialmente inadmissível quanto ao costume que contraria a Constituição,
quando a vontade do constituinte – representando a comunidade política –

139
HERAS, Jorge Xifra. Curso de derecho constitucional, p. 133.
140
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 38.
141
Jorge MIRANDA, em seu Manual de Direito Constitucional, na página 117, anota
que vários autores admitem o costume constitucional contra legem, entre eles destaca
Jellinek, Karl Lowenstein, Pablo Lucas Verdu, Marcelo Rebelo de Souza e Araújo Hartz.
Fundamentos do Direito Constitucional 99

seria anulada pela conduta repetida por uma parcela minoritária da


Sociedade.
Olhando-se o assunto a partir da Constituição como instituidora
de um Direito “mais alto” ou “mais forte”, o costume também não tem
guarida no âmbito do Direito Constitucional. Caso um costume possa
derrogar uma norma constitucional, isto significa que esta norma,
expressão da vontade do Poder Constituinte, deixaria de ser norma
suprema. A Constituição perderia assim seu caráter supremo e ficaria à
mercê de práticas reiteradas contrárias aos seus mandamentos.
Também é difícil de se conceber o costume complementando a
Constituição. Dar-se valor constitucional ao costume significa dar-lhe o valor
de Direito “mais alto”. Como conseqüência, as normas que se oponham ao
costume criado à margem da Constituição seriam também inconstitucionais.
Isto significaria restringir a liberdade de ação que a Constituição concede ao
legislador como representante da vontade popular e por isto representa uma
contradição ao que está previsto no texto constitucional.
Assim, apesar de ser uma afirmação pautada pelo Direito
Positivo, conclui-se que o costume não pode servir como fonte direta do
Direito Constitucional de modo a vincular todos os poderes do Estado,
inclusive o poder legiferante. Dar esta força ao costume supõe não só
contradizer os princípios democráticos que inspiram a doutrina do Poder
Constituinte mas inclusive contradizer as previsões constitucionais que
fixam o âmbito da atuação dos poderes do Estado e lhes conferem uma
margem de liberdade de ação que não pode ser legitimamente restringida.
Outra coisa é a existência de convenções ou práticas arraigadas
de comportamento dos poderes públicos em suas relações mútuas. Estas
convenções podem ser convenientes ou úteis, ou inclusive politicamente
vinculantes, caso sua não-observância possa criar crises políticas muitas
vezes incontornáveis.
Mesmo assim, tais convenções não são normas jurídicas que
possam ser reclamadas perante um tribunal e cuja contravenção acarrete
necessariamente uma sanção prevista no ordenamento jurídico, imposta
por um órgão prédeterminado. Paulo Bonavides traça uma excelente lição
sobre este tema ao escrever que
constitucionalistas franceses da envergadura de Hauriou e
Burdeau admitem o caráter jurídico dos usos constitucionais,
equiparando-os a verdadeiras regras de Direito, ao passo que
os constitucionalistas ingleses se mostram mais prudentes,
manifestando a esse respeito fortes dúvidas, quando não
aderem de plano ao ponto de vista de Dicey, que recusa
categoricamente valor de preceitos jurídicos às ‘convenções’ –
100 Paulo Márcio Cruz

por conseguinte, aos usos constitucionais, nomeadamente por


carecerem de aplicação ou reconhecimento judicial 142.
Nem o costume nem as convenções podem, desde uma
perspectiva positivista – mesmo crítica, como é a que se pretende nesta
obra – ser considerados fontes primárias do Direito Constitucional. São,
isto sim, fontes acessórias, de uma importância incontestável.
De qualquer forma, esta discussão não se esgota com estas
considerações, trazidas à colação muito mais para propiciar o debate do
que para estabelecer uma posição conclusiva. Este assunto deve, sem
sombra de dúvidas, ser objeto de muitos e freqüentes estudos.

142
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 39.
Fundamentos do Direito Constitucional 101
102 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 5

OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

O Direito, fruto muito mais da razão humana e da


sistematização de suas experiências, não pode pretender esgotar-se em
textos mutáveis, sempre sujeitos a revogações pelos órgãos normativos do
Estado e, principalmente, pela força cada vez maior da Sociedade Civil,
usando-se o seu conceito contemporâneo.
Mesmo para o positivista mais arraigado aos dogmas do Estado
de Direito143, é impossível não concordar com a existência, assim como
nos Direitos Fundamentais que serão estudados mais adiante, de um
núcleo essencial permanente no ordenamento jurídico, que possibilita a
fundamentação da validade e da efetividade do conjunto de normas que o
compõem.
Um ordenamento jurídico, mesmo nos moldes mais herméticos,
não é um simples amontoado de regras esparsas, produto da vontade de
quem está no poder naquele determinado momento. Quando é assim, o
Estado Democrático de Direito não está presente e não se pode dizer que
há um pressuposto de civilização contemporânea a orientar a produção
das normas jurídicas.
O Direito, para ter reconhecido seu significado como
ordenamento baseado em garantias e previsibilidade, necessita de
elementos de coerência e consistência; é sistêmico, é a possibilidade de se
incorporar o valor à regra.
Um ordenamento criado exclusivamente a partir de regras
conduz a um sistema jurídico de racionalidade prática limitada. Como
ensina Canotilho, um sistema nestes moldes

143
Segundo a opinião de Luiz Henrique CADEMARTORI, “melhor é falar em Estado de
Direito nos moldes clássico-liberal, pois o chamado Estado Constitucional é o atual
estado sujeito materialmente à Constituição, fato para o qual os velhos dogmáticos ainda
não acordaram”.
Fundamentos do Direito Constitucional 103

exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa –


legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos,
as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-
se-ia um ‘sistema de segurança’, mas não haveria qualquer
espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um
sistema, como o constitucional, que é necessariamente um
sistema aberto144.
Assim, nos ordenamentos jurídicos presentes nos países nos
quais o Estado Democrático de Direito é a concepção fundamental para
todo o sistema de organização social e jurídica o modelo é, normalmente,
um sistema aberto de princípios e regras. Desta forma, as normas
jurídicas podem ser princípios ou regras, ou seja, ambos são espécies do
gênero norma, na acepção adotada por Alexy145.
Os princípios, objeto de estudo deste capítulo, diga-se logo, não
estão acima ou além do Direito. Não são metajurídicos. Eles fazem parte,
numa visão que supera as concepções tradicionais e absolutistas das
fontes normativas, do ordenamento jurídico, convivendo com as regras e
orientado a sua produção. Não há oposição entre princípios e regras, ou
seja, as normas jurídicas é que se dividem em princípios e regras.
Ainda com Canotilho é que se pode ter uma melhor percepção
da distinção entre princípios e regras. O autor português propõe os
seguintes critérios distintivos:
Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de
abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras
possuem uma abstração relativamente reduzida;
Grau de determinalidade: na aplicação do caso concreto: os
princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de
mediações concretizadoras (do legislador? Do juiz?), enquanto
as regras são suscetíveis de aplicação direta146;
Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito:
os princípios são normas de natureza ou com um papel
fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição
hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios

144
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 169.
145
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. p. 82-87.
146
A característica enunciada já sofre oposição de parte da doutrina, pois os princípios
constitucionais são também diretamente operantes, incidindo de forma autônoma na
solução de casos concretos, conforme jurisprudência arrolada na obra Discricionariedade
Administrativa no Estado Constitucional de Direito, de Luiz Henrique
CADEMARTORI. Também segundo a mesma obra, a posição hierárquica dos princípios,
em verdade é posição de supremacia, pois não há diferenças hierárquicas entre princípios e
entre princípios e regras.
104 Paulo Márcio Cruz

constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do


sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito);
‘Proximidade’ da idéia de direito: os princípios são ‘standards’
juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’
(Dworkin) ou na ‘idéia de direito’ (Larenz); as regras podem ser
normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional;
Natureza normogenética: os princípios são fundamentos de
regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a
‘ratio’ de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma
função normogenética fundamentante147.
Mesmo assim o problema da distinção entre princípios e regras
persiste, principalmente devido à complexidade do tema. É preciso
discutir outras questões, como aquela relativa à função dos princípios,
que pode ser retórica ou argumentativa ou uma norma de conduta. Além
desta questão, há aquela destinada a saber se entre princípios e regras
existe um amálgama comum, havendo, tão-somente, uma diferença de
grau148.
Os princípios, a partir das constituições contemporâneas,
elaboradas após a Primeira Guerra Mundial, passaram a positivar valores
que antes somente eram encontrados nos Códigos.
Para o escopo do presente livro, princípios serão aquelas
normas inscritas nos textos constitucionais destinados a estabelecer os
valores fundamentais para a interpretação, integração, conhecimento e
aplicação do Direito Positivo.

5.1 O CONCEITO E CARACTERIZAÇÃO DE


PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
Os princípios constitucionais, lato sensu, são as normas básicas
de todo o sistema constitucional. Ou, como assevera Paulo Bonavides,
“os princípios são o oxigênio das constituições na época do pós-
positivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucionais
granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua ordem
normativa”149. Esta assertiva permite a idéia de hegemonia e
147
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 167.
148
Segundo Luiz Henrique CADEMARTORI, em sua obra Discricionariedade
Administrativa no Estado Constitucional de Direito, p. 98-99, o que determina quando
prepondera um princípio sobre outro ou sobre uma regra ou não, é um juízo de ponderação
via razoabilidade ou proporcionalidade em cada caso concreto. Por essa razão não há
diferença hierárquica prima facie entre eles e sim um grau de otimização. Segundo ele, caso
houvesse diferenças hierárquicas entre essas normas, não seria possível estabelecer o critério
de ponderação caso a caso nas situações de colisões entre normas para solucioná-los.
149
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 259.
Fundamentos do Direito Constitucional 105

superioridade dos princípios na pirâmide normativa, tanto formal como,


principalmente, materialmente.
Os princípios assumem um papel cada vez mais importante e
vital para os ordenamentos jurídicos, segundo a doutrina contemporânea,
principalmente se analisados sob a égide dos valores neles compreendidos.
São eles que devem nortear, com o prestígio e destaque que lhes são
peculiares, a interpretação, aplicação e mutação do Direito pelos tribunais.
Mesmo para os autores que entendem não haver hierarquia entre
princípio e regra constitucionais, existem, pelo menos, funções distintas
dentro do ordenamento jurídico. Luís Roberto Barroso, por exemplo, no
seu Interpretação e Aplicação da Constituição, ao tratar da natureza
dos princípios e regras constitucionais, escreve que “isso não impede,
todavia, que normas de mesma hierarquia tenham funções distintas
dentro do ordenamento”150.
Os princípios constitucionais, deve-se sempre repetir, são a
expressão dos valores fundamentais da Sociedade criadora do Direito.
Como a Constituição não é somente um agrupamento de normas
jurídicas, mas a concretização e positivação destes valores, deve haver
uma harmonia fundante entre os princípios e regras, como partes que
coabitam em um mesmo ordenamento, sendo que os primeiros são
espécie, e as segundas, gênero desta.
É como leciona Paulo Armínio Tavares Buechele, quando
ensina que
a seu turno, Alexy pontifica que tanto as regras como os
princípios também são normas, porquanto ambos se formulam
com a ajuda de expressões deônticas fundamentais, como
mandamento, permissão e proibição. Ambos, igualmente,
constituem fundamentos para juízos concretos de dever,
malgrado fundamentos de espécies muito distintas151.
Buechele chama a atenção para o fato de Alexy não fazer
somente uma diferenciação, entre princípio e regra quanto ao grau, mas
também quanto à qualidade, já que trata os princípios como “normas de
utilização”, que podem ser cumpridas em diversos graus conforme as
possibilidades fáticas e jurídicas152.
Ruy Espíndola, por seu turno, na obra de sua autoria
denominada de Conceito de Princípios Constitucionais, como se pode
depreender do próprio título, faz um profundo exercício caracterizador
150
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. p. 142.
151
BUECHELE, Paulo Armínio Tavares. O princípio da proporcionalidade e a
interpretação da constituição. p. 17.
152
BUECHELE, Paulo Armínio Tavares. O princípio da proporcionalidade e a
interpretação da constituição. p. 18.
106 Paulo Márcio Cruz

dos princípios constitucionais153. Logo na introdução da obra, o autor


catarinense faz a seguinte advertência:
Colocados na Constituição – cúspide normativa dos estados
democráticos de direito – os princípios transmudaram de
juridicidade e propuseram novas, instigantes e complexas
questões à jusconstitucionalística contemporânea. Conceituá-
los, classificá-los, defini-los, imiscuí-los em adequada base
metodológica, lançando luzes para sua correta compreensão,
interpretação e aplicação, constitui alguns dos desafios
contemporâneos colocados aos juristas. Ou melhor: teorizá-los
para estabelecer uma compreensão constitucionalmente
adequada, inerente ao modelo democrático-social de
Constituição, preponderante em nosso tempo, e, ainda, para
estatuir um conceito em bases constitucionalmente aptas para
dizer da normatividade dos princípios “na” Constituição e dos
problemas teóricos e dogmáticos ligados à existência jurídica
dos princípios constitucionais, é dever-tarefa dos
constitucionalistas da atualidade.
Já Luiz Henrique Cademartori, em seu excelente
Discricionariedade Administrativa, com uma abordagem garantista e no
qual dedica amplo espaço à discussão sobre os princípios constitucionais,
afirma que
Nessa perspectiva, os princípios constitucionais, explícitos e
implícitos, desempenham um papel fundamental como reflexos
normativos dos valores constitucionais conforme já se observou.
Em outro termos, pode-se dizer que estes se traduzem
juridicamente, desde a base do ordenamento jurídico, em
princípios, nele explicitados ou não, tidos como verdadeiros
instrumentos de implementação e proteção de tais valores
historicamente consagrados na maioria dos sistemas normativos
ocidentais154.
Espíndola indica o conceito concebido por Paulo Bonavides 155,
com o seguinte texto:
Assim, os princípios estatuídos nas Constituições – agora
princípios constitucionais –, postos no ponto mais alto da
escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se tornam,
doravante, as normas supremas do ordenamento. Servindo de
pautas ou critérios por excelência para avaliação de todos os
153
A obra de Ruy Samuel Espíndola está, sem dúvidas, entre as mais robustas dedicadas
ao tema dos princípios constitucionais, sendo fonte de consulta obrigatória àqueles que
desejam debruçar-se sobre tão importante assunto.
154
CADEMARTORI, Luiz Henrique. Discricionariedade administrativa. p. 80.
155
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 260-261.
Fundamentos do Direito Constitucional 107

conteúdos constitucionais (e infraconstitucionais, acrescenta-


se), os princípios, desde sua constitucionalização, que é, ao
mesmo passo, positivação do mais alto grau, recebem, como
instância máxima, categoria constitucional, rodeada do
prestígia e da hegemonia que se confere às normas inseridas
na Lei das leis. Com esta relevância adicional, os princípios
se convertem igualmente em normae normarum, ou seja,
normas das normas156.
Para caracterizar os princípios constitucionais, antes de citar vários
autores e suas propostas de caracterização, Ruy Espíndola leciona que
Desta forma, esses princípios, então, não expressam somente
uma natureza jurídica, mas também política, ideológica e social,
como, de resto, o Direito e as demais normas de qualquer
sistema jurídico. Porém, expressam uma natureza política,
ideológica e social normativamente predominante, cuja eficácia
no plano da práxis jurídica – entendida como concretização do
Direito no sentido mais amplo possível –, alcança, muito além
dos procedimentos estatuídos (judicialistas, legislativos e
administrativos), até a organização política dos mais diversos
segmentos sociais, como os movimentos populares, sindicatos e
partidos políticos etc.
Já David Araújo e Nunes Júnior conceituam princípios
constitucionais de maneira um pouco diversa. Estes autores os entendem
como “regras-mestras” que existem no ordenamento jurídico e não
trabalham a dicotomia clássica entre regras e princípios. Para eles,
existem dois tipos de regras: as regras estruturais, que são os princípios, e
as regras derivadas destes princípios, que são as demais previsões
existentes em um determinado sistema jurídico157.
Importante na obra de David Araújo e Nunes Júnior é também a
caracterização dos princípios constitucionais. Adotando a sistematização
elaborada por Cármen Lúcia Antunes Rocha158, os autores elencam as
seguintes características:
a) generalidade – são genéricos, não se aplicando a qualquer
situação concreta;
b) primariedade – são primários, deles decorrendo outros
princípios;
c) dimensão axiológica – os princípios constitucionais trazem
valores éticos que refletem uma doutrina, um posicionamento
156
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de princípios constitucionais. p. 79.
157
ARAUJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito
constitucional. p. 43
158
ROCHA, Cármen Lúcia. Princípios constitucionais da administração pública. p. 29-33.
108 Paulo Márcio Cruz

político, devendo sofrer alteração quando tais valores também


se alterem159.
Autores estrangeiros, como Konrad Hesse, em seu Elementos
de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha,
reconhecem valores fundamentais nas previsões principiológicas inscritas
na Constituição. O autor alemão explica que os princípios constitucionais
são “os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade
política e devem ser exercidas tarefas estatais. A Lei Fundamental 160
nomeia esses princípios no preâmbulo e no art. 1º ”161.
Hesse desenvolve, na obra citada, uma profunda discussão
sobre os princípios constitucionais conformadores do Estado Federal
alemão, observando que sobre essa base “ordena a Lei Fundamental o
Estado atual como república, democracia, estado de direito social e
estado federal (art. 28, 28 da Lei Fundamental)162.
Outro trabalho digno de nota, quando se trata de princípios
constitucionais, é o livro Instituições de Direito Constitucional
Brasileiro, de Ivo Dantas. Após uma longa e consistente revisão sobre os
princípios jurídicos, o autor afirma que,
No caso específico da Constituição Brasileira de 1988,
contudo, os elencados Princípios Fundamentais coincidem, em
sua quase totalidade, com as Cláusulas Pétreas constantes do
art. 60, § 4º, o que reforça o entendimento que defendemos, ou
seja, que uma correta interpretação de qualquer norma,
existente ou não no texto constitucional, terá que tomar como
referência o conteúdo axiológico dos Princípios
Fundamentais163.
Para Dantas, portanto, os princípios representam os valores
maiores de todo o ordenamento jurídico. É a partir deles que serão
construídas todas as outras normas e que serão balizadas toda a
interpretação, aplicação e mutação do Direito. Tanto é assim, que ele
leciona que

159
ARAUJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito
constitucional. p. 47
160
A Lei Fundamental de Bonn é o nome pelo qual é conhecida a atual Constituição da
República Federal da Alemanha. Bonn, assim como Weimar, que era o nome da anterior
constituição alemã, é a cidade na qual realizou-se o seu processo de discussão, aprovação
e promulgação, após a Segunda Guerra Mundial.
161
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha. p. 109
162
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da
Alemanha. p. 111.
163
DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. p. 368.
Fundamentos do Direito Constitucional 109

por outro lado, se tanto o Princípio quanto a Norma


consagrados nos textos constitucionais refletem um
posicionamento ideológico (opção política frente a diferentes
valores) – repitamos –, existe entre eles uma hierarquização. A
partir desta, o princípio ocupa posição de destaque,
irradiando, em decorrência e necessariamente, o conteúdo
daquela164.
Mas é com Paulo Bonavides que se tem a melhor compreensão
e dimensão dos princípios e dos princípios constitucionais. Ele leciona:
Em resumo, a teoria dos princípios chega à presente fase do pós-
positivismo com os seguintes resultados já consolidados: a
passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata
para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor
de densidade normativa; a transição da ordem jusprivatista (sua
antiga inserção nos códigos) para a órbita juspublicística (seu
ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica
entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da
esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a
proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de
normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua
positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições;
a distinção entre regras e princípios, como espécies
diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão
máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais
significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência
dos princípios165.
Desta forma, deve-se repetir que princípios constitucionais são
normas inscritas na Constituição, reconheça-se ou não sua proeminência e
hegemonia.
Assim, sem a pretensão de ter realizado estudo aprofundado ou
de esgotar o assunto, faz-se necessário um esforço de sistematização e
sintetização conceitual e de caracterização dos princípios constitucionais
em termos mais objetivos:
a) Conceito
Princípios Constitucionais são normas jurídicas caracterizadas
por seu grau de abstração e de generalidade, inscritas nos textos
constitucionais formais, que estabelecem os valores e indicam a ideologia
fundamentais de determinada Sociedade e de seu ordenamento jurídico. A

164
DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. p. 374.
165
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 265.
110 Paulo Márcio Cruz

partir deles todas as outras normas devem ser criadas, interpretadas e


aplicadas.
b) Características básicas dos Princípios Constitucionais
Os princípios constitucionais podem ser caracterizados por:
I – Condicionarem toda criação, interpretação e aplicação do
Direito, ou seja, por serem gerais;
II – Condicionarem os outros princípios constitucionais, ou
seja, por serem primários;
III – Condicionarem os valores expressos em todo
ordenamento jurídico, ou seja, por sua dimensão
axiológica.

5.2 CLASSIFICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS


CONSTITUCIONAIS
São muitos os autores que tratam da classificação dos princípios
constitucionais, tanto nacionais como estrangeiros.
Para um melhor ordenamento do tema e para não estendê-lo em
demasia, a opção foi por trabalhá-lo segundo a concepção de quatro
autores: os brasileiros José Afonso da Silva e Luís Roberto Barroso e os
portugueses Gomes Canotilho e Jorge Miranda.
Ao final será proposta uma classificação própria, destinada a
dar um traço de originalidade a esta parte do livro.
a) A classificação de José Afonso da Silva
Em seu Curso de Direito Constitucional Positivo166, José
Afonso da Silva procura caracterizar os princípios que estão inscritos na
Constituição como normas positivas, como sugere o próprio título da obra.
A classificação proposta divide-se em duas categorias de
princípios constitucionais: os princípios político-constitucionais e os
princípios jurídico-constitucionais.
Note-se que esta divisão é feita em função da natureza dos
princípios constitucionais. Os político-constitucionais assumem papel de
opção ideológica formalmente constitucionalizada, já os jurídico-
constitucionais são concebidos em bases estritamente jurídicas, derivados
de normas já positivadas.
Assim, os princípios político-constitucionais “constituem-se
daquelas decisões políticas fundamentais concretizadas em normas
conformadoras do sistema constitucional positivo, e são,..., normas-
166
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. p. 85-86.
Fundamentos do Direito Constitucional 111
167
princípio” . São os fundamentos de todo o ordenamento jurídico, já que
as outras normas, como já dito, derivam logicamente deles.
Os princípios político-constitucionais manifestam-se como
princípios constitucionais fundamentais, tranformados em normas-
princípios que indicam a opção política do Poder Constituinte – e,
portanto, da Nação – a ser aplicada a todas as outras normas,
interpretações e aplicações jurídicas.
Para José Afonso da Silva, esses princípios político-constitu-
cionais ou princípios fundamentais estão previstos nos arts. 1º a 4º do
Título I da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Já os princípios jurídico-constitucionais podem ser chamados
também de princípios constitucionais gerais, informadores da ordem
jurídica. Eles são resultados de previsões constitucionais e estão
embasados nos princípios político-constitucionais, normalmente atuando
como desdobramentos daqueles, aplicados a assuntos específicos. José
Afonso da Silva elenca muitos deles,
como o princípio da supremacia da constituição e o
conseqüente princípio da constitucionalidade, o princípio da
legalidade, o princípio da isonomia, o princípio da autonomia
individual, decorrente da declaração dos direitos, o da
proteção social dos trabalhadores, fluinte de declaração de
direitos sociais, o da proteção da família, do ensino e da
cultura, o da independência da magistratura, o da autonomia
municipal, os da organização e representação partidária, e os
chamados princípios-garantia (o do nullum crimen e da
nulla poena sine lege, o do devido processo legal, o do juiz
natural, o do contraditório entre outros, que figuram nos incs.
XXXVIII a LX do art. 5º) 168.
Pode-se dizer que, para José Afonso da Silva, os princípios
jurídico-constitucionais são desdobramentos dos princípios político-
constitucionais espargidos por toda Constituição, com conformação
jurídica específica e de aplicação mais comum e imediata.
b) A classificação de Luís Roberto Barroso
Em sua obra Interpretação e Aplicação da Constituição169,
Luís Roberto Barroso sistematiza os princípios constitucionais de acordo
com o seu grau de abrangência. Ele explica que “aos princípios
constitucionais calha a peculiaridade de se irradiarem pelo sistema
normativo, repercutindo sobre outras normas constitucionais e daí se
167
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. p. 85.
168
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. p. 86.
169
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. p. 144-146.
112 Paulo Márcio Cruz

difundindo para os escalões normativos infraconstitucionais” 170,


alertando que os princípios não possuem o mesmo raio de atuação,
variando segundo sua abrangência ou mesmo sua influência.
Barroso divide os princípios constitucionais em fundamentais,
gerais e setoriais ou especiais.
O autor explica que os princípios constitucionais fundamentais
são aqueles que trazem as orientações políticas básicas para o Estado. Nas
palavras de Barroso, “neles se substancia a opção política entre Estado
unitário e federação, república ou monarquia, presidencialismo ou
parlamentarismo, regime democrático etc”171.
Os princípios constitucionais fundamentais, segundo o autor,
expressam a ideologia política preponderante no ordenamento jurídico e
não são modificáveis por este próprio ordenamento, funcionando como
limites de às reformas, revisões e mutações constitucionais. Eles têm a
capacidade de condicionar os demais princípios constitucionais e integrar
o ordenamento infra-constitucional.
Já os chamados princípios constitucionais gerais, como ensina
Barroso, não fazem parte do núcleo político-ideológico que forma o
Estado. Eles funcionam como importantes desdobramentos dos
princípios constitucionais fundamentais. Para o autor, “têm eles menor
grau de abstração e ensejam, em muitos casos, a tutela imediata das
situações jurídicas que contemplam”172.
Os princípios constitucionais gerais são aqueles aplicáveis a
todas as situações específicas do ordenamento jurídico e têm o condão de
definir direitos. São exemplos o princípio da legalidade, da isonomia, do
juiz natural.
Por último, Barroso trabalha os princípios constitucionais
setoriais ou especiais, que estão presentes em determinada parte da
Constituição, vinculados a um tema ou a um ramo específico do Direito.
Com irradiação limitada, nas áreas em que atuam são intransponíveis. O
autor explica que “por vezes são mero detalhamento dos princípios gerais,
como os princípios da legalidade tributária ou da anterioridade em
matéria tributária ou o do concurso público em matéria de administração
pública173.
c) A classificação de Jorge Miranda

170
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. p. 144.
171
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. p. 145.
172
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. p. 145.
173
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. p. 146.
Fundamentos do Direito Constitucional 113

Jorge Miranda, em seu Teoria do Estado e da Constituição 174,


ensina que os princípios constitucionais não são homogêneos e podem ser
classificados em três grandes categorias: princípios axiológicos
fundamentais, princípios político-contitucionais e princípios
constitucionais instrumentais.
Os princípios axiológicos fundamentais, segundo o autor, são
aqueles que servem de meio de ligação entre o Direito Natural e o Direito
Positivo e que, em essência, coincidem com os valores maiores da
Sociedade. Como exemplo, Miranda traz a
proibição de discriminações, a inviolabilidade da vida humana,
a integridade moral e física das pessoas, a não retroatividade
da lei penal incriminadora, o direito de defesa dos acusados, a
liberdade de religião e de convicções, a dignidade social do
trabalho etc.175.
Os princípios político-constitucionais, como ensina Jorge
Miranda, são aqueles instituídos pelo Poder Constituinte para estabelecer
os limites de reforma, revisão e mutação da Constituição, normalmente
representados pelas cláusulas pétreas e pelas previsões delas derivadas ou
conexas e que são as marcas caracterizadoras de cada Constituição
material diante das demais
ou seja, as grandes opções e princípios de cada regime.
Exemplos: o princípio democrático, o princípio representativo,
o princípio republicano, o da constitucionalidade, o da
separação dos órgãos do poder, o da subordinação do poder
econômico ao poder político etc.176.
Por fim, os princípios constitucionais instrumentais
correspondem, pela ótica do autor, àqueles princípios que estruturam e
dão racionalidade e operacionalidade ao sistema constitucional. Eles
espalham-se por todos os temas tratados na Constituição. Jorge Miranda
ensina que são princípios constitucionais instrumentais
o princípio da publicidade das normas jurídicas, o da
competência (ou da fixação da competência dos órgãos
constitucionais pela norma constitucional), o do paralelismo
das formas, o da tipicidade das formas de lei, o do pedido na
fiscalização jurisdiconal da constitucionalidade etc.177.
Jorge Miranda, como alerta, leciona que, apesar da
classificação ou das classificações possíveis, não há sentido em se criar
174
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. p. 434-436.
175
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. p. 435.
176
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. p. 435.
177
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. p. 436.
114 Paulo Márcio Cruz

uma separação ou hierarquização entre os diversos tipos de princípios,


já que, por vezes, “um elemento construtivo está presente nos princípios
mais valorativos, e um elemento valorativo nos princípios
aparentemente mais técnicos”178.
d) A classificação de J. J. Gomes Canotilho
A classificação proposta por Gomes Canotilho é, pode-se dizer,
a mais original entre todas as pesquisadas para a elaboração deste
capítulo, já que tipifica os princípios constitucionais de maneira
abrangente dentro do espectro constitucional. O autor lusitano propõe
classificá-los em: princípios jurídicos fundamentais, princípios políticos
constitucionalmente conformadores, princípios constitucionais
impositivos e os princípios-garantia.
Os ditos princípios jurídicos fundamentais são aqueles que
possuem função negativa particularmente relevante nos postulados
básicos, como estado de direito e de não direito, estado democrático e
ditadura. Eles também possuem função positiva, dirigindo,
materialmente, os atos dos poderes públicos, como é o caso do princípio
da publicidade dos atos jurídicos. Por trás do princípio da publicidade
está a exigência da segurança jurídica e do garantismo, com “a proibição
da arcana praxi (política de segredo), a defesa dos cidadãos perante os
atos do poder público”179. Canotilho considera, portanto, os “princípios
jurídicos fundamentais os princípios historicamente objetivados e
progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram
um recepção expressa ou implícita no texto constitucional”180.
Apesar de não serem específicos para a constituição, mas sim
para todo o ordenamento jurídico, os princípios jurídicos fundamentais,
por possuírem dimensão determinante (positiva e negativa), formam a
diretriz material para a interpretação das normas constitucionais, segundo
Canotilho.
Já os princípios políticos constitucionais conformadores são
aqueles que demonstram e condensam as opções políticas nucleares e são
oriundos da ideologia majoritária que elaborou a constituição. Tanto é
assim, que Canotilho leciona que “designam-se por princípios
politicamente conformadores os princípios constitucionais que explicitam
as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte”181.
Para Canotilho, estes princípios expressam as concepções
políticas majoritárias numa assembléia constituinte e são o “cerne
178
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. p. 436.
179
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 171.
180
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 171.
181
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 172.
Fundamentos do Direito Constitucional 115

político de uma constituição política”, não sendo de admirar que: “(1)


sejam reconhecidos como limites do poder de revisão; (2) se revelem os
princípios mais diretamente visados no caso de alteração profunda do
regime político”182.
Estão incluídos entre os princípios políticos constitucionais
conformadores aqueles definidores da forma de estado, como o da
subordinação do poder econômico ao poder político, os definidores da
estrutura do estado (centralizado ou descentralizado), os estruturantes do
regime político (princípio do estado de direito, princípio democrático,
princípio republicano, princípio pluralista) e os princípios
caracterizadores da forma de governo e da organização política em geral,
como o princípio da separação e interdependência de poderes e os
princípios eleitorais.
Ainda segundo Canotilho, os princípios políticos
constitucionalmente conformadores são princípios normativos,
vinculantes e operantes, que todos os órgãos encarregados da aplicação
do direito devem ter em conta, “seja em atividades interpretativas, seja
em atos inequivocamente conformadores (leis, atos normativos)”183.
O autor aponta, como o terceiro item de sua classificação, os
princípios constitucionais impositivos, nos quais “subsumem-se todos os
princípios que, sobretudo na âmbito da constituição dirigente, impõem
aos órgãos do estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a
execução de tarefas”184. Para Canotilho, são princípios dinâmicos,
orientadores impositivos das demais atividades estatais.
São princípios destinados a, sobretudo, traçar ao legislador as
linhas mestras de sua atividade política e legislativa. O princípio da
independência nacional e o princípio da correção das desigualdades na
distribuição da riqueza são bons exemplos.
Por último, Canotilho aponta os chamados princípios-garantia,
que visam instituir direta e imediatamente uma garantia para o cidadão.
São autênticas normas jurídicas imediata e diretamente aplicáveis, com
força determinante, positiva e negativa. Como exemplo, pode-se citar o
princípio do nullum crimen sine lege e de nulla poena sine lege, que estão
contidos, por exemplo, no art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
Nas palavras do autor, “estes princípios traduzem-se no
estabelecimento direto de garantias para os cidadãos e daí que os
autores lhes chamem ‘princípios em forma de norma jurídica’ (Larenz) e
considerem o legislador estreitamente vinculado na sua aplicação”185.
182
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 172.
183
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 173.
184
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 173.
185
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 173.
116 Paulo Márcio Cruz

5.3 UMA SÍNTESE CLASSIFICATÓRIA


Com base no que foi observado com o relato acima, é possível
estabelecer uma classificação própria para os princípios constitucionais
stricto sensu, desconsiderando aqueles princípios não positivados nos
textos constitucionais mas que exercem sobre ele determinada influência.
Parece ser o mais adequado dividir os princípios constitucionais
em três tipos: os político-ideológicos, os fundamentais gerais e os
específicos.
Os princípios constitucionais político-ideológicos são aqueles
que possuem dimensão axiológica fundamental. Pode-se dizer que
funcionam como os “princípios dos princípios”. Na Constituição da
República Federativa do Brasil, como exemplos de princípios
constitucionais político-ideológicos, podem-se citar aqueles inscritos no
seu art. 4º, como o da independência nacional, o da prevalência dos
direitos humanos, o da autodeterminação dos povos etc. Eles possuem o
condão de orientar os demais princípios inscritos na Constituição e
possuem um grau de concretude muito baixo.
Já os princípios constitucionais fundamentais gerais, ao
contrário dos princípios constitucionais político-ideológicos, possuem um
alto grau de concretude e aplicabilidade. Na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, estes princípios constitucionais aparecem
no art. 5º e seus muitos incisos. Como exemplo, pode-se citar o seu inc.
IV, que estabelece o princípio da livre expressão do pensamento, nos
seguintes termos: “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo
vedado o anonimato”;186
Por fim, os princípios constitucionais específicos são aqueles
que orientam uma determinada parte do Direito Constitucional. Na
Constituição da República Federativa do Brasil, por exemplo, a maioria
das matérias nela tratadas possuem princípios específicos. Por exemplo:
(1) no art. 7º, inc. VI, está previsto o princípio constitucional específico
da “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo
coletivo;”187; (2) No art. 17, está previsto o princípio constitucional
específico do “caráter nacional”188. No art. 37, em seu inc. VI, está
previsto o princípio constitucional específico que garante ao servidor
público civil “... o direito à livre associação sindical;”189. No art. 194, em
seu inc. I, está prevista a “universalidade da cobertura e do
186
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p. 5.
187
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. p. 12.
188
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
17.
189
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
29.
Fundamentos do Direito Constitucional 117
190
atendimento;” . No art. 206, inc. I entre muitos, está previsto o princípio
constitucional específico que estabelece a “igualdade de condições para
o acesso e permanência na escola;”191
Deve-se notar que cada um dos exemplos acima diz respeito a
uma determinada parte da Constituição, que por sua vez orientam ramos
do Direito, especificamente, já que, por óbvio, um princípio
constitucional específico que orienta as previsões constitucionais
atinentes à educação, à cultura e ao desporto provavelmente não poderá
ser aplicado ao capítulo da Constituição que trata dos partidos políticos, e
vice-versa.
É também digno de nota o fato de que os princípios
constitucionais específicos possuem características muito próximas
daquelas encontradas nas regras jurídicas, principalmente quanto à sua
auto-aplicabilidade. São princípios jurídicos. Já os princípios
constitucionais fundamentais são objeto de acalorados debates sobre sua
auto-aplicabilidade, afastando-se das características encontradas nas regras
jurídicas e são, ao mesmo tempo, princípios jurídicos e políticos. Os
princípios político-ideológicos, por seu caráter eminentemente axiológico,
afastam-se muito da regra jurídica, servindo como parâmetro para a sua
construção porém sem compartilhar de praticamente nenhuma de suas
características.

5.4 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO


CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO
Usando-se o texto da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 e à luz dos tipos de princípios constitucionais expostos no
item anterior, é possível fazer-se um esboço de classificação – muito mais
a título de exemplo – tendo-o como moldura.
A abordagem está longe de exaurir as possibilidades de
classificação, mas pretende expressar os mais destacados princípios
enquadrados na tipologia aqui delineada: político-ideológicos,
fundamentais gerais e específicos.
Podem ser classificados como princípios constitucionais
político-ideológicos:
a) O princípio Republicano, do art. 1º, caput;
b) O princípio Federativo, do art. 1º, caput;

190
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
91.
191
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
95.
118 Paulo Márcio Cruz

c) O princípio do Estado Democrático de Direito, do art. 1º,


caput;
d) O princípio democrático direto e representativo, do art. 1º,
parágrafo único;
e) O princípio da Tripartição, Independência e Harmonia entre
os poderes da União;
f) Os princípios reitores das relações internacionais
(independência nacional, não-intervenção etc.), do art. 4º e
seus incisos; e
g) O princípio da Integração dos povos da América Latina, do
art. 4º, parágrafo único.
Estas foram as decisões político-ideológicas do Poder
Constituinte. Luís Roberto Barroso comenta estes princípios dizendo que
se o constituinte de 1988 não tivesse dito mais nada; se a Carta
se cifrasse a um único artigo que abrigasse os princípios
acima, ainda assim ter-se-iam os contornos essenciais do
Estado que se pretendeu criar. Se se deixasse tudo o mais para
o legislador ordinário, não poderia ele desfigurar o modelo
básico que a ele se impôs.
Já os princípios constitucionais fundamentais gerais estão
inscritos no extenso art. 5º da Constituição de 1988 e seus incisos. Por
exemplo:
a) O princípio da Igualdade Perante a Lei ou da Isonomia, do
inc. I;
b) O princípio da Função Social da Propriedade, do inc. XXIII;
c) O princípio do Direito Adquirido, do inc. XXXVI;
d) O princípio da Não-Admissão de Provas Obtidas Por Meios
Ilícitos, do inc. LVI;
e) O princípio da Aplicação Imediata das Normas Definidoras
dos Direitos e Garantias Fundamentais, do parágrafo primeiro.
Não é demais destacar que o elenco acima pode ser
significativamente ampliado. Os princípios expostos nesta parte da
Constituição distinguem-se dos político-ideológicos por não possuírem
função de organização básica do Estado, mas sim, de limitação do poder,
resguardando, principalmente, situações individuais.
Os princípios constitucionais fundamentais gerais expressam,
principalmente, valores éticos, embora sejam desdobramentos dos
princípios constitucionais político-ideológicos. É como ensina José
Afonso da Silva, quando escreve que “é certo, contudo, que tais
Fundamentos do Direito Constitucional 119

princípios se cruzam, com freqüência, com os princípios fundamentais,


na medida em que estes possam ser positivação daqueles”192. Deve-se
destacar, então, os dois pontos diferenciadores: (1) os princípios
constitucionais fundamentais gerais possuem um grau de interação
jurídica muito maior, com aplicabilidade garantida no próprio texto
constitucional; e (2) os princípios constitucionais fundamentais gerais têm
aplicação em todos os ramos específicos do Direito tratados pela
Constituição (o Princípio da Legalidade pode ser aplicado ao Direito
Tributário, Administrativo, Previdenciário etc).
Por último deve-se tratar dos princípios constitucionais
específicos. Eles estão distribuídos pelos diversos títulos da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988.
Sem a pretensão de esgotar, por óbvio, a análise destes tipos de
princípios, é possível realçar alguns deles, dentro dos respectivos ramos
do Direito:
a) Entre outros, princípios constitucionais específicos do
Direito do Trabalho:
– O Princípio da Proteção do Salário, do art. 7º, inc. X;
– O Princípios da Proteção do Mercado de Trabalho da
Mulher, do art. 7º, inc. XX;
– O Princípios da Redução dos Riscos Inerentes ao Trabalho,
do art. 7º, inc. XXII; e
– O Princípio da Proteção em Face da Automação, do art. 7º,
inc. XXVII.
b) Entre outros, princípios constitucionais específicos do
Direito Político:
– O Princípio do Sufrágio Universal, Direto, Secreto e Igual
Para Todos, do art. 14, caput;
– O Princípio da Vedação de Cassação de Direitos Políticos,
do art. 15, caput; e
– O Princípio da Anualidade da Lei Eleitoral, do art. 16,
caput.
c) Entre outros, princípios constitucionais específicos do
Direito Administrativo;
– O Princípio da Legalidade Administrativa, do art. 37, caput;
– O Princípio da Impessoalidade, do art. 37, caput;
– O Princípio da Moralidade, do art. 37, caput;

192
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. p. 88.
120 Paulo Márcio Cruz

– O Princípio da Publicidade, do art. 37, caput;


– O Princípio do Direito à Livre Associação Sindical, do art.
37, inc. VI; e
– O princípio da Isonomia de Vencimentos na Administração
Pública, do art. 39, § 1º.
d) Entre outros, princípios constitucionais específicos do
Direito Tributário e Orçamentário:
– O princípio da Capacidade Contributiva, do art. 145, § 1º;
– O princípio da Legalidade Tributária, do art. 150, inc. I;
– Princípio da Isonomia Tributária, do art. 150, inc. II;
– Princípio da Anterioridade da Lei Tributária, do art. 150,
inc. III; e
– Princípio da Anualidade Tributária, do art. 165, inc. III.
e) Entre outros, princípios constitucionais específicos do
Direito Econômico:
– O Princípio da Garantia da Propriedade Privada, do art. 170,
inc. II;
– O Princípio da Função Social da Propriedade Privada, do
art. 170, inc. III;
– O Princípio da Livre Concorrência, do art. 170, inc. IV;
– O Princípio da Defesa do Consumidor, do art. 170, inc. V; e
– O Princípio da Defesa do Meio Ambiente, do art. 170, inc.
VI.
Vale reiterar que princípios constitucionais específicos podem
ser encontrados nos mais diversos ramos do Direito. Além deles, a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 contempla
muitos outros princípios constitucionais específicos em temas que não
podem ser caracterizados como ramos do Direito. Um bom exemplo é
aquele expresso no art. 127, § 1º, que trata dos “princípios institucionais
do Ministério Público” (princípio da unidade, da indivisibilidade e da
independência funcional).
Outros exemplos expressivos são os princípios constitucionais
específicos que podem ser encontrados no Título VIII da Constituição de
1988, como o do Acesso Universal e Igualitário às Ações de Saúde
expresso no art. 196, caput, e o da Gratuidade do Ensino Público
consagrado no art. 206, inc. IV.
Para a identificação de outros princípios constitucionais
específicos na Constituição, o intérprete deve sempre observar os traços
Fundamentos do Direito Constitucional 121

de abstração e/ou generalidade que os caracterizam. As normas de


preceitos ou regras – ou a lei, como genericamente se refere Cademartori
– não devem ser confundidas com princípios. O autor citado leciona que
“... a lei, por não possuir em regra um caráter de generalidade e
abstração tão amplo quanto os princípios, acaba por tornar-se
insuficiente para reger todo o espectro social de complexidade crescente,
fenômeno este que atinge de forma diversa, ca subsistema social”193.
Vale ainda salientar que os princípios constitucionais têm
hegemonia e proeminência em qualquer sistema jurídico, como anota
Paulo Bonavides ao afirmar que “essa posição de supremacia se
concretizou com a jurisprudência dos princípios, que outra coisa não é
senão a mesma jurisprudência dos valores, tão em voga nos tribunais
constitucionais de nossa época”194.
Os princípios constitucionais não estão, como já foi dito, “fora”
do ordenamento jurídico, mas são, isto sim, instrumentos “superiores”
para a interpretação, aplicação e mutação constitucional.

193
CADEMARTORI, Luiz Henrique. Discricionariedade administrativa, p. 107-108.
194
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. p. 264.
122 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 6

O DIREITO CONSTITUCIONAL E OS
PODERES INSTITUÍDOS DO ESTADO

A garantia de liberdade dos cidadãos é a principal justificativa


da existência do Direito Constitucional. Esta liberdade só é possível numa
comunidade ordenada pelo Direito, com os poderes públicos sujeitos
também a este Direito, de forma que sua configuração e suas
competências não dependam da vontade, mais ou menos arbitrária, de
uma ou poucas pessoas, mas sim, das previsões legais. Como
conseqüência, a determinação de quais sejam os poderes do Estado, quais
suas atribuições e quem pode ocupar estes poderes é uma das tarefas
essenciais do Direito Constitucional.
Em muitos casos, o Direito Constitucional limitou-se a
estabelecer um “estatuto orgânico do poder”, sem considerar necessário
incluir, também, uma regulação das liberdades dos cidadãos. Assim foi,
por exemplo, a Constituição norte-americana de 1787, a qual somente em
emendas posteriores foi acrescentado um conjunto de previsões que
integram sua Bill of Rights. Também é o caso, atualmente, da
Constituição Francesa de 1958, que se refere, quando trata de liberdades
públicas, à Declaração de Direitos de 1789, entre outras normas.
No Brasil, durante o processo constituinte de 1987/88, houve
muitas propostas para a redução da Constituição a uma carta de
organização do Estado e de garantia dos direitos e liberdades fundamentais,
enviando para a legislação complementar os direitos relativos a outras
áreas. Estas propostas logo foram rechaçadas, tendo prevalecido a forma de
uma Constituição programática, complexa, prolixa e, paradoxalmente,
rígida.
A regulamentação jurídica da estrutura do Estado supõe a
determinação das suas instâncias de atuação e seus respectivos
procedimentos. O Estado não é uma pessoa física, mas sim, um complexo
organizativo. Para organizar e regular sua atuação, o Direito
Fundamentos do Direito Constitucional 123

Constitucional tem empregado técnicas similares às utilizadas em outros


ramos do Direito, considerando a coletividade estatal como um sujeito de
Direito, titular de competências e de responsabilidades. O Estado, dotado
de uma personalidade jurídica integra, assim, um mundo jurídico no qual
possui direitos e obrigações.
A atribuição de personalidade jurídica ao Estado se realiza de
forma diferente em cada ordenamento jurídico. Em alguns, esta
personalidade é atribuída diretamente ao Estado como tal, enquanto que,
em outros casos, a preferência é por atribuir esta personalidade jurídica a
um setor ou elemento da organização estatal.
A organização jurídica do poder estatal implica estabelecer os
órgãos através dos quais o Estado atua. Assim, o conceito de órgão é
fundamental para a regulação de um ente coletivo, incapaz –
diferentemente da pessoa física – de atuar por si mesmo.
Os órgãos do Estado aparecem como os instrumentos através
dos quais se expressa a sua vontade, e é levada a cabo a ação estatal. Em
última análise, os órgãos do Estado, como os ministérios, os tribunais, o
Parlamento, entre outros, estão integrados num grande organismo, de
modo que a ação de qualquer dos órgãos estatais se converte, desta forma,
em atos do Estado. Sobre isto, Marcello Caetano ensina que
todo órgão do Estado corresponde, pois, a um princípio de
instituição, colocado objetivamente acima dos indivíduos e
aspirando a durar através dos tempos. Isto explica que
subsista mesmo quando temporária ou acidentalmente esteja
desprovido de titular195.
Esta concepção obriga a que se regule quais os órgãos mediante
os quais o Estado atua, quais são suas competências, quais os
procedimentos a serem seguidos para sua atuação e como será a seleção
dos indivíduos que integrarão estes órgãos. A partir desta perspectiva, a
Constituição é o “estatuto do poder”, já que regula quem, como e com
que limites pode ser exercido o poder do Estado.
A regulação constitucional normalmente – como é o caso
brasileiro – só se refere a uma parte, a essencial, da configuração dos
poderes do Estado, estabelecendo os elementos fundamentais de sua
organização. Usualmente são designados como “órgãos constitucionais”,
por estarem previstos pela própria Constituição e não podem ser
suprimidos pelo legislador ordinário.
Normalmente a composição, procedimento e as principais
funções destes órgãos também estão previstos na Constituição. São
diferentes daqueles que a Constituição prevê como necessários, mas
195
CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e direito constitucional, p. 182.
124 Paulo Márcio Cruz

deixando ao legislador que concretize sua composição, procedimento e


funções, que são considerados como de “relevância constitucional”.
Deve-se alertar que os órgãos derivados da Constituição devem
ter nela indicadas suas fontes de receita e as garantias para o seu
funcionamento. É possível, portanto, deduzir que um mandamento
constitucional que dá status constitucional a determinados órgãos,
também lhes atribui tarefas irrenunciáveis.

6.1 A SEPARAÇÃO DE PODERES COMO PRINCÍPIO


BÁSICO DA ORGANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, elaborada
em 1789, logo no início do constitucionalismo moderno, previa que toda
Sociedade na qual não estivessem garantidos os direitos e estabelecida a
separação dos poderes carecia de Constituição. Isto refletia uma convicção,
constante na história do constitucionalismo, que vincula a proteção da
liberdade e a sujeição do Direito ao princípio da separação dos poderes.
Este princípio foi formulado, pelo menos em sua versão mais
influente, no livro XI do capítulo IV da obra Do espírito das leis de
Montesquieu, prevendo que
a experiência mostra que todo homem que tem poder tende a
abusar dele e o emprega até encontrar um limite. Quem
poderia pensar que inclusive a virtude tem limites? Para que
ninguém possa abusar do poder, é necessário conseguir,
através de uma adequada ordenação, que o poder freie o
poder196.
A doutrina da separação de poderes tem abundantes
antecedentes históricos, mas foi Montesquieu quem a definiu em sua
forma mais influente para o desenvolvimento do constitucionalismo.
Estes antecedentes são representados na repetida realidade histórica de
regimes nos quais coexistiam diversos centros de poder e também na
constatação de que é necessário distinguir entre as diversas funções
realizadas pelo Estado. Segundo Luiz Alberto Araújo e Vidal Nunes
Júnior, “a idéia subjacente a essa divisão era criar um sistema de
compensações, evitando que uma só pessoa, ou um único órgão, viesse a
concentrar em suas mãos todo o poder do Estado”197.
A fórmula da separação dos poderes tem sido, desde o século
XVIII, elemento definidor do constitucionalismo. Não obstante, e em que
196
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de La Brède et de. Do espírito das leis,
p. 173.
197
ARAÚJO, Luiz Alberto; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito
constitucional, p. 210.
Fundamentos do Direito Constitucional 125

pese sua relativa simplicidade no momento de sua definição, sua aplicação


prática tem dado lugar a manifestações muito complexas, atualmente com
muitos matizes e variações. Desta forma, pode-se destacar o seguinte:
a) dado o aumento da complexidade organizativa dos Estados
contemporâneos, deve-se compreender o conceito de
“poder” do Estado como o de “conjunto ou agrupamento de
órgãos”. Assim, o Poder Legislativo compreende ou pode
compreender várias Câmaras e órgãos através dos quais
atua, como as mesas diretoras, as comissões etc. O Poder
Executivo integra uma pluralidade de órgãos, como a
Presidência da República, os ministérios, as autarquias etc.;
b) por outro lado, o ideal de manter separados os diversos
poderes do Estado tem sido levado a efeito, em muitos
casos, através de esquemas complementares da tripartição
clássica de Montesquieu. Surgiram poderes não previstos na
classificação original, como a Corte Constitucional, o
Ministério Público, a Justiça Eleitoral ou mesmo o Corpo
Eleitoral. Além disso, com a implantação dos Estados
federais, surgiram centros de poder de âmbito restrito,
como as assembléias legislativas, executivos e judiciários
estaduais, que agregam uma limitação adicional aos poderes
“centrais” do Estado;
c) desde a concepção clássica da separação dos poderes, ficou
evidente que não seria possível uma separação radical, no
sentido de que cada poder, no exercício de sua função, fosse
completamente independente dos outros poderes. Em última
análise, isto significaria que cada poder seria absoluto em
sua área; um poder não podendo “frear” o outro. Por isto, os
diversos sistemas constitucionais estabelecem fórmulas de
controle e colaboração entre os diversos poderes, de
maneira que o grau de separação entre eles varia de modo
muito notável. Já na primeira oportunidade de aplicação da
doutrina, durante a redação da Constituição norte-americana
de 1787, James Madison, em O Federalista, defendeu a
necessidade de estabelecer, não um sistema de separação
pura dos poderes, mas sim, a criação de freios e contrapesos
que tornaria os poderes mutuamente dependentes198.
A evolução do constitucionalismo deu lugar, pois, a uma
alteração dos pressupostos originais do princípio da separação dos
poderes, como se poderá perceber quando for tratado, mais adiante, dos
198
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 utiliza, em seu art. 2º, o
termo “harmônicos entre si” para designar esta dependência mútua.
126 Paulo Márcio Cruz

sistemas presidencialista e parlamentarista de governo como modelos


diferentes de doutrina e prática.
Mesmo assim, a doutrina da separação dos poderes continua
sendo relevante ao menos por dois motivos:
1 – Em primeiro lugar, ao garantir a diferenciação entre o Poder
Legislativo e o Poder Executivo, mantém também a peculiaridade do
processo legislativo, baseado na discussão e publicidade que permite a
participação das minorias e a atividade de controle do governo por estas
mesmas minorias. O Poder Legislativo se mantém como foco de controle
e crítica, assim como de discussão pública, entre as diversas alternativas
políticas;
2 – Além disto, o princípio da separação dos poderes supõe,
sobretudo, a manutenção da garantia da independência do Poder
Judiciário, expresso pela independência de cada juiz em relação aos
outros poderes do Estado.
Estas características estão mantidas em praticamente todos os
sistemas constitucionais contemporâneos, o que não obsta a que as
técnicas concretas de desenho de cada um dos poderes, assim como das
funções que desempenham e as relações entre eles, variem de modo
muito sensível.
A seguir, será feita uma análise dos poderes em separado, na
divisão clássica em três organismos, mesmo com a já citada adaptação,
quando o sistema de governo for o parlamentarista.
Ainda é preciso esclarecer que a divisão clássica do poder do
Estado em Executivo, Legislativo e Judiciário talvez não atenda mais à
complexidade do mundo contemporâneo. A doutrina que permanece ativa é
a da separação dos poderes e a da tripartição destes mesmos poderes. Esta
última já encontra, atualmente, muita contestação. Muitos doutrinadores
entendem que a tripartição tradicional do poder do Estado já não atende às
necessidades da Sociedade e do Estado. Alguns dos itens da agenda do
terceiro milênio, como os meios de comunicação, a manipulação genética e
a globalização empurram a doutrina no sentido de começar a propor uma
nova divisão do poder do Estado, com quatro, cinco ou mais poderes.
Apesar disto, a análise feita a seguir será a do figurino
tradicional tripartido.

6.2 O PODER LEGISLATIVO – O PARLAMENTO


A presença de um Parlamento no qual participem todos os
cidadãos – segundo o modelo das cidades-estado gregas – ou nos quais se
encontrem representados todos ou pelo menos os mais importantes
Fundamentos do Direito Constitucional 127

setores da Sociedade política, é uma constante ao longo de toda a história


política. Molina e Delgado acrescem que o Parlamento, “com
antecedentes na Idade Média, mesmo eclipsado pela Monarquia
Absoluta, foi reinstaurado em sua plenitude pelas revoluções liberais
burguesas, em forma colegiada e impessoal, representando a pluralidade
de vontades políticas da nação”199.
A amplitude deste Parlamento tem variado consideravelmente,
assim como a sua forma de seleção – a eleição dos parlamentares – e suas
funções. Prescindindo de exemplos anteriores, de configurações muito
diversas e que citam como antecedentes a assembléia ateniense, o senado
romano, os concílios da Igreja ou os conselhos reais, os atuais
parlamentos são resultado da evolução das assembléias estamentais
medievais, em que diversos elementos da comunidade política – como,
por exemplo, a nobreza, as cidades, a Igreja e os cavaleiros – se
constituíam como representantes, paralelamente à autoridade do Rei.
Juan Gonzales, em sua obra Derecho Constitucional, ensina
que, na Espanha, como ponto de origem do parlamentarismo medieval e
da participação das assembléias na adoção de decisões relevantes para o
Reino, as Cortes de León de 1188, citando a declaração do Rei no sentido
de que “também prometi que não farei guerra, paz ou pacto, a não ser
com o conselho dos bispos, nobres e homens bons, com cujo conselho
devo reinar”200.
Comumente se aceita, por seu peso histórico, que foi o
Parlamento britânico o modelo de evolução das assembléias medievais
até os parlamentos modernos. Estes se configuram hoje, entre outras
características, por duas notas: sua pretensão de representar toda a
comunidade, e não só alguns setores, e sua seleção através do princípio
democrático, isto é, mediante a expressão livre da vontade dos membros
da comunidade política.
A posição do Poder Legislativo – ou Parlamento – nos regimes
constitucionais contemporâneos, normalmente vem definida por dois
aspectos: por um lado, pelas características de sua organização, que
pretendem atingir, fundamentalmente, a garantia de independência do
Poder Legislativo diante dos outros poderes do Estado, principalmente do
Executivo. Por outro, pelo conjunto de funções que lhe são atribuídas. Na
realidade, os parlamentos desenvolvem funções muito além daquela
meramente legislativa.
a) A garantia da independência do Poder Legislativo
199
MOLINA, Ignácio; DELGADO, Santiago. Conceptos fundamentales de ciencia
política, p. 86.
200
GONZALES, Juan. Derecho constitucional, p. 136.
128 Paulo Márcio Cruz

Nos regimes democráticos, os Parlamentos representam a vontade


popular. Há muitos autores, na doutrina atual, que contestam esta afirmação,
mas ainda é isto que prevalece. Por isto, nos ordenamentos jurídicos
moderno-contemporâneos é adotada uma série de medidas destinadas a
assegurar que essa vontade se expresse livremente, sem pressões indevidas
ou limitações. Estas medidas se referem, por um lado, aos membros do
Parlamento, individualmente considerados. Por outro, ao Parlamento
enquanto organização. Desta forma, segundo Temer, “conferem-se a
deputados e senadores prerrogativas com o objetivo de lhes permitir
desempenho livre, de modo a assegurar a independência do Poder que
integram”201.
Quanto aos parlamentares individualmente, os ordenamentos
jurídicos costumam lhes conferir certas prerrogativas para equilibrar suas
responsabilidades e atribuições, muitas delas sujeitas a angariar muitas
antipatias e posições discordantes. Como prerrogativas, pode-se registrar
a imunidade, que significa a exclusão da possibilidade de processo penal
sem a aprovação da casa à qual pertença o parlamentar, e a
inviolabilidade, que significa a irresponsabilidade pelas opiniões
expressas no exercício de suas funções.
Como atribuições ou responsabilidades inerentes à função
parlamentar devem ser consideradas as incompatibilidades que são
estabelecidas pelo ordenamento jurídico quanto à ocupação de cargos ou
funções que possam supor a influência indevida de e em outros poderes.
Estas incompatibilidades são mais severas quanto mais se acentua a
separação dos poderes. Por isto, estas incompatibilidades estão mitigadas
no sistema parlamentarista, no qual se trata de estabelecer um sistema de
cooperação efetiva entre os poderes Executivo e Legislativo, já que o
governo provém e é responsável perante o Parlamento, com este último
sendo também responsável pelo governo e de cuja crise pode restar
dissolvido.
Desde a perspectiva dos parlamentos como organizações,
possivelmente a técnica mais efetiva para garantir sua independência seja
sua autonomia de auto-regulamentação e sua administração interna. A
autonomia de auto-regulamentação se refere à capacidade de produzir,
sem interferência de outros poderes, as normas que regem sua atuação
interna, de acordo com as quais cumprirão suas funções. Estas normas
tomam concretude normalmente pelos regimentos internos dos
parlamentos.
Junto com esta capacidade de auto-regulamentação, a
independência dos parlamentos está também garantida por sua

201
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, p. 123.
Fundamentos do Direito Constitucional 129

administração interna independente. Os parlamentos elegem seus


presidentes e suas mesas diretoras, que estão encarregados de selecionar e
dirigir o pessoal técnico e administrativo, além de ordenar e dirigir o
trabalho nas sessões parlamentares.
Normalmente, as sedes dos parlamentos são declaradas
constitucional ou legalmente invioláveis, no sentido de que nenhum outro
poder do Estado pode intervir, sem permissão do próprio Parlamento,
dentro dele. Molina e Delgado também ensinam que o Parlamento “é o
órgão político teoricamente central na democracia representativa e só
está submetido à Constituição e à interpretação a ela dada pelos
tribunais constitucionais, quando existirem”202.
Todas estas medidas perseguem a independência das atividades
parlamentares com relação aos outros poderes públicos. Como
complemento destas preocupações por independência e autonomia, os
Parlamentos tratam também de dar a maior possibilidade de participação
aos seus membros, que podem estar presentes e ser ouvidos em todas as
atividades e acordos que possam ser adotados.
b) As funções dos parlamentos: a função legislativa
Como função essencial dos Parlamentos, destaca-se – e assim se
observa nas tipologias clássicas dos poderes e funções do Estado – a
função legislativa, isto é, a elaboração de normas de caráter geral,
vinculantes para todos os cidadãos e poderes e com posição superior no
ordenamento jurídico, submetidas unicamente à Constituição.
O desenvolvimento deste poder foi resultado de uma evolução
centenária, principalmente na Europa, que conduziu, de uma época em
que os parlamentos unicamente apresentavam petições e projetos ao Rei –
que era quem ostentava o Poder Legislativo formal – à generalizada
situação atual, em que, apesar das sanções presidenciais ou reais que
ainda existem, o Poder Legislativo é atribuído especificamente ao
Parlamento, sendo que a sanção posterior é um requisito formal e de
cumprimento obrigatório. No Brasil, por exemplo, em caso de veto
presidencial – ou do Governador ou do Prefeito – o Parlamento pode
“derrubar” o veto, em votação qualificada, e ele próprio promulgar a lei.
Deve-se ter em conta, sem dúvida, que esta função legislativa,
no desenvolvimento do constitucionalismo, foi objeto de alguns
“alargamentos” para além do Parlamento. Desta forma, é fundamental
considerar o seguinte:
1 – Contemporaneamente, outros poderes do Estado –
principalmente o Executivo – podem ditar normas, mesmo que submetidas
202
MOLINA, Ignácio; DELGADO, Santiago. Conceptos fundamentales de ciencia
política, p. 86.
130 Paulo Márcio Cruz

às leis aprovadas pelos Parlamentos, no exercício do chamado poder


regulamentador. Em determinados casos, inclusive, o Poder Executivo
pode ditar normas com força de lei, por urgência e relevância – como é o
caso das medidas provisórias no Brasil – ou delegação expressa do Poder
Legislativo.
2 – A necessidade de colaboração com outros poderes do Estado
fez que outras instâncias, além do Parlamento, passassem a participar do
processo legislativo, mesmo que o papel decisivo tenha permanecido com
os parlamentos. Assim, a iniciativa legislativa tende a ficar com o Poder
Executivo, que dispõe, normalmente, de meios mais eficientes para a
elaboração de projetos de lei. Outros sujeitos, com menos intensidade,
participam da iniciativa legislativa, como o Poder Judiciário, o Ministério
Público e a própria Sociedade, através de projetos de lei de iniciativa
popular, previstos na grande maioria das constituições contemporâneas.
c) Função orçamentária
Em que pese a identificação do Parlamento com o Poder
Legislativo, é certo que este primeiro leva a cabo outras funções de
considerável relevância, além da elaboração de leis. Um ponto
fundamental no desenvolvimento e afirmação dos Parlamentos foi a
aquisição do poder de prever a receita e autorizar as despesas do Estado,
isto é, a chamada função orçamentária.
Na realidade, a elaboração do orçamento como previsão de
receitas e autorização de despesas corresponde, principalmente, ao Poder
Executivo, que tem também as melhores condições para fazer a proposta
inicial para discussão no Parlamento.
No Brasil, o Poder Executivo, obedecendo à Lei de Diretrizes
Orçamentárias, deve enviar ao Parlamento, sempre num exercício para o
outro, o projeto de lei orçamentaria anual, cujo montante não pode ser
alterado pelo Parlamento, sendo admitido remanejamento de itens de
despesa. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, nos
arts. 165 a 169 há uma ampla previsão sobre os orçamentos 203.
d) A função de controle
Tem muita relevância, principalmente nos países desenvolvidos,
a função de controle desenvolvida pelo Parlamento. O termo controle
pode ser utilizado para definir tarefas de fiscalização, informação e
debate, assim como de exigência de responsabilidade política em relação
ao Poder Executivo, principalmente em sistemas parlamentaristas e em
alguns presidencialismos parlamentarizados204. Supõe, portanto, uma
203
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 80.
204
GOULART, Clóvis de Souto. Formas e sistema de governo, p. 146.
Fundamentos do Direito Constitucional 131

exceção do princípio de separação de poderes, já que o controle


parlamentar enseja uma atuação do Parlamento sobre o Executivo.
Isto representa um traço comum nos ordenamentos constitucionais
contemporâneos, com variações quanto à intensidade deste controle. Nos
sistemas presidencialistas, como será visto mais adiante, o controle do
Parlamento sobre o Poder Executivo se concentra sobretudo em aspectos
concretos e determinados de sua ação, com a criação, por exemplo, de
comissões parlamentares de inquérito. Nos sistemas parlamentaristas, o
controle feito pelo Poder Legislativo vai muito mais além, sendo uma
possibilidade de supervisão e debate de toda a atividade governamental e,
eventualmente, da capacidade de exigir e causar a remoção do governo ou
de algum ou alguns de seus membros. Em muitos países presidencialistas,
como o Brasil205, o Parlamento conta com um Tribunal de Contas, que
funciona como órgão auxiliar para a fiscalização externa do Poder
Executivo.
e) O Parlamento como foro de debate político
A evolução dos procedimentos legislativos e a extensão do
princípio democrático, com a correspondente ampliação da importância
dos partidos políticos, reduziram a transcendência de muitas funções
parlamentares. É muito comum se observar que o partido, ou coligação de
partidos, que compõe o governo, possui também maioria parlamentar. Por
isto, o processo legislativo fica à mercê do governo de um partido ou de
uma coligação de partidos, que elabora os projetos de lei e que, com a
maioria do mesmo partido ou coligação, os aprova no Parlamento.
Mas isto não obsta a que o Parlamento seja um elemento essencial
no sistema constitucional. Trata-se de um foro público, no qual as opiniões
dos atores políticos – o governo, a maioria ou a oposição – são expressas
publicamente e no qual são examinados, considerando a opinião pública,
os projetos e reações das forças políticas. A publicidade é, atualmente, –
e, ainda, aumentada pela extensão dos meios de comunicação – a
característica decisiva do Parlamento para enfrentar os opacos poderes
Executivo e Judiciário.
O Parlamento serve para que as alternativas políticas sejam
expostas e discutidas publicamente, tanto as gerais como as específicas. O
Parlamento, em que pese as vantagens técnicas e organizativas do Poder
Executivo para a direção e até para a produção de normas jurídicas, como
foi visto anteriormente, é um elemento imprescindível para a
confrontação de posições num regime democrático. Bonavides consegue
resumir bem a importância fundamental do Parlamento, comentando
205
Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Tribunal de Contas está
concebido e tem suas funções e organização previstas nos arts. 71 a 73.
132 Paulo Márcio Cruz

sobre seu futuro, ao afirmar que “o Parlamento livre é, por conseguinte,


a instituição que não só controla os governos como confere legitimidade
aos sistemas políticos. Aí está todo seu futuro”206.

6.3 O PODER EXECUTIVO – AS FUNÇÕES DO


GOVERNO
Fosse levado às últimas conseqüências o princípio da separação
dos poderes, o Poder Executivo seria concebido como um órgão com
funções dependentes ou derivadas, principalmente aquelas de executar as
decisões de outro poder, o Legislativo. Assim foi a concepção
recepcionada por algumas constituições do século XVIII, principalmente
as constituições francesas de 1791 e 1793. Por sua própria função, o
Poder Executivo aparecia, forçosamente, subordinado ao Legislativo.
Este fato pode ser explicado, pelo menos, por dois motivos: o
primeiro, por conta de o Poder Executivo estar identificado, no
constitucionalismo europeu, com o poder do Rei, poder este que, por
causa da experiência da Monarquia Absoluta, deveria ser estreitamente
limitado ao papel de executor da vontade do Parlamento, representante da
vontade nacional.
Além disso, deve-se considerar que o constitucionalismo
revolucionário do século XVIII surgiu numa Sociedade na qual a
presença do Estado – ou melhor dizendo, do aparato estatal – era muito
reduzida. No dia-a-dia econômico e social, o Estado tinha pouca
intervenção direta, e esta situação se manteve durante grande parte do
século XIX. As grandes leis aprovadas pelo Parlamento, como o Código
Civil ou o Código Comercial, destinavam-se a regular relações entre
particulares, e os conflitos entre estes eram resolvidos pelos tribunais.
O aparelho executivo, nesta época, era de escassa presença na
vida da Sociedade e se limitava a matérias como defesa – forças armadas
–, ordem pública – polícias –, comunicações, sistema financeiro e sistema
penitenciário. Isto era próprio do liberalismo capitalista de então. Não
existia, ou existia de forma embrionária, o que mais tarde, como
conseqüência, principalmente, das Revoluções Industriais, seria a
administração sanitária, econômica, educacional, de seguridade social etc.
Tal situação evoluiu gradativamente. O aparato estatal, voltado
para as tarefas sociais e econômicas, foi ganhando cada vez mais
importância na vida da Sociedade, assumindo funções de intervenções
que passaram a depender da ação do Poder Executivo. O aumento desta
intervenção, na medida em que a Sociedade passou a exigir a presença do
Estado, faz dele uma entidade quase que onipresente na vida dos
206
BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado, p. 179.
Fundamentos do Direito Constitucional 133

cidadãos, desempenhando tarefas que vão muito além da simples


execução de leis. Darcy Azambuja chegou a advertir que “por isso, o
maior dos erros, o erro fatal das democracias é instituir Executivos
fracos, sem autonomia e sem prestígio, no vão pressuposto de que assim
asseguram a liberdade, quando na realidade a matam, e suicidam-se”207.
Hodiernamente, as exigências da vida econômica e da
complexidade social forçam a uma contínua e diária intervenção pública,
que só pode ser levada a efeito pelo Poder Executivo, cujas funções vão
muito além da mera “execução” das leis. Dallari comenta este fato
asseverando que
o Legislativo não tem condições para fixar regras gerais sem
ter conhecimento do que já foi ou está sendo feito pelo
Executivo. O Executivo, por seu lado, não pode ficar à mercê
de um lento processo de elaboração legislativa, nem sempre
adequadamente concluído, para só então responder às
exigências sociais, muitas vezes graves e urgentes 208.
O desaparecimento da prevenção ou medo ante o Governo,
como expressão do poder do Rei, também concorreu para a gradativa
proeminência do Poder Executivo. Em alguns casos, o poder do Rei
simplesmente desapareceu, com a comunidade política estruturando-se
segundo a forma republicana. Mesmo naqueles países nos quais a forma
monárquica foi mantida, o Poder Executivo deixou de identificar-se com
a figura do Rei.
Nas constituições dos séculos XVIII e XIX, atribuiu-se,
efetivamente, o Poder Executivo ao Rei. A Constituição Espanhola de
1876, em seu art. 50, alínea c, previa que “a capacidade de promover a
execução das leis reside no Rei”. No mesmo sentido, a Constituição
revolucionária francesa de 1791, no seu capítulo VI, art. 1º, dizia que “o
Poder Executivo supremo reside exclusivamente nas mãos do Rei”. Os
ministros eram meros colaboradores do Rei. O governo era “o governo
do Rei”. Mas a evolução democrática das monarquias européias eliminou
esta prática, mesmo que formalmente ainda apareça em alguns textos
constitucionais mais tradicionais209.
Hoje, o Poder Executivo já não pode ser identificado com a
figura do Rei. Nos regimes constitucionais contemporâneos, o Poder
Executivo corresponde a um órgão unipessoal – o Presidente –, ou
pluripessoal – o Gabinete – diferente da pessoa do Rei ou do Presidente
Chefe de Estado, nos sistemas parlamentaristas republicanos. Nas
207
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado, p. 200.
208
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 186.
209
Sobre isto ver BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado, p. 162.
134 Paulo Márcio Cruz

repúblicas isto é obviamente assim. Mas mesmo nas monarquias, o


governo, como órgão com um Presidente ou Primeiro Ministro que o
encabeça, está configurado como órgão independente do Rei. Seus
membros não dependem da designação ou confiança real, mas sim, da
confiança do Parlamento e têm legitimidade derivada – direta ou
indiretamente – da vontade popular.
Por isto, na verdade, a diferença entre República e Monarquia,
atualmente, converteu-se numa questão nominal. Nas repúblicas e
monarquias constitucionais, tanto o Poder Executivo como o Poder
Legislativo têm legitimidade democrática. A figura do Rei se justifica não
por sua atribuição de chefe do Poder Executivo – que efetivamente não é –
mas sim, pela vinculação a sentimentos pautados pela tradição, por
questões nacionais ou por conveniências de determinados momentos
históricos.
a) A função executiva do Governo
A evolução histórica e os diversos modelos constitucionais
conduziram a formas muito diferentes de configuração do Poder
Executivo. Sob este aspecto, é decisiva a adoção de um modelo
presidencial ou parlamentar, como será visto mais adiante. Tem sido
comum a ampliação – na Constituição, nas leis e na prática – das funções
do Poder Executivo. Como assinala Joaquim Lleixà, “a configuração do
governo como poder ‘executivo’ é uma das linhas que segue o longo
processo histórico – na Europa, principalmente – que desembocou na
consolidação dos Estados nacionais das épocas moderna e
contemporânea”210.
A função original do Poder Executivo – ou Governo – continua
sendo relevante, ou seja, o cumprimento dos ditames legais, a execução
orçamentária, a arrecadação de tributos, a nomeação de funcionários, a
manutenção da ordem pública etc. Elemento essencial para o
cumprimento desta função é a Administração Pública, como corpo
permanente e técnico de servidores públicos, especializados e
selecionados, na grande maioria dos países desenvolvidos e até em alguns
em desenvolvimento, de acordo com critérios de mérito e capacidade.
Para aproveitar a oportunidade, deve-se destacar que dentro do
Poder Executivo, existe uma escalão político diretivo, selecionado por
eleições populares e com prazo determinado de mandato eletivo,
orientado por critérios ideológicos e políticos, chamado de Governo.
Existe também um outro escalão, denominado de administrativo, técnico,
que não deve depender de critérios políticos e que permanece, como
corpo efetivo e estável, independente das mudanças de Governo.
210
LLEIXÀ, Joaquim. El gobierno, p. 397.
Fundamentos do Direito Constitucional 135

b) As funções normativas do Governo


Junto com a função executiva, destaca-se cada vez mais a
existência de outras funções de Governo, que vão mais além das
tradicionais. Desta forma, verifica-se um crescente aumento das funções
normativas do Governo, na medida em que o Parlamento mostra-se lento
para produzir regulamentos de aplicação urgente ou em situações de
mudança rápida e acentuada. Como ensina Michel Temer,
embora administrar seja a sua função típica, o Executivo tem
outras atribuições. Uma delas, relevante, é a expedição de atos
com força de lei: as medidas provisórias; outra, de natureza
política, consiste em sua participação no processo legislativo,
pela iniciativa, sanção, veto e promulgação das leis, bem como
de deflagrador do processo de emenda à Constituição211.
A função normativa do Governo é levada a cabo, normalmente,
através de regulamentos detalhados dos dispositivos de linhas gerais
emanados do Poder Legislativo. Pode-se dizer que o Poder Legislativo
cria as grandes linhas normativas, correspondendo ao Governo sua
detalhada regulação técnica.
Tal função é desempenhada dentro dos limites previstos pelas
mesmas leis aprovadas pelo Parlamento. Isto se opera através de decretos
regulamentadores ou através de delegações do Poder Legislativo para
casos excepcionais, por leis delegadas.
Mesmo quando não exista, formalmente, esta previsão de
regulamento, admite-se que o Poder Executivo tenha capacidade para
ditar normas regulamentadoras naquelas matérias imprescindíveis para
sua própria organização e funcionamento. Em muitos casos, as normas
emanadas do Poder Executivo podem impor-se diante das leis aprovadas
pelo Parlamento. Trata-se de previsões constitucionais que admitem
medidas de urgência e relevância em situações imprevistas, que não
podem ser resolvidas pelo lento procedimento legislativo comum. Não é
estranho, portanto, que em muitos ordenamentos jurídicos esteja prevista
a adoção pelo Poder Executivo de normas que podem inclusive alterar
leis aprovadas pelo Parlamento.
Naturalmente que esta possibilidade de o Poder Executivo
produzir normas com força de lei está condicionada à existência de uma
autêntica urgência e relevância e, também, de uma posterior confirmação
por parte do Parlamento, de modo que aquela urgência e relevância não se
convertam em carta branca para que o Governo se transforme em
legislador ordinário.

211
TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional, p. 149.
136 Paulo Márcio Cruz

Bem a propósito, deve-se comentar o caso brasileiro, cuja


Constituição atual – a de 1988 – prevê, em seu art. 62, o seguinte:
Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República
poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo
submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando
em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir
no prazo de cinco dias.
Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia,
desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de
trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso
Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes 212.
A prática demonstrou que a previsão descrita acima
transformou-se num instrumento de atividade muito intensa nas mãos dos
presidentes brasileiros eleitos após a promulgação da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, que passaram a legislar sem o
Congresso Nacional, editando e reeditando medidas provisórias para as
mais variadas matérias, muitas delas com relevância e urgência muito
discutíveis. Como não é o escopo do presente livro aprofundar-se neste
tema, outras leituras deverão complementar este importante assunto para
o leitor213.
c) A função de direção política
A característica, em todo caso, mais destacada, na evolução do
papel do Poder Executivo, é sua conversão em órgão de direção política, que
se destina não só ao exercício de algumas tarefas típicas mas também de
outras, que têm por finalidade dirigir a vida política estatal, inclusive a
orientação para a atuação de outros órgãos. É como ensina Celso Bastos,
quando escreve que “cabe ao Executivo governar; e governar, atualmente,
não é só administrar. É enfrentar problemas políticos e sociais. Isto leva o
Executivo a ocupar uma posição ímpar diante dos demais Poderes do
Estado”214.
A atribuição desta função, tradicionalmente, é do Poder
Executivo, mesmo que não esteja excluída a participação de outros
órgãos, como o Parlamento. Assim, é regra geral que os tratados, por
exemplo, sejam – pelo menos os de maior importância – aprovados pelo
Parlamento, mas com sua redação e negociação feitas pelo Poder
Executivo.

212
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 45.
213
Sugere-se, para este tema, consulta à obra de CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
constitucional. p. 675 e s.
214
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. p. 346.
Fundamentos do Direito Constitucional 137

Dentro desta função de direção política geral, está incluída a de


definição das políticas públicas, principalmente através das normas
regulamentadoras e das propostas orçamentárias. A tarefa legislativa, na
maioria destes casos, supõe um trabalho prévio de avaliação, que só pode
ser realizado pelo Poder Executivo ou pelas organizações administrativas
que dele dependem. A redação de complexos projetos de lei ou dos
orçamentos do Estado só é possível a partir da disponibilidade de uma
estrutura técnica e de informações prévias. Por isto, é comum, hoje em dia,
que os parlamentos deliberem e decidam sobre projetos apresentados, direta
ou indiretamente – se o for pelo líder do Governo no Parlamento – pelo
Poder Executivo.
Usualmente, este procedimento está reconhecido na própria
Constituição e nos regimentos dos parlamentos, que concedem uma
posição especial aos projetos de origem governamental, inclusive com
técnicas que tendem a “pressionar” sua aprovação. Como exemplo, pode-
se apresentar o caso da Constituição Francesa de 1958, que em seu art. 49
prevê que:
Precedendo deliberação do Conselho de Ministros, pode o
Primeiro Ministro empenhar a responsabilidade do Governo
perante a Assembléia Nacional quando da votação de um texto.
Neste caso, o texto será considerado aprovado, a não ser que
uma moção de censura, apresentada nas vinte e quatro horas
imediatas, seja votada nas condições desta Constituição215.
A capacidade de direção da política interna em relação a outros
órgãos é evidente nos sistemas de separação flexível de poderes, nos
quais o Governo pode, inclusive, dissolver o Parlamento e convocar
eleições gerais. Mas também nos sistemas de separação rígida de poderes,
o Poder Executivo tem meios de influir e dirigir a atuação de outros
poderes. Um bom exemplo são as “mensagens” presidenciais norte-
americanas, que causam grande impacto no Congresso daquele país.
Outro exemplo emblemático é a capacidade de indicar os ministros do
Supremo Tribunal Federal que tem o Presidente da República no Brasil,
cujos nomes são submetidos à aprovação, pelo Senado Federal,
conforme o art. 101, da Constituição de 1988, em seu parágrafo
único216.
d) Os poderes excepcionais
Finalmente, não se pode esquecer o papel tradicional do Poder
Executivo na adoção de medidas de exceção. Não se trata de situações de
mera urgência ou relevância, como as que podem justificar a atuação
215
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 451.
216
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 55.
138 Paulo Márcio Cruz

normativa já exposta, mas sim, daquelas que representem um perigo de


tal gravidade para a comunidade política que justificam a adoção de
medidas restritivas de direitos e liberdades garantidas pela Constituição.
Também nestes casos é usual a atribuição de competências ao Poder
Executivo, apesar de que, ante a gravidade da situação, normalmente seja
prevista a deliberação posterior do Parlamento.
No Brasil, a Constituição da República de 1988 prevê dois
institutos que podem ser acionados pelo Poder Executivo Federal: o
Estado de Sítio e o Estado de Defesa. Eles estão disciplinados nos arts.
136 a 139 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 217.

6.4 O PODER JUDICIÁRIO E A FUNÇÃO


JURISDICIONAL
Em que pese as evoluções sofridas pelo princípio da separação
dos poderes, ao longo da história constitucional, este princípio continua
tendo hoje uma projeção relevante, do ponto de vista da garantia da
liberdade dos cidadãos, no que se refere à existência de um Poder
Judiciário independente e diferenciado do resto dos poderes do Estado.
Trata-se de uma característica comum a todos os países com um
regime constitucional democrático, qualquer que seja – maior ou menor –
a rigidez da separação de poderes. É como escreveu Darcy Azambuja, ao
afirmar que,
após a Revolução Francesa, em todos os Estados modernos foi
assegurada a independência do Judiciário como um dos três
poderes. Variam de Constituição para Constituição as garantias
asseguradas aos magistrados para que possam exercer suas
funções livremente218.
Evidentemente, a configuração do Poder Judiciário varia, em
suas peculiaridades, de país para país, sendo possível enumerar alguns
elementos comuns que aparecem como imprescindíveis para que se possa
falar de um autêntico constitucionalismo. São eles:
a) do ponto de vista orgânico, o Poder Judiciário, como
conjunto de órgãos, se configura como um poder
fundamental do Estado, no sentido – usualmente consagrado
constitucionalmente – de situar-se no mesmo nível e
hierarquia dos demais órgãos constitucionais e claramente
diferenciado deles. Isto está expresso na sua nota essencial
reconhecida no Direito Constitucional Comparado: a
independência, no sentido de não estar sujeito a
217
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 66-67.
218
AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado, p. 201.
Fundamentos do Direito Constitucional 139

intromissões de nenhum tipo por parte de outros órgãos,


nem como organização e tampouco desde a perspectiva
individual do juiz. Como conseqüência, a independência
pressupõe também a proteção frente a pressões informais;
b) do ponto de vista funcional, deve ter o Poder Judiciário a
competência jurisdicional. A definição do que seja esta
competência não pode deixar de ser discutida, cabendo
assinalar alguns elementos definidores:
1 – É uma atividade de declaração do Direito em casos
concretos, o que a diferencia da atividade normativa, usualmente exercida
através de disposições gerais.
2 – É, portanto, uma aplicação do Direito preexistente, regida,
assim, por considerações estritamente jurídicas: não é – ou não deve ser –
uma atividade regida por considerações de cunho político.
3 – E, sobretudo, é uma atividade irrevogável por outros poderes
do Estado. Aquilo que for decidido jurisdicionalmente tem caráter de coisa
julgada e só poderá ser revisada jurisdicionalmente. Isto diferencia a
atividade jurisdicional da aplicação administrativa do Direito em casos
concretos. Tal aplicação, em um Estado constitucional e democrático de
Direito, pode ser revisada – e eventualmente anulada – por um poder
externo ao Executivo, ou seja, pelos juízes. É importante anotar que as
decisões jurisdicionais só podem ser revisadas dentro do mesmo Poder
Judiciário. Só um Tribunal pode revisar e revogar o decidido por outro
Tribunal.
4 – Uma característica adicional reside em que, normalmente, a
função jurisdicional se exerce como resolução de conflitos entre partes,
sendo o juiz um terceiro supraordinário, que decide segundo o Direito.
Nisto está implícito o fato de que o juiz atua segundo pretensões que são
formuladas, isto é, respondendo a petições e não de ofício. Isto funciona
como um freio a um poder que deve ser independente, mas não ilimitado.
c) um elemento essencial, pois, de toda ordem constitucional é
a presença de juízes independentes, aos quais se encomenda
a função jurisdicional. Sua definição como poder autônomo
do Estado faz sentido na medida em que, historicamente, a
Monarquia absoluta supunha que os juízes eram parte do
poder do Rei, que se manifestava como faculdade real de
suprema instância jurisdicional ou na confusão de poderes
administrativos e jurisdicionais nos mesmos agentes do Rei.
Esta confusão restou radicalmente negada com a
consolidação do princípio da separação dos poderes do
Estado.
140 Paulo Márcio Cruz

6.5 A INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO


A independência aparece como elemento essencial do Poder
Judiciário, necessariamente vinculada ao cumprimento de sua função.
Sendo esta a de aplicar a lei a casos concretos, só a independência do juiz
frente a outros poderes garante o cumprimento do disposto nesta mesma
lei e não a vontade destes poderes.
A segurança jurídica – certeza do Direito e da força vinculante
de suas previsões – e a independência do Poder Judiciário aparecem,
assim, inevitavelmente unidas.
Isto é particularmente relevante caso se tenha em conta que, em
muitas ocasiões, o objeto da disputa ou o conflito a ser resolvido pelo juiz
foi ocasionado pelo enfrentamento do cidadão com o poder do Estado,
como a ação do Governo através da Administração Pública ou com a
acusação pública levada a efeito pelo Ministério Público nos casos
penais.
Só a absoluta independência do juiz em relação aos poderes
Executivo e Legislativo garante que será a lei e não a vontade do
Executivo ou de membros do Parlamento a que decidirá o litígio. Desta
independência dependem interesses fundamentais do cidadão,
especialmente – ainda que não só – no processo penal, no qual poderá
estar em jogo a liberdade do indivíduo.
Considerações similares são possíveis com relação à influência
de outros poderes, principalmente dos chamados poderes sociais ou
grupos de pressão, cujo conceito é trazido por António Fernandes: “são
associações que exercem uma pressão sobre os poderes públicos, para
que as decisões destes sejam favoráveis à realização dos seus interesses e
aspirações. Exercem pressão sobre os governantes para que modifiquem
a lei em benefício dos seus interesses, sem pretenderem conquistar o
Poder Político”219.
O referido autor dedica, em sua obra Introdução à Ciência
Política, um extenso capítulo a este tema cada vez mais importante.
É fundamental realçar que a experiência constitucional colocou
a independência do Poder Judiciário como o fator de maior importância
diante da contemporânea proeminência do Poder Executivo. É a garantia
mais merecedora de atenção, por ser uma das partes deste Poder
Executivo – a Administração Pública – o agente ordinário do poder do
Estado.
A independência se define, assim, como um dado objetivo. Há
ausência de subordinação a outra autoridade qualquer. Esta ausência de

219
FERNANDES, António José. Introdução à ciência política: teorias, métodos e
temáticas. p 179.
Fundamentos do Direito Constitucional 141

subordinação não se traduz só na proibição da emanação de ordens aos


juízes para a resolução dos conflitos perante os tribunais mas também na
introdução de garantias dirigidas a evitar a possibilidade de influências
indevidas em seu trabalho, como a vitaliciedade, inamovibilidade e a
irredutibilidade de subsídios.
a) As garantias dos juízes
Conforme Reis Friede, “as chamadas garantias constitucionais
da magistratura correspondem, em última análise, a um elenco de
mecanismos que objetivam assegurar a necessária independência (e, por
conseguinte, a efetiva imparcialidade) dos magistrados”220. Em geral,
estas garantias são:
1 – a vitaliciedade o juiz adquire-a, no Brasil, após dois anos
de exercício, não podendo neste período perder o cargo senão por
proposta do Tribunal a que estiver vinculado, adotada pelo voto de dois
terços de seus membros efetivos e, nos demais casos, de sentença
judicial transitada em julgado, conforme o art. 95, inc. I, da
Constituição brasileira de 1988 221;
2 – a inamovibilidade é outra das garantias fundamentais para
assegurar a independência do juiz em seu cargo. Uma vez designado, o
juiz, no Brasil, será independente, não podendo ser removido ou suspenso
de suas funções por outros poderes, públicos ou privados, salvo por
motivo de interesse público, conforme o inc. II do art. 95 da Constituição
brasileira de 1988222. Este fato, comum em grande parte dos Estados
democráticos de Direito do Ocidente, tem descartado a via eletiva para a
escolha de juízes, pois sempre será suspeito de atuar para agradar a
opinião pública o juiz que dependa da boa vontade dos eleitores para sua
continuidade no posto;
3 – a irredutibilidade de subsídios – os vencimentos dos
magistrados, no Brasil, não podem ser diminuídos nem pelo Executivo,
nem pelo Legislativo, nem pelo próprio Judiciário. Ficam sujeitos,
todavia, aos impostos gerais, inclusive ao de renda e aos extraordinários
previstos no inc. III do art. 95 da Constituição brasileira de 1988 223.
Deve-se ressaltar, a respeito da eleição popular para os juízes,
que, mesmo nos sistemas nos quais foi adotado este procedimento, como
para os juízes estaduais nos Estados Unidos, foram editadas garantias
para evitar que a luta pelos votos conduza a uma subordinação do juiz a
correntes populares de opinião.

220
FRIEDE, Reis. Curso de direito constitucional e teoria geral do Estado, p. 240.
221
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 54.
222
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 54.
223
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 54.
142 Paulo Márcio Cruz

b) Os procedimentos para seleção de juízes


O sistema usual de designação de juízes é o da seleção em
virtude da capacidade profissional como jurista, através de um concurso
de provas ou de provas e títulos.
Os métodos de seleção, porém, podem ser muito variados. Em
alguns casos, a seleção se realiza pelo Poder Executivo, com a chancela
do Poder Legislativo, como nos Estados Unidos. Em outros, os juízes são
escolhidos diretamente pelo Poder Legislativo, como é o caso de alguns
países da América Central.
O método mais difundido na Europa, e também adotado no
Brasil, é o que consiste numa seleção profissional através de um concurso
de provas ou provas e títulos, para avaliação de méritos e capacidades,
patrocinado pelo próprio Poder Judiciário.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em
seu art. 93, inc. I, disciplina muito claramente esta matéria, prevendo
como princípio para seleção de juízes o seguinte:
Ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz
substituto, através de concurso público de provas e títulos, com
a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as
suas fases, obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de
classificação224.
Em alguns ordenamentos, como o dos Estados Unidos, as
nomeações dos juízes são definitivas e para um único posto concreto,
com o designado devendo permanecer nele até se aposentar ou se
exonerar. Noutros, como no Brasil, na Itália, na Espanha e na França,
como exemplos, existe uma carreira, com os juízes tendo a possibilidade
de ascensão funcional, podendo chegar aos tribunais superiores.
O grande problema enfrentado neste segundo modelo é conciliar
um regime funcional, com acessos, traslados e um sistema disciplinar,
com a necessária e fundamental independência. No Brasil, com a
autonomia do Poder Judiciário, algumas questões e disputas intestinas se
encarregam de criar alguns problemas nas carreiras das magistraturas.
Problemas de dependência ao Poder Executivo, como os
encontrados em países como Itália, França e Espanha, foram superados,
no Brasil, com a crescente independência financeira e administrativa do
Poder Judiciário, sedimentada com a Constituição da República de 1988.
A questão da independência jurisdicional é óbvia num Estado que
pretende ser democrático de Direito.

6.6 A APLICAÇÃO DO DIREITO PELOS JUÍZES


224
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, p. 52.
Fundamentos do Direito Constitucional 143

Uma vez constituída uma organização judiciária como poder do


Estado, certamente é possível atribuir-lhe, constitucionalmente, uma
significativa variedade de funções. Porém, aquela que, desde uma
perspectiva de defesa de direitos e liberdades, justifica sua própria
existência, e a importância fundamental dos juízes é o exercício da função
jurisdicional, isto é, a aplicação do Direito a casos concretos e a respeito de
indivíduos determinados, com caráter irrevogável e não revisável por outro
poder do Estado.
A função jurisdicional pode ser definida, pois, como a aplicação
– ou declaração – do Direito preexistente. Em outras palavras, é a
aplicação do Direito a um caso ou conflito concreto de uma regra geral
previamente existente. Por conta disto, a peculiar posição do juiz, não
sujeito à subordinação ou a qualquer tipo de hierarquia, obedece ao
objetivo de que não aplique outra regra ou vontade que não a da lei.
Os cidadãos obedecem à lei através do juiz e não obedecem a
outra vontade, nem à vontade própria do juiz. Não teria sentido fazer todo
este esforço para evitar a intromissão do Poder Executivo ou do Poder
Legislativo caso se permitisse que o juiz exercesse sua vontade individual.
Como explicitou Montesquieu, “os juízes são simplesmente a boca que
pronuncia as palavras da lei”225, apesar de ser uma posição já superada
pelo alargamento da faixa de atuação dos magistrados. Aliás, muito
superada.
Tal ponto de vista – que tem sido aceito como ponto de partida
geral e dá respaldo democrático ao juiz, quando este se converte em
aplicador da lei como vontade da Sociedade – deve pautar-se pelas
condições particulares de cada ordenamento jurídico e, principalmente,
pela particularidade de cada caso analisado pelo juiz.
Para começar, o juiz aplica o Direito. Mas o Direito se expressa
em formas muito diferentes. Na tradição européia e também na brasileira,
ele se expressa através de normas emanadas do Poder Legislativo ou do
Poder Executivo, como autor de regulamentos ou normas de urgência e
relevância – como a medida provisória – atuando, inclusive, em áreas
vitais do ordenamento jurídico, como o Direito Civil e Direito Penal, que
se encontram codificados de forma ordenada e sistemática.
O papel do juiz, nestes ordenamentos, se concentra na aplicação
destes códigos.
Em outros ordenamentos, âmbitos muito amplos da vida
jurídica não foram – e não são – submetidos a estas técnicas de
codificação ou mesmo de normatização pura e simples. Como resultado
deste fato, nesses ordenamentos, os tribunais passaram a decidir com
225
MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de La Brède et de. Do espírito das leis,
p. 147.
144 Paulo Márcio Cruz

critérios próprios, elaborando um conjunto de regras de origem


jurisprudencial, incorporadas em casos anteriores que serviram de guia
para casos similares posteriores.
Este foi o sistema seguido nos países da common law, nos quais
o Direito a ser aplicado pelos juízes é, ele mesmo, um Direito de criação
judicial e, portanto, modificável pelos mesmos juízes. Isto não quer dizer
que qualquer juiz possa, a qualquer momento e caso, criar um precedente
novo, que rompa com aqueles já estabelecidos e seguidos, já que esta
tarefa cabe, usualmente, aos mais altos tribunais, que guiam e controlam
– através de decisões e sentenças que confirmam ou revogam as dos
tribunais inferiores – a ação dos demais juízes226.
Isto não obsta, entretanto, que os juízes desenvolvam um
trabalho de criação – e não de mera aplicação – do Direito.
Em países como o Brasil – a exemplo dos europeus continentais
–, no qual o Direito aparece integrado fundamentalmente por códigos e
normas legisladas ou regulamentares formais, também é descabido
afirmar que o juiz seja a mera “boca da lei”, pois a norma jurídica escrita
necessita de interpretação e ajustes a casos distintos. Desde esta
perspectiva, o Juiz, ao selecionar um dos muitos sentidos possíveis da
norma, seguindo algumas regras de interpretação da mesma e levando em
conta o princípio da eqüidade, atua na criação do Direito 227, mesmo
considerando que esta tarefa de criação tem um limite, que é a própria lei.
O juiz poderá interpretar a lei, mas não ignorá-la ou opor-se a ela.
Esta tarefa explicativa, interpretativa e, em algumas ocasiões,
criadora, não está submetida, como se disse, ao controle de outro poder do
Estado. Mas isto não significa que seja incontrolável. O Poder Judiciário
está configurado como um complexo orgânico, em níveis ou instâncias, o
que faz possível que, dentro do próprio Poder Judiciário, através do sistema
de recursos, os tribunais superiores revisem as decisões dos tribunais
inferiores, que pode ser chamado de “controle intrajudicial”. Este controle
é possível por conta de que as decisões judiciais não devem ser
configuradas como arbitrárias ou inexplicáveis, mas sim, como decisões
razoáveis.
Ao expor os motivos de sua decisão, o juiz não só assume uma
responsabilidade moral ante as partes e à opinião pública em geral, mas
também torna possível aos afetados o recurso a instâncias judiciais
superiores, para que estas resolvam sobre a adequação ou não ao Direito
das decisões dos órgãos inferiores. Os tribunais não podem, portanto, dar
ordens ou instruções expressas aos tribunais inferiores sobre como devem

226
DAVI, René. O direito inglês. p. 64.
227
Sobre isto, ver MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da política jurídica, 136 p.
Fundamentos do Direito Constitucional 145

resolver os casos. Podem, isto sim, assinalar as linhas gerais que devem
ser observadas para a interpretação da lei.
Deve-se ainda ressaltar que a eqüidade, que é, segundo Osvaldo
Ferreira de Melo, a “adequação da norma geral e abstrata à realidade
fática, constituindo-se em fundamento de equilíbrio, proporção, correção
e moderação na construção da norma concreta”228, deve estar presente
em toda atividade jurisdicional, permitindo ao julgador deixar de estar
reduzido a um simples intérprete ou aplicador da norma vigente, mesmo
com a reduzida margem de atuação permitida pelo direito direcionado à
segurança jurídica.
Desta forma, a existência de um poder independente que
aplique o Direito ou revise a aplicação levada a efeito por outro poder –
normalmente o Executivo – representa, assim, uma garantia indispensável
para a liberdade e para os interesses legítimos dos cidadãos. E até do
próprio Estado, já que este é conseqüência da Sociedade. Isto formaria,
por assim dizer, um sistema que, sendo virtuoso, aperfeiçoa as
instituições estatais continuamente, até, provavelmente, sua superação por
outro modelo de organização político-jurídica.

6.7 O CONTROLE EXTERNO DO PODER JUDICIÁRIO


Para a preservação da independência do Poder Judiciário é
fundamental que nenhum outro órgão possa influir na tarefa jurisdicional
que não aqueles pertencentes ao próprio Poder Judiciário. Isto é uma
posição pacífica na doutrina.
Entretanto, com a autonomia administrativa do Poder
Judiciário, com orçamentos próprios, tornou-se mais do que evidente a
necessidade de se estabelecer o que se convencionou chamar de
“controle externo do Poder Judiciário” no que tange às suas atividades
administrativas.
Em países como o Brasil, por exemplo, temos um corpo de
juízes de muito boa qualidade técnica. Pode-se dizer que a magistratura
brasileira, tanto a federal como as estaduais, possui um nível de
desenvolvimento comparável ao de países desenvolvidos. É como anota
Dallari, ao escrever que, “como acontece em muitos países, inclusive em
alguns exportadores de teorias e modelos jurídicos, o Brasil tem muitos
bons juízes e não tem um bom Poder Judiciário”229.
O que normalmente acontece são os abusos cometidos na área
administrativa do Poder Judiciário.

228
MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionário de política jurídica, p. 37.
229
DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes, p. 77.
146 Paulo Márcio Cruz

Os casos de nepotismo são recorrentes. Obras superfaturadas,


como no escândalo do prédio do Tribunal Regional do Trabalho do
Estado de São Paulo, protagonizado pelo juiz Nicolau dos Santos Neto,
estão à disposição para sustentar estas afirmações.
Mesmo que o conjunto da magistratura brasileira seja
tecnicamente muito bom, ainda assim é extremamente necessário o
“controle externo do Poder Judiciário” para coibir excessos de natureza
administrativa.
Caso não bastem os argumentos expostos acima, deve-se
acrescentar que o fato de o Poder Judiciário não ter seus membros eleitos
democraticamente não permite uma efetiva fiscalização e controle por
parte da Sociedade. Mesmo com todas as imperfeições, vícios e
deturpações encontradas, não raro, nos poderes legislativo e executivo, as
eleições expõem seus membros de forma inexorável à opinião pública, o
que não acontece com o Poder Judiciário. Somente o controle externo
poderá preencher, convenientemente, esta lacuna.

6.8 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS


PODERES – OS SISTEMAS PRESIDENCIALISTA E
PARLAMENTARISTA
A aplicação estrita do princípio da separação dos poderes,
aplicado ao Executivo e ao Legislativo, no sentido de que ambos sejam
radicalmente independentes em suas composições e funções, tornou-se
uma exceção na história constitucional. Mesmo que, em algumas
ocasiões, tenha havido um sincero esforço neste sentido, como aconteceu
com a Constituição revolucionária francesa de 1791 e com algumas
constituições monárquicas européias do século XIX, foram tentativas que
fracassaram rapidamente, ou evoluíram para modelos diferentes.
A evolução política foi suprimindo a coexistência de duas
legitimidades diferentes nos sistemas políticos – a legitimidade
tradicional do Rei e a legitimidade popular do Parlamento –, substituindo-
as pela legitimação democrática como princípio básico de toda
organização do Estado. Isto facilitou o aparecimento de uma maior
comunicação entre o Executivo e o Legislativo, democráticos, diante de
uma proposta de separação máxima dos poderes.
Deve-se fazer a observação de que o Poder Judiciário está fora
desta discussão, pois a necessidade democrática de sua independência
máxima, configura-o como radicalmente separado dos outros poderes do
Estado.
Ainda que, na prática, não se possa falar de separação radical
entre os poderes Legislativo e Executivo, mesmo assim é possível
Fundamentos do Direito Constitucional 147

diferenciar níveis distintos de separação, de forma que,


contemporaneamente, as formas de organização dos poderes do Estado
agrupam-se em dois modelos: o de separação rígida dos poderes,
representado pelo Presidencialismo, e o de colaboração – ou integração –
dos poderes, representado pelo Parlamentarismo.
Outros modelos, como o da democracia direta, sistema de
assembléia ou o diretorial, ou desapareceram ou são, no essencial,
assimiláveis pelo Parlamentarismo ou pelo Presidencialismo.
a) O Presidencialismo
A Constituição que inicia o constitucionalismo moderno é o
texto fundamental produzido em 1787, pela Convenção da Filadélfia, que
continua sendo a lei maior dos Estados Unidos. Seus autores seguiram o
modelo de Montesquieu, com algumas variações. Em primeiro lugar, por
tratar-se de uma forma republicana, foi excluído, por óbvio, um executivo
monárquico. Em segundo lugar, a separação rígida de poderes, defendida
por Montesquieu, viu-se mitigada pela criação de mecanismos de
coordenação entre o Executivo e o Legislativo, sugeridos e defendidos
por James Madison e Alexander Hamilton em seus artigos contidos em O
Federalista230 (1787-88).
James Madison reconduziu os postulados de Montesquieu ao
princípio de que “quando todo o poder de um departamento”, referindo-
se ao Executivo e ao Legislativo, “é exercido pelas mesmas mãos que
possuem todo o poder de outro departamento, os princípios fundamentais
de uma Constituição livre ficam subvertidos”231. Madison admitia que
alguns poderes sim, poderiam ser exercidos conjuntamente, defendendo
assim um certo compartilhamento entre os poderes do Estado.
Hamilton, por seu turno, acentuava a importância do Executivo
forte, escrevendo que “a energia no executivo é uma característica
fundamental na definição do bom governo”232.
1 – Notas definidoras do Presidencialismo
O resultado da Convenção da Filadélfia foi um sistema de
separação dos poderes que vigora até hoje e que já serviu de modelo a
muitos outros países, principalmente na América Latina, que nunca
alcançaram – nem chegaram perto – do êxito obtido nos Estados Unidos.
Há vários autores, como o autor deste livro, que consideram que o
Presidencialismo aplicado nos Estados Unidos só serve para aquele país e
com aquelas características sociais.

230
JAY, John; MADISON, James; HAMILTON, Alexander. O federalista, p. 47.
231
JAY, John; MADISON, James; HAMILTON, Alexander. O federalista, p. 216.
232
JAY, John; MADISON, James; HAMILTON, Alexander. O federalista. p. 70.
148 Paulo Márcio Cruz

Em linhas gerais, as características do Presidencialismo podem


ser resumidas como a seguir:
1.1 – Os órgãos legislativos e executivos são selecionados de
forma separada e independente. Isto supõe a eleição
separada do Legislativo – composto por uma ou duas
câmaras – e do Executivo, com um Presidente da
República eleito por voto direto, secreto e universal,
como no Brasil, ou através de um colégio eleitoral, como
no anacrônico modelo norte-americano;
1.2 – O tempo de mandato para o Legislativo e para o
Executivo são fixos e não podem ser interrompidos por
nenhum dos outros poderes. O Parlamento não pode
destituir o Presidente – salvo em caso de impeachment, ou
crime de responsabilidade – nem este pode dissolver
aquele;
1.3 – Em princípio, cada poder desenvolve suas funções sem
a interferência do outro. A função legislativa pode ter
início, se desenvolver e terminar no Parlamento, com este
não podendo interferir na função executiva;
1.4 – Existe radical incompatibilidade entre o desempenho de
funções num poder e a permanência simultânea no outro.
Nenhum ocupante de cargo no Poder Executivo, como o
Presidente e os ministros, pode desempenhar as funções
típicas do Parlamento233;
1.5 – O Presidente, como cabeça do Poder Executivo, elege
livremente seus auxiliares, que passam a dever confiança
a ele, individualmente. São pois, colaboradores do
Presidente e hierarquicamente dependentes dele.
2 – Mecanismos de inter-relação funcional
Todo raciocínio articulado até aqui conduz, aparentemente, a
um rígida separação de poderes e funções. Entretanto, mesmo que não
haja confusão orgânica, devido à severa incompatibilidade quanto a
pertencer a um e outro poder, há, sim, técnicas de inter-relação funcional.
Podem-se enumerar as seguintes:
2.1 – O Presidente pode participar da função legislativa
através da capacidade de iniciar o processo legislativo,
por meio de projetos de lei apresentados ao Parlamento e
233
No Brasil, membros de Poder Legislativo podem ocupar cargos de Ministro e
secretários, mediante licença de suas funções parlamentares. A qualquer tempo, por
demissão ou fim do período de Governo, o parlamentar pode voltar às suas funções de
origem.
Fundamentos do Direito Constitucional 149

mediante a aposição de veto às leis aprovadas pelo


Parlamento. Este veto só pode ser derrubado por maiorias
qualificadas, via de regra. Também corresponde ao
Presidente a competência para elaborar e propor ao
Parlamento o orçamento da República. Finalmente, o
Presidente pode influir no Parlamento através de seus
aliados políticos. Nos parlamentos brasileiros,
normalmente, há um líder do Governo.
2.2 – O Parlamento tem também, por seu turno, participação
na ação do Poder Executivo. Os embaixadores, indicados
pelo Presidente da República, devem ser ratificados pelo
Senado da República, assim como os tratados
internacionais assinados pelo Chefe de Estado. Além
disto, o Poder Legislativo pode formar comissões de
investigações para apurar atos do Poder Executivo;
quanto ao Poder Judiciário, o Presidencialismo
normalmente configura seu órgão supremo em forma de
um Tribunal Supremo formado por ministros indicados
pelo Presidente da República e referendados pelo Senado
da República, com mandato normalmente vitalício.
Mesmo assim, trata-se de um poder separado orgânica e
funcionalmente dos outros dois.
O resultado destes “freios e contrapesos” foi muito diferente nos
diversos sistemas presidencialistas. No caso dos Estados Unidos,
serviram para criar um sistema estável, que garante um alto grau de
estabilidade política234 e um equilíbrio entre os poderes, com predomínio
do Executivo. Sem dúvida, o Presidencialismo efetivamente não mostrou
as mesmas virtudes em outros contextos, nos quais esteve sempre
propenso a dar lugar a regimes personalistas e autoritários, assim como a
favorecer a instabilidade política e constitucional.
b) O Parlamentarismo235

234
Alguns autores falam em “liberdade política” ou “estabilidade democrática”. Diante
disto pergunta-se: que liberdade e que democracia são estas quando só capitalistas liberais
podem ascender ao poder? Não há registro na história política norte-americana de um
confronto ideológico como aqueles que ocorrem nas democracias européias, nas quais há
uma efetiva alternância ideológica, com socialistas democráticos e liberais disputando o
poder. Mais do que isto: há alternativas ideológicas viáveis a serem escolhidas. Nos
Estados Unidos, não.
235
Este item foi todo concebido com base na obra denominada Parlamentarismo em
Estados Contemporâneos: os modelos da Inglaterra, Portugal, França e Alemanha, que
está referenciada na bibliografia deste livro. Para mais informações sobre o
Parlamentarismo recomenda-se consultá-la.
150 Paulo Márcio Cruz

É importante ressaltar que, enquanto o Presidencialismo é um


sistema de separação intensa dos poderes, o Parlamentarismo é um
sistema de governo baseado numa intensa colaboração – ou integração –
entre os poderes Executivo e Legislativo.
Assim como se pode dizer que o Presidencialismo é resultado
de uma formatação expressamente concebida como modelo racional de
organização do poder, baseado numa teoria previamente concebida, o
sistema alternativo de organização dos poderes, conhecido como
Parlamentarismo, não deriva de uma construção racional, mas sim, de
uma evolução histórica. Mais especificamente, da complexa evolução do
sistema constitucional britânico, nos séculos XVII, XVIII e XIX, que
serviu de modelo, com consideráveis modificações, a um grande número
de países.
O crescimento do poder do Parlamento, na Inglaterra, durante o
século XVII, conduziu, num longo processo histórico, ao paralelo
enfraquecimento do poder do Rei. Este viu ser reduzida sua capacidade
legislativa, enquanto o Parlamento assumiu a elaboração das leis, apesar de
que estas continuaram necessitando da sanção real. Ao Parlamento também
ficou reservada a competência para aprovação do orçamento do Estado.
O Poder Executivo, representado pelo Rei, foi ficando cada vez
mais dependente do Parlamento para ter êxito em suas políticas,
necessitando cada vez mais da colaboração – legislativa e orçamentária –
deste último. Como conseqüência, o Rei passou a escolher seus ministros
entre os membros mais influentes do Parlamento, capazes de colaborar na
obtenção e conservação da necessária maioria parlamentar.
Esta evolução aconteceu, principalmente, ao longo do século
XVIII, quando o Poder Executivo passou a ser exercido por um grupo de
ministros – normalmente designado de Gabinete – dirigido, na ausência
do Rei, por um Primeiro-Ministro236, que devia contar com a confiança do
Parlamento. O Gabinete e seus ministros, e não o Rei, eram considerados
responsáveis pela ação do Executivo.
Foi decisiva, nesta evolução, a passagem dos príncipes alemães
Jorge I e Jorge II pelo trono da Inglaterra. Filhos da Rainha Ana e
pertencentes à casa de Hanôver, eles não sabiam falar inglês e não tinham
nenhuma intimidade com os negócios públicos ou privados ingleses.
Comunicavam-se com o Parlamento em latim. Com isto, os membros
mais influentes do Parlamento – o primeiro deles foi Robert Walpole –
passaram a cuidar do Governo, contribuindo de maneira decisiva para
consolidar o formato original do Parlamentarismo.
236
Atualmente, outras designações são usadas para caracterizar o Chefe de Governo, como
Presidente do Governo, como é o caso da Espanha, ou Chanceler, como acontece na
Alemanha.
Fundamentos do Direito Constitucional 151

O resultado desta evolução foi que o Poder Executivo passou a


ser, na realidade, o Gabinete, com o Primeiro-Ministro sendo nomeado
pelo Rei, considerando a composição política majoritária no Parlamento.
O Gabinete e seu Primeiro-Ministro não podiam continuar em seu posto
se não contassem com a confiança do Parlamento. Por outro lado, o
Primeiro-Ministro poderia pedir ao Rei que dissolvesse o Parlamento e
convocasse novas eleições.
O sistema de Governo Inglês foi paulatinamente adotado pelas
monarquias européias durante o século XIX, de forma expressa, como na
Bélgica, em 1830, ou pela evolução da prática governativa e política.
Claro que num primeiro momento, as Constituições monárquicas
européias conferiram ao Rei o Poder Executivo, assim como a faculdade
de nomear seus ministros, enquanto que os parlamentos detinham só o
Poder Legislativo, com as leis sujeitas à sanção real. Atualmente ainda
existem, em algumas monarquias constitucionais contemporâneas, traços
herdados deste período.
Entretanto, o funcionamento prático do sistema foi derivando
até o sistema parlamentarista. O Rei nomeava os ministros e o Primeiro-
Ministro de acordo com a maioria parlamentar resultante das eleições.
Era o Conselho de Ministros, como conjunto, o responsável pelo
exercício do Governo, com o Parlamento podendo exigir sua
responsabilidade política, que se traduzia na possibilidade de sua
demissão.
Este esquema também foi adotado em países cuja forma de
Governo passou a ser a republicana, que substituiu as monarquias em
muitos países europeus.
No Brasil, com a independência, em 1822 e a outorga da
Constituição do Império de 1824, foi implantado um Parlamentarismo
autoritário, com quatro poderes e com o imperador exercendo um deles – o
Moderador – que podia revogar as decisões dos outros três. Foi, por assim
dizer, um Parlamentarismo monárquico e não uma Monarquia
Parlamentarista. Talvez por esta descaracterização autoritária tenha sido
definitivamente substituído pelo Presidencialismo Republicano da
Constituição de 1891.
As características essenciais do Parlamentarismo podem ser
resumidas da seguinte forma:
a) existe uma separação entre o Chefe de Estado – o Rei ou
Presidente da República – e o Chefe de Governo – o
Primeiro-Ministro, Presidente do Governo ou Chanceler – de
maior ou menor intensidade, dependendo da forma de
eleição do primeiro. O Chefe de Estado é o elemento
cerimonial, representante do Estado, situado, na maioria dos
152 Paulo Márcio Cruz

sistemas, num nível suprapartidário, com funções que vão


de estritamente simbólicas até aquelas de maior influência
no sistema político. O Chefe de Estado é irresponsável
politicamente;
b) o Chefe de Governo é nomeado pelo Chefe de Estado, após
a verificação de que há o apoio de uma maioria efetiva no
Parlamento, disposta a sustentar e compor o Governo. Este
apoio pode ser expresso, com investidura formal ante o
Parlamento, ou tácito, naqueles parlamentarismos ditos
negativos, quando o Parlamento somente deve dizer que não
concorda e não que concorda;
c) o Governo se configura como um órgão colegiado, que
adota suas resoluções por deliberação prévia. O Chefe de
Governo tem um papel diretivo essencial, mas não pode
prescindir, para determinadas ações, da deliberação do
Governo todo. Os ministros são nomeados por indicação do
Primeiro-Ministro, que assume, assim, uma posição
naturalmente proeminente no interior do Governo;
d) normalmente, os membros do Governo – ou parte deles – são
também membros do Parlamento. Se não o são, têm o direito
de participar das sessões parlamentares, com voz mas sem
voto. Busca-se, assim, uma integração entre o Executivo e o
Legislativo. Não há incompatibilidade entre a função de
representação e a função executiva;
e) o Governo é solidariamente responsável perante o
Parlamento. Isto significa que este pode exigir – e obter – a
renúncia coletiva do Governo, caso seja majoritariamente
expressa sua censura ou negativa a um pedido de confiança
à política governamental. Normalmente isto é levado a cabo
através da aprovação de uma moção de censura ou pela
reprovação de um pedido de confiança ao Chefe de
Governo, já que ele é a figura exponencial do Gabinete. A
exigência de responsabilidade política é a expressão
equivalente à exigência de demissão ou substituição.
Mesmo assim, em alguns sistemas, é admitida a
responsabilidade individual dos ministros;
f) o Governo intervém nas funções parlamentares através da
iniciativa legislativa, com a apresentação de projetos de leis,
da colaboração na elaboração da ordem do dia do
Parlamento e da participação e intervenção nas sessões
parlamentares, por solicitação ou convocação deste mesmo
Parlamento. É também de competência do Governo a
Fundamentos do Direito Constitucional 153

apresentação das propostas de orçamentos para aprovação


parlamentar;
g) o Governo pode pedir ao Chefe de Estado a dissolução do
Parlamento e a convocação de novas eleições;
h) o Parlamento pode dirigir pedidos de informações ao
Governo e seus componentes, assim como interpelações que
digam respeito às políticas adotadas pelo Gabinete.
Sendo o Parlamentarismo resultado de uma evolução histórica,
como já assinalado, seus traços, dentro de um modelo comum, variam de
país para país. Em alguns países se baseia em normas consuetudinárias,
como na Grã-Bretanha. Em outros, origina-se da evolução da
interpretação da Constituição, como nos países nórdicos. Na maioria dos
países parlamentaristas, as regras do Parlamentarismo estão
expressamente contidas na Constituição, como é caso da Itália, da
Espanha, de Portugal, da Alemanha, entre tantos outros.
De todas as formas, o elemento essencial do Parlamentarismo é
que a colaboração – ou coordenação – entre os poderes Legislativo e
Executivo é conseguida através da integração de ambos poderes e, mais
especificamente, através da relação de confiança entre o Parlamento e o
Governo.

6.9 SISTEMAS RACIONALIZADOS237


Tanto o Parlamentarismo como o Presidencialismo
apresentaram problemas em sua aplicação prática. O Parlamentarismo é
acusado de ser instável por fazer o Governo refém do humor do
Parlamento. Como exemplo, sempre é citado o caso da III República
Francesa, quando houve, em sessenta e cinco anos, mais de cem
governos. Outro bom exemplo é o Parlamentarismo italiano que, em
média, teve um Primeiro Ministro por ano nos últimos vinte e dois anos.
Também deve-se assinalar que, na realidade, ao dispor o Governo de uma
maioria no Parlamento, é ilusório pensar num controle deste sobre aquele,
pois não há sentido em dizer que a maioria se controla a si mesma.
Já o Presidencialismo é acusado de ser um sistema sem a
necessária flexibilidade, já que, uma vez eleito, o Presidente da
República não pode ser demitido por falta de confiança política ou por
incompetência governativa. O mesmo acontece com o Parlamento que
não pode ser dissolvido pelo Presidente da República, mesmo que não
tenha a confiança nem represente de forma adequada a população.
Além disto, a eleição separada do Legislativo da do Executivo não
237
Sobre isto ver também GOULART, Clóvis de Souto. Formas e sistemas de governo,
p. 143 e s.
154 Paulo Márcio Cruz

raro dá lugar a que cada um dos poderes do Estado tenha orientações


políticas diferentes, com a conseqüente crise de falta de maioria ao
Governo. Como e onde um Governo verdadeiramente democrático
governa de forma adequada sem uma maioria parlamentar a dar-lhe
respaldo?
No Brasil, quase sempre os governos eleitos são obrigados a
“negociar” com o Parlamento para obter maioria. Esta maioria,
“negociada” normalmente em bases pouco indicadas, é volátil e
inconfiável, além de irresponsável.
Quase sempre, quando surge esta discussão, coloca-se como
exemplo o dos Estados Unidos, país no qual, muitas vezes, o Presidente é
do Partido Democrata, e o Congresso é majoritariamente formado por
membros do Partido Republicano, inclusive presidido por um parlamentar
da oposição. Acontece que o Presidencialismo – e a Democracia – dos
Estados Unidos não devem servir de base para este tipo de debate, já que
não existe qualquer componente ideológico naquele sistema, que obedece
ao capitalismo liberal, seja democrata ou republicano.
Uma última acusação muito comum ao Presidencialismo é
aquela que aponta a legitimidade do Presidente da República, eleito
diretamente pela população e com propostas de “soluções meio mágicas”
aos diversos problemas existentes, como um potencial perigo à
democracia pela possibilidade de, carismaticamente, manipular a opinião
pública a seu favor e contra os outros poderes do Estado.
Para evitar estas discussões, inoperâncias e perigos, diversas
técnicas de “racionalização” passaram a ser adotadas.
Com relação ao Presidencialismo, muitos países, para tentar
suprimir tentações autoritárias, proibiram a reeleição do Presidente,
principalmente nos países da América Latina. Esta tendência vem
refluindo, com a crescente adoção de sistemas que permitem, ao menos,
uma reeleição. Mesmo assim, o Presidencialismo tem se mostrado uma
verdadeira usina de crises e de formação de regimes autoritários,
pseudodemocracias e políticos execráveis, como Fujimori, no Peru;
Abdulá Bucaran, no Equador, e Fernando Collor, no Brasil. Difícil
acreditar que estes senhores pudessem chegar a ser Primeiros-Ministros
em países minimamente desenvolvidos. Quanto ao Parlamentarismo, em
muitos casos, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, tratou-se
de regular ou codificar as regras que o regem, introduzindo mecanismos
que garantam a estabilidade do Governo, conhecidas como de
“racionalização do Parlamentarismo” e que dificultem a demissão do
Governo por maiorias eventuais. É assim a moção de censura construtiva
presente na Constituição Espanhola de 1978 238, em seu art. 99, ou a Lei
238
GUERRA, Luiz López. Constitución espanhola, 172 p.
Fundamentos do Direito Constitucional 155
239
Fundamental de Bonn , que exige, para a demissão do Governo, a
eleição simultânea de um novo Governo, evitando assim as “maiorias
negativas”, que servem para derrubar mas não conseguem articular-se
para eleger um novo Gabinete.
Como fruto destes esforços, o Parlamentarismo continental
europeu ganhou traços de racionalização visíveis, como a já citada moção
de censura construtiva, a eleição por voto direto, universal e secreto do
Chefe de Estado240 – o Presidente –, a fidelidade partidária, as cláusulas
de barreira, o voto distrital e o distrital misto. Estes modelos
racionalizados procuram equilibrar e distribuir a carga de legitimidade
democrática e, principalmente, não permitir que a falta de estabilidade e
racionalidade ponham em risco o próprio Estado Democrático de Direito.
Mesmo com tudo isto, como diz Dalmo Dallari,
é preciso aceitar, portanto, que o parlamentarismo e o
presidencialismo já não são as opções necessárias para a
formação de um governo. É comum que o excessivo apego a
fórmulas consagradas, a necessidade de identificar as coisas
segundo um rótulo já conhecido, ou mesmo o temor de parecer
leviano ou sensacionalista, levem à aceitação passiva do que é
verdade consagrada241.
O que Dallari leciona é muito importante quando se trata de
estabelecer um sistema de governo, já que condiciona as novas
organizações a critérios antigos, estabelecendo limitações para a
institucionalização de novos sistemas para a organização governamental.

239
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 280.
240
Sobre isto ver DUVERGER, Maurice. O regime semipresidencialista, 208 p.
241
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 211.
156 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 7

O DIREITO CONSTITUCIONAL E OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS

A expressão “Direito Fundamental”, embora utilizada, por


diversas constituições, como a Lei Fundamental de Bonn, não consta
formalmente, por exemplo, da Constituição da Itália, da França e da
Áustria. A Constituição do Brasil de 1988 a usa como epígrafe do Título
II. Significa os direitos e liberdades constitucionalmente protegidos, por
meio de instrumentos estabelecidos pela própria Constituição. As ações
constitucionais típicas e as cláusulas pétreas 242 são bons exemplos destes
instrumentos.

7.1 CONCEPÇÕES FILOSÓFICA E JURÍDICA DOS


DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
O Direito Constitucional surgiu como forma de garantir a
liberdade e manteve, historicamente, esta finalidade como sua
característica essencial. Como conseqüência, desde o princípio a garantia
da liberdade implicou a proteção de um conjunto de direitos da pessoa
humana, assegurando-lhe um âmbito próprio de autonomia e autodecisão.
Isto equivaleu ao reconhecimento de uma esfera própria de
cada indivíduo, na qual não se devem imiscuir instâncias estranhas a
ela e ante a qual devem deter-se os poderes do Estado. Esta esfera
própria se cria através da definição e proteção de diversos direitos,
além da instrumentalização de garantias jurídicas para torná-los
eficazes.
O pensamento constitucionalista que inspirou as primeiras
revoluções francesa e norte-americana, assim como a evolução do sistema
britânico no século XVIII, estava apoiado em dois princípios. Primeiro,
242
FILOMENO, José Geraldo Brito. Teoria geral do estado e ciência política, p. 211.
Fundamentos do Direito Constitucional 157

que há determinados direitos da pessoa humana que não dependem de seu


reconhecimento em contratos ou normas jurídicas, já que são próprios da
natureza humana e, portanto, prévios ou anteriores a qualquer pacto ou
criação de uma comunidade política. Esta posição está particularmente
popularizada pelas obras de John Locke 243 e tem reflexo explícito na
Declaração de Independência dos Estado Unidos, de 1876.
Em segundo lugar e por conseqüência, o fato de que tais direitos
são predicáveis, em geral, de todos os membros da comunidade política.
Neste aspecto, a percepção moderna foi diferente da medieval. Com a
modernidade, passaram a estar reconhecidos determinadas liberdades ou
privilégios a grupos determinados, como burgueses, cavaleiros, clero e
nobreza, cada um deles dispondo de seu próprio estatuto. Mesmo assim,
frente a este conjunto de regimes particularizados de liberdades de
classes, o constitucionalismo proclamava um princípio de liberdade,
enquanto que os direitos inalienáveis – direitos do homem ou direitos
humanos, na formulação anterior – seriam atribuídos a todos os cidadãos
e não a uns setores ou grupos.
Por isto, a idéia de igualdade é inseparável, no
Constitucionalismo, da idéia de liberdade. A liberdade garantida pela
Constituição faz sentido enquanto liberdade para todos, ou seja, enquanto
os direitos nela reconhecidos estejam abertos a todos os cidadãos,
independentemente de pertencer a uma determinada classe social. Isto
supõe que, para o Direito, não existem cidadãos mais livres do que outros
ou, em outras palavras, que determinadas categorias de cidadãos não
podem ampliar sua liberdade às custas da liberdade dos demais. A
liberdade aparece, portanto, vinculada à pessoa enquanto tal, abstraída
qualquer outra consideração.
A disseminação destes princípios encontrou rápida acolhida
nos documentos que ainda hoje têm vigência e que exerceram uma
notável influência fora das fronteiras do país no qual apareceram. Como
exemplos, pode-se citar a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, aprovada pela Assembléia Constituinte Francesa de 1789, e as
dez primeiras emendas da Constituição dos Estados Unidos, aprovadas
em 1791.
A importância da definição e a garantia dos direitos
fundamentais fizeram que, normalmente, passassem a ser incluídas na
243
John LOCKE, filósofo e teórico inglês, nascido em 1632, em Wrington, Somerset, e
falecido em 1704, Oates, Essex. Professou um materialismo sensualista oposto ao
inatismo cartesiano na obra Ensaio sobre o entendimento humano, de 1690. Tomou
partido a favor do liberalismo político em Dois tratados sobre o governo, de 1692 e da
tolerância religiosa em Cristianismo racional, de 1695. Em Pensamentos sobre a
educação, de 1693, propôs um ensaio que partisse dos fatos, embasado nas ciências da
natureza.
158 Paulo Márcio Cruz

chamada parte dogmática das Constituições, no começo das mesmas,


antes até de outros aspectos, como os da organização do Estado.
A inclusão destes direitos do homem nos textos constitucionais
teve uma conseqüência quase que imediata: a transformação de alguns
princípios filosóficos em normas jurídicas. O conceito de direitos
humanos ou direitos do homem, é uma noção filosófica ou ideológica,
noção esta que acata a idéia de que certos direitos são necessários para
que se possa falar de ser humano e de dignidade humana. Já o
reconhecimento jurídico destes direitos os transforma em normas
vinculantes, que não dependem das convicções de cada um.
Os “Direitos Humanos” se transformam em “Direitos
Fundamentais” ou, usando uma outra terminologia, em “liberdades
públicas”. Desta forma, se passa de um conceito jusnaturalista para um
conceito positivo. Mas deve-se recordar que os textos constitucionais, em
muitos casos, proclamam que a normatização e definição dos direitos que
nelas estão previstos são levados a efeito em virtude da convicção de que,
efetivamente, estes direitos e liberdades são anteriores e superiores à
própria Constituição. Esta lhes atribui valor jurídico e formal, mas
reconhece seu valor material.
Talvez uma das fórmulas mais reveladoras do reconhecimento
deste valor superior seja aquela encontrada no art. 1º, item 2, da Lei
Fundamental de Bonn, que diz: “O Povo Alemão reconhece, por isso, os
direitos invioláveis da pessoa humana como fundamento de qualquer
comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”244.
Nuno Rogeiro, ao comentar o disposto no inciso descrito acima,
leciona que
após a experiência transpersonalista do 3º Reich, não foi
casual ou involuntário, da parte do legislador de 1948, o
começo da sistematização constitucional pela referência aos
direitos fundamentais, na dupla vertente de técnica jurídica de
limitação do poder do Estado e de afirmação de um ‘espaço
pessoal’ na existência política245.
Está claro que o autor português está se referindo a um espaço
constitucional anterior e superior à própria Constituição.
Em todo caso, esta justificação valorativa dos direitos
fundamentais não obsta seu caráter jurídico, já que são fundamentais estes
direitos porque, por vontade do Poder Constituinte Originário, estão
abrigados como tais na Constituição. Isto explica as diferenças existentes
entre constituições e este respeito. As listas de direitos considerados
244
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 124.
245
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 125.
Fundamentos do Direito Constitucional 159

fundamentais e, por isto, constitucionalmente garantidos, não são


coincidentes. Podem-se encontrar elencos muito pequenos ou extensas listas
de direitos e garantias. A Constituição Argentina tem 35 artigos dedicados a
este tema. Na da Espanha são 28 artigos. Na do Brasil são 144 incisos,
distribuídos por 12 artigos246.
Constitucionalmente analisados, os direitos e garantias
fundamentais aparecem duplamente caracterizados. Por um lado, trata-se
de esferas de liberdade garantidas especificamente no texto
constitucional, dispondo assim de uma base mais forte que a de outros
direitos “não fundamentais”, reconhecidos em normas
infraconstitucionais. Em segundo lugar, porque o reconhecimento e
garantia destes direitos expressam valores que inspiram a organização da
comunidade política e que justificam a existência de uma Constituição.
Em outras palavras, os direitos fundamentais não só asseguram
situações de indivíduos particulares mas também servem para definir os
valores e fins da estrutura política constitucional. Têm, assim, os direitos
fundamentais uma finalidade individual e uma finalidade coletiva.

7.2 A TIPIFICAÇÃO DO CONTEÚDO DOS DIREITOS E


GARANTIAS FUNDAMENTAIS
A pluralidade de normatizações constitucionais dos direitos e
garantias fundamentais no Direito Comparado e as diferentes extensões
constitucionais destes direitos supõem uma considerável multiplicidade e
variedade do que se entende – em um determinado momento e em um
determinado país – por “direitos e garantias fundamentais”, dignos, por
isto, de proteção constitucional.
Junto com um conjunto de direitos presentes em praticamente
todas as constituições, como, por exemplo, a inviolabilidade de domicílio,
liberdade de consciência e liberdade de ir, vir e ficar, não faltam casos nos
quais as constituições reconhecem como fundamentais – devido às
condições próprias de cada ordenamento – direitos dificilmente
qualificáveis como tais em outros contextos. Como exemplo, pode-se
citar a possibilidade de ter armas, prevista na II Emenda da Constituição
dos Estados Unidos, o que, convenha-se, é extremamente duvidoso como
direito e garantia fundamental, se analisado sob a ótica do
constitucionalismo contemporâneo.
Em que pese as variações apontadas no parágrafo anterior, a
base ideológica comum da qual partem os textos constitucionais – a

246
Apesar de o constituinte brasileiro de 1988 ter optado por poucos artigos – doze –, os
direitos e garantias fundamentais estão previstos, essencialmente, nos seus incisos.
160 Paulo Márcio Cruz

ordenação jurídica da liberdade247 – possibilita a existência de pautas


comuns nas declarações de direitos e garantias, aplicáveis, de modo geral,
a textos constitucionais distintos.
A análise histórica torna-se extremamente útil para classificar os
direitos e garantias fundamentais segundo seu conteúdo, tendo em vista
que, a partir do início do constitucionalismo, é possível distinguir
diversas “dimensões” de constituições, que atendem a tipos determinados
de direitos, segundo os problemas ou condições do momento histórico em
que foram concebidas.
A defesa e a garantia jurídica da liberdade como autonomia do
indivíduo foram desenvolvidas conforme técnicas de diferentes escopos
históricos. Desta forma, é possível distinguir quatro “dimensões”248 de
direitos e garantias fundamentais constitucionalmente reconhecidas. São
elas:
a) uma primeira dimensão, que corresponde ao
constitucionalismo liberal dos séculos XVIII e XIX, com
uma acentuada ênfase dos textos constitucionais à dimensão
individual, como proteção do indivíduo à ameaça do Estado
– direitos de liberdade – e garantia para sua participação na
vida pública – direitos políticos –;
b) uma segunda dimensão, que corresponde ao
constitucionalismo social do pós-I Guerra Mundial, com
constituições nas quais aos direitos anteriores são
acrescentados outros, que levam em consideração as
relações do indivíduo com seu meio social – relações de
trabalho, econômicas etc. – e que supõem garantias de bem-
estar, as ditas prestações materiais – educação, saúde,
previdência etc. –;
c) uma terceira dimensão, que corresponde aos direitos
coletivos, relativos a bens antes considerados como naturais,
culturais e base da vida, mas que começaram a tornar-se
escassos e cujo desaparecimento ameaçaria a coletividade
como um todo – direito ao meio ambiente saudável,
patrimônio artístico e cultural etc. –;
d) finalmente, o constitucionalismo recente passou a levar em
conta os avanços alcançados pela ciência nas áreas da
247
Deve-se sempre ressaltar que esta liberdade não é somente aquela pregada pelo
Liberalismo clássico, entendida como a liberdade do cidadão perante o Estado (ou
igualdade perante a lei). A liberdade contemporânea pressupõe liberdades públicas num
sentido muito mais amplo, que permitam alcançar a justiça – e a igualdade de
oportunidades – social.
248
Sobre isto ver BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 49.
Fundamentos do Direito Constitucional 161

informática – espaços virtuais, comunicações via internet


etc. – e da manipulação genética – clonagem, reprodução
assistida, transgênicos etc. – que devem estar regulados nas
constituições como forma de proteção à essência do ser
humano e como proteção à criação dos ditos “seres
genéticos”, que podem ser utilizados para fins ignóbeis.
Estas previsões são denominadas (ainda que de forma
incipiente) de “direitos de quarta dimensão”.
Da classificação feita acima podem derivar diversos tipos de
direitos e garantias fundamentais, tais como o direito à liberdade, à
participação, direitos sociais, direitos coletivos difusos. A eles pode-se
agregar um Direito de estrutura complexa chamado de Direito de Acesso
à Justiça – ou aos tribunais. Este Direito aparece como expressão do
reconhecimento do caráter de sujeito de Direito de todas as pessoas,
estando intimamente vinculado à posição jurídica do indivíduo.
Como o acesso à justiça – ou aos tribunais – não só é uma
expressão juridicamente subjetiva mas também é um instrumento ou
mecanismo para a defesa dos direitos substantivos. Mais adiante far-se-á
referência a este Direito quando da abordagem das garantias dos direitos
fundamentais.

7.3 OS DIREITOS E GARANTIAS DE LIBERDADE E DE


PARTICIPAÇÃO: A PRIMEIRA DIMENSÃO

7.3.1 Os direitos e garantias de Liberdade


A expressão mais visível da liberdade – como conceito geral –
do indivíduo é a existência de esferas de atuação nas quais as pessoas
podem se comportar livremente, sem ingerência de outros, ou seja, de
âmbitos invioláveis, somente sujeitos ao próprio poder de
autodeterminação. Não se deve estranhar, assim, que os textos
constitucionais garantam, por princípio, a existência destes âmbitos de
liberdade individual, imunes à ação dos poderes do Estado249.
Esta garantia aparece algumas vezes em termos absolutos,
delimitando áreas como absolutamente intocáveis, ou especificando, de
maneira muito restrita, as exceções que justificam estas esferas de
liberdade serem afetadas.
A lista destas esferas, nos primórdios do constitucionalismo, era
simples e reduzida, inspirada nos termos de liberdade pessoal e de dispor
da propriedade privada. Os direitos da pessoa se concentravam na
249
MOLINA, Ignácio; DELGADO, Santiago. Conceptos fundamentales de ciência
política, p. 74.
162 Paulo Márcio Cruz

liberdade de opção ideológica ou de consciência, na garantia de um


âmbito vital intocável, como o domicílio, e nas esferas de liberdade na
relação com os outros cidadãos, manifestadas na liberdade de expressão e
comunicação. O direito de dispor da propriedade privada, por ser um
elemento instrumental indispensável para a realização da liberdade do
cidadão, passou a representar um “Direito inviolável e sagrado” 250.
A relativa simplicidade das declarações iniciais de direitos foi
inexoravelmente alterada pela crescente complexidade da vida social e
pelo surgimento de ameaças à liberdade decorrentes das mudanças sociais
e tecnológicas, inimagináveis nos séculos XVII e XVIII. A definição e
alcance dos direitos e garantias de liberdade representam, atualmente,
uma das questões mais espinhosas e de maior dificuldade interpretativa
nas constituições contemporâneas.
No que se refere ao âmbito mais interno dos direitos e garantias
de liberdade, chegando-se à integridade física do cidadão, as experiências
históricas e a evolução da consciência social fizeram que vários
ordenamentos jurídicos passassem a garantir esta integridade física,
proibindo a tortura e tratamentos degradantes, reconhecendo o Direito à
vida e abolindo a pena de morte.
Tais reconhecimentos não eliminaram problemas bastante
complexos e que dizem respeito ao sujeito do Direito e ao momento em
que este mesmo Direito inicia, centrados, por exemplo, em temas como a
constitucionalidade ou inconstitucionalidade da legislação que permite a
interrupção voluntária da gravidez ou a interrupção da vida extra-uterina
através da eutanásia.
Também foram relevantes a evolução observada nos direitos
relativos ao âmbito da intimidade da pessoa, ou seja, o Direito de dispor
de uma esfera livre da intromissão – ou conhecimento – das outras pessoas.
O desenvolvimento dos meios de comunicação, das técnicas de
observação e da informática, tornam especialmente importante a
necessidade de proteção diante da intromissão na vida privada.
Isto está conectado também com a necessária proteção de uma
projeção da personalidade como é a estima social, ou seja, o Direito à honra
no sentido de garantia de um âmbito de respeito e consideração social
indispensáveis nas relações com as outras pessoas em condições dignas. O
elenco dos “direitos da personalidade” cresce, desta forma, cada vez mais:
Direito à imagem, à honra, à intimidade, ao conhecimento de dados sobre a
pessoa e que estejam em poder do Estado, entre outros tantos.

250
Para uma análise mais apurada dos direitos e garantias presentes nas constituições
dos séculos XVII e XVIII e que representam o que se está ensinando, faz-se mister ver
a Constituição dos Estados Unidos da América e suas emendas.
Fundamentos do Direito Constitucional 163

7.3.2 Os direitos de participação ou direitos políticos


Os direitos e garantias de liberdade aparecem com uma
conotação negativa ou de defesa, isto é, como criação de âmbitos
protegidos dos poderes públicos, nos quais estes não podem interferir na
vontade individual. Entretanto, o conceito de Liberdade próprio do
constitucionalismo tem também uma dimensão ativa ou positiva, com a
Liberdade compreendendo, também, a participação na adoção das decisões
da comunidade política.
Através desta participação, o cidadão, sujeito à vontade do
poder do Estado é, sem dúvida, autor – ou co-autor – desta vontade e, por
isto, membro deste mesmo poder. Por meio desta participação na
formação da vontade pública, o cidadão, assim, “se obedece a si mesmo”.
A Liberdade compreende, portanto, também, os direitos à cidadania
política e não só à civil251.
O reconhecimento destes direitos aparece, compreensivelmente,
nos primeiros documentos do constitucionalismo moderno, quando a
burguesia tratava de garantir a máxima Liberdade perante o Estado, que
fora seu opressor na ordem anterior. Os direitos de participação, em todo
caso, também experimentaram uma notável evolução, paralela à
implantação generalizada do princípio democrático, que supõe a
existência de direitos de participação universais e iguais para todos os
cidadãos, como será visto mais adiante no capítulo 8.
O exemplo paradigmático do Direito de participação é o Direito
ao voto, vinculado a outros direitos, inseparáveis de seu exercício. Por um
lado, o Direito de ser eleitor é complementado pelo Direito de ser eleito.
Além disto, o Direito de sufrágio só tem sentido se estiverem presentes
condições que possibilitem a efetiva formação de alternativas políticas e
sua livre análise, crítica e discussão. Isto, por sua vez, implica a
Liberdade de associação – formação de partidos e outras associações
representativas – e de reunião. Desta perspectiva, tem uma projeção
participativa o Direito à liberdade de expressão, que é tanto um Direito de
Liberdade como um Direito Político.Também devem ser incluídas na
Liberdade de participação aquelas atividades que, mesmo sem o peso do
sufrágio, também tomam parte nos processos de influência da vontade
coletiva, como o direito de petição – ou de informação 252 – e
manifestação.

251
Para mais detalhes, ver BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social, p.
139.
252
Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Direito de informação –
ou petição – está garantido, principalmente, nos incs. XIV e XXVIII do art. 5º do Título
II, que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais.
164 Paulo Márcio Cruz

Outra forma peculiar de participação na vida pública é o


desempenho de funções públicas, como membro da organização do
Estado ou outro ente público. Neste aspecto, também é característica do
constitucionalismo contemporâneo a extensão a todos os cidadãos da
possibilidade de ascender a funções ou cargos públicos, rompendo com a
reserva que existia nos regimes pré-constitucionais, nos quais só
membros da nobreza, do clero e – após as revoluções do século XVIII –
da burguesia podiam exercê-los.

7.4 OS DIREITOS SOCIAIS: A SEGUNDA DIMENSÃO


A percepção da existência de direitos vinculados à pessoa de
modo indissociável experimentou uma notável evolução. O
desenvolvimento do princípio democrático e o acesso de camadas cada vez
mais amplas da população à vida política, permitiram tornar evidente que o
efetivo exercício dos direitos de Liberdade e de cidadania política só
ganham sentido se algumas condições materiais forem garantidas. Sem
dispor dos meios básicos para garantir uma qualidade mínima de vida,
poucas serão as “esferas próprias” que possam estar imunes a ingerências
exteriores.
Dificilmente – e isto soa até engraçado – poderá se aplicar o
Direito à inviolabilidade do domicílio àqueles que não têm casa ou o
Direito à Liberdade pessoal àquele que é dependente de outros para sua
mera subsistência.
A doutrina constitucionalista inicial pretendeu deixar por conta
dos cidadãos a satisfação de suas necessidades materiais. Entretanto, não
foi difícil perceber, principalmente ao longo das crises econômicas dos
séculos XIX e XX – com destaque para a Segunda Revolução Industrial e
para a Grande Depressão de 1929 – que o mero jogo de forças de mercado,
balizados pela competitividade e pela lei da oferta e da procura, não podia
garantir, inclusive nos países ricos, condições mínimas e estáveis de vida.
A intervenção do Estado na vida econômica e social passou a se
configurar como um elemento necessário para impedir crises cíclicas e
para garantir um mínimo de bem-estar a grande parte da população 253. O
Estado passou a ser configurado, paulatinamente – principalmente após a
Segunda Guerra Mundial – como intervencionista ou, numa fórmula mais
ampliada, como um Estado Social e com função social 254, decidido a
promover – ou a impedir – determinadas ações sociais, culturais 255 e
econômicas.
253
Sobre isto ver CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia e Estado
Contemporâneo.
254
Sobre isto ver PASOLD, Cesar Luiz. Função social do Estado contemporâneo, p. 67
e s.
Fundamentos do Direito Constitucional 165

No capítulo 9, tratar-se-á com mais amplitude sobre a evolução


do papel do Estado na configuração da organização econômica da
Sociedade. Por enquanto, basta assinalar que uma das formas de
intervenção estatal tem sido a garantia de direitos de prestações ou
direitos sociais. Em alguns casos, o direito a uma prestação existe frente a
entes públicos ou privados – como o direito a férias remuneradas, por
exemplo –, com uma incidência maior sobre os primeiros, em forma de
prestações de serviços de educação, saúde, saneamento, seguridade social
e outras tantas existentes nos Estados contemporâneos.
Os direitos sociais representam, atualmente, um aspecto
destacado de quase todas as constituições aprovadas no século XX e
alcançam as mais diferentes matérias.
Normalmente, a doutrina costuma assinalar as Constituições do
México, de 1917 e a alemã de Weimar, de 1919, como as iniciadoras do
constitucionalismo social, mas foram as Constituições do pós-Segunda
Guerra Mundial, tanto na Europa – como a Constituição francesa de 1946
– como na América Latina, que adotaram de forma generalizada a
garantia de direitos sociais. Esta prática estendeu-se às Constituições que
chegaram tardiamente à Democracia, como as de Portugal, Grécia e
Espanha.
Deve-se ressaltar que a denominação de “direitos sociais”
enseja direitos com características muito peculiares. Como são direitos de
prestação, sua existência depende não só da vontade da Constituição mas
também e sobretudo da disponibilidade de efetivos recursos econômicos
para a materialização destas prestações. A garantia dos direitos de
prestação não pode, de maneira nenhuma, ser estabelecida sem a
respectiva disponibilização de recursos econômicos para sua viabilização.
Muitos constitucionalistas colocam dúvidas sobre a
conveniência de inserir na Constituição direitos – como os sociais – que,
em determinados momentos, dada a conjuntura econômica, não possam
ser efetivamente garantidos256.
É certo que a impossibilidade de cumprir o disposto na
Constituição acerca dos direitos sociais pode, de alguma forma,
“desvalorizar” estas garantias, mas é certo também que este pressuposto
não vale só para os direitos sociais. Caso o Estado não possa garantir a
segurança e a ordem pública, por exemplo, preocupação típica de
Constituições liberais e não sociais, isto não invalida a sua previsão
constitucional.

255
Países como Portugal, por exemplo, resolveram incluir o termo CULTURAL. Sobre
isto ver CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, p. 478.
256
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral do
Estado, p. 131.
166 Paulo Márcio Cruz

É ainda mais verdade que a previsão constitucional dos direitos


sociais torna as reivindicações, quanto ao cumprimento destas prestações,
mais fortes do que aquelas baseadas em normas jurídicas
infraconstitucionais. Assim como há um “Direito mais forte”, também
existem “reivindicações mais fortes”.
A posição intermediária é pela inclusão de previsões genéricas
quanto aos direitos sociais, na forma de princípios. Talvez seja,
dependendo da ênfase dada a estes princípios no ordenamento jurídico,
uma boa forma de preservar a validade material da Constituição, já que
também é correto afirmar que, quanto mais ausentes as condições para a
consecução dos direitos sociais, mais generosas são as previsões
constitucionais neste sentido.
Desta forma, parece que o correto seria separar o
reconhecimento daqueles direitos que efetivamente são garantidos pela
Constituição e imediatamente exigíveis daquelas proclamações ou
diretrizes com um caráter mais programático ou orientadoras, do que
imperativas. Isto não significa que estes “princípios sociais” careçam de
eficácia jurídica. Muito pelo contrário, já que as previsões constitucionais
seriam aplicadas com uma firme base econômica.
Realmente não há como distribuir prestações – e renda – sem a
criação de riquezas. Este talvez tenha sido um dos principais equívocos
cometidos pelo constitucionalismo contemporâneo, que raramente soube
conciliar capital e trabalho.

7.5 OS DIREITOS DIFUSOS E OS DIREITOS


PÓS-CONTEMPORÂNEOS: A TERCEIRA
E QUARTA DIMENSÕES
A percepção das conseqüências do crescimento econômico e,
principalmente, do desenvolvimento industrial, sobre as condições que
fazem possível a vida humana, deram lugar a uma crescente
preocupação pela manutenção destas condições. Bens que eram dados
como inesgotáveis em outras épocas, como a água, o ar limpo,
alimentos sem conservantes e a ausência de matérias tóxicas nos
ambientes vitais começam, hoje, a ocupar lugar de destaque nas
preocupações de todas as sociedades.
Com isto, fica em perigo o bem-estar – e a vida – não de uns
poucos indivíduos, mas sim, de importantes e numerosos setores da
Sociedade, quando não de toda ela. Isto explica por que,
progressivamente, as Constituições e as declarações internacionais
passaram a incutir a necessidade de reconhecer e impor direitos
distintos daqueles classicamente declarados. Já não são direitos
Fundamentos do Direito Constitucional 167

negativos diante do poder do Estado ou de participação política, ligados


à obtenção de prestações de serviços sociais públicos. Trata-se agora de
proteger bens comuns, não individualizáveis, mas que são condição
essencial para a qualidade de vida de cada indivíduo. São os direitos
fundamentais de terceira dimensão.
A defesa destes bens, de natureza difusa mas de repercussão
individual, está traduzida na proclamação de direitos que se caracterizam,
por um lado, por serem sujeitos ativos, que se identificam tanto com o
indivíduo como com a coletividade. Por outro lado, por criar obrigações
de submissão a estes mesmos direitos ao Estado e aos próprios cidadãos,
já que só a conduta solidária destes últimos tornará possível a
manutenção do ambiente vital que se quer proteger.
É de se ressaltar também o caráter “comunicante” ou
“comunitário” do meio ambiente entre os diversos países, o que confere
uma especial importância à definição e proteção internacional destes
direitos, que só são “protegíveis” em escala mundial. Isto suscita a
necessidade de elaborar técnicas jurídicas que possibilitem uma efetiva
proteção internacional, mais consistente do que as declarações de
objetivos ou propósitos comuns.
Há o reconhecimento constitucional deste tipo de Direito, como,
por exemplo, na Constituição brasileira de 1988, em seu Título VII, que
trata Da Ordem Econômica e Financeira, Capítulo I, que trata Dos
Princípios Gerais da Atividade Econômica, art. 170, inc. VI e no
específico Capítulo VI, que trata Do Meio Ambiente, através do bem
composto art. 225. Junto com seu reconhecimento – deste tipo de direito
– em textos internacionais, como a Declaração do Rio de Janeiro, de
junho de 1992, representa o início de cruzada ainda por se desenvolver.
Já os ditos direitos de quarta dimensão, que se referem à
informática e à manipulação genética lato sensu, ou biodireito,
encontram-se todavia em estágio ainda embrionário, quando analisados
sob o prisma do constitucionalismo contemporâneo. A preocupação,
presente já em muitas discussões técnicas e políticas, é relativa a como se
poderá controlar e regular estas atividades. Vicente Barreto, ao tratar do
biodireito, indica sua materialização – como controle e regulação –
através dos direitos humanos integrados aos textos constitucionais como
direitos fundamentais. Assim se expressa o doutrinador carioca:
A formulação de uma nova categoria de direitos humanos – a
dos direitos do ser humano no campo da biologia e da genética
– responde à indagação central do pensamento social
contemporâneo: a possibilidade da universalização de direitos
morais, fundados numa concepção ética do Direito e do Estado,
vale dizer, na construção de uma ordem normativa construída
168 Paulo Márcio Cruz

através do diálogo racional entre pessoas livres. Neste


contexto, a possibilidade da bioética depende, como sustentam
os pensadores liberais, da existência de uma sociedade
democrática, pois se assim não for, os valores e princípios
bioéticos irão expressar a vontade dos cientistas e do Estado, e
não de indivíduos livres e autônomos257.
Quanto à informática, é possível encontrar-se dispositivos
esparsos, ainda um tanto tímidos, em algumas Constituições
contemporâneas, como a espanhola de 1978, em seu art. 18, inc. 4 258 e a
brasileira de 1988, em seu art. 22, inc. IV259.
No que se refere à manipulação genética, há uma quase
completa ausência do tema nas Constituições contemporâneas. Apesar
deste fato, as infinitas possibilidades que podem advir das atividades
nesta área movimentam diversos organismos nacionais e internacionais,
governamentais e não-governamentais, no sentido de discutir a criação de
normas jurídicas que, principalmente, limitem a atuação de pesquisadores
e empresas que se dedicam às atividades dela decorrentes.

7.6 OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS


COMO MANIFESTAÇÃO JURÍDICA
A relevância jurídica dos “direitos do homem” não é, per si,
resultado de afirmações filosóficas, mas sim, como foi dito, de sua
inclusão em normas vinculantes e, em especial, nos textos
constitucionais, convertendo-os em direitos fundamentais, ou seja, como
de inspiração para todo ordenamento jurídico. Sendo assim, a
aplicabilidade prática dos preceitos constitucionais que prevêem estes
direitos, está condicionada pelo mesmo caminho de seu reconhecimento,
sendo possível, neste sentido, verificar, na história do constitucionalismo,
uma evolução sensível quanto à força vinculante dos direitos e garantias
fundamentais.
Assim, três aspectos são fundamentais e devem ser analisados:
a) A remissão à legislação infraconstitucional
A declaração de direitos como forma solene, não acompanhada
de outras previsões tem, sem dúvidas, um efeito didático e de persuasão,
mas não determina sua força vinculante. Por conta deste fato, nas
declarações de direitos e nos textos constitucionais, é comum a remessa à
257
BARRETO, Vicente de Paulo et alii. Teoria dos direitos fundamentais. p. 416.
258
LOPEZ GUERRA, Luiz. Constitución espanhola, p. 38.
259
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
20.
Fundamentos do Direito Constitucional 169

legislação infraconstitucional da determinação de seu alcance, limites e


forma de exercício. Assim, pode-se dizer que os direitos e garantias
fundamentais serão aplicados através das leis que os regulamentem.
Esta técnica de remessa à lei, por um lado, é necessária, já que
num regime de muitos direitos e garantias fundamentais, é preciso uma
complexa normatização jurídica, que não pode ser alcançada pela
Constituição. Além disto, implica a garantia de ser o legislador o
encarregado de desenvolvê-los.
Mesmo assim, a técnica da remessa à lei do desenvolvimento dos
direitos e garantias individuais, como forma de determinar sua força
vinculante, suscita problemas. Em primeiro lugar, é necessário estabelecer
qual a liberdade do legislador para “desenvolver” estes direitos. Em
segundo lugar, as previsões constitucionais deixam de ter qualquer valor se
o legislador resolver não criar as normas necessárias à sua força vinculante.
b) Regulamentação legislativa e conteúdo ou núcleo
essencial
O principal perigo presente na técnica de remessa à lei da
regulamentação das garantias e direitos fundamentais é que, ao produzir a
norma regulamentadora, o legislador pode reduzir o seu conteúdo ou, na
prática, torná-lo inexistente. A fórmula da remessa à lei pode supor,
portanto, a descaracterização do espírito que norteou a sua inclusão na
Constituição, fazendo desaparecer seu caráter fundamental.
Para evitar tal descaracterização, as Constituições, em muitos
casos, reconhecem um direito ou garantia e encomendam sua
regulamentação através de lei infraconstitucional, mas criam áreas fechadas
à atuação do legislador. Um bom exemplo é o inc. XXXVIII, do art. 5º da
Constituição brasileira de 1988. No corpo deste inciso está previsto que “é
reconhecida a instituição do júri..”260.. Na continuação, a norma
constitucional prevê que isto será concretizado “com a organização que lhe
der a lei,..”261, caracterizando sua remessa à legislação complementar. Logo
em seguida, nas alíneas, estão estabelecidas as áreas vetadas ao legislador,
ou o que o legislador não pode modificar, omitir ou suprimir, sendo ...
assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;

260
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 7.
261
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 7.
170 Paulo Márcio Cruz

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra


a vida262.
Este tipo de previsão constitucional tenta evitar possíveis
desvirtuamentos por parte do legislador. Entretanto, caso a
Constituição queira efetivamente limitar a ação do legislador, terá que
se converter num verdadeiro Código, prevendo qualquer eventual
extrapolação legislativa na regulamentação de cada direito ou garantia
que reconheça.
Diante deste fato é que algumas constituições contemporâneas
passaram a adotar uma outra fórmula, compatível com a anterior,
destinada a impedir a descaracterização dos direitos e garantias
fundamentais, nelas previstos, pela legislação regulamentadora. Nesta
fórmula, as próprias Constituições – como a Lei Fundamental de Bonn,
da Alemanha e a Constituição Espanhola de 1978 – passam a dispor de
um artigo que proíbe o legislador, em seu trabalho de regulamentação, de
alterar o conteúdo ou núcleo essencial dos direitos e garantias
fundamentais.
Desta maneira, reconhece-se que existe um conceito ou idéia
própria de cada direito ou garantia, com algumas características mínimas
que não podem ser modificadas pela lei regulamentadora. Com isto, se
introduz uma previsão limitadora da ação legislativa, que supõe o respeito
a alguns conceitos de “Direito Constitucional Geral”, através dos quais
se deve interpretar a Constituição, naquele sentido de que esta é uma
“norma jurídica superior”.
Partindo-se do pressuposto prático de que a Constituição não
pode, evidentemente, enunciar o conteúdo ou núcleo essencial de cada
direito ou garantia fundamental, este conteúdo ou núcleo essencial como
conjunto de elementos que tornam o Direito “reconhecível” deverá ser
determinado pelas construções lógicas e conceituais que dizem respeito ao
texto constitucional.
A jurisprudência constitucional – abundante em muitos países
ocidentais – ocupou-se, não raramente, em estabelecer como é possível
chegar à determinação deste conteúdo ou núcleo essencial, que
representa uma contextualização da Constituição 263. Esta passou a ser
interpretada não só à luz de seu conteúdo literal mas muito
principalmente tendo-se em conta o contexto em que está inserida,
considerando-se os interesses que se quer resguardar e pelo uso dos
conceitos trazidos pela doutrina.
262
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 7.
263
A interpretação constitucional vem promovendo importantes adaptações das
constituições aos complexos contextos atuais, nos quais vários fatores, que eram
desconhecidos ou incipientes à época de elaboração, passaram a influenciar o conjunto da
Sociedade e a mudar conceitos e valores estratégicos.
Fundamentos do Direito Constitucional 171

c) A aplicação direta da Constituição


A garantia do conteúdo ou núcleo essencial dos direitos não é
suficiente para protegê-los de eventuais restrições arbitrárias por parte do
legislador. Este, sem dúvidas, pode os restringir ou não aplicá-los. Basta,
para tanto, sua inatividade. Há direitos de aplicação autônoma, ditos de
“eficácia plena”, que não necessitam de regulamentação legislativa.
Alguns destes direitos, inclusive, são garantidos pela proibição expressa
ao legislador. Este é o caso, por exemplo, da Constituição dos Estados
Unidos, em sua emenda número I, quando prevê que
o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma
religião, ou proibindo o livre exercício de cultos; ou cerceando
a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de
se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para
a reparação de seus agravos264.
Na Constituição brasileira de 1988, o seu art. 5º, que trata dos
Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, traz algumas previsões com
proibições expressas ao legislador. Um bom exemplo é o inc. XXXVI, ao
determinar que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada”265.
Esta técnica, porém, não pode ser universalmente aplicada. Há
direitos que, por sua natureza, requerem uma intervenção legislativa no
sentido de se garantir uma regulamentação detalhada e eficaz. O
problema é a possível inércia do legislador. O reconhecimento
constitucional de um direito “na forma da lei”, ou “nos termos fixados em
lei”, ou ainda “conforme a lei”, pode significar sua não-materialização. A
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trouxe um grande
número de dispositivos com estas previsões, com uma parte expressiva
deles fruto dos impasses havidos durante os trabalhos da Assembléia
Nacional Constituinte que a elaborou. Quando não era possível qualquer
entendimento, a solução era remeter à regulamentação legal.
Não faltam, na história do constitucionalismo, interpretações
doutrinárias e jurisprudenciais que entendem ser o reconhecimento de
direitos pela Constituição não mais do que um “programa legislativo” ou
um mandamento ao legislador. O não-cumprimento deste mandamento
tornaria ineficaz o reconhecimento constitucional. Esta posição, que
supõe uma atenuação do caráter vinculante da norma constitucional, tem
sido contraditada, nos próprios textos constitucionais, quando estes
especificam que os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente
reconhecidos, são aplicáveis mesmo diante da inércia do legislador. Os

264
BRASIL Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 427.
265
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 7.
172 Paulo Márcio Cruz

poderes públicos devem considerá-los, por conseqüência, como direitos


de aplicação imediata e de eficácia plena.
Um exemplo deste tipo de previsão é o art. 1º, inc. 3º, da Lei
Fundamental de Bonn, quando prevê que “os direitos fundamentais a
seguir enunciados vinculam, como direito diretamente aplicável, os
poderes legislativo, executivo e judicial”266.
Cabe ressaltar, como parênteses, que, após a experiência
transpersonalista e orgânica do 3º Reich de Hitler, não foi casual ou
involuntário, da parte do constituinte de Bonn de 1948, tutelado pelas
forças aliadas democráticas vencedoras da II Guerra Mundial (por óbvio
está excluída a União Soviética, que tutelou a outra Alemanha) o começo
da sistematização constitucional pela referência aos direitos fundamentais
e a garantia de sua eficácia plena e direta.
Na prática, este tipo de previsão comporta algumas dificuldades
inegáveis. Assim, alguns direitos e garantias fundamentais são
imediatamente exercitáveis, sem necessidade de qualquer intervenção
legislativa, como o direito à liberdade de consciência, à vida ou à
inviolabilidade do domicílio. Porém, em muitos casos, os direitos difusos
ou os coletivos podem ser atingidos pelo exercício dos direitos
individuais, tornando necessária a regulamentação legal, de modo a
compatibilizar o direito de cada um com o direito dos demais.
Muitas vezes é preciso prever os meios para o exercício do
Direito. É assim com o Direito de acesso aos tribunais ou com os direitos
políticos. Sem uma lei para dizer como isto irá se operar, a previsão
constitucional é inócua.
Por isto, os juízes e tribunais encontram-se, não raro, ante a
tarefa árdua de garantir direitos fundamentais que não foram
regulamentados pelo legislador. Isto exige, muitas vezes, uma
interpretação “extensiva” do ordenamento jurídico, quando não uma
verdadeira criação de normas pelos tribunais.
Neste sentido, é importante destacar a iniciativa do constituinte
brasileiro de 1988, ao prever o Mandado de Injunção e criando um canal
de reivindicação social pelo cumprimento de direitos constitucionalmente
reconhecidos. O art. 5º da Constituição brasileira de 1988, em seu inc.
LXXI, prevê o seguinte: “– Conceder-se-á mandado de injunção sempre
que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos
direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à
nacionalidade, à soberania e à cidadania”267.
266
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 124.
267
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
10.
Fundamentos do Direito Constitucional 173

Faz-se mister trazer as impressões de José da Silva Pacheco, em


seu Ações Constitucionais Típicas, para esclarecer ao leitor as dificuldades
até agora encontradas para a aplicação efetiva do Mandado de Injunção.
Este autor aponta duas posições adotadas para a discussão do
Mandado de Injunção. A primeira, de inspiração portuguesa e
tradicionalmente adotada no Brasil, considera indevida a interferência do
Poder Judiciário nas tarefas do Legislativo, sob a alegação de que “a) ao
Juiz caberia somente aplicar a lei existente e nunca suprir a norma
inexistente; b) ao Juiz não caberia fazer as vezes do legislador”268. Tal
posição, cômoda e inflexível, vai às raias de considerar impertinente,
sequer, a imposição de prazo para que o Legislativo ou o Executivo
promovam a regulamentação reivindicada.
A segunda posição, com a qual se está de acordo, é assentada na
obrigatoriedade das normas e garantias constitucionais e no princípio de
que é obrigação do Estado propiciar os meios para que o cidadão possa
exercer os seus direitos e garantias constitucionais, de modo que “a
omissão de algum setor ou poder público não tolha nem impeça aquele
exercício, sob pena de negação da norma, o que seria contraditório e
absurdo e, por isso mesmo, inconcebível e inadmissível”269.
Numa Sociedade que se habituou ao tradicional sistema de
Direito Positivo, no qual o juiz, muitas vezes aparece como mero
aplicador do mesmo, é natural a reação ao Mandado de Injunção, que
poderia facultar aos cidadãos a invocação do Poder Judiciário para suprir
a lacuna legal.
Mesmo assim, numa posição bastante avançada, caso o
Parlamento não cumpra o prazo estabelecido por ele para a produção da
norma regulamentadora, “o Supremo Tribunal Federal tem-se inclinado a
deferir o Direito de o interessado ajuizar ação indenizatória contra a
União Federal pela omissão”270.

7.7 A TITULARIDADE DOS DIREITOS E GARANTIAS


FUNDAMENTAIS
A ideologia ilustrada da modernidade, que reconheceu os
Direitos do Homem, identificava estes direitos com sendo de “todos” os
homens. Mesmo assim, a esta concepção se opunha e se opõe o fato
incontestável da existência de organizações estatais soberanas e, por isto,
de uma diferença de status entre as pessoas. Enquanto algumas delas
268
PACHECO, José da Silva. Ações constitucionais típicas, p. 293-294.
269
PACHECO, José da Silva. Ações constitucionais típicas, p. 293.
270
ARAUJO, Luiz Alberto David & NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito
constitucional. p. 120.
174 Paulo Márcio Cruz

serão nacionais em seus Estados, outras, nestes mesmos Estados, serão


consideradas estrangeiras.
Desde o início, a plena nacionalidade aparece como requisito
para que o indivíduo possa desfrutar por inteiro dos direitos
reconhecidos na Constituição de cada país. Além disso, deve-se ter em
conta que, nos primórdios do constitucionalismo, a nacionalidade não
coincidia com o fato de não ser estrangeiro. Também não eram
nacionais, por exemplo, os escravos. Inclusive entre os nacionais havia
discriminações no momento de exercer determinados direitos,
principalmente aqueles relativos à cidadania política. A Constituição
Imperial brasileira de 1822, por exemplo, alijava do processo eleitoral
aqueles nacionais que não tivessem determinadas posses.
A evolução histórica foi paulatinamente matizando ou
eliminando as diferenças, quanto ao exercício de direitos e garantias
fundamentais entre nacionais e estrangeiros, entre os próprios nacionais
e entre os diversos grupos sociais ou étnicos submetidos a tratamento
diferenciado. A extensão das declarações internacionais de direitos, que
reconhecem um elenco mínimo a todos os seres humanos, independente
de sua nacionalidade, possibilitou que, efetivamente, na grande maioria
dos ordenamentos jurídicos, não existam diferenças entre nacionais e
estrangeiros no que diz respeito ao conjunto de direitos
indissociavelmente ligados à dignidade humana, como o direito à vida,
à integridade física etc.
Ainda assim, em muitas Constituições, ainda estão reservados
direitos exclusivos aos nacionais, ou a autorização ao legislador para
que regule discricionariamente e de forma discriminatória os direitos
dos estrangeiros. Isto pode derivar de considerações econômicas, no que
se refere ao direito ao trabalho ou à livre residência, por exemplo, mas
sobretudo, de princípios políticos. A concepção da comunidade política
como comunidade nacional, unida por laços de cultura e sangue, faz com
que os direitos políticos se restrinjam aos nacionais, em maior ou menor
medida.
Há, entretanto, uma visível tendência no constitucionalismo
contemporâneo de permitir uma maior participação na vida política
àqueles estrangeiros que estejam vinculados à atividade da comunidade
nacional. Em muitos países é aceito o voto do estrangeiro, com seu
âmbito variando entre eles.
No Brasil, a Constituição da República de 1988 foi implacável
com os estrangeiros, residentes ou não. No art. 14, do capítulo que trata
dos direitos políticos, em seu § 2º, está previsto o seguinte: “Não podem
Fundamentos do Direito Constitucional 175

alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço


militar obrigatório, os conscritos”271.
E no § 4º do mesmo artigo prevê que: “São inelegíveis os
inalistáveis e os analfabetos”272.
Desta forma, a Lei Máxima acaba alijando os não nacionais da
vida política do país, já que são “inalistáveis”. Mesmo os estrangeiros
naturalizados brasileiros não podem exercer, por serem privativos aos
brasileiros natos, os cargos listados no § 3º, do art. 12. São eles:
I – de Presidente e Vice-Presidente da República;
II – de Presidente da Câmara dos Deputados;
III – de Presidente do Senado Federal;
IV – de Ministro do Supremo Tribunal Federal;
V – da carreira diplomática;
VI – de oficial das Forças Armadas;
VII – de Ministro de Estado da Defesa273.
A criação de organizações supranacionais, como a União
Européia e o Mercosul, supõe um incentivo na direção da generalização
da nacionalidade, já que a Soberania, nestes casos, está gradativamente
sendo trocada por autonomia pelos países-membros. Mas é preciso
observar com cuidado a evolução destes espaços comunitários, já que os
nacionalismos estão vivos, e bem vivos, em muitas de suas partes.
Também foram reduzidas, paulatinamente, se é que não
desapareceram, as diferenças entre os nacionais quanto à titularidade de
direitos. A conquista do voto feminino, em passado muito recente, é um
bom exemplo.
Coisa muito diferente é aquela referente aos requisitos
necessários para o exercício dos direitos e garantias individuais, dos
quais, a princípio, todos são titulares. É compatível com este
reconhecimento universal o estabelecimento de condições para o seu
exercício, derivadas da mesma essência do Direito. Assim, o direito ao
voto depende da idade como capacidade reflexiva e do domicílio como
forma de determinar onde e em quem se pode votar.
A mesma coisa acontece com os direitos de prestação, centrados
em grupos sociais determinados e nos quais não estão incluídos todos os
cidadãos, como é o caso das aposentadorias, pensões e assistência a
desempregados, por exemplo.
271
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 15.
272
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 16.
273
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 15.
176 Paulo Márcio Cruz

A igualdade jurídico-legal274 entre as pessoas não é afetada pela


existência de direitos e garantias sujeitas a requisitos de exercício, desde
que tais requisitos estejam abertos a todos. É importante notar que
também, num passado recente, determinados grupos sociais, por conta de
situações de discriminação histórica, passaram a ser beneficiários de um
tratamento preferencial, de forma a eliminar, definitivamente, esta
discriminação.
Desde este fato, pode-se dizer que estes grupos passaram a
desfrutar, provisoriamente, de um tratamento preferencial, de uma
discriminação positiva ou, em outros termos, de uma “ação afirmativa”.
Técnicas deste tipo foram aplicadas em algumas ocasiões para
possibilitar o acesso à educação e a determinados tipos de atividades
profissionais, tradicionalmente reservados a outros grupos sociais, de
pessoas pertencentes a minorias étnicas discriminadas, deficientes
físicos e mentais ou às mulheres, tradicionalmente excluídas de muitas
atividades públicas ou privadas.
Um bom exemplo é o previsto no art. 37, inc. VIII, da
Constituição brasileira de 1988, que trata da administração pública. O seu
teor é o seguinte:
VIII – a lei reservará percentual dos cargos e empregos
públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá
os critérios de sua admissão275;
Em muitos casos, foram estabelecidas quotas reservadas a
membros destes setores. A extensão da discriminação positiva e sua
legitimidade, é objeto, atualmente, de acirradas discussões, tanto no nível
doutrinário como no legislativo e jurisprudencial.

7.8 A DEFESA DOS DIREITOS E GARANTIAS


FUNDAMENTAIS PELOS CIDADÃOS
A tarefa dos parlamentos, enquanto representantes, no Estado
Democrático de Direitos, de todos os cidadãos, de delimitar os direitos e
garantias fundamentais constitucionalmente reconhecidas, é uma forma
para evitar uma excessiva liberdade de ação por parte do Poder
Executivo. Entretanto, isto não é o suficiente para garantir que não serão

274
Esta Igualdade tem um caráter distinto da Igualdade socialista democrática, por exemplo,
que além da igualdade jurídico-legal, reivindica também uma igualdade de oportunidades
para permitir a todos cidadãos alcançarem um mínimo indispensável de condições sociais
que garantam sua dignidade como pessoa humana.
275
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
43.
Fundamentos do Direito Constitucional 177

produzidas violações destes direitos ou que, se forem produzidas, vão ser


remediadas.
Junto com a reserva legal, que vincula ao centro de
representação democrática – o Parlamento – a regulamentação do
exercício destes direitos e garantias fundamentais, o meio que tem se
mostrado mais eficaz para assegurar a vigência real dos direitos
fundamentais é a capacidade de qualquer cidadão de reagir frente a
eventuais desrespeitos aos mesmos.
Já se assinalou anteriormente que o caráter imediatamente
vinculante e aplicável dos direitos e garantias individuais implica que a
inércia do legislador não seja obstáculo para sua efetiva vigência. Assim,
os direitos e garantias fundamentais se convertem em imediatamente
aplicáveis se os cidadãos podem invocá-los diretamente, opondo-se a
situações que avaliam contrárias aos seus legítimos interesses. Os direitos
e garantias fundamentais deixam de ser, assim, meras declarações e se
convertem em normas dotadas de plena vigência.
Os ordenamentos jurídicos contemporâneos tratam de prever
meios os mais diversos e de diferentes intensidades para que os cidadãos
possam reagir contra as violações aos direitos e garantias fundamentais.
Dois deles são, a seguir, destacados:
a) As queixas através de instituições especializadas.
O Ombudsman276
Uma forma de reação individual muito difundida no Ocidente é
aquela representada por queixas dirigidas a uma instituição encarregada
de supervisionar a ação dos poderes públicos, especialmente do Poder
Executivo, para se assegurar que sejam respeitados os direitos dos
cidadãos.
Estes tipos de instituições supervisoras estão amplamente
difundidas e têm sua origem na figura sueca do Ombudsman, que foi
imitada em muitos lugares, com nomes diferentes e funções muito variadas.
Alguns exemplos são o Defensor del Pueblo, na Espanha e na Argentina277,
e o Parliamentary Commissioner britânico278.

276
Figura originada em 1809, na Suécia, que controla a arbitrariedade dos poderes públicos,
e que pode ser traduzido como “pessoa que tramita”, ou seja, que não resolve sobre o mérito
de um assunto. É uma magistratura pessoal e independente, nomeada pelo Parlamento para
controlar a correta aplicação da lei e para defender os direitos fundamentais dos cidadãos em
seu contato com o Estado.
277
O Defensor del Pueblo, previsto na Constituição da República Argentina pode ser
melhor analisado na obra Lecciones de Derecho Constitucional, de Humberto Quiroga
LAVIÉ, na p. 186, cuja referência completa encontra-se na bibliografia deste livro.
278
Sobre isto ver DAVID, René. O direito inglês, p. 17 e s.
178 Paulo Márcio Cruz

Na realidade, trata-se de uma figura de recepção de queixas e


de elaboração de mensagens dirigidas a autoridades públicas,
principalmente ao Parlamento. Configura-se, de modo geral, como uma
“magistratura de opinião”, e tem caráter eminentemente auxiliar,
servindo para que outras instituições, como o já citado Parlamento e os
tribunais, conheçam e possam remediar as violações aos direitos e
garantias individuais que os cidadãos, ou a Sociedade, tenham levado ao
seu conhecimento.
No Brasil, algumas instituições possuem um Ouvidor ou, até,
um Ombudsman, como é o caso, atualmente, do Jornal Folha de São
Paulo. No nível público, as ouvidorias não têm tido muito destaque
como canal de comunicação, reivindicação e proteção dos direitos e
garantias fundamentais. Porém, o mais importante canal de proteção dos
direitos e garantias fundamentais no Brasil, atualmente, é o Ministério
Público.
Com o novo tratamento recebido da Constituição brasileira de
1988, o Ministério Público passou a assumir funções de vital importância na
defesa dos direitos e garantias fundamentais. O art. 129 da Carta Magna
brasileira de 1988 prevê o seguinte:
São funções institucionais do Ministério Público:
...
II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos
serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta
Constituição, promovendo a medidas necessárias a sua
garantia279.
Para José Afonso da Silva, “o Ministério Público vem ocupando
lugar cada vez mais destacado na organização do Estado, dado o
alargamento de suas funções de proteção de direitos indisponíveis e de
interesses coletivos”280. Esta lição do autor paulista reflete bem a posição
geral da doutrina brasileira sobre a função do Ministério Público na defesa do
direitos e garantias individuais e coletivos.
b) A proteção judicial aos direitos e garantias
fundamentais
A proteção judicial aos direitos e garantias fundamentais é,
efetivamente, mais relevante do que qualquer outra. Através desta
garantia os cidadãos podem não só informar às autoridades ou à opinião

279
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
66.
280
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. p. 510.
Fundamentos do Direito Constitucional 179

pública violações aos seus direitos, mas, sobretudo, exigir que estas
violações sejam prevenidas, impedidas ou remediadas.
A proteção judicial aos direitos e garantias fundamentais
consiste na possibilidade de que os cidadãos invoquem tais direitos ante
os tribunais e possam obter a proteção destes.
A proteção judicial representa, hodiernamente, um elemento
fundamental do sistema constitucional. E isto não só com relação aos
direitos e garantias fundamentais mas também com relação a todos os
direitos dos cidadãos, previstos pela Constituição ou por qualquer outra
norma jurídica formalmente válida.
De fato, a proteção judicial encontra-se tão necessariamente
ligada à existência de um direito, que se pode afirmar que um direito não
existe se não há a correspondente possibilidade de ação perante um
tribunal. Por este motivo e como já foi destacado, o direito de acesso aos
tribunais se autoconfigura como um direito fundamental, determinante
quanto ao status de cidadão no Estado Democrático de Direito. Faz parte
de toda ordem constitucional democrática, atualmente, o direito de todo
cidadão recorrer aos tribunais para defender seus direitos e interesses.
Esta possibilidade de acesso – que é, ao mesmo tempo, um
direito e uma garantia de direitos – ganha especial relevância no caso dos
direitos e garantias fundamentais. É certo que os direitos dos cidadãos
derivam do ordenamento jurídico e são reconhecidos pelas leis. Mas,
como foi visto, no caso dos direitos e garantias fundamentais, a origem é
a Constituição, e não dependem, desta forma, de qualquer instrumento
legal, a não ser para regulamentação.
Em outras palavras, os direitos e garantias fundamentais podem
ser exigidos perante os tribunais por intermédio de lei que o regulamente
ou, se tal não existe, diretamente com base no texto constitucional. Não
fosse assim, não haveria sentido em considerar a Constituição uma
“norma superior” no ordenamento jurídico.
A proteção judicial direta dos direitos e garantias fundamentais
não foi sempre reconhecida em todos os ordenamentos constitucionais.
Em muitos casos, as constituições previram, para sua postulação ante os
magistrados, que estes direitos e garantias fossem previstos em leis que
regulamentassem a Constituição.
Nos ordenamentos jurídicos ocidentais, esta proteção judicial
direta foi-se consolidando lentamente. Atualmente, a aplicabilidade direta
dos direitos e garantias fundamentais é a regra na quase totalidade dos
países do Ocidente e, portanto, sua proteção judicial imediata. No Brasil,
180 Paulo Márcio Cruz

por exemplo, o § 1º do art. 5º é claro: “As normas definidoras dos direitos


e garantias fundamentais têm aplicação imediata”281.
Também a Constituição Espanhola é muito clara a este respeito,
no seu art. 53, inclusive prevendo um procedimento “especial e sumário”282.

7.9 OS LIMITES DOS DIREITOS E GARANTIAS


FUNDAMENTAIS
O objeto e o que justifica a existência do Direito Constitucional
é o de tornar possível o máximo de liberdade com a manutenção de uma
ordem jurídica que permita a convivência social. Por isto, a liberdade
manifestada nos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente
reconhecidos deve ser compatível com os requisitos de sociedade
juridicamente ordenada e integrada por inúmeros indivíduos. A liberdade,
desta forma, não pode ser ilimitada. Este fato traz à discussão a questão
dos limites dos direitos fundamentais.
O primeiro limite que se pode discutir é aquele que se refere à
sua própria natureza, já que os direitos e garantias constitucionalmente
reconhecidos respondem a conceitos historicamente forjados, que se deve
ter em conta para não desvirtuar seu conteúdo.
Assim, o direito ao trabalho, reconhecido em muitas
constituições, não significa o direito de aceder a qualquer posto de
trabalho, nem o direito à educação significa a possibilidade de cursar
qualquer tipo de faculdade a qualquer tempo. Os direitos e garantias
fundamentais correspondem, portanto, a noções técnico-jurídicas, com
um significado definido pela doutrina, pela jurisprudência e pela
legislação.
Mas o limite mais relevante aos direitos e garantias
fundamentais, analisado sob a ótica do ordenamento jurídico, é o que
deriva da existência do direito dos demais cidadãos. A vida social implica
a co-existência e interrelação de numerosos indivíduos, com esferas
próprias de autonomia constitucionalmente consagradas, fazendo
necessário definir cada uma delas para que seja possível a co-existência
de todas. E esta não é uma tarefa fácil. Cada um dos direitos de uma
pessoa deve ser definido levando em conta o direito das outras pessoas.
As declarações constitucionais de direitos exigem, portanto,
uma leitura integral de seu conteúdo e uma regulamentação legislativa
infraconstitucional para seu ajuste e delimitação. A liberdade de
movimento de um indivíduo vê-se limitada pelo direito à inviolabilidade
do domicílio de outro. O direito à liberdade de expressão, pelo direito à
281
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 11.
282
GUERRA, Luiz López. Constitución espanhola, p. 57.
Fundamentos do Direito Constitucional 181

honra, e assim sucessivamente. Trata-se de limites externos de direitos e


garantias fundamentais que devem obedecer à presença de outros direitos
que devem ser respeitados.
Estes “limites externos” podem derivar, além disso, de outros
fatores, que são decorrentes de direitos sociais aplicáveis ao conjunto da
Sociedade ou de grupos sociais muito amplos. A ordem pública, a paz dos
cidadãos, a saúde, a estabilidade econômica podem representar, entre
muitos outros fatores, limitações que afetam os direitos dos indivíduos.
Na Sociedade urbanizada e industrializada, a interdependência
da vida social condiciona, cada vez mais, a autonomia do indivíduo. A
vida em Sociedade seria impossível sem limites ao direito de propriedade,
através de regras urbanísticas de edificação, uso e parcelamento do solo,
ao direito de circulação, como a restrição ao tráfico de entorpecentes, ou
de reunião e manifestação.
Além disto, qualquer vida social seria impossível sem os
limites derivados da proteção ao meio ambiente ou da ação sanitária do
Estado. Estes limites, que afetam cada vez mais a esfera da livre
disponibilidade dos cidadãos são, como a experiência tem mostrado,
imprescindíveis.
O delicado equilíbrio entre necessidades sociais e liberdade
individual é, sem dúvida, um dos problemas jurídico-político-
constitucionais que mais necessitam de análise e discussão atualmente.
182 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 8

DEMOCRACIA E ESTADO
CONSTITUCIONAL

8.1 CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA


As técnicas empregadas, no início do constitucionalismo, para
garantir a liberdade dos cidadãos foram, como já visto, a separação dos
poderes e o reconhecimento dos direitos dos membros da comunidade
política. Sendo assim, o desenvolvimento e consolidação dos regimes
constitucionais e a garantia efetiva e ampla da liberdade só foram
conseguidos, historicamente, através da introdução de um terceiro
elemento, que se revelou insubstituível, em última análise, como
definidor do constitucionalismo moderno: o estabelecimento de
instituições democráticas e a consagração do princípio democrático como
inspirador de toda estrutura do Estado.
A efetivação do princípio democrático pressupõe que as
decisões públicas devem ser adotadas através da participação, direta ou
indireta, dos cidadãos, e que, por isto, podem ser também modificadas ou
revogadas pela vontade deles. Isto supõe a existência de canais de
participação destes cidadãos na adoção de decisões públicas. Mas supõe
algo mais: que a mesma organização da comunidade política encontre sua
legitimidade e justificação na vontade popular.
Sem dúvidas, a legitimidade democrática representa hoje a
justificativa mais ampla para a organização do poder e para a existência
de autoridades com competência para tomar decisões e emitir ordens. Ao
longo da história, a existência de uma autoridade e sua pretensão de ser
obedecida esteve fundada em diversos tipos de legitimidades.
Lato sensu, como explica Osvaldo Ferreira de Melo,
legitimidade é o
conjunto de características com fundamentos na ética, na razão
ou na justiça, compadecentes com os padrões de determinada
Fundamentos do Direito Constitucional 183

sociedade, em determinado tempo. É conceito mais amplo que


o de legalidade, pois implica em consenso social,
independentemente de um poder coator. É a legitimidade que,
acima de tudo, respalda a autoridade283.
Durante muitos séculos, a autoridade, principalmente a
autoridade monárquica, baseou-se numa “legitimidade tradicional”,
derivada da identificação efetiva e simbólica do povo com uma instituição
– o Rei ou a Coroa – representante de uma comunidade formada ao longo
da história.
Em épocas de crise e insegurança, tem sido freqüente,
principalmente num passado próximo, o aparecimento do fenômeno da
“legitimidade carismática” da autoridade, que sempre tem a pretensão de
se justificar pela atribuição desta a um líder excepcional, “ungido” pela
Divindade – daí o termo carismático 284 – e escolhido para guiar a
comunidade em tempos difíceis. Foi assim com o Führer, com o Duce e
com alguns caudilhos.
Mas nas sociedades contemporâneas, que experimentaram as
desvantagens e também as iniqüidades da Monarquia Absoluta e das
ditaduras carismáticas, as autoridades públicas assentam sua autoridade
na atuação obediente à lei como norma geral e racional, expressão da
vontade da comunidade. Assim, a “legitimidade democrática” aparece
como uma variante da “legitimidade legal” ou “racional”.
Desta forma, a autoridade se justifica porque sua existência e
atuação não são expressão de um “mandato tradicional” nem de uma
“personalidade excepcional”, mas sim, a expressão da vontade da
comunidade, que designa, por meio de regras de alcance geral, quem
poderá mandar e como fará isto.
Constitucionalismo e Democracia não têm sido, até
recentemente, termos necessariamente identificados. Durante o século
XIX, nos primeiros regimes constitucionais, mesmo com o
estabelecimento da separação dos poderes, alguns destes poderes eram
atribuídos a instituições baseadas na legitimidade tradicional, não
democrática. O Poder Executivo era atribuído ao Rei e parte do Poder
legislativo à nobreza, de maneira que em muitos casos coexistiram,
dentro do Estado Constitucional, instituições que não eram derivadas da
vontade popular, como o Rei ou as Câmaras Nobiliárias, com outras que
representavam o povo, como as Câmaras Baixas do Parlamento.
A adoção do princípio democrático (que supõe a legitimidade de
todas instituições em forma direta ou indireta), dentro dos regimes
283
MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionário de direito político, p. 73.
284
Sobre isto ver MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionário de direito político, p. 16.
184 Paulo Márcio Cruz

constitucionais, foi resultado de um processo lento e com muitas


dificuldades. Somente no começo do século XX foi possível falar de um
predomínio do constitucionalismo democrático nos países da Europa e
América. Até este momento, a maioria dos regimes constitucionais,
mesmo pretendendo garantir um considerável nível de liberdade
individual e ordem pública, deixavam fora da vida política uma boa – ou
a maior – parte da população.
Na realidade, deve-se falar, neste aspecto, de duas perspectivas
do constitucionalismo: uma, representada pela, hoje dominante, tradição
democrático-igualitária. A outra, predominante durante muito tempo,
ainda hoje presente em alguns países, que pode ser denominada de
“tradição do constitucionalismo elitista”.
a) A tradição do constitucionalismo democrático
Os princípios que inspiraram as revoluções francesa e norte-
americana do século XVIII supunham, levados às suas conseqüências
lógicas (o que nem todos estavam dispostos a fazer, como a prática
demonstrou), a necessidade de um sistema democrático para sua efetiva
realização. A filosofia revolucionária se assentava nos direitos do
indivíduo e na admissão da existência dos direitos do homem comuns a
todos. Isto representava, forçosamente, o reconhecimento de uma
igualdade essencial entre os homens. Criou-se, então, o primeiro grande
confronto entre os princípios de Liberdade e Igualdade.
Por isto, sendo necessária uma autoridade, esta só será compatível
com a igualdade se for proveniente da livre vontade de todos os cidadãos,
que decidiram submeter-se voluntariamente a esta autoridade, e não de uma
situação privilegiada de um ou de uns poucos indivíduos, determinada pelo
nascimento ou pela riqueza. Esta autoridade deve fundar-se, portanto, na
livre escolha dos cidadãos como expressão da vontade comum destes.
Esta posição encontra sua expressão inicial, e ainda válida, em
Jean-Jacques Rousseau, com seu O Contrato Social285, e supõe uma
estreita conexão entre igualdade e Democracia. Rousseau defendeu que a
criação de uma comunidade política se daria através de um pacto social e
do voto de todos os cidadãos. A comunidade seria criada por conta do
acordo firmado entre seus membros, que pactuariam submeter-se a um
poder comum, que exerceria sua soberania sobre todos.
Aparece, assim, uma nova categoria, denominada de
“comunidade política”, acima dos interesses individuais de seus
membros, mas que expressa a vontade destes. É como propôs Rousseau,
quando escreveu que,

285
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social, 145 p.
Fundamentos do Direito Constitucional 185

submetendo-se cada um a todos, não se submete a ninguém em


particular, e como não há um associado sobre o qual não se
adquira o mesmo direito que se cede sobre si próprio, ganha-se
a equivalência de tudo o que se perde e maior força para
conservar a que se possui286.
Igualdade entre os membros da comunidade, definição da
vontade desta como vontade coletiva, sujeição de todos a esta vontade
serão os elementos fundamentais da tradição democrática do
constitucionalismo.
Deste ponto de vista, a Democracia supõe a equivalência das
vontades e interesses de todos os membros da comunidade política.
Assim, a vontade individual aparece como um fator fundamental para
toda discussão em torno da Democracia. Isto pode ser explicado pelo fato
de que cada indivíduo tem seus próprios interesses a defender e,
conseqüentemente, suas próprias opiniões sobre que direção devem tomar
os assuntos públicos que podem afetá-lo.
John Stuart Mill, em sua obra O Governo Representativo287,
assinalou que, fosse qual fosse a riqueza ou educação do indivíduo, ele
sempre estaria sujeito às decisões públicas, que incidiriam, assim, em seu
âmbito de interesse. Claro que há diferenças abissais entre indivíduos no
que diz respeito à educação, experiência ou riqueza, mas isto não pode
servir de justificativa para que a opinião – ou interesses – de alguns,
tenham um valor superior à de muitos. Assim, devem ser respeitadas, da
mesma forma, as opiniões de um Doutor em Direito ou de uma pessoa
que tenha tido somente a educação primária. Ambos são cidadãos, ambos
têm interesses próprios a defender. Cada um deles sabe, melhor que
qualquer outro, quais são estes interesses.
Os resultados desta concepção tornaram-se perceptíveis na
defesa da forma de governo republicana, com todas as atividades públicas
vinculadas à vontade da comunidade, de forma direta ou indireta, também
na adoção do voto direto, secreto, universal e periódico como forma de
conformar as instituições decisórias fundamentais.
Ainda com relação a isto, deve-se realçar que a regra essencial
do procedimento democrático passou a ser a regra da maioria, derivada
do respeito à liberdade como princípio fundamental. Caso não haja
acordo de todos, deverá prevalecer a opinião sustentada pelo maior
número, de forma que seja a minoria e não a maioria a que veja sua
posição inicial contrariada. Que sejam as minorias que se submetam às
decisões da maioria e não ao contrário.

286
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social, p. 36.
287
MILL, John Stuart. O governo representativo, 236 p.
186 Paulo Márcio Cruz

b) A tradição elitista do constitucionalismo


Os princípios democráticos, que hoje aparecem como parte dos
valores natural e implicitamente admitidos como regras gerais da vida
política, não encontraram, sem dúvida, aplicação imediata nos regimes
constitucionais. Pelo contrário, já que os primeiros ordenamentos
constitucionais apenas tangenciavam o princípio democrático.
Deve-se ter em conta, portanto, que a introdução do princípio
democrático supôs profundas conseqüências econômicas e sociais, já que
implicaram o acesso ao poder de setores mais numerosos e
desfavorecidos da Sociedade, em detrimento daqueles que
tradicionalmente ostentavam o poder político e econômico, com as
conseqüentes mudanças e transformações sociais.
A resistência a tais mudanças se manifestou, nos primórdios do
constitucionalismo, na manutenção de poderes tradicionais, como a
monarquia e a nobreza, ao lado de novos órgãos de representação popular,
como as Câmaras Baixas, dando lugar a Monarquias Constitucionais com
coexistência e equilíbrio de legitimidades. Entretanto, vale destacar que
dentro dos órgãos representativos, o princípio democrático, que conduzia
a uma representação universal e igualitária, encontrou sérias resistências
baseadas na concepção elitista da comunidade política.
A origem desta tese elitista é a influente obra de Sieyès A
Constituinte Burguesa (ou O que é o Terceiro Estado), publicada em
1789 (ver Capítulo III). De acordo com esta posição, a Soberania
pertence à Nação como entidade coletiva, com uma personalidade
própria, que não se identifica com a simples soma dos indivíduos que a
compõem. A expressão da vontade da Nação e de seus interesses como
um ente coletivo, é uma função que deve ser destinada aos mais capazes
para isto. O voto aparecia, assim, não como um direito de todo cidadão,
mas sim, como uma função – a de determinar o melhor para a Nação –
que só poderia ser exercida por aqueles que reuniam determinados
requisitos, que normalmente diziam respeito à capacidade econômica
(voto censitário) e depois a títulos acadêmicos e profissionais (voto
capacitário).
O exemplo clássico desta concepção é a Constituição
revolucionária francesa de 1791, que considerava cidadão ativo, ou seja, com
direito ao voto, o francês maior de vinte e cinco anos que não fosse
empregado doméstico e que pagasse, a título de imposto eleitoral, pelo
menos valor igual ao de três jornadas de trabalho. Dallari escreve, sobre o
caráter elitista do primeiro constitucionalismo, que
como bem observou Darcy Azambuja, os legisladores da
Revolução Francesa foram contraditórios, pois ao mesmo tempo
Fundamentos do Direito Constitucional 187

em que sustentavam a igualdade de todos, admitiam que a


sociedade deveria ser dirigida pelos mais sensatos, mais
inteligentes, pelos melhores, que compõem, segundo se admitiu,
a elite social288.
Para a identificação desta elite, Dallari aponta um duplo
critério: “o econômico, afirmando-se como os mais capazes os que
possuíssem bens de fortuna; e o intelectual, considerando-se mais
capazes os que tivessem mais instrução”289.
Esta posição da burguesia, que proporcionou a base teórica ao
sufrágio restrito, vigente na maioria dos países europeus até o começo do
século XX, assim como em vários Estados norte-americanos – através do
poll tax, o imposto eleitoral – é, sem sombra de dúvida, logicamente
defeituosa. Primeiro, por conta da assertiva de que o sufrágio serve para
decidir sobre quais questões, mesmo com uma dimensão coletiva, têm
uma inegável repercussão nos interesses individuais, já que quem vota
decide sobre questões tanto de interesse geral como particular e, como já
foi dito, ninguém está melhor qualificado para decidir seu interesse do
que o próprio cidadão, seja ele de que camada social for.
c) A implantação do constitucionalismo democrático
Ao longo dos séculos XIX e XX, a concepção democrática do
constitucionalismo foi a que se impôs. Foi estabelecido, assim, como fonte
de legitimidade do regime constitucional, o princípio democrático, o que
ficou explícito em muitas Constituições, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, como na da França, de 1958, em seu art. 2º290, na alemã de
Bonn, em seu art. 20, inc. 1º291 e na da Itália, no caput do seu art. 1º292.
Atualmente, a manutenção de algumas instituições,
principalmente a Coroa, nas monarquias, não é obstáculo à Democracia,
pois existem submetidas à Constituição. Trata-se de instituições de caráter
essencialmente simbólico e com funções de representação da entidade
coletiva, desprovidas de capacidade de direção dos assuntos públicos e,
por isto, sem criar qualquer contradição com o princípio do caráter
decisivo da vontade popular.
Fundamentalmente, o princípio democrático implica a
participação de todos os cidadãos, através do voto universal, na escolha
dos governantes e, direta ou indiretamente, a adoção das decisões

288
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, p. 156.
289
Idem.
290
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições de outros países. p. 441.
291
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 147.
292
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições de outros países, p. 519.
188 Paulo Márcio Cruz

públicas. Hoje em dia, o sufrágio universal é um elemento comum em


todos os regimes constitucionais, pelo menos nos ocidentais.
Mas a passagem do sufrágio restrito ao sufrágio universal foi
lenta e alcançada por fases. Primeiro, o sufrágio universal masculino,
que excluía a mulher do voto, implantado na segunda metade do século
XIX e princípios do século XX. O direito de voto às mulheres foi
admitido, de forma pioneira, na Alemanha da Constituição de Weimar,
de 1919; no Brasil, com a Constituição de 1934, na Inglaterra, só para
as mulheres com mais de trinta anos, em 1945 e, na tão decantada
Suíça, só em 1978.
Progressivamente foram sendo minoradas as exigências quanto
à idade mínima para o exercício do voto, atualmente sendo comum os
dezoito anos como início da capacidade política. No Brasil da
Constituição de 1988, isto acontece aos dezesseis, de forma optativa, e
aos dezoito de forma obrigatória.
Mesmo com todos os avanços da Democracia Representativa,
muitas questões ainda estão por ser resolvidas. Entre elas está a
extensão do voto aos estrangeiros residentes, já que eles estão
evidentemente interessados nas decisões públicas, considerando que têm
direitos a defender e pagam tributos ao Estado. Neste sentido, existem
ordenamentos que permitem o voto dos estrangeiros residentes, com
intensidade variável.

8.2 A DEMOCRACIA DIRETA


Para ser rigorosamente enquadrada ao princípio democrático,
esta forma de exercício da Democracia, aplicada à vida pública, deveria
consistir na adoção, pela totalidade dos cidadãos, de todas as decisões de
transcendência pública. Até hoje não faltaram defensores da Democracia
Direta como única expressão verdadeira da Democracia, com qualquer
outro procedimento falseando a vontade popular.
A lição de Kelsen, em seu A Democracia, referindo-se a
Rousseau, é paradigmática, quando diz que
seu ataque ao princípio parlamentar da Inglaterra mostra até
que ponto ele considera a liberdade como pedra fundamental e
como eixo do seu sistema político: ‘o povo inglês acredita ser
livre mas está enganado: é livre apenas durante as eleições dos
membros do parlamento; eleitos estes membros, ele vive em
escravidão, é um nada.’ Está claro que daí Rousseau deduz o
princípio da democracia direta293.

293
KELSEN, Hans. A democracia, p. 29.
Fundamentos do Direito Constitucional 189

Apesar destas posições apontadas no parágrafo anterior, o certo


é que, hoje, o exercício da Democracia através da aprovação das decisões
públicas por todos os cidadãos não pode ser visto além de uma exceção,
dada a complexidade, extensão e contingente populacional do Estado
Contemporâneo, além da complexidade e quantidade de decisões que
precisam ser adotadas. Bobbio é muito claro neste sentido, ao escrever
que
é evidente que, se por democracia direta se entende,
literalmente, a participação de todos os cidadãos em todas as
decisões a eles pertinentes, a proposta é insensata. Que todos
decidam sobre tudo em sociedades sempre mais complexas
como são as modernas sociedades industriais é algo
materialmente impossível294.
Com relação à extensão e ao contingente populacional do
Estado Contemporâneo, é evidente a impossibilidade de reunir todos os
cidadãos para que atuem em assembléia, ao estilo das assembléias
populares das Cidades-Estado gregas, nas quais o número de cidadãos era
reduzido. Caso a Democracia Direta se restrinja ao simples voto negativo
ou afirmativo, o custo de muitos referendos seria excessivamente alto e a
exigência de contínuas consultas deste tipo tornariam a Democracia
Direta impraticável.
Além deste, há argumentos adicionais. Os procedimentos
baseados na Democracia Direta, como o referendo, mostraram-se muito
rígidos nas complexas decisões adotadas nos Estados contemporâneos,
afetadas por interesses muito variados e opostos. Muitas questões
necessitam de soluções mais elaboradas do que um simples “sim” ou
“não”, já que em muitas ocasiões são necessárias negociações e acordos
entre os interessados para se chegar a soluções que sejam admitidas por
uma maioria. Isto requer um processo de deliberação que só pode ser
efetivado por um grupo não muito amplo de indivíduos.
Em muitas ocasiões, submeter uma questão à decisão de todos
os cidadãos impede que sejam estabelecidos acordos para conciliação de
posições divergentes.
Tudo isto fez que os procedimentos da Democracia Direta
sejam hoje, em muitos países, de importância secundária ou, melhor
dizendo, de utilização rara. Alguns autores, como Diheter Noellen 295,
chegam a afirmar que a Democracia Direta “complementa” a
Democracia Representativa.

294
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, p. 42.
295
NOELLEN, Diheter. Sistemas electorales del mundo, p. 98.
190 Paulo Márcio Cruz

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a


Democracia Representativa está destacada no parágrafo único do art. 1º, que
reza o seguinte: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”296.
Já os instrumentos de Democracia Direta estão formalmente
previstos no art. 14, incs. I, II e III, da Constituição da República de 1988.
É seu teor:
A Soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos
termos da lei, mediante297:
I – plebiscito;
II – referendo;
III – iniciativa popular298.
Assim, pode-se, como exercício de caracterização e
conceituação, tratar das formas de Democracia Direta mais emblemáticas
previstas no texto constitucional brasileiro de 1988.
a) O referendo
O referendo consiste em submeter uma decisão, normalmente
deliberada pelo Parlamento ou, excepcionalmente, pelo Poder Executivo,
ao conjunto de todos os cidadãos, para que estes se pronunciem sobre sua
aprovação ou desaprovação a ela. O referendo representa, portanto, uma
manifestação direta da vontade popular.
Os modelos e técnicas de referendo utilizados nos textos
constitucionais contemporâneos são muito diversos. Sem dúvida, é
possível apontar alguns critérios gerais para sistematizar ou classificar as
consultas referendárias. Deste modo, faz-se mister elencar os seguintes:
1 – Quanto à matéria – os referendos podem versar sobre a
aprovação de textos normativos, como leis ou constituições, ou
sobre outro tipo de iniciativa, como propostas de política geral,
adesão a comunidades de Estados, como a União Européia, ou
a censura a algum governante. São de especial importância os
referendos constitucionais, que completam o trabalho do Poder
Constituinte;

296
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 03.
297
Os instrumentos de Democracia Direta, previstos no art. 14 da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, estão regulamentados pela Lei Complementar
9.709/98.
298
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
29.
Fundamentos do Direito Constitucional 191

2 – Quanto à necessidade – os referendos podem ser


preceptivos ou facultativos. No primeiro caso, a consulta
popular e seu resultado afirmativo são necessários para a
validação de uma decisão. No segundo caso, a consulta à
população eleitora é opcional e esta decisão cabe,
normalmente, ao Parlamento ou à iniciativa popular;
3 – Quanto ao momento – o referendo só pode ser celebrado
antes que a decisão objeto de deliberação da sociedade esteja
efetivamente em vigor. O referendo tem, deste modo, a
capacidade de validar ou não uma proposta. Em alguns raros
casos, o referendo pode versar sobre resoluções ou normas já
em vigor, como é o caso da Constituição da Itália, em seu art.
75, ao prever que “o referendum popular é convocado para
deliberar sobre a anulação, total ou parcial, de uma lei ou de
um ato que tenha valor em lei, quando o requeiram duzentos
mil eleitores ou cinco Conselhos Regionais”299;
4 – Quanto aos efeitos – o referendo pode ser dividido em
vinculante, que obriga à obediência ao resultado, sendo sua
decisão superior hierarquicamente a qualquer outra, ou
consultivo, no qual o resultado da “consulta” popular seria um
dado a mais, mas não o único a ser considerado na hora da
tomada de decisão.
O referendo é, assim, muito mais um complemento da
Democracia Representativa, como quer Noellen, do que um instrumento
de decisão autônomo.
b) O Plebiscito
O plebiscito difere do referendo, principalmente por destinar-se
a decidir previamente uma questão política ou institucional, antes de sua
formulação legislativa. Já o referendo, como dito acima, trata da
aprovação de regulamentos, decisões, projetos de lei ou reformas
constitucionais já deliberados pelos poderes do Estado.
Como escreve Osvaldo Ferreira de Melo, “o plebiscito difere do
referendo especialmente por ser episódio excepcional e independer da
participação do Parlamento. É ato exclusivo de manifestação popular”300.
O plebiscito aprova ou não uma questão política, que depois, se
for o caso, será especializada pelos órgãos do Estado.
Um exemplo de como funciona o plebiscito é o previsto no art. 2º
do Ato das Disposições Transitórias da Constituição Brasileira de 1988. Por
299
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 16.
300
MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionário de política. p. 99.
192 Paulo Márcio Cruz

decisão do constituinte originário, no dia 07.09.1993, o povo brasileiro


eleitor foi conclamado a optar entre Presidencialismo e Parlamentarismo e
entre República e Monarquia. Como a escolha popular recaiu sobre o
Presidencialismo e a República, não houve necessidade de qualquer
alteração no texto da Constituição ou de qualquer lei infraconstitucional.
Caso a opção tivesse sido, por exemplo, pelo Parlamentarismo e
pela República, a Constituição brasileira de 1988 deveria,
obrigatoriamente, ser reformada, de maneira a passar a prever o novo
sistema de governo parlamentar. O Poder Constituinte Derivado, atendendo
à determinação do povo, funcionaria para tal fim. A decisão política foi
tomada pelo povo. Sua transformação em norma jurídica seria feita pelo
Parlamento.
c) A iniciativa popular
A iniciativa popular pode ser considerada uma forma atenuada de
participação direta dos cidadãos, possibilitando que estes apresentem projetos
de decisões políticas – normativas ou de outro tipo – para que sejam
discutidas e votadas pelos Parlamentos. Na Constituição Brasileira de 1988, a
iniciativa popular está prevista, lato sensu, no art. 14, inc. III, e stricto
sensu, no § 2º do seu art. 61, Este último tem a seguinte redação:
A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à
Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no
mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo
menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por
cento dos eleitores de cada um deles301.
Consiste, portanto, a iniciativa popular, na possibilidade de o
eleitorado apresentar, por escrito, projeto de lei que tramitará no Poder
Legislativo em paridade com os projetos apresentados pelos
parlamentares. Não há qualquer garantia de sua aprovação, já que será
submetido ao juízo dos parlamentares, que poderão aprová-lo ou não.
No Brasil, a iniciativa popular está prevista também na maioria
das constituições dos Estados federados e em grande parte das leis
orgânicas dos Municípios.
d) O Júri popular como forma de Democracia Direta
Como já foi dito em capítulo anterior, a função jurisdicional
aparece, atualmente, justificada pela submissão do Juiz à Lei, o que exclui
seu livre-arbítrio. Por isto, não seria compatível – e operacional – a função
judicante com a decisão de cada caso de acordo com a vontade popular do
momento. A aplicação da lei é que deve refletir a vontade popular, sem que
301
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
44-45.
Fundamentos do Direito Constitucional 193

esta se manifeste de outra forma. Mesmo assim, alguns ordenamentos


prevêem uma forma de participação direta dos cidadãos na Administração da
Justiça, através da instituição do Tribunal do Júri, órgão total ou parcialmente
– dependendo do país – composto por cidadãos selecionados por sorteio. É o
Juiz quem aplica a lei, igual para todos, mas é o corpo de jurados quem
decide sobre se houve alguma atuação contrária aos termos da Lei ou não302.
No Brasil da Constituição de 1988, a instituição do júri está
prevista no art. 5º, que trata Dos Direitos e Deveres Individuais e
Coletivos, em seu inc. XXXVIII, cujo teor é o seguinte:
é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe
der a lei, assegurados:
a plenitude de defesa;
o sigilo das votações;
a soberania dos veredictos;
a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a
vida303.

8.3 A DEMOCRACIA REPRESENTATIVA


A inviabilidade da participação direta da comunidade política em
todas as decisões, através da intervenção direta nas decisões públicas de
todos seus membros implica, para se manter o princípio democrático, que
esta intervenção seja levada a cabo de uma maneira indireta, através de
sujeitos que atuem em nome da comunidade, ou seja, representando-a, no
sentido de que se possa considerar que sua vontade expressa a vontade da
comunidade política e, portanto, que seja possível considerar que o decidido
por estes “representantes” seja imputado a toda comunidade como decisão
desta.
O conceito e a técnica da representação política aparecem,
assim, como fundamentais para a existência do próprio Estado
Democrático Constitucional. De fato, a Democracia representativa é,
atualmente, um elemento característico de praticamente todos os Estados
constitucionais. A Democracia, dentro do que é possível, é levada a cabo
através de mecanismos de representação política. Isto confere uma
importância singular à figura do representante, tornando-se transcendente
determinar quais são suas capacidades de atuação – até onde chega sua
representação – e qual é sua relação com os representados.

302
Há em alguns países, inclusive, como no Brasil, propostas para ampliação da área de
atuação do Tribunal do Júri, exatamente por sua característica representativa e
democrática.
303
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 7.
194 Paulo Márcio Cruz

Deve-se sublinhar que o conceito de representação para o


Direito Constitucional é notavelmente diferente da representação para o
Direito Privado, principalmente porque o primeiro limita a possibilidade
de revogação do mandado do representante pelo representado.
O conteúdo da representação democrática atual só pode ser
compreendido se considerada sua evolução histórica.
a) A evolução da representação política
A partir da Idade Média se generalizaram, como já foi dito, as
assembléias estamentais, nas quais figuravam representantes de diversos
setores sociais ou estamentos, como a nobreza, o clero, as cidades etc.,
encarregados de expor ao Rei as suas demandas e de negociar os apoios e
subsídios necessários. Tratava-se, no sistema dualista medieval, da
representação do Regnum304 ante o Rex.
Essa representação diferia fundamentalmente da atual. Os
membros das assembléias medievais atuavam unicamente em nome de
seus estamentos, que não compreendiam mais do que uma parte muito
reduzida do total da população. Pretendiam, expressamente, defender os
interesses dos grupos que as haviam enviado à assembléia. A escolha dos
membros das assembléias medievais era realizada por eleições restritas,
como para os representantes das cidades, por sorteio, por designação
pessoal ou simplesmente como resultado do Direito de Herança, como no
caso dos representantes da nobreza.
Como conseqüência, os representantes das cidades, motivados
por argumentos de Direito Privado, podiam atuar nas assembléias
seguindo, em todo caso, as instruções recebidas de seus representados.
Isto é, podiam adotar somente aquelas decisões – e naquele sentido – para
as quais haviam sido expressamente autorizados em seus “cadernos de
instruções”305. Esta técnica, designada de mandato imperativo, supunha
que estes representantes não poderiam ir além das instruções recebidas,
nem contraditá-las, sob pena da revogação de seus mandatos ou de
sanções mais graves. Era comum a execução de representantes das
cidades que haviam aprovado impostos sem autorização dos
representados. Caso surgissem assuntos novos, não previstos em suas
instruções, os representantes deveriam voltar às sua cidades e obter novas
orientações ou direções.
Naturalmente, este sistema tornou-se impraticável, na medida
em que aumentavam os poderes das assembléias, que passaram a ocupar-
se, cada vez mais, de assuntos novos e imprescindíveis. Desta forma,
ficou evidente sua influência, decisiva, no desenvolvimento do conceito
304
Regnum, em latim, significa Reino (conjunto de cidadãos do Reino).
305
Sobre isto ver CAMPILONGO, Celso. Direito e democracia, p. 46 e s.
Fundamentos do Direito Constitucional 195

de representação política no constitucionalismo moderno e


contemporâneo, como no caso do Parlamento britânico, que serviu de
modelo para muitos países. Na medida em que aumentavam os poderes e
funções do Parlamento, ficava evidente que seus membros só poderiam
atuar de maneira eficaz se contassem com liberdade de ação.
Por outro lado, muitas decisões só eram possíveis depois de
negociações e acordos entre os representantes, ocasiões em que estes
deveriam contar com uma ampla margem de ação para alcançar os pactos
que viabilizassem as deliberações.
Isto foi dando lugar à prática consistente de que o representante
contava com um poder geral de mandato para atuar. Além disto, este
poder geral referia-se aos interesses de todo o conjunto representado no
Parlamento – assim já era um Parlamento, e não uma mera assembléia –
posto que as resoluções daquele afetavam toda a Nação. Desta forma, o
representante passou a atuar não por instruções mas sim, por sua própria
avaliação do interesse geral da Nação.
b) A doutrina do mandato representativo
Esta situação, derivada, na Inglaterra, de necessidades práticas,
viu-se justificada teoricamente nas origens do constitucionalismo
revolucionário francês através da “doutrina do mandato representativo”
que, apesar de seu discutível rigor lógico, foi a base dos sistemas
representativos europeus durante muito tempo, mantendo, ainda hoje,
com muitas variações, sua vigência como fonte inspiradora do
ordenamento.
Esta “doutrina do mandato representativo” poderia ser resumida
nos seguintes pontos:
1 – a Soberania está na Nação, como sujeito único e
indissolúvel;
2 – a Nação só pode atuar por delegação, que recai em seus
representantes;
3 – os representantes atuam em nome de toda Nação e não só
no dos eleitores de suas circunscrições eleitorais;
4 – os representantes não estão sujeitos a instruções específicas
dos eleitores, pois o interesse da Nação é que deve guiá-los;
5 – Em termos gerais, os representantes não estão sujeitos à
revogação sumária de seus mandatos, a não ser em casos
específicos de dissolução do parlamento ou quebra do
decoro parlamentar.
196 Paulo Márcio Cruz

A “doutrina do mandato representativo” 306, já presente na


Constituição Francesa de 1791, inspirou decisivamente o funcionamento
da Democracia Representativa. A evolução política e constitucional tornou
pacífico, atualmente, o entendimento de que só podem considerar-se
representantes da comunidade aqueles que forem eleitos por ela para
tanto, ou seja, fazendo equivaler eleição e representação, negando que
instituições como a Monarquia sejam representativas do povo.
Assim, os representantes eleitos pelo povo devem perseguir o
interesse da comunidade, segundo suas convicções, sem estar submetidos
às instruções ou decisões tomadas por seus eleitores.
São estas condições, junto com a renovação periódica da
representação política, as que garantem a existência de uma desejável
relação entre a vontade da comunidade e a atuação de seus representantes.
À luz da “doutrina da representação”, a Democracia
Representativa apresenta traços próprios, que diferenciam a representação
política da representação no Direito Privado, como já foi assinalado. O
representante o é, inclusive, daqueles que não tenham votado nele ou
mesmo tenham votado contra. Neste caso, se seus eleitores estão em
desacordo com sua atuação, não podem impedi-la nem revogar seu
mandato. Desta forma, como já se salientou, só existe uma forma
ordinária para exigir a responsabilidade política do representante político,
que consiste em negar-lhe o voto nas eleições seguintes, supondo que
voltará a apresentar-se como candidato.
c) Democracia e representação
As particularidades do mandato representativo e a situação de
independência do representante político em relação aos seus eleitores
permitem, em algumas ocasiões, afirmações parecidas com a de Kelsen,
quando disse que
esse é um caminho – a Democracia Representativa – que não
leva a nenhum esclarecimento sobre a idéia de democracia, ou
melhor, que identifica democracia com autocracia, como
resultado da fácil substituição da fórmula ‘governo do povo’
pela fórmula ‘governo para o povo’307.
Desta redução da noção de povo à noção jurídica no sentido
acima deriva também a desmistificação da noção de representação do
povo nos chamados sistemas representativos. Kelsen diz ainda que
“nesses contextos, a ‘representação’ é uma ficção, seja com valores

306
COLOMER, Josep M. Instituciones políticas, p. 133.
307
KELSEN, Hans. A democracia, p. 11.
Fundamentos do Direito Constitucional 197

ideológicos diferentes, seja nos sistemas de democracia representativa,


seja nos sistemas de autocracia”308.
Mas entender que estas afirmações de Kelsen possam ter
aplicabilidade geral é ir demasiado longe. O mecanismo da representação
permite – sempre com uma certa imperfeição, mas em geral de uma
forma satisfatória – que exista uma correlação entre a opinião dos
cidadãos e a atuação dos parlamentos representativos. Neste sentido, é
inegável que a evolução até a Democracia e o voto universal serviram
para que os órgãos do Estado estejam, em sua atuação, em consonância
com a vontade popular, o que se faz possível através de eleições
periódicas, que ajustam a composição dos órgãos representativos à
vontade popular.
De qualquer forma, a afirmação do princípio democrático não
deixou de alterar as formas e mecanismos da representação política. Na
realidade, o princípio do mandato representativo foi corrigido por
diversos métodos:
1 – Agregando às técnicas da Democracia Representativa,
outras, próprias da Democracia Direta, como o referendo, o
plebiscito e a iniciativa popular;
2 – Admitindo que os representantes devem, necessariamente,
ter em conta os interesses dos eleitores de sua circunscrição,
pelo menos para garantir, no que seja possível, um novo
mandato. Na prática, o representante deve atender tanto aos
interesses gerais da Nação como aos interesses de seus
eleitores. Em alguns ordenamentos, e em alguns Estados
dos Estados Unidos, foi introduzido a técnica do recall309,
ou revogação do mandato do representante antes do término
do seu mandato, por iniciativa popular;
3 – O desenvolvimento dos partidos políticos reintroduziu um
mandato imperativo sui generis. Os representantes não estão
sujeitos a instruções de seus eleitores, mas se não estão em
sintonia com o partido político pelo qual se elegeram, correm
o risco de que este não os inclua em suas prioridades
eleitorais nas próximas eleições. Nos países onde existe a
308
Idem.
309
O recall é um instituto presente em alguns ordenamentos jurídicos para controlar a
atuação dos representantes políticos, de forma a tornar suas atuações pautadas pela vontade
dos representados e dos partidos políticos. É uma espécie de rechamada, com o representante
– vereador, deputado ou senador – que tenha tomado algum tipo de atitude diversa da
orientação do partido ou do eleitorado, sendo submetido a uma outra eleição, isolada e a
qualquer tempo, em seu distrito eleitoral, para saber se a Sociedade confirma ou não seu
mandato. Caso os votos contrários sejam maioria, o mandato é automaticamente cassado,
assumindo o seu suplente.
198 Paulo Márcio Cruz

fidelidade partidária, as instruções dos partidos têm muita


força.
Como resultado desta evolução, a Democracia Representativa
concretizou-se, no Estado Contemporâneo, através da afirmação da
escolha dos ocupantes de determinados órgãos através de eleições livres,
por todos os cidadãos, o que fez que tais órgãos, como o Parlamento,
passassem a ser conhecidos como representantes do povo. Isto é, como
reflexo da vontade popular e porta-voz desta vontade.
Este caráter representativo, não disponível em outros órgãos,
como nos tribunais ou nos governos parlamentaristas, está traduzido
pela tarefa que possuem os órgãos representativos eleitos de representar
a vontade da comunidade, a aprovação das leis e outras decisões
fundamentais. Além disto, como reflexo também da evolução da
Democracia, como já foi anotado acima, os representantes eleitos estão
cada vez mais sujeitos a processos de perda de mandato ou substituição
por eleições extemporâneas. Desta forma, como escreve Norberto
Bobbio,
um sistema democrático caracterizado pela existência de
representantes substituíveis é, na medida em que prevê
representantes, uma forma de democracia representativa, mas
aproxima-se da democracia direta na medida em que admite
que estes representantes sejam substituíveis310.

8.4 ELEIÇÕES E DEMOCRACIA


O regime democrático representativo pode ser embasado em
dois princípios. O primeiro deles diz respeito à eleição para os ocupantes
de determinados órgãos do Estado e que atuam formalmente em nome da
comunidade, de maneira que a vontade expressada por estes órgãos,
usualmente em forma de lei, seja também atribuída à comunidade. Como
conseqüência, pode-se dizer que a lei é a vontade popular.
Em segundo lugar, que a atuação destes órgãos constituídos por
eleições democráticas, efetivamente reflita as opiniões socialmente
predominantes. As opiniões presentes nos parlamentos devem combinar
com as opiniões presentes na Sociedade. Esta representatividade material
justifica a atuação destes órgãos em nome do povo.
O problema que se coloca é de como conseguir que, na prática,
os órgãos representativos, como os parlamentos, reflitam
adequadamente as opiniões e desejos da comunidade. A técnica adotada
universalmente nos regimes constitucionais tem sido simples:
representação é equivalente à eleição. Só o órgão cujos componentes
310
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, p. 52.
Fundamentos do Direito Constitucional 199

são eleitos pelo povo saberá refletir as opiniões do povo, supondo, dado
o caráter mutável da opinião pública, que esta eleição seja renovada
periodicamente, de maneira que a correlação entre a vontade do povo e
a dos parlamentos se mantenha.
As eleições, como forma de assegurar a representatividade,
substituíram outras técnicas, como o sorteio, empregadas nas antigas
Cidades-Estado. Por outro lado, carecem de lógica, evidentemente,
aquelas fórmulas que pretendem afirmar o caráter representativo de um
líder ou de uma assembléia não eleitos democraticamente, afirmando que
existe uma “identificação natural” entre eles e o povo, não havendo
necessidade, portanto, de processos eleitorais. Tais afirmações, típicas de
regimes fascistas e totalitários, na realidade só servem para reafirmar a
importância do regime democrático.
Contemporaneamente, a grande discussão dá-se em torno de
como a representação política deve atuar, como deve ser eleita, quais os
mecanismos de Democracia Direta que podem ser postos em prática. O
Estado Democrático de Direito 311 é, atualmente, uma proposta de
civilização, estando acima dos embates ideológicos no âmbito dos
partidos ou das disputas eleitorais.
A identificação entre eleição e representação converte o
mecanismo eleitoral em elemento chave da Democracia contemporânea.
A legitimação dos poderes públicos depende de sua vinculação, direta ou
indireta, com a manifestação eleitoral da vontade popular. Os parlamentos
são eleitos. O Poder Executivo ou é eleito, no caso do sistema
presidencialista, ou se baseia na confiança do Parlamento. O Poder
Judiciário se legitima quando aplica as leis aprovadas pela representação
popular312. Possivelmente a única exceção seja a Monarquia
Constitucional.
Como conseqüência, a regulamentação dos processos eleitorais é
peça essencial em todo regime democrático constitucional. Transportar a
vontade ou opiniões de milhares de cidadãos e incorporá-las em um órgão
numericamente limitado, composto por algumas centenas de membros, é
uma operação que, como se tem observado ao longo da história, pressupõe
notáveis dificuldades e muitas controvérsias. Por outro lado, por ser uma
operação complexa, qualquer defeito em algumas das fases ou elementos
pode redundar num “falseamento” da “transmissão” da vontade popular.
A complexidade do procedimento eleitoral implica que este deva
estar regido por normas específicas, as leis eleitorais, até mesmo com um
311
Sobre isto ver ARAUJO, Luiz Ernani Bonesso. O acesso à terra no estado
democrático de direito, p. 33.
312
Para uma abordagem mais ampla, ver CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino. A
democratização do poder judiciário, p. 27 e s.
200 Paulo Márcio Cruz

Código Eleitoral. Mesmo assim, não raro que sejam os textos constitucionais
aqueles que, mesmo remetendo parte da matéria à lei complementar,
estabeleçam os elementos essenciais do sistema eleitoral, como fatores não
modificáveis pelos poderes constituídos. Assim, é possível que algumas
constituições fixem o número de circunscrições eleitorais, o número de
deputados, a fórmula eleitoral e a duração do mandato dos representantes.
A Constituição brasileira de 1988, como exemplo, estabelece,
em seu art. 45, § 1º, o seguinte:
O número total de Deputados, bem como a representação por
Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei
complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se
aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições, para que
nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito
ou mais de setenta Deputados313.
Qual o parâmetro para o estabelecimento destes números – oito
e setenta – é um segredo que desapareceu com a Assembléia Nacional
Constituinte de 1988. Esta fórmula criou problemas quanto ao número de
eleitores necessários para cada Deputado. No Brasil, a relação entre o
número de deputados e cidadãos eleitores chega a ser vinte vezes maior
de um Estado para outro. Por este motivo é que alguns Estados brasileiros
não querem nem ouvir falar em Voto Distrital, já que esta discrepância
viria novamente à discussão.
Vários elementos são considerados essenciais no processo
eleitoral, o que explica suas presenças diretamente nos textos
constitucionais, principalmente aqueles que definem o eleitorado, a
determinação das circunscrições eleitorais e a fórmula eleitoral.
Pode-se usar, novamente, o art. 45 da Constituição da República
brasileira para exemplificar, já que no seu caput, diz o seguinte: “A
Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos,
pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no
Distrito Federal”314.
Segundo o que está previsto neste artigo, cada Estado é uma
circunscrição eleitoral, e a fórmula eleitoral é a proporcional. Mesmo a
definição do eleitorado, que não está neste artigo, aparece prevista no art.
14 da Constituição Brasileira de 1988.
a) A definição do eleitorado
Como já foi dito, o princípio do sufrágio universal foi se
impondo ao longo do desenvolvimento do constitucionalismo. Isto

313
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 37.
314
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 37.
Fundamentos do Direito Constitucional 201

corresponde a uma concepção do sufrágio como direito de todos os


cidadãos.
Mesmo assim, outras considerações devem ser feitas. O
objetivo das eleições é, em última análise, expressar a vontade popular,
com o sufrágio cumprindo, desta forma, uma função específica. Como
conseqüência, é razoável que sejam excluídos aqueles indivíduos que, de
forma evidente, não estejam aptos para exercer esta função. Estão
incluídos neste grupo, especialmente, aqueles indivíduos que, todavia,
não podem formar sua própria opinião e definir seus interesses, seja por
falta de idade seja por incapacidade mental.
A este núcleo essencial costumam unir-se, com fundamento
mais questionável, aqueles reputados incapazes moralmente, como os que
cumprem condenação penal e que estão inabilitados ativa e passivamente.
A definição do eleitorado apresenta também uma dimensão
instrumental. A confiabilidade do processo eleitoral exige que,
efetivamente, possam votar todos os que tenham este direito, mas que
também só eles possam votar e, certamente, que possam votar só uma vez
em cada eleição. Isto exige a existência de um registro eleitoral, no qual
constem todos os eleitores e seus comparecimentos para votar, de modo a
evitar fraudes. Desta forma, só podem votar os alistados para tal.
Quando o voto é opcional, o alistamento eleitoral é feito a partir
da vontade do cidadão. Sendo o voto obrigatório, os poderes públicos
participam da exigência para o alistamento, com o exercício do sufrágio,
em alguns casos, funcionando como pré-requisito para a participação em
concursos públicos e eleições oficiais.
b) A definição das circunscrições
É possível que, em um Estado, as eleições aconteçam de forma
que todos os cidadãos formem uma circunscrição315 única e se pronunciem,
assim, sobre a eleição de todos os seus representantes. Em Israel acontece
desta forma, já que a população e o território reduzidos, junto com a
fórmula eleitoral, tornam isto possível. O mesmo acontece nos países em
que o Presidente é eleito de forma direta, com o país todo formando, para
aquela eleição, uma circunscrição única.
Na Constituição da República Federativa do Brasil, vigente à
época da elaboração deste livro, o termo “circunscrição” aparece no inc. IV

315
Conforme Osvaldo Ferreira de MELO, in Dicionário de Direito Político, na p. 19, é a
“divisão territorial convencionada para fins de distribuição de eleitores e de urnas
captadoras de votos”. Circunscrição tem o sentido, portanto, de “estar limitado ou
restrito”.
202 Paulo Márcio Cruz

do § 3º do art. 14, utilizado para estabelecer que uma das condições de


elegibilidade, na forma da lei, é “o domicílio eleitoral na circunscrição”316.
Nas eleições parlamentares – ou legislativas – a existência de
uma única circunscrição eleitoral é excepcional. O comum é que o
território seja dividido em circunscrições que elejam, cada uma delas,
uma parte dos representantes. No Brasil, por exemplo, para as eleições
legislativas estaduais e federais, os próprios Estados federados formam
circunscrições. Como não há voto distrital no Brasil, como será visto a
seguir, as eleições legislativas estaduais são realizadas em uma única
circunscrição, que é o próprio Estado Federado.
A idéia de circunscrições eleitorais serve para que haja uma
maior identidade e um maior compromisso entre eleitores e eleitos, com
uma dupla vantagem, pelo menos em teoria. A primeira diz respeito à
maior possibilidade que têm os representantes eleitos de conhecer,
efetivamente, as necessidades e opiniões de um setor determinado da
população. A segunda tem relação com a maior possibilidade de
avaliação, por parte dos eleitores, da atuação de seus representantes 317.
Junto com estas vantagens, que são de ordem geral, a divisão da
comunidade política em circunscrições eleitorais permite, em casos
específicos, proteger regiões contra a falta de representação política, o
que pode acontecer sem uma sensata divisão do eleitorado. Em alguns
países, atualmente, podem-se observar regiões inteiras com representação
política reduzida ou mesmo sem representação, fruto da concentração de
eleitos em outras regiões, causada por motivos políticos ou econômicos.
Isto mostra que a manipulação das circunscrições eleitorais e do
número de representantes correspondente a elas, pode levar a um
falseamento do resultado eleitoral, favorecendo a determinados grupos,
em detrimento de outros. Esta manipulação pode ser realizada com a
concessão de um número maior de representantes a regiões – ou Estados
– menos povoados, por exemplo. No Brasil, Estados com população
muito rarefeita, como o Amapá e Roraima, elegem oito deputados
federais cada um, pois este é o número mínimo imposto pela Constituição
da República de 1988, como já visto.
Considerando que, por exemplo, o Estado do Amapá possui
cerca de trezentos e setenta mil eleitores e elege oito deputados federais,
para cada trinta e sete mil e quinhentos eleitores, há um Deputado
Federal. Já o Estado de Santa Catarina, possui mais de dois milhões de
eleitores e, segundo os cálculos estabelecidos pela Lei Complementar 78,
de 1993, o direito de eleger dezesseis deputados federais. Isto significa
316
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
16.
317
Sobre isto ver MIRANDA, Jorge. Ciência política, p. 210.
Fundamentos do Direito Constitucional 203

que, em Santa Catarina, há um Deputado Federal para cada cento e trinta


mil eleitores, aproximadamente. Isto permite especular que cada eleitor
amapaense valha por quatro eleitores catarinenses.
O exemplo citado acima, mostra, no mínimo, uma distorsão no
sistema democrático representativo.
A determinação constitucional das circunscrições eleitorais
existe, também, para criar, nos Estados federais ou descentralizados, uma
representação dos Estados federados. Os exemplos podem ser encontrados
naquelas Constituições que estabelecem, além da Câmara de representantes
da população, uma Câmara de representação dos Estados federados,
províncias ou comunidades autônomas, como é o caso do Brasil 318, da
Argentina, dos Estados Unidos, da Alemanha Federal etc.
Em geral, a existência destas câmaras de representação das
unidades federadas – Senado ou Câmara Alta – é justificada pela
necessidade da defesa dos interesses difusos gerais e atinentes às pessoas
jurídicas de Direito Público Interno, encarregadas de tarefas típicas do
Poder Público, como serviços públicos, função jurisdicional e função
legislativa.
c) A fórmula eleitoral
O terceiro elemento essencial de um sistema eleitoral é a
determinação de como se traduzem os votos emitidos pelos cidadãos,
com relação ao número de representantes eleitos. As técnicas propostas e
postas em prática são muito diferentes e conduzem a resultados também
muito distintos. A discussão sobre os sistemas eleitorais está centrada,
portanto, sobretudo neste aspecto.
Em termos gerais, são duas as fórmulas eleitorais
predominantes: a majoritária e a proporcional. Outras fórmulas podem
consistir em variações ou combinações de ambas, pois como assinala
Fernandes,
contemporaneamente, a flexibilidade destas duas correntes de
pensamento, que se baseiam mais em considerações políticas
do que em critérios científicos, permitiu que entre elas se
estabelecesse uma espécie de compromisso e se encontrassem
fórmulas intermédias: o processo de escrutínio misto319.

318
O Senado Federal, com três representantes por Estado independente da população
eleitora, está organizado, na Constituição brasileira de 1988, no art. 46 e em seus
parágrafos.
319
FERNANDES, António José. Introdução à ciência política – teoria, métodos e
temáticas, p. 215.
204 Paulo Márcio Cruz

A Alemanha, por exemplo, adota tanto a eleição majoritária,


realizada por distritos eleitorais, como também a eleição proporcional,
tendo como circunscrição o Estado Federado, ou Länder320.
Pode-se dizer que cada uma delas ressalta uma dimensão do
procedimento eleitoral. A fórmula majoritária tem uma projeção
eminentemente funcional, ou seja, a de obter um Governo, nos sistemas
presidencialistas, ou um Parlamento, nos sistemas parlamentaristas,
suficientemente homogêneos e capazes de operar num sistema político
estável.
Para tanto, a fórmula majoritária concede uma maior
representação às tendências eleitoralmente – e numericamente – mais
fortes da Sociedade. Na sua versão mais simples, o candidato que obtém a
maioria dos votos na circunscrição eleitoral é eleito.
Já o sistema proporcional pretende refletir o mais fielmente
possível, na representação parlamentar, as tendências do eleitorado. Para
isto, trata de conferir mandatos proporcionais aos votos realmente
recebidos pelo partido ou coligação, na circunscrição eleitoral. Apesar de
ser um sistema mais afeito a contemplar aqueles partidos pequenos e os
setores minoritários da Sociedade, alguns instrumentos, como as
Cláusulas de Barreira321, existentes em alguns ordenamentos jurídicos,
como o alemão, começam a negar esta tendência.
1 – O sistema majoritário de um turno – adotado
tradicionalmente na Inglaterra e na grande maioria dos países anglo-
saxões, baseia-se na divisão do eleitorado, para eleições parlamentares – ou
legislativas – em Distritos Eleitorais uninominais 322, com cada um dos
distritos elegendo um só representante.
Na tradição presidencialista, as eleições por maioria simples
acontecem também para a escolha do chefe do Poder Executivo. Caso se
tome por exemplo o Brasil, são eleitos por este sistema os prefeitos de
cidades com menos de duzentos mil eleitores, conforme o art. 29, inc. II,
da Constituição brasileira de 1988323.
320
Sobre isto, ver ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da
Alemanha. p. 165.
321
Cláusulas de Barreira são limites percentuais mínimos, impostos aos partidos políticos,
para obterem o direito de representação parlamentar. Na Alemanha, por exemplo, o
partido que não obtiver, pelo menos 5% dos votos válidos no país, não têm direito à
representação no Parlamento, mesmo que alguns candidatos consigam números
expressivos de votos, suficientes para sua eleição.
322
Os Distritos Eleitorais são subdivisões das circunscrições eleitorais para escolha de
representantes parlamentares. São uninominais quando só um representante pode ser
eleito. O discutido voto distrital funciona com base na subdivisão da circunscrição
eleitoral em distritos eleitorais.
323
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 25.
Fundamentos do Direito Constitucional 205

O mandato é conferido àquele candidato que obtém mais votos


em um único turno. Isto quer dizer que, mesmo com uma maioria relativa
– menos da metade dos votos possíveis –, o candidato pode ser eleito.
Trata-se, assim, de um sistema que privilegia, notavelmente, as tendências
políticas mais fortes. Geralmente, o sistema majoritário de um só turno
conduz ao predomínio de poucos partidos. Este é o caso da Inglaterra, por
exemplo.
2 – O sistema majoritário de dois turnos – foi concebido para
suavizar os efeitos do sistema majoritário de um turno, fazendo que o
eleito tenha, pelo menos, o apoio de metade mais um dos eleitores
votantes. No jargão político, diz-se que, no primeiro turno, o eleitor
escolhe. No segundo, ele elimina. Mesmo assim, é possível considerar
uma maioria razoavelmente comprometida com o resultado da eleição.
Nas eleições presidencialistas, prefeitos, governadores e
presidentes, para serem eleitos, devem obter uma maioria absoluta de
votos emitidos. Se não no primeiro turno, então no segundo, quando
disputam os dois mais votados no primeiro.
Para a aplicação deste sistema em eleições parlamentares, é
necessária a existência de Distritos Eleitorais uninominais. Os eleitores só
podem votar em um candidato do distrito, para que ocupe um posto de
representante. Assim, para obter este mandato, é preciso, a exemplo da
eleição para os chefes de governos presidencialistas, a obtenção de uma
maioria absoluta com, pelo menos, metade mais um dos votos emitidos.
Caso nenhum candidato obtenha esta maioria, haverá um segundo turno,
como já foi assinalado, entre os dois candidatos mais votados no primeiro
turno.
Este sistema permite aos eleitores que, no primeiro turno, se
pronunciaram a favor de candidatos sem grande apelo eleitoral, optar por
outro candidato que, mesmo não tendo sido sua primeira opção, pelo
menos represente a tendência menos afastada de suas preferências. Este
sistema, nos países onde é adotado, permite que o primeiro turno seja
disputado por muitos candidatos, a maioria deles para “marcar” suas
posições ideológicas. No segundo turno – se houver –, prevalecem as
coligações de partidos em torno dos candidatos mais votados no primeiro
turno. Este é o caso da França, por exemplo.
3 – O sistema proporcional – ou sistemas proporcionais,
tantas são suas variações. Neste caso, a eleição dos representantes
acontece em circunscrições plurinominais, isto é, nas quais se elegem
vários representantes, de acordo com a população eleitora. Como
conseqüência, podem ocorrer candidaturas individuais, escolhidas ou
não no seio dos partidos políticos, ou listas de candidatos, elaboradas
206 Paulo Márcio Cruz

pelos partidos. Neste último caso, o eleitor escolhe uma das listas de
candidatos324.
O sistema proporcional, aplicado no Brasil, funciona com base
nos votos totais dados ao conjunto de candidatos de um partido ou
coligação de partidos, somados aos chamados votos de legenda, que são
aqueles dados ao partido e não a um candidato específico.
O resultado da soma de todos os votos válidos, inclusive os em
branco, dados a todos os partidos ou coligações de partidos, deve ser
dividido pelo número de cadeiras que estão sendo disputadas no
Parlamento – Câmara dos Deputados, Assembléia Legislativa ou Câmara
de Vereadores. O resultado desta divisão será o “coeficiente eleitoral”.
Cada vez que o partido ou coligação de partidos atingir este coeficiente,
terá eleito um de seus candidatos, pela ordem decrescente de votação, ou
seja, o mais votado de cada partido ou coligação de partidos será o
primeiro eleito, e assim sucessivamente.
O partido ou coligação de partidos que obtiver o resto maior, ou
os restos maiores, como pode acontecer, ficarão com as vagas
remanescentes, já que é muito difícil atingir exatamente o coeficiente
eleitoral.
As eleições parlamentares, no Brasil, acorrem tendo como
circunscrição o Estado Federado – na escolha dos deputados federais e
estaduais – e o Município – na escolha dos vereadores. Nos três casos, o
sistema de eleição proporcional é o descrito acima.
Alguns países da Europa Ocidental também adotam este
sistema, como é o caso da Itália.
Porém, o sistema proporcional mais comum entre os países
desenvolvidos é aquele que prevê listas de candidatos. Nestes sistemas, o
eleitor pronuncia-se por uma das listas. Realizada a eleição, atribui-se a
cada lista eleitoral um número de cadeiras no Parlamento proporcional
aos votos que tenha obtido. Num sistema proporcional por listas “puro”, a
lista que obtiver a metade dos votos, teria a metade das cadeiras. Obtendo
um quarto dos votos, um quarto das cadeiras, e assim por diante.
Estes princípios gerais, aplicáveis à grande maioria das
fórmulas de voto proporcional, apresentam, na prática, sensíveis
variações, de maneira que há uma pluralidade de fórmulas proporcionais.
Estas variações podem referir-se à distribuição dos mandatos entre os
membros de uma lista, cujos critérios podem ser o “bloqueado”, quando a
ordem dos candidatos nas listas é definida pelos partidos e não pode ser
alterada pelos eleitores, ou o “preferencial”, que permite ao eleitor, além

324
MIRANDA, Jorge. Ciência política, p. 216.
Fundamentos do Direito Constitucional 207

de escolher a lista de sua preferência, estabelecer a ordem dos candidatos,


que aparecem, neste caso, em ordem alfabética.
Os sistemas proporcionais por listas também variam quanto ao
grau de proporcionalidade entre votos e o número de cadeiras no
Parlamento. Isto acontece – como é o caso dos restos, já comentados em
parágrafo anterior – por conta da inexatidão do cálculo proporcional feito
após a eleição, com base no coeficiente eleitoral. Não é possível, por
óbvio, eleger “meio representante” ou “um representante e três quartos”.
Assim, já foram propostas muitas fórmulas para se obter a maior
eqüidade possível na distribuição das cadeiras. Sobre isto, é fundamental
trazer as observações de Fernandes 325, quando anota os métodos
utilizados para a solução deste problema. São eles:
1 – A representação proporcional com atribuição dos lugares
restantes aos restos maiores consiste em dividir, numa primeira
fase, o número de sufrágios expressos em cada circunscrição pelo
número de lugares a preencher, obtendo-se o quociente eleitoral,
e dividindo-se, em seguida, o número de votos obtidos pelo
partido pelo respectivo quociente. Esta operação permite atribuir
alguns lugares aos partidos que alcançaram um número de votos
igual ou superior ao quociente eleitoral. Depois, os partidos que
tiverem os restos maiores ficarão com os restantes lugares326.
2 – A representação proporcional com repartição dos lugares
restantes pelas médias maiores segue, numa primeira fase, um
mecanismo idêntico ao anterior. Mas o processo para
atribuição dos lugares restantes é diferente. Adiciona-se
ficticiamente a cada lista um lugar aos que lhes couberam em
virtude da divisão dos votos obtidos pelo quociente eleitoral –
se ainda não lhe foi atribuído nenhum lugar, faz-se a divisão
por um – e divide-se o número de sufrágios que a lista recolheu
pelo número assim obtido, encontrando-se uma média para
cada lista. O partido que tiver a média mais elevada fica com o
lugar restante ou um dos lugares restantes. Recomeça-se a
operação até serem atribuídos todos os lugares327.
3 – A representação proporcional com a atribuição dos lugares
segundo o método de Hondt foi adotada pela lei belga em 1899.
Este processo tem a vantagem de permitir encontrar, mediante uma
só operação, o número total de lugares que cabem a cada lista.

325
FERNANDES, António José. Introdução à ciência política: teoria, métodos e
temáticas. p. 218-219.
326
Segundo FERNANDES, este processo de escrutínio beneficia os pequenos partidos em
detrimento dos grandes. Atualmente é utilizado no Brasil, como já foi visto, e na Holanda.
327
Este processo, segundo FERNANDES, favorece aos grandes partidos.
208 Paulo Márcio Cruz

O método de Hondt proporciona resultados próximos dos obtidos


pela aplicação do mecanismo da média maior, mas segue um
caminho diferente. Dividem-se os votos obtidos por cada lista por
1, 2, 3, 4, 5, n, representando n o número de lugares a preencher.
Os resultados alcançados por esta operação são ordenados em
seguida, por ordem decrescente, até o número de deputados a
eleger. O último número da lista assim ordenada, chama-se
repartidor, e é diferente do quociente eleitoral dos exemplos
anteriores, porque, dividindo os votos alcançados na lista por
este número repartidor, obtém-se diretamente o número de
lugares que cabe a cada partido328.
4 – A representação proporcional com a distribuição dos
lugares segundo o método de Sainte-Lague ou o sistema do
número de Udda segue um mecanismo idêntico ao do método
de Hondt, procurando corrigir este no sentido de uma
proporcionalidade mais aproximada entre o número de eleitos e
a quantidade de votos obtida em cada partido. Para tanto,
introduz-se um pequeno pormenor, que consiste em dividir os
votos obtidos por cada lista por algarismos ímpares,
começando-se por 1, 4, isto é, divide-se aquele resultado por 1,
4, 3, 5, 7, n, e não por 1, 2, 3, 4, n, como sucede pelo método de
Hondt. Este mecanismo faz baixar o número repartidor,
permitindo deste modo uma representatividade mais eqüitativa
e, por conseguinte, mais justa.
Este processo de escrutínio tem sido utilizado, desde 1952, nos
países escandinavos, englobando a Suécia, Noruega e, por
questões de povoamento, civilização e analogias naturais, a
Dinamarca, a Islândia e a Finlândia.
5 – A representação proporcional com a repartição dos lugares
pelo quociente retificado, seguindo o método de Hagenbach-
Bischof, é utilizado na Suíça. O processo do quociente
retificado consiste em acrescentar uma unidade, ou mais, ao
número de cadeiras a serem preenchidas no Parlamento, de
modo a baixar o quociente eleitoral de forma que todos os
lugares sejam atribuídos ao dividirem-se os votos obtidos em
cada lista pelo respectivo quociente.
Assim, tanto o sistema majoritário como o proporcional
apresentam, na prática, vantagens e inconvenientes. O sistema majoritário
favorece a formação de maiorias sólidas nos parlamentos, levando ao
328
Ainda segundo FERNANDES, o escrutínio de representação proporcional segundo o
método de Hondt é utilizado em países que adotaram um sistema de representação
proporcional para as eleições legislativas, como a Bélgica e Portugal, e em países que
adotaram um sistema eleitoral misto, como a Alemanha Federal.
Fundamentos do Direito Constitucional 209
desânimo os partidos de pequena penetração social. Por outro lado, seus
resultados podem ser pouco equilibrados, dando uma maioria de cadeiras a
grupos minoritários que atuem coligados e privando de representação,
absolutamente, setores sociais muito importantes. Talvez o sistema
majoritário seja melhor para ambientes políticos bipartidários, perfeitos ou
mesmo imperfeitos, como naqueles países nos quais há dois grandes
partidos e um terceiro menor, que normalmente funciona como o “fiel da
balança”.
A fórmula proporcional, ao menos lato sensu, é mais justa.
Entretanto, ao facilitar a representação de grupos pouco numerosos,
possibilita uma pulverização de tendências no Parlamento, tornando
muito difícil a formação de uma maioria para sustentar – no caso do
presidencialismo – ou para formar – no caso do parlamentarismo – o
Governo.
Deste modo, a dupla vontade de conseguir fórmulas que
garantam, por um lado, uma representação ajustada à realidade e, por
outro, uma composição dos parlamentos que permita um trabalho
parlamentar, legislativo e um Governo estáveis, levou à criação – e até à
consagração constitucional – de fórmulas intermediárias, tentando
suavizar a rigidez dos sistemas majoritário ou proporcional puros. O caso
paradigmático é da Alemanha, que combina os dois sistemas, como já foi
dito.
Na Espanha, a eleição para o Senado também possui uma
característica digna de nota. Como os espanhóis elegem quatro senadores
por circunscrição329 – ou província – e ao mesmo tempo, diferentemente do
Brasil, onde a eleição para o Senado faz-se a cada quatro anos, alternando a
escolha de um terço e dois terços dos senadores, cada eleitor só pode votar
em três candidatos dos quatro candidatos. Com isto, supõe-se que a maioria
elege três senadores, com a minoria elegendo, ao menos, um.

8.5 PARTIDOS POLÍTICOS, DEMOCRACIA E


CONSTITUIÇÃO
Seria impensável, atualmente, o funcionamento do regime
democrático e, até, a existência do Estado Democrático de Direito como
proposta de civilização, sem o concurso fundamental dos partidos
políticos. Os partidos políticos se converteram em peças fundamentais
para a compreensão de como se integram e se relacionam entre si os

329
Ressalvadas as exceções previstas no art. 69 da Constituição Espanhola, como as
províncias insulares, Ceuta, Melilla e as comunidades autônomas, que elegem até três
senadores. O exemplo trazido ao livro refere-se às províncias continentais.
210 Paulo Márcio Cruz

órgãos do Estado. Pode-se dizer que o Estado Constitucional


Democrático é o “Estado de Partidos”330.
É como assinala Juán Hernándes Bravo de Laguna, ao tratar da
origem e evolução dos partidos políticos, ao afirmar que estas agremiações
nascem em meados do século XIX, com a mudança das antigas facções
para os partidos modernos. O autor escreve que
uma parte importante da doutrina reconhece que o nascimento
dos partidos políticos está unido indissoluvelmente ao
liberalismo; mas, além disto, acrescentam que seu
desenvolvimento não o está menos, à Democracia e ao
Parlamentarismo, em sentido não estrito ou, o que é a mesma
coisa, ao auge das Assembléias representativas331.
Orides Mezzaroba, em seu Introdução ao Direito Partidário
Brasileiro, analisando o surgimento dos partidos políticos, ensina que
eles representaram uma ruptura com o antigo regime. O autor catarinense
escreve que “Os Partidos aparecem, então, como instrumentos
mediadores entre a Sociedade e o Estado, com a função de aglutinar
vontades individuais e harmonizá-las em vontades coletivas” 332.
Nos inícios do constitucionalismo, tanto nos países anglo-
saxões como na Europa continental, a atuação dos partidos políticos era
vista com uma certa desconfiança. Eram não mais que facções ou grupos
reduzidos, que tratavam de fazer valer seus interesses em detrimento dos
interesses gerais e da vontade da comunidade.
Diante desta opinião, ainda amplamente compartilhada em
nossos dias, a justificação dos partidos políticos repousa na crença de que
representam concepções e propostas baseadas numa idéia própria do que
seja o interesse geral. A existência de princípios comuns e de uma
vocação para atuar na defesa do interesse nacional seriam os dados que
diferenciariam o partido político da facção que defende interesses
próprios e limitados, sem nenhuma outra intenção ou princípio que não
seja tirar vantagem ou lucrar com sua atuação.
Um partido político é, portanto,
uma associação formada por indivíduos que se unem em função
de idéias políticas comuns, com a finalidade de conquistar o poder
e de fiscalizar o governo, na circunstância de ficar em oposição.
Os partidos políticos, nos sistemas pluralistas, são os elos entre as

330
Sobre isto ver MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. p.
153 e s.
331
LAGUNA, Juán Hernándes Bravo. La delimitación del concepto de partido político.
Las teorías sobre el origen y evolución de los partidos, p. 16.
332
MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. p. 90.
Fundamentos do Direito Constitucional 211

forças sociais e o governo, bem como as artérias que alimentam a


vida democrática333, na lição de Osvaldo Ferreira de Melo.
Molina e Delgado trazem um conceito também muito
consistente, ao escreverem que partido político é a “organização política
com certa ambição de permanência que agrupa uma série de pessoas
relativamente coesas em torno de uma ideologia e, principalmente, com a
vontade de chegar ao poder público”334.
A progressiva implantação do regime democrático nos
ordenamentos constitucionais tornou imprescindível a ação dos partidos
políticos, principalmente desde uma perspectiva eleitoral. A ampliação do
sufrágio, criando circunscrições eleitorais com milhares de eleitores,
tornou impossível o contato direto e detalhado do eleitor com os
candidatos. Só organizações dotadas de certa amplitude poderiam levar
ao eleitorado as propostas e alternativas dos candidatos, assim como
organizar a campanha e otimizar os gastos para uma eleição.
Os partidos tornaram-se necessários também por outros
motivos. Só os partidos poderiam criar, nos parlamentos, maiorias
estáveis, com princípios e objetivos comuns, capazes de desenvolver uma
política legislativa coerente e de apoiar, com certa estabilidade, o
Governo. Além disto, só partidos com ampla repercussão social poderiam
elaborar programas políticos que tratassem de política nacional,
ultrapassando as fronteiras de cada circunscrição eleitoral.
Mesmo com o fato de que desde a consolidação do
constitucionalismo moderno os partidos políticos tenham desempenhado
um papel fundamental, só foram objeto de previsão jurídica muito
depois. O fenômeno partidário era visto como algo alheio – ou fora do
Direito –, quando não perigoso. Isto pode ser explicado pela perspectiva
individualista do constitucionalismo liberal precursor, fundada na idéia
de uma comunidade de indivíduos iguais perante a lei, eliminando as
corporações e estamentos que criavam grupos privilegiados durante o
Antigo Regime pré-constitucional.
Para evitar esta prática, durante a Revolução Francesa foi
proibida a criação de associações, através da Lei de Chapellier, de 1791.
A liberdade de associação só foi reconhecida quatro décadas mais tarde.
O reconhecimento jurídico dos partidos políticos foi produzido,
num primeiro momento, através da legislação infraconstitucional, isto é,
em normas que disciplinavam o procedimento eleitoral, e em
regulamentos dos parlamentos, nos quais era difícil evitar a constatação

333
MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionário de direito político, p. 97.
334
MOLINA, Ignácio; DELGADO, Santiago. Conceptos fundamentales de ciencia
política, p. 89.
212 Paulo Márcio Cruz

de que os deputados atuavam agrupados em facções parlamentares, pois


não havia agremiações formais.
Este fato já era notado na Inglaterra, pois
até a metade do século XIX, os denominados tory – algo como
bandidos irlandeses – e os whigg – derivados de whiggmore ou
rebelde presbiteriano, designavam associações esporádicas de
membros do Parlamento Inglês afins política e ideologicamente
e que em alguns momentos atuavam em conjunto para alcançar
determinado objetivo político335.
A generalização do sufrágio universal após a Primeira Guerra
Mundial favoreceu a regulamentação legal dos partidos políticos.
Entretanto, eram raras as referências aos partidos políticos nos textos
constitucionais. Segundo Mezzaroba, “o principal marco desse processo
ocorreu com a criação de um Tribunal Eleitoral pela Constituição de
1918, na antiga Tchecoslováquia”336.
Outras Constituições, no mesmo período, como a uruguaia e a
alemã de Weimar, ambas de 1919, referiam-se aos partidos de forma
negativa, prevendo que “os funcionários públicos são servidores de toda
comunidade e não de um partido, como no art. 130, inc. I, da
Constituição de Weimar”337.
Foi depois da Segunda Guerra Mundial que as constituições
passaram a reconhecer os partidos políticos, através de duas perspectivas.
A primeira delas, partindo do ponto de vista dos direitos subjetivos,
reconhecendo o direito dos cidadãos a fundar partidos ou neles ingressar.
A outra perspectiva era a que definiu as funções dos partidos nos sistemas
constitucionais. Esta previsão constitucional normalmente indica a
regulamentação da matéria por lei complementar.
A relevância constitucional dos partidos políticos os torna um
tipo de associação com status especial, traduzido em formas e
exigências especiais para a sua formação e registro, normalmente sendo
exigido um número mínimo de filiados e a realização de convenções
para seu registro junto ao órgão do Estado competente para tal. Este
status diferenciado pode consistir em tratamentos favoráveis, em alguns
aspectos, ou em limitações e restrições, em outros. Assim, pode-se
destacar o seguinte:
a) Como tratamento favorável, podem-se citar as facilidades –
ou exclusividade – para participar do processo eleitoral. Em
alguns países, esta participação é privativa dos partidos
335
CRUZ, Paulo Márcio. Parlamentarismo em estados contemporâneos, p. 64.
336
MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. p. 136.
337
PELAYO, Manuel Garcia. El estado de partidos, p. 125.
Fundamentos do Direito Constitucional 213

políticos e só eles podem apresentar candidatos às eleições.


Em outros, a legislação eleitoral considera os partidos
políticos como sujeitos normais do processo eleitoral,
exigindo requisitos mais complicados de outros sujeitos
políticos, como candidatos independentes ou agrupamentos
eventuais de eleitores.
A este tratamento favorável, deve-se acrescentar a
disponibilização de meios materiais para que os partidos desempenhem
suas funções. É freqüente a previsão, em Constituições e textos legais, de
acesso gratuito dos partidos políticos aos meios de comunicação,
principalmente ao rádio e à televisão, para divulgação de seus programas.
Também são muito importantes as técnicas de financiamento
público dos partidos políticos, já que por suas características, as
contribuições de seus membros são evidentemente insuficientes para o
seu custeio. O financiamento público dos partidos políticos é uma das
questões mais polêmicas na doutrina e na prática política do
constitucionalismo contemporâneo, já que, “em momentos políticos como
os atuais, a referência aos partidos políticos e em particular ao seu
financiamento são questões que estão imersas na reflexão cotidiana”338.
Por um lado, defende-se a participação de recursos financeiros
públicos para evitar a influência por parte do poder econômico sobre as
agremiações partidárias. “Desta forma, o financiamento estatal se
justifica à medida que busca neutralizar qualquer tipo de dependência ou
de vinculação da organização partidária a interesse pessoais ou de
grupos estranhos aos seus propósitos”339.
Por outro, a parte crítica da doutrina aponta o financiamento
público como uma forma de distanciamento da opinião pública, tornando
os partidos políticos máquinas burocráticas, dependentes do dinheiro
público e não das contribuições e esforços de seus militantes e
simpatizantes;
b) Quanto aos limites e restrições, é necessário assinalar que a
importância da qual estão revestidos os partidos políticos
faz com que os ordenamentos constitucionais
contemporâneos tratem de evitar que sua atuação possa
representar ameaças ou inconvenientes para o
funcionamento das instituições consagradas pela Sociedade
e pela Constituição.

338
FERNÁNDEZ-LLEBREZ, Fernando. La financiación de los partidos políticos, p.
171.
339
MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. p. 150.
214 Paulo Márcio Cruz

Não faltam experiências históricas nas quais organizações


partidárias colaboraram decisivamente para a subversão e derrubada de
regimes constitucionais legítimos e democráticos, como foi com a
atuação do partido nacional-socialista no desaparecimento da República
constitucional alemã em 1933. Noutras ocasiões, influíram indevidamente
na adoção de decisões públicas, através de coação ou pressão, pondo em
risco – e às vezes fazendo desaparecer – o regime democrático, como foi
com as facções partidárias que apoiaram o golpe militar perpetrado no
Brasil em 1964340.
Para evitar tais ameaças, os ordenamentos constitucionais
estabeleceram, em muitas ocasiões, exigências a serem cumpridas pelos
partidos políticos, de modo a garantir sua adequação ao sistema
constitucional. Entre elas, está aquela que exige que seu programa e sua
atuação estejam absolutamente ajustados à Constituição. Um bom
exemplo é a atual Constituição da França, ao prever, em seu art. 14, que
os partidos políticos “devem respeitar os princípios da soberania
nacional e a democracia”341. A Lei Fundamental de Bonn estabelece que
são inconstitucionais os partidos que, pelos seus objetivos ou
pela atitude de seus adeptos, pretendam prejudicar ou
subverter a ordem fundamental liberal e democrática, ou
ponham em perigo a existência da República Federal da
Alemanha. Cabe ao Tribunal Constitucional Federal decidir
sobre a questão da inconstitucionalidade342.
Disposições deste tipo são usuais em muitas Constituições e não
deixaram de originar polêmicas, já que são suscetíveis de interpretações
extremistas que podem redundar na exclusão de partidos incômodos ou
radicais, que difiram das opiniões predominantes no momento.
Um outro requisito exigido das organizações partidárias é que se
ajustem, na sua organização externa, a critérios democráticos, ou seja, que
a escolha de seus dirigentes e líderes seja efetuada com a participação de
seus filiados, e não por decisão autoritária de seus dirigentes.
Considera-se assim que, dificilmente, as organizações partidárias
não-democráticas consigam cumprir, adequadamente, suas funções num
sistema democrático. “Nesse contexto, portanto, pode-se falar em
Democracia Representativa de Partidos, já que lhes cabe a tarefa de

340
Sobre isto ver DREIFUSS, René. 1964: a conquista do estado – ação política, poder e
golpe de estado, 264 p.
341
CHACON, Valmireh. O novo parlamentarismo. Brasília: Fundação Miltom Campos,
1978, p. 146.
342
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 149-
150.
Fundamentos do Direito Constitucional 215

mobilizar os indivíduos para a participação e a integração no processo


democrático”343.
O cumprimento destas exigências é assegurado através do
estabelecimento de um controle judicial, de forma que seja um órgão
independente que decida sobre a adequação ao ordenamento jurídico da
atuação dos partidos. Este controle judicial pode ser competência de
tribunais ordinários, especiais ou mesmo do Tribunal Constitucional,
como é o caso da Alemanha e que é seguido pela Constituição de outros
países, como as do Chile e da Turquia.
No Brasil, os partidos políticos estão constitucionalizados,
atualmente, no art. 17 da Constituição brasileira de 1988. Este
dispositivo, junto com a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, a Lei 9.096
de 1995, estabelece as suas “liberdades” e as suas “restrições”. O caput
do citado artigo, e seus incisos, são elucidativos:
Art. 17. É livre a criação, incorporação e extinção de partidos
políticos, resguardados a soberania nacional, o regime
democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da
pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
I – caráter nacional;
II – proibição de receber recursos financeiros de entidades
estrangeiras ou de subordinação a estes;
III – prestação de contas à Justiça Eleitoral;
IV – funcionamento parlamentar de acordo com a lei344.
Nos parágrafos do art. 17, estão previstos a autonomia de
organização e o funcionamento a partir de normas de fidelidade e
disciplina partidárias, personalidade jurídica de acordo com a lei civil e
registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral, o acesso gratuito ao rádio e
à televisão e ao fundo partidário e a vedação de utilização pelos partidos
políticos de organização paramilitar.
Entre todas as previsões descritas acima, a fidelidade partidária
é a que menos – ou nunca – tem sido aplicada pela maioria dos partidos
políticos brasileiros na atualidade, por conta do entendimento do Supremo
Tribunal Federal brasileiro, aposto no Acórdão 11.075. Orides Mezzaroba,
comentando a negativa da Suprema Corte Brasileira em reconhecer
qualquer possibilidade de sanção de perda de mandato para a infidelidade
partidária, leciona que,

343
MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. p. 156.
344
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
17.
216 Paulo Márcio Cruz

portanto, à falta dessa previsão legal na Constituição da


República Federativa do Brasil de 1988, o entendimento
jurisprudencial brasileiro permite que os representantes dos
Partidos no Legislativo mudem de legendas sem sofrer
qualquer tipo de sanção jurídica que tenha relação com a
perda do mandato345.

8.6 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO


O conjunto de traços comuns que caracteriza os Estados
constitucionais, e que permitem considerá-los incluídos numa categoria
própria e identificável, podem ser resumidos na denominação Estado
Democrático de Direito. Na realidade, o conceito de Estado de Direito,
sem a adição do Democrático, surgiu nos Estados alemães, da primeira
metade do século XIX, para designar e justificar uma forma de organização
política concreta, traduzida pela monarquia baseada na dupla legitimidade,
monárquica e representativa, ainda distante de qualquer pretensão
democrática.
O uso desta expressão acabou por se generalizar, podendo-se
afirmar que seu conteúdo é similar ao de Estado Constitucional. A adição
do Democrático completou o sentido original da expressão.
Segundo Osvaldo Ferreira de Melo, “são fundamentos do Estado
de Direito a legitimidade do governo e das instituições políticas, a
legalidade dos atos da administração e o controle judiciário quanto à
aplicação da lei”346, e podem ser visualizados através dos seguintes pontos:
a) O Império da Lei – Fazendo frente a regimes nos quais a
última decisão reside na vontade ilimitada de um ou de uns
poucos governantes, o império da lei supõe que as decisões
da autoridade sejam tomadas por conta da aplicação de
regras gerais e impessoais. A lei, elaborada de forma
despersonalizada, é quem habilita as autoridades para
atuarem, ao mesmo tempo que limita seu âmbito de ação;
b) Controle da autoridade – A submissão à lei não depende da
vontade daqueles que estão no poder. A existência de diversos
centros de poder, em virtude do princípio da separação dos
poderes possibilita um controle recíproco entre eles.
Particularmente importante é aquele desenvolvido pelo Poder
Judiciário. Na grande maioria das vezes, a idéia de Estado de
Direito equivale à existência de um poder de controle por parte
dos juízes;
345
MEZZAROBA, Orides. Introdução ao direito partidário brasileiro. p. 279.
346
MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionário de direito político, p. 47.
Fundamentos do Direito Constitucional 217

c) Direitos do homem e do cidadão – Como traço material do


Estado de Direito, destaca-se a existência de alguns
princípios que devem ser obedecidos quando da criação das
leis e do exercício da autoridade pública. Estes princípios se
resumem, fundamentalmente, no respeito aos direitos do
homem e do cidadão, considerados inalienáveis. Na
formulação inicial do Estado de Direito, estes direitos
estavam reunidos na fórmula “liberdade e igualdade”. A
evolução do constitucionalismo permitiu a proposição
teórica e sua conseqüente absorção pelos textos legais e
constitucionais de outros direitos considerados também
inalienáveis.
O império da lei como regra geral, a separação dos poderes e o
respeito pela liberdade e pela propriedade tornaram-se as características
fundamentais do Estado Constitucional durante grande parte de sua
evolução. A implantação paulatina do princípio democrático agregou uma
outra característica: a lei deve ser não só uma regra geral mas também a
expressão da vontade da comunidade, formulada por representantes
livremente eleitos por todos os cidadãos.
As expressões Estado de Direito e Estado Democrático de
Direito acolhem a vontade constitucional de configurar a comunidade
política de acordo com os critérios assinalados acima, resultado de um
longo processo histórico. Trata-se de conceitos elaborados pela doutrina
juspublicista, mas que encontraram lugar nas Constituições. Na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 1º,
está escrito que “a República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito...”347.
Outro bom exemplo é o que está previsto na Constituição
Espanhola de 1978, em seu art. 1º, inc. I. Ali está escrito que a “Espanha
se constitui em um Estado social e democrático de Direito, que propugna
como valores superiores de seu ordenamento jurídico a liberdade, a
justiça, a igualdade e o pluralismo político”348.
Apesar destas considerações, os termos Estado de Direito e
Estado Democrático de Direito não são exatamente permutáveis. Durante
muito tempo, os Estados de direito constitucionais não foram Estados
democráticos. Por outro lado, não é difícil imaginar situações nas quais a
vontade popular possa adotar decisões contrárias aos direitos do homem.
Por conta disto é que a qualificação de Estado Democrático de Direito
347
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil,
p. 1.
348
GUERRA, Luiz López. Constitución española, p. 27.
218 Paulo Márcio Cruz

supõe um equilíbrio entre os princípios em constante tensão, tendo, por


um lado, o caráter determinante da vontade popular e, por outro, a
garantia de direitos ou situações jurídicas fundamentais do indivíduo,
intocáveis, inclusive, por esta vontade.
Partindo-se desta constatação, a lição de Streck e Bolzan de
Morais é elucidativa quando escrevem que “nesse sentido, pode-se dizer
que, no Estado Democrático de Direito, há um sensível deslocamento da
esfera de tensão do Poder Executivo e do Poder Legislativo para o Poder
Judiciário”349. Como foi dito anteriormente, cada vez mais é fundamental
a atuação judiciária. A Sociedade deve entender este fato como uma de
suas principais preocupações. Ataques sem fundamento ao Poder
Judiciário ou as tentativas de generalização de problemas pontuais
envolvendo seus membros são atentados à própria Democracia.
A primazia da vontade popular supõe que as decisões desta
vontade sejam vinculantes para o resto dos poderes públicos, assim
como para o conjunto de cidadãos. Mas o respeito ao Estado de Direito
impõe alguns limites à expressão da vontade popular, que deve
manifestar-se de acordo com procedimentos que garantam uma efetiva
participação e um suficiente conhecimento, por parte dos cidadãos,
destes limites formais. Por outro lado, os direitos e garantias
fundamentais da pessoa humana também devem ser respeitados, o que
caracteriza limites materiais.
O equilíbrio entre estes princípios coloca o Estado Democrático
de Direito diante da necessidade de evitar perigos contínuos de desajustes
entre ambos. A imposição de procedimentos muito rígidos para a
manifestação popular pode sufocar a vontade da comunidade política. Por
outro lado, a adoção de procedimentos com excessiva deliberação
popular, o que se convencionou chamar de “democratismo”, pode
implicar a eliminação dos controles entre os poderes e a marginalização
dos poderes individuais.
A Constituição Democrática aparece, então, como instrumento
para tornar compatível o império da vontade popular e as garantias do
Estado de Direito. A definição dos direitos fundamentais e garantias
constitucionais, a organização dos poderes e a previsão dos
procedimentos que atuem legitimamente estabelecem os parâmetros para
a manifestação da vontade popular.
A própria Constituição é derivada desta vontade popular, assim
como as leis elaboradas pelos parlamentos representativos, às quais
devem ater-se as autoridades administrativas, legislativas e judiciais.

349
STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral do
estado. p. 95.
Fundamentos do Direito Constitucional 219

O círculo se fecha, desta forma, com a constatação de que é a


vontade do povo que estabelece os procedimentos e os limites que, no
futuro, limitarão a manifestação desta mesma vontade. O Direito é
legítimo na medida em que é a expressão da vontade popular, e esta se
expressa através da eleição e atuação de seus representantes, sendo
legítima se estiver de acordo com os procedimentos estabelecidos pelo
Direito.
O Estado Democrático de Direito passou a ser, portanto, uma
proposta de civilização, muito mais do que uma questão ideológica ou
jurídica, ressalte-se mais uma vez.
Atualmente, o que se observa é uma gradativa exaustão do
Estado Democrático de Direito originada pelo assombroso aumento da
complexidade da Sociedade humana e por sua incapacidade de distribuir
mais adequadamente as riquezas.
Diante desta constatação, junto com a esfera de liberdade
própria de todo ser humano e sua projeção na formação da vontade
comum, o constitucionalismo passa a considerar também a evidência das
necessidades existenciais, cuja satisfação é condição prévia para o
exercício da liberdade e da participação política.
Os poderes públicos passaram a enfrentar outras demandas
diferentes daquelas típicas do constitucionalismo moderno, contemplando
o homem como um ser inserido numa rede de relacionamentos sociais e
econômicos. Para além das categorias Estado de Direito e Estado
Democrático de Direito, a Sociedade pós-contemporânea terá que
debruçar-se sobre a tarefa de construção de um modelo de organização
jurídico-política voltada para os valores efetivos do ser humano,
superando o Estado – sem qualquer alusão ao marxismo e ao anarquismo
– e sua matriz carcomida pelo tempo, já que teorizada mais de duzentos
anos atrás.
220 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 9

A CONSTITUIÇÃO E A INTERVENÇÃO E
REGULAÇÃO DO ESTADO

A intervenção do Estado como produto da Teoria Constitucional


do século XX representa um movimento de fundamental importância no
Direito Constitucional, principalmente por ter mudado a concepção
original de Poder estabelecida pelo constitucionalismo liberal.
Quem propôs a intervenção do Estado não foi o proletariado.
Foi, isso sim, a própria burguesia, reformada e mais flexível após a
Revolução Russa, de 1917, e com a crise econômica das décadas de 20 e
30 do Século XX.
O alcance e a repercussão da intervenção do Estado tolheram
processos revolucionários, colapsos institucionais, conflitos
desestabilizadores e rupturas políticas de toda ordem. Enfim, esta
proposta representou – e representa – um formidável mecanismo de ajuste
social para preservar, pelo menos, o caráter concentrador e elitista do
Estado Liberal clássico. Mesmo assim, Streck e Bolzan de Morais
ressaltam que,
contudo, o primado básico do Estado Liberal se mantém, a
despeito de o Estado ter-se transformado em intervencionista,
qual seja: a separação entre os trabalhadores e os meios de
produção, gerando mais-valia, de apropriação privada pelos
detentores do capital350.
De qualquer forma, a intervenção democrática do Estado
representou um grande avanço nas relações sociais e para a justiça social.
Não superou o Estado Liberal burguês, mas deixou-o com outra feição.
Como escreve Canotilho, “uma evolução na compreensão das relações
entre Estado de Direito e Estado Social pode detectar-se naqueles
350
STRECK, Lênio Luiz & MORAES, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral
do estado. p. 65
Fundamentos do Direito Constitucional 221

autores que procuram interpretar as novas realidades do Estado


intervencionista mediante a afinação do sistema conceitual liberal”351.
A sua crise, provavelmente, representa os primeiros passos para
a concepção de uma nova forma de organização político-jurídica para a
Sociedade pós-contemporânea, diferente do Estado. Não será mais o
Estado. Será outro modelo que representará a superação democrática do
Estado.
A intervenção do Estado, como conceito, é resultado de uma
doutrina que representou a reação contra o constitucionalismo liberal
ortodoxo e admite a participação direta e efetiva dos órgãos estatais para
a efetivação de políticas econômicas, sociais e culturais destinadas a
garantir iguais oportunidades a todos os cidadãos, tendo sofrido muitas
variações durante os três últimos quartos do Século XX.

9.1 A INTERVENÇÃO DO ESTADO COMO TEORIA


Como poderá ser observado durante o desenvolvimento deste
capítulo, o teórico alemão Hermann Heller 352 foi o principal defensor da
superação do Estado de Direito Liberal Formal pelo Estado Social de
Direito ou Estado de Bem-Estar, cuja principal característica seria a
intervenção do Estado nos domínios econômico, social e cultural.
A crescente importância dada ao Estado Social de Direito no
sentido de sua capacidade de intervenção nas questões econômicas, sociais
e culturais não representaram qualquer tipo de contradição teórica. A tese
da incompatibilidade entre Estado de Direito e Estado Social – ou de
Bem-Estar –, defendida por doutrinadores que se contrapunham a Heller
acabou superada.
Num primeiro momento, a evolução nas discussões doutrinárias
sobre as relações entre Estado de Direito e Estado Social pode ser
observada em autores que procuraram justificar a intervenção do Estado
como uma forma de atualização do Estado Liberal. O caminho percorrido
foi aquele que passou a defender que a regulação e intervenção e do
Estado eram adequadas enquanto representassem a prestação de serviços
públicos essenciais e a manutenção de empresas públicas destinadas a
movimentar a engrenagem capitalista e a fortalecer o mercado.

351
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, p. 393.
352
HERMANN HELLER, filósofo alemão, nascido em Teschem, Alemanha e morto em
Madrid, Espanha, em 1933, foi o autor que estabeleceu as bases teóricas para a
constitucionalização da intervenção do Estado, tendo desempenhado papel fundamental
na elaboração da Constituição de Weimar. Sua principal obra, Teoria do Estado, traça as
linhas doutrinárias que sustentam a participação do Estado nos domínios econômico,
social e cultural, contrapondo-se ao absenteísmo liberal.
222 Paulo Márcio Cruz

Nessa linha de pensamento e considerando que o indivíduo


ficaria dependente das prestações do Estado, o problema principal seria
garantir que o Estado não passasse para uma posição arbitrária na gestão
dos serviços públicos sociais e na sua intervenção na economia. Foi assim
que as teses da reserva legal e o regime democrático passaram a ser
essenciais ao controle da atividade estatal.
Dessa posição derivou aquela mais avançada, que considerou o
Estado Social de Direito – ou o Estado de Bem-Estar de Direito –, uma
posição adequada para as sociedades complexas que surgiam. Estas
sociedades passaram a exigir uma crescente intervenção do Estado. A idéia
de que um mínimo de Estado corresponderia a um máximo de liberdade
restou ultrapassada ou superada. Bonavides afirma que “sem Estado social
e sem Constituição, não há como criar a ordem econômica e social de uma
democracia pluralista, mormente na sociedade de massa do século XX”353.
A partir desse ponto de inflexão teórica, o Estado de Bem-Estar,
interventivo, passou a representar mais convenientemente o Estado de
Direito, já que o conceito de liberdade deixou de ser vinculado à
propriedade e à individualidade a qualquer custo, e passou a estar
intimamente ligado à condição social do indivíduo. Não seriam livres os
homens que não tivessem as mínimas possibilidades sociais.
Houve uma espécie de substituição no conceito de liberdade,
com a propriedade sendo substituída pelo Bem-Estar como condição para
que o indivíduo fosse livre.
Neste sentido, pode-se utilizar um conceito de Estado que alie
bem-estar e Democracia como síntese para a tese da intervenção estatal.
Canotilho escreve que
aponta-se para um equilíbrio entre os dois conceitos – Estado
de Direito e Estado Social –, pois a liberdade é inconcebível
sem um elevado grau de solidariedade e de igualdade social, e,
por outro lado, o progresso social, o desenvolvimento
econômico e a proteção das classes mais desfavorecidas deve
fundar-se no respeito pelo Estado de direito constitucional 354.

9.2 O DESENVOLVIMENTO DA INTERVENÇÃO DO


ESTADO
Desde o surgimento do Estado Constitucional, os objetivos
fundamentais dos textos constitucionais tem sido a regulação do poder
político e a garantia da liberdade dos cidadãos frente a este poder. Não
foi, portanto, até época relativamente recente, a finalidade expressa das
353
BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado, p. 225.
354
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, p. 394.
Fundamentos do Direito Constitucional 223

constituições prever a intervenção do Estado, com detalhes, na ordem


econômica estabelecida para a Sociedade. Bonavides aduz, referindo-se
àquelas cartas políticas, que “sua essência há de esgotar-se numa
missão de inteiro alheamento e ausência de intervenção no econômico e
no social”355.
Apesar deste fato, sempre existiu uma estreita relação entre a
intervenção estatal via previsão constitucional e o sistema econômico de
cada momento, mesmo que tal relação não estivesse explicitamente no
texto da Constituição.
Só no começo do século XX as constituições começaram a
prever a intervenção, com alguma intensidade, em aspectos relevantes da
vida econômica. A partir de 1936, a teoria do inglês John Maynard
Keynes356, exposta na obra Teoria da moeda e do emprego, passa a
representar o seu grande impulso doutrinário. Segundo Mukai, o
pensamento de Keynes “introduz na Ciência Econômica a idéia
revolucionária (então), da necessidade de uma intervenção mais ou
menos permanente dos poderes públicos na economia”357.
Entretanto, deve-se observar que, já muito antes, o
constitucionalismo supunha conseqüências na ordem econômica, mesmo
que não fosse propriamente algum tipo de intervenção.
a) A intervenção do Estado e o liberalismo burguês
Não se deve esquecer que a construção do Estado
Constitucional, na América e na Europa foi, em grande parte,
protagonizada por setores sociais interessados em romper com as rígidas
estruturas do Antigo Regime, que dificultavam ou impediam a livre
circulação e disposição de bens e o livre exercício de profissões e ofícios.
Estes setores sociais – normalmente conhecidos como
burguesia, ou classe burguesa – encontravam sua base econômica no
comércio, na indústria de manufatura e no exercício de profissões
liberais. Desta forma, era natural que suas principais aspirações fossem a
garantia da propriedade, a eliminação das barreiras que dificultavam o
desenvolvimento do comércio e da indústria e o fim da Sociedade
dominada por uma nobreza improdutiva e parasita.
355
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. p. 41.
356
John Maynard KEYNES, economista inglês, nascido em 1883 e morto em 1946,
preconizou a intervenção do Estado visando à eliminação do desequilíbrio econômico.
Suas idéias foram e são empregadas em países com grande desenvolvimento na
atualidade, como Canadá, Inglaterra e França. Autor dos Tratado sobre a moeda, de
1930, e do Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936. KEYNES pregou um
crescimento do consumo, uma baixa taxa de juros e o crescimento dos investimentos
públicos, medidas que implicavam e implicam na intervenção do Estado.
357
MUKAI, Toshio. Participação do estado na atividade econômica. p. 15.
224 Paulo Márcio Cruz

Todas estas aspirações conduziam a um modelo econômico que


deixasse o indivíduo com liberdade para relacionar-se economicamente
com os demais e que lhe permitisse definir, sem a interferência do Estado,
quais eram seus interesses, como anota Ricardo Vélez Rodriguez, em sua
obra A Democracia Liberal segundo Alexis de Tocqueville358.
Estas aspirações estavam refletidas, em parte, nos textos do
constitucionalismo precursor. A Declaração da Independência dos
Estados Unidos da América tem, como um de seus argumentos, a
injustificada atuação do Rei da Inglaterra no sentido de cortar o comércio
de suas colônias na América do Norte com as outras nações e estabelecer
tributos sem o consentimento dos cidadãos destas colônias. A Declaração
de Direitos de 1789 consagrou a propriedade como direito inviolável e
sagrado, considerando-a um “Direito Natural e imprescritível do
homem”.
Esta mesma Declaração de Direitos pretendeu garantir, para a
burguesia daquela época – e de todas as épocas –, que uma cobrança de
tributos só poderia ser legítima, caso os cidadãos admitissem sua
necessidade, vigiassem seu emprego e determinassem sua alíquota, a
forma de sua arrecadação e a sua duração. Foi quando surgiu a expressão
No taxation without autorization, como observado anteriormente.
A transformação econômica que possibilitou a transição do
Antigo Regime ao sistema de livre-comércio, típico da economia liberal,
foi levada a efeito, principalmente, através de leis aprovadas pelos
parlamentos ou por decretos governamentais. A abolição dos privilégios
feudais pela assembléia constituinte francesa na noite de 4.08.1789 ou em
constituições do início do século XIX são marcas recorrentes.
Sobre este fato, Geraldo Vidigal escreve que
na Constituição brasileira de 1824, os incs. XXII e XXVI do art.
179 asseguravam o direito de propriedade ‘em toda sua
plenitude’, a liberdade do trabalho, indústria, comércio, a
propriedade das invenções. Nenhum outro dispositivo na
Constituição, revelava preocupações com a atividade
econômica359.
Além destas questões, as constituições do século XIX não
pretendiam regular outras instituições básicas da economia nem previam
a intervenção do Estado na vida econômica. Como as outras constituições
de sua época, no Brasil, “a Constituição imperial exprimia, dessa forma,
o clima típico do liberalismo que dominava o pensamento mundial no

358
RODRIGUEZ, Ricardo Vélez. A Democracia Liberal segundo Alexis de Tocqueville.
p. 122.
359
VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria geral do direito econômico. p. 22.
Fundamentos do Direito Constitucional 225
360
alvorecer do século XIX” . Esta situação de ignorância constitucional se
prolongou até após a Primeira Guerra Mundial.
b) O surgimento do primeiro intervencionismo do Estado
O desenvolvimento econômico e o processo de industrialização
observados ao longo do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos,
tornaram evidente a necessidade de intervenção dos poderes públicos nos
domínios econômico e social, apesar da ausência de previsões
constitucionais neste sentido. Como muito bem assinalam Streck e
Bolzan de Morais361 quando abordam o surgimento do intervencionismo
estatal,
Evidentemente que isto trouxe reflexos que se expressaram nos
movimentos socialistas e em uma mudança de atitude por parte
do poder público, que vai se expressar em ações interventivas
sobre e no domínio econômico, bem como em práticas até então
tidas como próprias da iniciativa privada, o que se dá por uma
lado para mitigar as consequências nefastas e por outro para
garantir a continuidade do mercado ameaçado pelo
capitalismo financeiro...
A industrialização deu lugar ao aparecimento de amplos setores
sociais que reclamavam melhores condições de vida, cuja atuação
conduziu a conflitos sociais cada vez mais intensos. A expansão da
indústria, por outro lado, só era possível com o Estado providenciando
políticas de criação de infra-estruturas e de estímulo econômico. Isto tudo
junto com a concentração da atividade industrial e a criação de
monopólios, o que dificultava, muitas vezes, o bom funcionamento do
mercado, tornando inexorável a intervenção e regulação 362 do Estado.
A intervenção do Estado, ao longo do século XIX, foi levada a
cabo, em que pese a falta de previsões constitucionais, através da
atividade legislativa, principalmente nos países industrializados, com uma
atividade que cobria os mais diversos âmbitos da vida econômica.
Assim, a regulação das condições de trabalho nas fábricas, com
a primeira norma jurídica neste sentido tendo sido a
Lei de Saúde e Moralidade para regular o trabalho infantil nas
fábricas de algodão, na Inglaterra, em 1802, do Horário de
360
VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria geral do direito econômico. p. 22.
361
STRECK, Lênio Luiz & MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral
do estado. p. 59.
362
Neste contexto, a categoria Intervenção significa o controle pelo governo, em graus
variados, da ordem econômica, através de atuação na produção, distribuição ou
comercialização de matérias primas e de bens. Já a categoria Regulação, tem sentido de
fornecer à Sociedade, através do Estado, regras que regulem as relações privadas, evitando
desequilíbrios nas questões econômicas.
226 Paulo Márcio Cruz

Trabalho, estabelecido na França, em 1848, em doze horas


diárias, o do Seguro de Doença Para os Trabalhadores, na
Alemanha, em 1883, são bons exemplos disto363.
Por outro lado, a atividade estatal de promoção de setores da
economia, como ferrovias, comunicações telegráficas, entre outros, foi
muito intensa em todos os países europeus do Século XIX.
Tratava-se, porém, como se viu, de medidas legislativas e
governamentais, sujeitas ao humor do momento político e sem garantia
de permanência. Além disto, cobriam somente aspectos parciais da vida e
das relações econômicas.
c) O caráter programático do intervencionismo econômico
e social
A intervenção do Estado nos domínios econômico, social e
cultural prevista nas constituições do século XX corresponde a um
movimento principalmente programático. É como escreve Bonavides: “a
ordem econômica e social durante a primeira fase de aceitação positiva
do princípio do Estado social nas Constituições do Século XX
corresponde em grande parte a uma pauta programática”364.
As demandas sociais e o fortalecimento das organizações dos
setores sociais mais desfavorecidos, representados pelos partidos
trabalhistas, socialistas e comunistas, alavancaram, após a I Guerra
Mundial, o movimento pela efetiva constitucionalização de previsões
interventivas do Estado na vida econômica e social. Como ensina
Canotilho, “a via é insistir não na defesa do ‘livre desenvolvimento da
personalidade’, ancorado na propriedade, contra as intervenções
estaduais, mas definir os contornos do ‘livre desenvolvimento da
personalidade’, assente nas próprias prestações estaduais”365.
As Constituições mexicana de 1917 e a alemã de Weimar de
1919, esta última fruto do acordo entre partidos políticos de classes médias
e partidos trabalhistas, foram as primeiras a prever, de modo expresso, a
intervenção do Estado nos domínios social e econômico 366. Também a
Constituição brasileira de 1934, que teve vida curta, tendo sido revogada
em 1937, seguindo esta tendência, estabelecia amplas disposições que
possibilitavam a intervenção estatal367.
Foi nesta época que se forjou a expressão Estado Social, por
inspiração, como já assinalado no início deste capítulo, do jurista alemão

363
PEREZ, Juan Nantes. Intervención estatal y economía, p. 146.
364
BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado, p. 226.
365
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional, p. 393.
366
BONAVIDES, Paulo. Teoria do estado, p. 227.
367
PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo, p. 43 e s.
Fundamentos do Direito Constitucional 227
368
Hermann Heller , como indicativo de um modelo de intervenção pública
que garantia não só a liberdade mas também uma adequada condição
social e econômica aos cidadãos.
Esta tendência do constitucionalismo fez-se ainda mais evidente
depois da II Guerra Mundial. “É a idéia de Welfare State que se comporá
efetivamente no pós-45, onde o aspecto promocional passa a integrar
definitivamente o vocabulário político do século XX” 369, como assinala
Bolzan de Morais.
As constituições aprovadas no segundo pós-guerra passaram a
admitir, expressamente, um relevante papel do Estado na configuração da
ordem econômica e social. É como assinala Toshio Mukai, ao escrever que
a inserção do Estado Social no Estado de Direito traduz um
tempo que impõe ao Estado contemporâneo sua ingerência no
domínio particular, isto é, no todo social. E isto fica claro se
examinarmos algumas das mais expressivas constituições
contemporâneas, como a da França de 1958 e a da Itália de
1947370.
Assim, o preâmbulo da Constituição Francesa de 1946 contém
uma ampla proclamação sobre as tarefas econômicas e sociais que o
Estado deve desenvolver. A Lei Fundamental de Bonn, de 1949, proclama
a Alemanha como um Estado federal, democrático e social. A
Constituição Italiana de 1948 dedica todo um título às “relações
econômicas”.
A partir deste momento, a inclusão de cláusulas nos documentos
constitucionais dedicadas a prever a ação interventora do Estado nos mais
diversos aspectos da vida econômica e social converteu-se numa
característica comum a muitos os países. Estas cláusulas concentram-se,
principalmente, na regulação das relações entre os indivíduos. O exemplo
mais atual é o dos códigos do consumidor, destinados a regular as
relações privadas de consumo.
Deve-se anotar que regulação e intervenção 371 são categorias
diferentes. A intervenção dos poderes públicos como agentes econômicos,
produzindo ou comercializando, diretamente, insumos e bens ou
prestando serviços típicos da iniciativa privada é que caracteriza a
368
Sugere-se a leitura de HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Trad. Lycurgo Gomes da
Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968, 397p.
369
MORAIS, José Luiz Bolzan. A idéia de direito social – o pluralismo jurídico de
Georges Gurvetich. p. 33
370
MUKAI, Toshio. Participação do estado na atividade econômica. p. 10.
371
Regular, é sujeitar a regras, dirigir, regrar. Significa também estabelecer regras para
determinadas atividades.
Intervir é vir a tomar parte. Significa ser ou estar presente através de uma atividade. Não
só estabelece regras mas também participa como sujeito à regulação.
228 Paulo Márcio Cruz

intervenção do Estado na economia. Regular ou regulação é outra coisa,


bem distinta.

9.3 REGULAÇÃO ESTATAL E AUTONOMIA


CONTRATUAL
A autonomia da vontade, o consensualismo, a força obrigatória
dos pactos, o efeito relativo dos contratos e a boa-fé são os principais
fundamentos da teoria clássica contratual.
A forma típica de relação jurídica entre privados, com o
advento, principalmente, do Estado Constitucional, passou a ser o
contrato, como acordo de vontade autônoma e de livre expressão do
indivíduo. Tanto é assim, que Georges Burdeau, em seu O Liberalismo,
destaca que
se o liberalismo exige que as leis sejam pouco numerosas e
absolutamente gerais, é pelo menos sobre elas que ele faz
assentar a ordem social e a segurança dos cidadãos. Ora, por
uma inversão que não deixa de ser sintomática, o Estado
liberal viu-se levado a presidir uma civilização do contrato.
Mais do que isso, comprazeu-se em conferir ao contrato
autoridade de lei372.
A liberdade contratual, durante o Estado Moderno, transformou-
se numa das categorias fundamentais da autodeterminação do cidadão. “A
autonomia da vontade dos contratantes conduz assim a reconhecer ao
indivíduo o poder de criar ele próprio, diretamente, a substância do
direito”373. Iniciava-se a denominada “civilização dos contratos”.
Porém é evidente que nem todos os indivíduos encontram-se em
situação de igualdade na hora de firmar um contrato. A desigual
repartição de meios e capacidades coloca, em muitas ocasiões, um dos
contratantes dependente do outro, já que a necessidade obriga, muitas
vezes, a aceitação de acordos desvantajosos ou com cláusulas claramente
desfavoráveis para uma das partes. Como escreve Rogério Donnini, “o
Liberalismo do século XIX fez do contrato o mais importante dos
negócios jurídicos realizados entre pessoas, vinculando as partes
juridicamente, mas nem sempre de forma equânime, justa e ética” 374.
A limitação ao princípio da autonomia da vontade ocorreu pela
interferência do Estado. Isto tornou-se evidente, principalmente, em
determinadas relações que passaram a afetar grandes setores da
372
BURDEAU, Georges. O liberalismo. p. 125.
373
BURDEAU, Georges. O liberalismo. p. 125.
374
VIANA, Rui Geraldo Camargo & NERY, Rosa Maria de Andrade et alii. Temas atuais
de direito civil na constituição federal. p. 70.
Fundamentos do Direito Constitucional 229

população, quando um grande número de pessoas, com poucos meios


econômicos, depende, para sua subsistência ou para assegurar condições
decentes de vida, de acordos celebrados com os donos ou administradores
das fontes de riqueza.
A relação existente entre particulares, que continuou sendo
regulada pelos Código Civil e Comercial, passou a exigir o que se
convencionou chamar de justiça comutativa. Principalmente nas relações
de emprego doméstico, de consumo e com os trabalhadores eventuais em
sua relação com os empresários, entre outros muitos exemplos.
Dadas as condições de desigualdade entre as partes contratantes
nestes tipos de relações, como mostra o retrospecto histórico, a absoluta
liberdade contratual conduz, inevitavelmente, a abusos cometidos contra
as partes mais fracas, com as conseqüentes tensões e conflitos sociais 375.
Por isto, a autonomia privada, diante do rigor excessivo do princípio da
força obrigatória dos pactos, no final do século XIX e início do século
XX, foi contida pela interferência do Estado nas relações contratuais, fato
esse que já havia se iniciado antes, com a Revolução Industrial. Em
muitos países começava a ser restringida a liberdade de contratação com
a proibição de cláusulas abusivas ou impondo cláusulas obrigatórias ou
não derrogáveis.
Os ordenamentos jurídicos da maioria dos países europeus e
alguns americanos passaram a estabelecer conteúdos indisponíveis para a
contratação de trabalhadores, de modo a garantir aqueles direitos de
caráter irrenunciável. Mas tal técnica se estendeu a outros setores de
contratação. Em alguns países, as leis passaram a regular os mais diversos
tipos de contratos, sempre procurando garantir à suposta parte mais frágil
da relação contratual o caráter comutativo, de modo a atingir a dita justiça
contratual. Nos contratos de arrendamento, por exemplo, ficou garantida
a sua renovação automática, evitando que fosse rescindido a qualquer
momento pela livre vontade do proprietário.
Principalmente por conta das lutas operárias travadas desde o
final do século anterior, no século XX os ordenamentos jurídicos
passaram a regular a proteção do consumidor, introduzindo notáveis
restrições à liberdade contratual no que se refere à garantia de qualidade
dos produtos comercializados.
Os textos constitucionais, principalmente depois da II Guerra
Mundial, passaram a prever, expressamente, tal regulação por parte do
Estado, habilitando os poderes públicos para desenvolver políticas de
regulação protetoras de determinados setores sociais, o que implicou
autorizar estes poderes a restringirem a capacidade autônoma dos
375
VIANA, Rui Geraldo Camargo & NERY, Rosa Maria de Andrade et alii. Temas atuais
de direito civil na constituição federal. p. 73.
230 Paulo Márcio Cruz

cidadãos, impondo cláusulas obrigatórias em determinados contratos ou


proibindo determinados acordos. Como escreve Dallari, “a liberdade
contratual cede passo à regulação estatutária” 376. Houve o início do
processo de constitucionalização do Direito Privado.
São de fundamental importância, para se entender esta
tendência as cláusulas sociais das constituições, que não são meras
proclamações retóricas, já que eqüivalem a autênticas autorizações
constitucionais, aos poderes públicos para intervirem – e também
regularem – na vida social. Estas cláusulas sociais, pois, têm especial
significado, mesmo que não tenham aplicabilidade prática imediata, posto
que representam possibilidades de políticas públicas de intervenção.
Desta forma, quando a Constituição Brasileira de 1988
estabelece, no art. 5º, inc. XXXII, que “o Estado promoverá, na forma da
lei, a defesa do consumidor”377, e no Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, em seu art. 48, estabelece um prazo de cento e vinte dias, após
a promulgação da Constituição, para a elaboração desta lei 378, não está
tratando de meros enunciados teóricos, mas sim, da legitimação e
justificação da ação dos poderes do Estado, possibilitando que estes levem
a cabo uma atuação reguladora, mesmo às custas da restrição da liberdade
de contratação em algumas matérias. Como anota Brito Filomeno,
fica claro, portanto, que ao Estado incumbe promover as
condições para que os produtos e serviços sejam colocados à
disposição dos consumidores de maneira correta, adequada,
honesta e segura, mesmo porque são bens da vida, faceta das
mais importantes do bem comum, senão ele próprio, em última
análise379.
O Código de Defesa do Consumidor, na verdade, pode ser
entendido como uma forma de “regulação liberal” da economia. A
justificativa é simples: como ele se destina a regular a relação entre
consumidores, aqueles que não podem consumir – os pobres – estão,
praticamente, fora de sua área de abrangência, com sua regulação
destinando-se a manter um “mercado limpo” para a atividade econômica
liberal. O grande mérito dos códigos de defesa do consumidor está em
estabelecer relações de consumo mais justas.
Excetuando-se a questão levantada no parágrafo anterior, as
possibilidades de regulação estão unidas, nos textos do
376
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. p. 237.
377
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
07.
378
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
120.
379
FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de teoria geral do estado e teoria política.
p. 150.
Fundamentos do Direito Constitucional 231

constitucionalismo social, ao reconhecimento e valorização de


determinadas organizações, que ficam encarregadas, expressamente, da
realização de acordos e negociações coletivas, com determinadas formas
de acordo se convertendo em negociação coletiva. É freqüente, neste
aspecto, o reconhecimento do papel dos sindicatos, como está na
Constituição brasileira de 1988, em seu art. 8º, inc. III, quando prevê o
seguinte: “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos
ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou
administrativas”380.
Em constituições estrangeiras atuais também é comum este
reconhecimento, como na Espanhola, nos seus arts. 7 e 28, na Portuguesa,
no art. 57 e na Italiana, em seu art. 39, por exemplo.
Algumas constituições, como a espanhola, chegam a garantir a
força vinculante dos acordos e convenções coletivas, convertendo-os,
deste modo, em normas vinculantes, respaldadas pelo Estado. São
resultados de pactos entre sujeitos coletivos que se impõem à vontade
autônoma individual.
Também passou a ser comum o reconhecimento do direito de
greve para os trabalhadores, como está previsto, também, no art. 9º da
Constituição brasileira de 1988, com o seguinte teor: “É assegurado o
direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a
oportunidade de exercê-lo sobre os interesses que devam por meio dele
defender”381.
Em seguida, nos dois parágrafos deste mesmo artigo, a
Constituição brasileira restringe este Direito, dizendo que ele não pode
ser exercido quando se tratar de atividades essenciais, que deverão ser
definidas em lei, nem com base em possíveis abusos.

9.4 A INTERVENÇÃO ESTATAL E DIREITO DE


PRESTAÇÃO
O Estado Contemporâneo tem como uma de suas características
típicas a crescente inclusão, nas constituições, não só de previsões de
regulação estatal das relações contratuais, mas também de comandos aos
poderes públicos para que passem a prover ou financiar uma série de
prestações de serviços, em geral públicos e gratuitos, aos cidadãos.
A partir da implantação generalizada do Estado – e do
constitucionalismo – Social, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial,
380
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
13.
381
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
14.
232 Paulo Márcio Cruz

multiplicaram-se as previsões de uma gama clara e inequívoca de


intervenções do Estado no domínio social, pois ele mesmo passa a prestar
serviços, diretamente à Sociedade, de modo a suprir carências não
resolvidas pela iniciativa privada ou pela própria Sociedade.
A previsão de uma atuação estatal que consista em melhorar ou
facilitar, diretamente, as condições de vida dos cidadãos, aparece já no
século XIX, em muitos países europeus, na legislação infraconstitucional.
Esta tendência aparece já na Revolução de Paris, de 1848, e nos escritos
do jurista alemão Lorenz von Stein 382, cujos escritos são considerados,
por alguns estudiosos, como um importante precedente do conceito
contemporâneo de Estado Social383.
No século XIX, na maioria dos países europeus, foram criados,
através de lei, serviços públicos e gratuitos, em determinadas áreas
sociais, para as camadas menos favorecidas da população. A educação, a
saúde e a seguridade passaram a fazer parte dos serviços públicos
prestados diretamente pelo Estado.
A seguridade social, neste aspecto, teve papel de fundamental
importância, por ser, entre as políticas sociais, a mais abrangente e capaz
de atingir aqueles indivíduos mais necessitados. A legislação, ao longo
dos séculos XIX e XX foi estabelecendo, inicialmente, sistemas mistos,
com recursos dos trabalhadores, dos empresários e do Estado, e
posteriormente sistemas bancados quase que totalmente pelo Estado.
A partir do fim da II Guerra Mundial, estas foram as tendências
predominantes. Primeiro apareceram previstas na legislação e que depois
foram incluídas na Constituição. As previsões constitucionais
estenderam-se não só para áreas como as da educação, saúde e seguridade
social, mas também para outras, como as da habitação e do
abastecimento, para se ficar somente com alguns exemplos 384.
Muitos autores assinalam, entretanto, que o reconhecimento
destes tipos de direitos esbarra em uma dificuldade notável, já que,
quando se trata de prestação de serviços públicos, sua efetividade
depende de meios materiais para a sua realização, como o fazem Streck e
Bolzan de Morais385.

382
Lorenz von STEIN, economista e sociólogo alemão, nasceu em 1815 e morreu em 1890
em Berlin. Influenciou decisivamente a interpretação econômica – inclusive a marxista –,
principalmente a partir de sua obra História do movimento social na França, de 1850.
383
Sobre isto ver CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado
contemporâneo, p. 168.
384
WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma crítica do estado. p. 26.
385
STRECK, Lênio Luiz & MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral
do estado, p. 133.
Fundamentos do Direito Constitucional 233

Desta forma, caso as previsões constitucionais que contemplem


os direitos à prestação de serviços públicos e gratuitos não sejam fruto da
convicção da maioria da Sociedade e de seus governantes, a simples
inscrição dos mesmos na Constituição pode ser apenas uma figura de
retórica.
Por este motivo, as previsões constitucionais referentes aos
direitos à prestação de serviços públicos são mais “frágeis” do que
aqueles referentes aos direitos de liberdade ou aos direitos políticos, de
mais fácil realização. Mas também não é correto considerar que o
reconhecimento dos direitos de prestação de serviços públicos nas áreas
sociais tenha esta mera dimensão retórica. Considerado isto, a
intervenção do Estado no domínio social, prevista nas constituições
contemporâneas, através da prestação de serviços públicos gratuitos,
permite que se aponte o seguinte como suas conseqüências:
a) Estas previsões têm um efeito interpretativo sobre as outras
disposições constitucionais. Sem dúvida, pode-se interpretar
que a previsão de direitos sociais na Constituição habilite,
automaticamente, o Estado para a sua efetivação. Significa
dizer, inclusive, que os poderes públicos podem impor
limitações ou restrições a outros direitos para garantir a
prestação de serviços sociais públicos constitucionalmente
reconhecidos. Os direitos dos indivíduos e as competências
dos poderes públicos devem ser interpretados, desta forma,
a partir da perspectiva da solidariedade e não a partir de
uma perspectiva meramente individualista;
b) Em segundo lugar, as previsões constitucionais neste
sentido supõem não só um mandamento ou estímulo, mas
também um limite à ação dos poderes públicos. Com a
Constituição garantindo ou reconhecendo a prestação de
certos serviços públicos, o legislador infraconstitucional
poderá adequar estes ditames às necessidades e
disponibilidades do momento, mas não poderá, pela via
ordinária, sem dúvida, suprimir ou anular os sistemas de
prestação ou proteção que estão previstos no texto
constitucional. Em alguns casos, como o da Constituição
brasileira de 1988, cláusulas pétreas interditam
determinadas partes do texto constitucional, destinadas a
proteger direitos à prestação de serviços sociais públicos da
ação do Poder Constituinte Derivado386.

386
Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, as Cláusulas Pétreas
estão previstas no § 4º do art. 60.
234 Paulo Márcio Cruz

O problema da previsão constitucional da prestação que se


choca com a realidade orçamentária é mais visível nos países em
desenvolvimento, como o Brasil. Há, na Constituição brasileira de 1988,
várias previsões que determinam a prestação de serviços públicos e
gratuitos, mas que esbarram na relação desequilibrada entre a
possibilidade de oferta e a demanda por estes serviços, fruto, muito
provavelmente, de um processo histórico de desperdício, corrupção e
desvio de finalidade na aplicação dos recursos públicos.
Um bom exemplo é a previsão constitucional brasileira sobre o
dever do Estado em prover a Sociedade com serviços públicos na área da
educação. É o que está previsto no art. 208 da Constituição de 1988, inc.
I. Este dispositivo diz o seguinte:
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a
garantia de:
I – ensino fundamental obrigatório e gratuito, assegurada,
inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não
tiveram acesso na idade própria387.
Sabe-se, no entanto, que por muitos motivos, inclusive a falta de
recursos públicos disponíveis, mandamentos constitucionais como este
não são cumpridos ou concretizados.

9.5 O DIREITO DE PROPRIEDADE E A INTERVENÇÃO E


REGULAÇÃO ESTATAL
Principalmente no Estado Moderno, a evolução jurídica e
ideológica do Direito de Propriedade tenderam a facilitá-lo e expandi-lo
ao máximo. Inicialmente, sob influência das teses liberais mais ortodoxas,
a propriedade aparecia como um direito “inviolável e sagrado”,
concepção que servia de base e fundamento para a ordem social. Mais
especificamente, um dos principais objetivos dos revolucionários do
século XVIII foi definir e reconstruir o Direito de Propriedade, livrando-o
das vinculações e limitações que, no Antigo Regime, dificultavam seu
livre uso e disponibilidade.
Já com a declaração de direitos de 1789, que proclamou a
Propriedade inviolável e sagrada, e com as constituições revolucionárias
do mesmo período, eram admitidos certos limites e restrições ao Direito
de Propriedade. Estes limites se baseavam, principalmente, na
possibilidade de expropriação. Mas tratava-se de limitações submetidas a
severos requisitos formais.

387
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
104
Fundamentos do Direito Constitucional 235

A partir do fim da Primeira Guerra Mundial e de seus efeitos na


vida social, os países europeus, principalmente, passaram a subordinar o
uso e gozo da propriedade ao interesse social. A grande maioria dos
países passou a vincular o Direito de Propriedade à sua respectiva função
social.
A transformação do Estado em grande regulador do Direito de
Propriedade, viabilizada primeiro através das leis e depois das
constituições, resultou numa notável mudança em relação aos primórdios
do constitucionalismo. As necessidades sociais deram lugar a uma
regulação da propriedade que se caracterizava pela relativização deste
direito e sua subordinação à sua função social, a qual competiria servir
como grande estímulo ao progresso material, mas sobretudo à valorização
crescente do ser humano, num quadro em que o Homem exercita a sua
criatividade para crescer como indivíduo e com a Sociedade 388.
A mudança na concepção de Propriedade é notável. Neste
mister, é procedente a afirmação de Streck e Bolzan de Morais: “da
propriedade com direito de pleno uso, gozo e disposição, passamos a
uma exigência funcional da propriedade, sendo determinante sua
utilização produtiva e não mais seu título formal”389.
As constituições passaram a configurar a propriedade como um
direito já não só limitado – ou parcialmente restringido – pela lei, mas
sim, como um direito “delimitado” – ou definido – pelo legislador. Nos
claros termos da Lei Fundamental de Bonn – a atual Constituição alemã
–, em seu art. 14, inc. II, está previsto o seguinte: “a propriedade obriga.
O seu uso deve ao mesmo tempo servir para o bem-estar geral”390. A
Constituição brasileira de 1988, em seu art. 170, inc. III, ao prever que a
ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, concebe a “função social da propriedade”391.
Esta subordinação da propriedade à sua função social possui
diversas manifestações. A primeira delas é a que causa mais impacto no
mundo atual e reside na generalizada criação de limites ao uso e
disponibilidade da propriedade, de modo a permitir que o todo social
esteja entre os seus objetivos. Exemplo deste fato são as limitações
impostas ao uso do solo, típicas do planejamento urbano contemporâneo.

388
PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo. p. 71.
389
STRECK, Lênio Luiz & MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral
do estado. p. 64.
390
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha. p. 141.
391
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
84.
236 Paulo Márcio Cruz

Além do mais, o constitucionalismo social contemporâneo tem


sido traduzido por uma maior possibilidade dos poderes públicos de
dispor, em casos determinados, da propriedade dos cidadãos.
A teoria moderna sobre o Direito de Propriedade reconhecia a
possibilidade de desapropriação, porém o limitava através de condições
sempre muito rígidas, como a da existência de uma necessidade pública
legalmente constatada e com a condição de uma indenização justa e
prévia. Destas condições, uma, certamente, foi mantida, ou seja, a
existência de uma base legal para a expropriação. Em outros aspectos, as
mudanças são bastante perceptíveis, podendo-se enumerar as seguintes:
1 – Com o interesse público, que justificava a desapropriação
junto com a utilidade pública, passou-se a admitir o “interesse social”, ou
seja, que da desapropriação derivem vantagens sociais, mesmo que seu
objetivo não seja atribuir os bens desapropriados ao uso público. A
desapropriação pode ser instrumento, desta forma, para uma transferência
de domínio entre particulares, como ocorre, por exemplo, nos planos de
reforma agrária. Como escrevem Streck e Bolzan de Morais, “da
propriedade privada dos meios de produção passou a viger a função
social da propriedade”392.;
2 – No que se refere à indenização, a tendência foi o quase
desaparecimento, da grande maioria das constituições, com o avanço das
teses do Neoliberalismo, da exigência de que seja “prévia”. Na
Constituição Espanhola, está prevista apenas a indenização
“correspondente”, em seu art. 33, inc. III393. Na Lei Fundamental de
Bonn, o que está previsto é que “a indenização deve ser determinada
através da ponderação justa dos interesses gerais e dos das pessoas
afetadas”394. Na Constituição brasileira de 1988, este instituto está
previsto no art. 182, § 3º, com a seguinte redação: “as desapropriações
de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em
dinheiro”395. Para a realidade social e política do Brasil, a indenização
prévia, justa e em dinheiro é previsão das mais importantes e pertinentes.
É importante ressaltar que a Constituição brasileira de 1988, de
forma ainda mais favorável à função social da propriedade, faculta ao
poder público municipal, em caso de não edificação ou subutilização,
exigir do proprietário do solo urbano que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
392
STRECK, Lênio Luiz & MORAIS, José Luiz Bolzan. Ciência política e teoria geral
do estado. p. 65.
393
LOPEZ GUERRA, Luis. Constitución española. p. 48.
394
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha. p. 141.
395
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p. 87.
Fundamentos do Direito Constitucional 237

II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana


progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida
pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal,
com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais,
iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e
os juros legais396.
A mudança no conceito de propriedade também se manifesta em
outro aspecto: a regulação constitucional do sistema tributário. A doutrina
clássica nesta matéria era a consagrada pela expressão No taxation
without representation. Atualmente, como já visto anteriormente, este
princípio mantém-se nas constituições contemporâneas que, de modo
geral, acolhem o princípio da previsibilidade legal dos tributos. O que
deve ser realçado é que a característica marcante do constitucionalismo
social, quanto ao sistema tributário, é que ele não é só um instrumento
para subvencionar as atividades do Estado, mas também de redistribuição
da riqueza, já que os fundos públicos financiam a prestação de serviços
sociais públicos que, comumente, favorecem os setores da Sociedade com
menos condições econômicas. Isto supõe, também, a introdução da
progressividade como princípio tributário, ou seja, que os tributos
aumentem de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, de
maneira que os mais ricos pagarão mais tributos, proporcionalmente, ao
Estado.
Permanece, atualmente, no arquétipo tributário de boa parte dos
países ocidentais, o princípio do “de cada um segundo suas
possibilidades e para cada um segundo suas necessidades”.
A Constituição Brasileira de 1988 também contempla este
princípio, prevendo, em seu art. 145, § 1º., que
sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão
graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte,
facultado à administração tributária, especialmente para
conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os
direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte397.
De qualquer maneira, é importante considerar que a previsão da
função social da propriedade nas constituições contemporâneas não
significa seu desaparecimento. O constitucionalismo social, e isto deve ser
destacado, reconhece expressamente o Direito de Propriedade398, que pode
396
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 87.
397
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 70.
398
Na Constituição da República Federativa do Brasil o Direito de Propriedade está
previsto no art. 5º, inc. XXII, prevendo que “é garantido o direito de propriedade”.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 05.
238 Paulo Márcio Cruz

estar limitado, mas não radicalmente suprimido. O constitucionalismo


social, note-se, tende a estender e distribuir a propriedade e não suprimi-la.

9.6 A ECONOMIA COMO ATIVIDADE DO ESTADO


O Estado abstencionista liberal tinha por objetivo proteger três
princípios essenciais: a igualdade perante a lei, a livre concorrência e o
Direito de Propriedade.
Com as revoluções sociais na Europa, principalmente a
soviética de 1917, a italiana de 1923 e a alemã de 1933, este Estado sofre
mudanças em sua concepção. Além disso, o colapso econômico norte-
americano de 1929 e a Segunda Guerra Mundial atingem a todos os
países do Ocidente.
Nessa época surgem as primeiras Constituições que prevêem a
intervenção do Estado na economia, cujo emblema é a Constituição de
Weimar de 1919. Nasce na Alemanha, como já foi visto, o Estado Social
e, derivado de sua evolução, o Estado Social de Direito.
A partir destes eventos, surge uma nova realidade, que reclama
a participação do Estado para organizar a vida econômica, abalada por
monopólios gigantes, respaldados que foram por constituições concebidas
pelo Liberalismo.
Em sua face mais extremada, a crítica ao sistema liberal
defendia a eliminação da propriedade privada e a criação de um sistema
econômico coletivizado. Esta coletivização poderia supor a “estatização”
da economia ou, como na teoria marxista, seu controle pelo proletariado
organizado, de acordo com aquela posição defendida por Marx e Engels
no Manifesto do Partido Comunista, prevendo que “o que caracteriza o
comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da
propriedade burguesa”399.
Foi produzida uma adaptação do sistema econômico, de
maneira que, mesmo mantendo-se a maioria da atividade no âmbito da
iniciativa privada, o Estado passou a exercer um importante papel como
orientador e diretor da economia.
Com o keynesianismo, como visto no início deste capítulo, as
teorias dominantes deixam de discutir a legitimidade da presença do
Estado no âmbito econômico, justificada por ser um instrumento
fundamental para assegurar o bem-estar da Sociedade 400.
A idéia de Keynes, de que uma parte, maior ou menor, da
economia fosse transferida para a órbita do Estado está refletida no
constitucionalismo europeu do pós Segunda Guerra Mundial. Nas novas
399
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista, p. 80.
400
TOUCHARD, Jean. Historia de las ideas políticas, p. 626.
Fundamentos do Direito Constitucional 239

constituições da Europa Ocidental estão previstas as possibilidades de


medidas socializadoras, que podem converter o Estado em dono de parte
das atividades produtivas, industriais, comerciais ou de qualquer outra
natureza econômica, como está disposto, por exemplo, no art. 43 401 da
Constituição italiana de 1948 e na Lei Fundamental de Bonn de 1949, em
seu art. 15402, que estão atualmente em vigor.
Já a Constituição brasileira de 1988 não foi elaborada com um
sentido socializante explícito, como está previsto nas duas constituições
citadas no parágrafo anterior. Muito pelo contrário. Mostrando mais uma
de suas contradições ideológicas, a atual Lei Magna brasileira trata de
expressar o caráter excepcional da intervenção direta do Estado na
economia. Em seu art. 173 diz o seguinte:
Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a
exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será
permitida quando necessária aos imperativos da segurança
nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definido
em lei403.
E no art. 174, deixa muito claro o papel de “regulação” e
“normatização” do Estado. É o seguinte o seu teor:
Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o
Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização,
incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor
público e indicativo para o setor privado404.
Comparada às citadas constituições européias, a brasileira de
1988, neste aspecto, mostra-se muito mais conservadora e liberal. Isto,
somado à descaracterização da intervenção estatal como fundamental
para o desenvolvimento social, por conta dos paradoxos intervencionistas
produzidos durante os governos militares pós-1964, criou um sentimento
um tanto estereotipado quanto ao papel do Estado como agente
econômico, que deve ser recuperado por um debate conseqüente e
voltado para o resgate da imensa dívida social existente no Brasil.

401
Este artigo diz que “Para fins da utilidade geral, a lei pode reservar originariamente
ou transferir, mediante expropriação e salvo indenização, ao Estado, a entidades públicas
ou a comunidades de trabalhadores ou de usuários, determinadas empresas ou categorias
de empresas, que se relacionem com serviços públicos essenciais ou com fontes de
energia ou monopólios, as quais tenham caráter de preeminente interesse geral”.
402
Este artigo diz que “Para fins de socialização e por meio de uma lei que estabeleça o
modo e o montante da indenização, podem ser transferidos para a propriedade coletiva
ou para outras formas de economia coletiva, bens imobiliários, recursos naturais e meios
de produção”.
403
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 84.
404
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p. 85.
240 Paulo Márcio Cruz

Também é importante ressaltar que a tendência socializadora


dos meios de produção sofreu um processo visível de atenuação nas
duas últimas décadas do século XX. Com a emersão das propostas
neoliberais, a ênfase foi sendo deslocada para a maior eficiência da
iniciativa privada e nos perigos que a acumulação do poder econômico e
político nas mãos do Estado representam para a liberdade individual. A
derrocada das experiências de economias coletivizadas do Leste
europeu foi outro elemento determinante na tendência para a
desestatização da economia.
Os partidos socialistas europeus ocidentais, premidos pelos
avanços da economia globalizada, também afastaram-se das propostas de
coletivização da economia como objetivo político.
Foi muito relevante, neste sentido, o programa de Bad
Godesberg, em 1959, posto em prática pelo Partido Social Democrata
Alemão nas décadas de setenta e oitenta, tornando-se um ponto de
inflexão de todo o pensamento socialista europeu. Como escrevem
Poulain, Streiff, Conillet, Mantagny e Bourdin,
ele abandona toda a referência à luta de classes, às
nacionalizações e à concepção de classe do Estado. Define-se,
então, não mais como partido de classe mas como partido
popular, à imagem de outros partidos burgueses. Renuncia a
qualquer ruptura com o capitalismo, aceita a economia de
mercado e institucionaliza a colaboração de classes405.
Nas décadas de 80 e 90, a partir da volta ao poder de partidos
socialistas e trabalhistas na Inglaterra, na Alemanha e na França, pode-se
notar que a tese do abstencionismo estatal não prosperou como
pensamento destas tendências políticas. As previsões constitucionais
continuaram traduzindo um indicativo de socialização de setores
estratégicos da vida econômica e priorização do bem-estar social. Como
conseqüência deste fato, foi preservado o papel do Estado como impulsor
e orientador da economia. Como exemplo disto, pode-se destacar o
seguinte:
a manutenção de um setor público de considerável importância
em todos os países europeus ocidentais. Isto se manifesta ao
menos em dois campos de atuação. Por um lado, naqueles
serviços públicos não rentáveis, que dificilmente poderão ser
assumidos pela iniciativa privada, como determinados tipos de
transportes, serviços de saúde e de educação, previdência e
alguns meios de comunicação. Por outro, naquelas atividades
de relevância para a defesa, como a indústria militar, ou
necessitadas de intervenção estatal para evitar monopólios ou
405
POULAIN, J. C. et alii. A social-democracia na atualidade, p. 71.
Fundamentos do Direito Constitucional 241

concentrações de poder perigosas para a estabilidade


econômica e política, como as telecomunicações e alguns
setores economicamente estratégicos;
A disponibilidade de muitos instrumentos de orientação e
regulação da economia. Sem necessariamente transformar a
atividade econômica numa atividade pública, as constituições
têm provido o Estado de instrumentos para o planejamento e
regulação da economia, utilizáveis com diferentes intensidades.
A política fiscal, a tributária e a monetária permitem aos
poderes públicos estabelecer políticas econômicas reguladoras.
Em algumas ocasiões, é observado o estabelecimento de órgãos
constitucionais para desenvolver e assessorar o Governo nestas
tarefas, como acontece no Brasil com as agências reguladoras
(Petróleo, Energia, Transportes etc.).
O ordenamento constitucional predominante nos países
ocidentais, pelo menos na Europa, poderia ser definido como de
“economia estatal de mercado”, baseado na propriedade privada, mas
submetido a um significativo grau de intervenção e regulação estatal, com
o objetivo de garantir a estabilidade do Estado Democrático de Direito e
dos interesses dos grupos menos favorecidos. Não é incomum este tipo de
economia ser designado de “economia estatal socializada”.
Este tipo de modelo econômico, infelizmente nunca foi
alcançado nos países da América Latina. Nos últimos anos, obedecendo a
uma tendência “pendular” os países europeus começam a derivar para
propostas novamente abstencionistas, como se observa com a ascenssão
ao poder, neste início do século XXI, de partidos de liberais e neoliberais
na Espanha, França, Itália e, mais recentemente, em Portugal.
Talvez a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência
do Brasil, em 2002 tenha passado a indicar uma nova possibilidade para
as combalidas democracias sul-americanas.
242 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 10

DIREITO CONSTITUCIONAL
E FORMA DE ESTADO

Como nota introdutória a este capítulo, faz-se necessário


esclarecer que a opção pela denominação “Forma de Estado” foi feita para
se tentar contribuir com a correta designação das categorias mais comuns
no que respeita ao estudo do Governo e do Estado.
Assim, “Forma de Estado” significa a organização territorial do
Estado, que pode variar entre aqueles, política ou administrativamente,
muito descentralizados e aqueles centralizados. É, como diz Jorge
Miranda, quando leciona que “as formas de Estado dizem respeito à
estrutura do poder no Estado – poder político uno ou associação de
poderes”406.
Já a categoria “Forma de Governo” destina-se a designar a
opção pela República ou pela Monarquia.
Quando a discussão se dá sobre a organização do Poder
Executivo para o desempenho de sua função de Governo, entende-se que
o correto é utilizar-se a categoria “Sistema de Governo” para designar o
Parlamentarismo, Presidencialismo ou o Sistema Diretorial Suíço.
Quanto à categoria “Regime de Governo”, o entendimento é de
que ela designa a opção ideológica do Governo e a forma de exercício do
poder político, podendo ser uma Democracia ou uma Autocracia.

10.1 CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO COMO


ALTERNATIVAS CONSTITUCIONAIS
A função da Constituição, enquanto delimitadora da
organização dos poderes do Estado, também refere-se ao relevante
aspecto do seu âmbito e estrutura territoriais. A organização territorial do
406
MIRANDA, Jorge. Toeria do estado e da constituição, p. 299.
Fundamentos do Direito Constitucional 243

poder tem uma considerável importância não só por conta de sua


influência na configuração e funcionamento dos poderes públicos mas
também porque incide, de forma direta, na liberdade dos indivíduos e –
muito significativamente – no dos grupos ou coletividades sociais 407.
As formas de organização territorial do poder, ou seja, a
definição de competência dos diversos poderes públicos, variam muito
nos sistemas constitucionais atualmente existentes. Neste aspecto,
considerações práticas e aspectos históricos são de especial importância,
já que é difícil elaborar categorias ou modelos de aplicação geral,
considerando-se que os termos utilizados – Estado unitário, regional,
federal, confederal – são, não raro, imprecisos e conduzem a erros de
entendimento.
Não obstante, é possível enunciar alguns conceitos gerais, que
ajudam a conhecer o significado técnico de alguns termos usuais no
Direito Constitucional.
Os diversos ordenamentos constitucionais atualmente em vigor,
no que se refere à ordenação territorial do poder respondem, dentro de
sua variedade, a dois princípios ou alternativas: centralização ou
descentralização. É possível classificar as Constituições de acordo com
sua maior ou menor aproximação a um destes princípios, mesmo que
ambos, não raro, estejam combinados em modelos intermediários.
Não é possível, salvo em unidades políticas muito pequenas, a
completa centralização, enquanto que a completa descentralização
equivale a desmembrar do Estado unidades independentes, que seriam
por sua vez, outros Estados soberanos. Portanto, nenhuns dos pólos são
possíveis de serem alcançados, mas entre eles cabe uma ampla
pluralidade de configurações.
Os elementos que definem o grau de centralização ou
descentralização de um Estado e que são previstos pela Constituição, são
de diversos tipos. Entre eles, podem-se destacar os seguintes:
1 – em primeiro lugar, se existe uma uniformidade do
ordenamento jurídico dentro do mesmo Estado, no sentido de
que em todo território estatal são aplicadas as mesmas normas
jurídicas ou se, pelo contrário, existem ordenamentos próprios
em algumas ou em todas as diferentes regiões do território;
2 – em segundo lugar, se existe um único conjunto de instituições
cujas competências se estendem por todo território (um só Poder
Legislativo, um só aparelho de Governo, um só Poder
Judiciário) ou se existem instituições regionais – chamadas
também de provinciais, estaduais ou autonômicas – com
407
CAETANO, Marcelo. Manual de ciência política e direito constitucional, p. 135.
244 Paulo Márcio Cruz

competências restritas a determinados territórios e que


funcionam de maneira paralela e harmônica com as instituições
centrais do Estado;
3 – finalmente, se todos os poderes públicos estão organizados
de forma hierárquica, de maneira que, em todo caso, suas
atuações sejam dirigidas por um órgão superior com
competência em todo o Estado ou se, pelo contrário, existem
poderes regionais que não dependem das instâncias supremas
do Estado.

10.2 O ESTADO CENTRALIZADO


A forma que aparentemente é mais simples e eficaz para a
organização dos poderes do Estado é a que corresponde ao Estado
Centralizado (que, não raro, é também chamado de “Estado Unitário”,
ainda que esta denominação pareça equivocada, já que todo Estado,
centralizado ou não, deve constituir uma unidade ou, do contrário, não
será mais que uma aliança ou associação de entes independentes).
Esta fórmula de Estado centralizado foi aquela surgida da
Revolução Francesa e que foi, até recentemente, muito utilizada pelos
sistemas constitucionais europeus. Considerando os critérios acima
expostos, o Estado centralizado pode ser descrito pelas seguintes
características:
a) existência de um só ordenamento jurídico em todo o Estado.
Em todas as suas regiões são aplicadas as mesmas normas
jurídicas. Como conseqüência deste fato, a posição jurídica
dos cidadãos é também uniforme em todo o território,
estando submetidos aos mesmos deveres e ostentando os
mesmos direitos;
b) com exceção do Poder Legislativo, que é único em todo o
Estado, os poderes públicos organizam, hierarquicamente,
suas diversas instâncias territoriais. A administração integra
uma série de órgãos territoriais (de âmbito local, estadual,
provincial, comarcal etc.) estruturados segundo critérios de
subordinação e submetidos a uma única instância superior,
representada pelo Governo Central do Estado. Os tribunais,
por sua vez, organizam-se segundo um modelo piramidal,
com as decisões dos órgãos inferiores revisáveis pelos
superiores e, eventualmente, por um tribunal supremo
(principalmente nos casos que envolvam descumprimento à
Constituição).
Fundamentos do Direito Constitucional 245

O modelo de Estado centralizado teve sua origem e sua mais


influente expressão no sistema criado pela revolução francesa e
consolidado pelas reformas napoleônicas no começo do século XIX. Esta
era uma tendência também presente nas monarquias absolutas e que foi
preservada no Estado burguês pelo medo das pulverizações étnicas e
pelas disputas regionais tão presentes durante o feudalismo. A obra O
Príncipe408, de Maquiavel409, por um longo período serviu de paradigma
para a centralização do Estado Moderno. Sua angústia diante da Itália
dividida em muitos principados e repúblicas foi, por muito tempo, objeto
de atenção daquelas sociedades.
Este modelo, mesmo que dificilmente encontrado em seu estado
puro nos sistemas constitucionais contemporâneos, tem sido defendido
em muitas ocasiões, e suas vantagens são apontadas como sendo a
eliminação de setores ou grupos privilegiados, já que todos os cidadãos
estão submetidos a um ordenamento comum, a maior eficiência
administrativa, com as ordens superiores transmitidas através de sistemas
hierarquizados, o que faz que os órgãos centrais entendam e decidam
sobre qualquer assunto de relevância em qualquer região do território e,
finalmente, um maior respeito ao regime democrático, já que as decisões
do Poder Legislativo, emanadas da vontade de todo o povo e as do
Executivo, direta ou indiretamente resultante desta vontade, se impõem a
todos, sem exceções ou reservas.
Possivelmente pelas vantagens acima listadas, a adoção de
Estados centralizados nos processos de descolonização foi uma constante
quando se tratou de implantar um rápido processo de desenvolvimento
que requeria um planejamento e direção centralizados.
Não obstante, o modelo centralizado também apresenta aspectos
controvertidos. Do ponto de vista da eficácia, as restrições dão-se por
conta da distância que muitas vezes separa o centro de poder dos
problemas locais ou regionais. Desta forma, deixar nas mãos de uma
autoridade central a solução destes problemas locais supõe enfrentar
complicados caminhos hierárquicos, que podem procrastinar a adoção das
medidas necessárias para a solução dos problemas.

408
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe, 164 p.
409
Nicolau MAQUIAVEL, diplomata florentino, nascido em 1469 e falecido em 1527 em
Florença, também foi escritor e político. A obra de MAQUIAVEL constitui uma
reviravolta na perspectiva clássica da filosofia política grega. Enquanto aquela tinha como
preocupação primordial a elaboração do melhor regime político possível, MAQUIAVEL
partiu, em compensação, “das condições nas quais se vive e não das quais se deve viver”.
A teoria por ele elaborada desmascarou as pretensões da religião e da teologia em matéria
política, por substituí-las pelo conhecimento verdadeiro das relações que levam as
avaliações morais às análises descritivas do campo político. Suas principais obras, entre as
quais se destaca O Príncipe, foram Comentários Sobre a Primeira Década de Tito
Lívio, Da Arte da Guerra e a comédia teatral Mandrágora.
246 Paulo Márcio Cruz

Do ponto de vista democrático, pode-se dizer que as decisões a


respeito de problemas específicos de pequenas comunidades deveriam ser
tomadas pelos membros desta própria comunidade. Os órgãos
representativos centrais, que são escolhidos por toda Sociedade,
deveriam, segundo os críticos do Estado centralizado, ocuparem-se dos
assuntos comuns a todos os cidadãos, mas em assuntos de comunidades
menores e específicas, (representadas por Municípios, Províncias ou
Estados-membros) deveria ser a vontade de seus integrantes – e não de
pessoas que não tenham intimidade com seus problemas – que deveria
prevalecer. A participação local seria, assim, uma célula base da
Democracia.
Desde uma perspectiva da liberdade de pessoas ou grupos,
deve-se ressaltar que, em algumas ocasiões, nos Estados contemporâneos,
convivem grupos com características históricas, culturais e lingüísticas
próprias, assentados num território definido. A defesa destas
características, integradoras de uma identidade diferenciada, exige que
estas comunidades, ainda que dentro da organização estatal geral, tenham
um âmbito de decisão próprio nas matérias que afetam esta identidade –
principalmente em assuntos lingüísticos ou culturais – sem depender de
poderes externos.
Assim, pode-se deduzir que a defesa das minorias ou
simplesmente das comunidades diferenciadas, torna-se difícil num Estado
centralizado, no qual as decisões são adotadas por um único centro de
poder para todo o território estatal. O modelo centralizado está associado,
historicamente, com o objetivo de construir uma comunidade estatal
homogênea política, cultural e lingüisticamente. Neste caso, a
centralização corresponde à uniformização.
Normalmente, o exemplo que mais aparece para caracterizar o
Estado centralizado como instrumento de uniformização é o da França,
cuja organização centralizada, adotada desde o tempo da Monarquia
Absoluta e que existe até hoje, em que pese as profundas mudanças
políticas posteriores, promoveu uma notável uniformidade cultural e
lingüística. Destarte, o modelo centralizado dificilmente pode ser
aplicado em Estados cuja população encontra-se territorialmente
diferenciada, integrada por grupos culturais ou lingüísticos diferentes 410.
Quando os grupos sociais “diferentes” ou minoritários não têm
uma base territorial própria e estão misturados com o resto da população,
a garantia de seus direitos se confunde com a garantia dos direitos
individuais gerais. Quando estes grupos encontram-se assentados em

410
Ver CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo, p. 165
e s.
Fundamentos do Direito Constitucional 247

espaços territoriais próprios, a defesa de seus direitos à identidade própria


identifica-se com a ocupação de um território específico.
Em suas versões mais radicais, o Estado centralizado emprega
técnicas de “desconcentração”, isto é, de delegação de funções a escalões
inferiores na hierarquia governativa e administrativa, mas sempre sob a
direção de escalões superiores e submetidos à revisão de seus atos por
aqueles. Na realidade, a desconcentração consiste na criação de uma
hierarquia de organizações, com bases territoriais próprias, dirigidas pelo
poder central.
Uma amostra desta técnica é a divisão do território em unidades
de tamanho similar – departamentos ou províncias – subdivididas, quase
sempre, em unidades menores, como na França, todas elas sob a direção
de uma autoridade nomeada pelo Governo Central.
A desconcentração serve de paliativo à centralização do poder e
torna possível uma maior eficiência deste. Esta técnica está presente em
quase todo sistema administrativo de países com certa extensão territorial.
Mas não é suficiente para resolver as dificuldades de organização
naquelas sociedades mais complexas, compostas por várias nações com
características próprias ou mesmo por regiões com graus de
desenvolvimento distintos.
Por conta deste fato, os Estados acabaram por adotar técnicas de
“descentralização” política, afetando as funções governativas,
administrativas, legislativas e as judiciais, que passam a contar com
autonomia e não estão, em suas funções específicas, sujeitas a um
controle central. Tudo isto com a advertência de que se trata de níveis
acumuláveis, e não excludentes, de descentralização. A descentralização
política supõe também, em geral, a descentralização administrativa.

10.3 A DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA


Uma forma limitada de descentralização é a denominada
“descentralização administrativa”, que atinge apenas um dos poderes do
Estado, o Poder Executivo. Nos países que adotam este tipo de
descentralização, as tarefas legislativa e judiciária cabem a poderes
únicos, com estruturas hierarquizadas. Já o Governo e o desenvolvimento
da ação administrativa cabem a um conjunto de órgãos que não estão
integrados em uma mesma estrutura hierárquica e que atuam com âmbitos
de autonomia próprios, sem estar submetidos a decisões externas a eles
mesmos.
Esta descentralização administrativa pode ser caracterizada,
num modelo mais amplo, pela existência, por um lado, de um Governo
central, com uma estrutura hierarquizada e escalonada, que vai desde os
248 Paulo Márcio Cruz

ministérios até as representações locais. Por outro lado, com


competências próprias, existem governos e ações administrativas
menores, que não fazem parte do Governo central e com um âmbito de
competências reduzido, mas que tomam suas decisões governativas e
administrativas sem a interferência daquele Governo central.
Estes poderes governativos e administrativos autônomos são
aqueles formados pelas entidades regionais e locais, como os
Departamentos – no caso da França – e os Municípios, como em
Portugal.
A descentralização governativa e administrativa através da
autonomia municipal, por exemplo, supõe que os órgãos locais estejam
sujeitos à legislação e à ação jurisdicional do Estado Central, mas que
podem executar estas leis e, inclusive, completá-las, sem a interferência
de nenhum outro nível de Governo ou administração. Suas decisões não
estão sujeitas à revisão pelo Poder Executivo Central, mas sim, e
unicamente, à tutela do Poder Judiciário Central. Trata-se, assim, de uma
“autonomia de execução”.
Um bom exemplo de descentralização administrativa com
centralização política é Portugal. Antônio Cândido de Oliveira, antes de
explicar a descentralização governativa e administrativa naquele país,
alerta que “já tivemos oportunidade de afirmar que o conceito de
administração local autônoma está ligado à Revolução Liberal e a uma
certa concepção das relações entre as autarquias locais e o Estado”411.
Esta inferência histórico-ideológica sobre a descentralização
administrativa e governativa é fundamental para o completo
entendimento deste modelo de organização estatal.
A extensão deste tipo de autonomia é, portanto, compreensível
por razões históricas. Desde a Idade Média, era uma constante nos países
europeus a existência de cidades e vilas com seu próprio governo e
administração e com seu próprio ordenamento jurídico, submetidos ao
poder do Rei, mas com um alto grau de autonomia decisória para gerir os
assuntos de seu interesse. As vilas e cidades mantiveram esta autonomia
inclusive durante a Monarquia absoluta.
A partir da Revolução Francesa, nos regimes constitucionais,
este direito foi estendido a todos os Municípios, deixando de ser, como no
Antigo Regime, privilégio de poucos deles, a possibilidade de criação de
um órgão próprio para o autogoverno. Atualmente, estes órgãos são
dirigidos por cidadãos eleitos pelo voto de todos os cidadãos e contam
com recursos e administração próprios.

411
OLIVEIRA, Antônio Cândido. Direito das autarquias locais, p. 117.
Fundamentos do Direito Constitucional 249

O conceito de descentralização governativa e administrativa


pode, portanto, ser aquele também ensinado por Antônio Cândido de
Oliveira, quando escreve que
temos assim o conceito clássico de descentralização
administrativa ou de autonomia local de que poderemos falar
sempre que os municípios e outros entes locais: a) sejam
dotados de personalidade jurídica e possuam órgãos eleitos
pela comunidade local respectiva; b) disponham de um amplo
leque de atribuições relativo aos assuntos próprios da
comunidade local; c) disponham de poder de decisão próprio
sobre tais assuntos; d) disponham de meios financeiros e
técnicos, bem como de pessoal adequado à satisfação das suas
tarefas; e) estejam sujeitos a um controle limitado, de
preferência apenas de mera legalidade412.
Como interpretação deste conceito, a autonomia local supõe
que, junto com o Governo central, exista um conjunto de governos e
administrações locais que gozem de competências próprias e que
permitam a execução direta das leis que tratem destas atribuições.
A extensão da autonomia local pode ser muito variada,
dependendo dos diferentes países que a adotam. Mas há uma clara
tendência para o seu reconhecimento – pelo menos em termos gerais – no
Direito Constitucional contemporâneo, como nos exemplos dos
parágrafos seguintes.
Na Constituição Francesa de 1958, em vigor, em seu art. 72, que
trata “das coletividades territoriais”, está escrito que “estas coletividades
administram-se livremente por meio de conselhos eleitos, nas condições
previstas na lei”413.
Na Constituição Italiana de 1948, em vigor, seu art. 128 prevê
que “as províncias e os municípios são entidades autônomas no âmbito
dos princípios fixados por leis gerais da República, que determinam suas
funções”414.
Na Constituição Espanhola de 1978, em vigor, em seu art. 140
está previsto que “a Constituição garante a autonomia dos
municípios”415.
Na Argentina, segundo Quiroga Lavié,
a reforma constitucional de 1994 veio consagrar, de forma
explícita, a autonomia municipal. No art. 123 da Constituição
412
OLIVEIRA, Antônio Cândido. Direito das autarquias locais, p. 127-128.
413
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 455.
414
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 541.
415
GUERRA, Luis Lopez. Constitución española, p. 106.
250 Paulo Márcio Cruz

Argentina está disposto que ‘cada província dita sua própria


constituição, assegurando a autonomia municipal e regulando
seu alcance e conteúdo na ordem institucional, política,
administrativa, econômica e financeira416.
Dentro destas linhas gerais, a autonomia local pode adotar
configurações muito diferentes. Respeitando os limites constitucionais, a
Constituição do Estado Central ou o legislador complementar ou
ordinário pode variar as competências locais e as relações entre o
Governo e a administração local e o Governo e administração central. De
fato, os Estados centralizados, em muitas ocasiões, mesmo reconhecendo
constitucionalmente a existência de governos e administrações locais, têm
buscado maneiras de sujeitá-los a uma direção centralizada.
Contemporaneamente, em que pese esta tendência centralista, o
Governo e a administração local autônoma foram consideravelmente
reforçados nos países ocidentais, tanto em suas competências quanto com
relação à sua independência do Estado Central. Possivelmente, a
“Democracia local” seja, atualmente, uma das principais vias que permite a
participação dos cidadãos nas decisões públicas que os afetam mais
diretamente.
Este tipo de autonomia sempre sujeita às normas jurídicas do
Estado Central mas não ao Poder Executivo Central, está hoje
solidamente reconhecida para Municípios, províncias, regiões,
comunidades autônomas, Estados-membros etc. Assim, é freqüente, no
constitucionalismo comparado, o reconhecimento destas entidades com
possuidoras de faculdades de auto gestão.

10.4 AS DIVERSAS FÓRMULAS DE DESCENTRALIZAÇÃO


POLÍTICA
A descentralização político-administrativa pressupõe, sem
dúvida, uma considerável transferência de competências dos poderes
estatais centrais aos poderes federados, regionais e locais. Mas trata-se de
um nível limitado de autonomia, pois exclui a descentralização das
decisões legislativas, que são as mais importantes da vida pública no
Estado Democrático de Direito. O Poder legislativo continua centralizado
no Parlamento estatal central. Suas leis definem – dentro dos limites
constitucionais – o alcance da autonomia administrativa regional e local,
que fica submissa ao Poder Judiciário central.
A descentralização política, pelo contrário, supõe um grau mais
elevado de autonomia. Existe descentralização política quando as
entidades regionais e locais integradas no Estado não só podem executar,
416
LAVIÉ, Humberto Quiroga. Leciones de derecho constitucional, p. 104.
Fundamentos do Direito Constitucional 251

com governo e administração própria, mas também elaborar, elas


mesmas, suas próprias leis, com a mesma capacidade normativa e força
vinculante das leis estatais centrais.
Como ensina Dallari, “a descentralização política tem sido
caracterizada como aquela em que se dá a multiplicação de comandos,
em que existe uma pluralidade de centros de poder, sem relação
hierárquica, que é justamente o caso do Estado Federal”417. Isto supõe,
por um lado, a existência de poderes legislativos regionais e locais, e por
outro, a existência de ordenamentos jurídicos próprios, paralelos ao
ordenamento jurídico do Estado Central.
Em países como o Brasil, a descentralização se dá para dois
níveis: o estadual e o municipal, já que ambos possuem autonomia
concedida pela Constituição da República.
Aliás, o caso brasileiro é muito peculiar, já que a federação
brasileira também possui três níveis. Assim, o que está disposto nos dois
parágrafos anteriores serve bem a outros países, pois a única experiência
de federação de três níveis que se conhece é a brasileira.
Esta dupla – ou tripla – estrutura jurídica é viabilizada através
de previsões constitucionais que definem as respectivas áreas de atuação
dos poderes do Estado Central, dos entes regionais e – como no Brasil –
dos entes locais. As fórmulas para estas definições são muito variadas,
mas normalmente incluem a enumeração constitucional de uma lista de
matérias cuja regulamentação pertence aos poderes do Estado Central e,
de forma implícita ou explícita, uma delimitação relativa ao âmbito de
competência dos poderes autônomos regionais e locais.
A autonomia dos Municípios, no Brasil, conquistada com a
Constituição da República de 1988, está prevista no art. 18, com a
seguinte redação: “A organização político-administrativa da República
Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”418.
A organização constitucional do Estado politicamente
descentralizado implica, portanto, que, em todas ou em algumas zonas do
território estatal, coexistam diferentes estruturas de poder, cada uma delas
com suas próprias competências e dotadas de seus próprios órgãos de
autonomia. Coincidem, neste caso, sobre o mesmo território, vários níveis
de poder: a autoridade estatal central (legislativa, executiva e judiciária),
a autoridade do ente regional com autonomia política e a autoridade dos
entes locais – ou municipais – com autonomia administrativa – no caso de

417
DALLARI, Dalmo de Abreu. O estado federal, p. 68.
418
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
17.
252 Paulo Márcio Cruz

descentralização somente governativa – ou política, quando, como no


Brasil, os Municípios são verdadeiras unidades federadas.
As formas de organização e denominação dos Estados
politicamente descentralizados são muito variadas. Normalmente são
empregados dois termos para designar as modalidades deste tipo de
Estado: pode-se falar de Estado Federal ou Estado Regional. A fórmula
federal, iniciada pela Constituição norte-americana de 1787, tem maior
tradição, encontra-se amplamente difundida e representa o dito “modelo
clássico” do Estado politicamente descentralizado.
O Estado Regional, por outro lado, é uma proposta de
descentralização política muito mais recente e de difusão limitada. Assim,
este modelo de Estado descentralizado politicamente pode ser encontrado
somente em alguns países europeus, como a Espanha, a Bélgica, a Itália e
Portugal419.
A diferença entre o modelo federal e o regional é somente
nominal, devido a circunstâncias históricas que empurraram os
constituintes daqueles momentos (foi assim na Espanha em 1931 e em
1978 e na Itália, em 1948) a não utilizarem, explicitamente, o termo
“federal”. Na verdade, o termo “Estado Federal” não implica,
necessariamente, um maior grau de descentralização. Pode-se afirmar,
sem medo de errar, que entidades regionais na Espanha e na Bélgica têm
um maior nível de autonomia do que “Estados federados” de repúblicas
como a Áustria e o Brasil.
Não cabe, assim, afirmar que o Estado regional é uma fase do
Estado Federal ou um meio termo entre este e o Estado Centralizado. O
correto é entender que o Estado Regional é uma fórmula de
descentralização política diferente do modelo federal, mas com
conteúdos, em grande parte, similares a este.
Porque o Estado Regional representa, como foi dito, um modelo
muito específico, vai-se privilegiar o estudo do Estado Federal. Para
aqueles interessados no Estado Regional sugere-se a leitura de obras dos
autores referidos no rodapé desta página420.

10.5 O MODELO FEDERAL

419
Sobre isto ver BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo, p.
269 e s.
420
a) FERNANDEZ, Javier Garcia. Ciência política;
b) MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição;
c) PARGA, Carlos Jimenez. Los regímenes políticos contemporaneos;
d) PRADO, Pillar Mellado. Sistemas políticos en Europa;
e) VERDU, Pablo Lucas. Curso de derecho constitucional.
Fundamentos do Direito Constitucional 253

A fórmula federal é, sem dúvidas, a mais difundida atualmente


quando se trata de descentralização política do Estado. Se a fórmula
regional está praticamente circunscrita a alguns poucos países da Europa
Ocidental – e representa uma fórmula ainda nova para o Direito
Constitucional Comparado – o modelo federal, pelo contrário, encontra-
se representado em todas as partes do mundo.
É possível dizer, com base no que ensina Gonzáles Encinar, que
pode-se estimar que 40% da população mundial, num dado
momento, vivia em estados – pelo menos nominalmente –
federais. Esta ampla difusão deu lugar, inevitavelmente, a uma
considerável variedade nas manifestações deste modelo 421.
Mesmo assim, todos os modelos existentes passaram a ter certos
elementos comuns que derivaram da fórmula original, contemplada na
Constituição norte-americana de 1787. Ao longo dos séculos XIX e XX,
muitos tipos de Estado Federal multiplicaram-se na Europa – Alemanha e
Áustria –, na Ásia – Índia –, na África – Nigéria –, nas Américas –
Canadá, México, Brasil e Argentina – e na Oceania – Austrália; para citar
somente alguns casos. Por isto as características do federalismo norte-
americano converteram-se no paradigma do modelo, com as adaptações
que as condições histórico-sociais de cada país exigiram.
A Constituição norte-americana de 1787 surgiu como solução
para os problemas colocados pelas treze colônias que haviam ficado
independentes da Inglaterra. Principalmente a reivindicação por
autonomia.
As treze ex-colônias, como entes politicamente soberanos que se
autodesignavam como Estados, logo ficaram conscientes da necessidade,
para sobreviver, de superar a débil associação, expressada nos Articles of
Confederacy, de 1779422, e de conseguir “...uma união mais perfeita..”423.,
como prevê o Preâmbulo da Constituição norte-americana de 1787, assim
como instrumentalizar órgãos comuns, encarregados das tarefas de
interesse a todos os Estados “federados”. Seu objetivo era o de conservar as
características de sua soberania anterior e, ao mesmo tempo, criar um poder
superior, que englobasse os treze Estados numa união política.
Esta soberania acabou por se transformar em uma aguda
autonomia, já que sem o direito de secessão não há que se falar em
soberania. A fórmula utilizada pelos americanos do Norte, o Estado
Federal (de foedus, que significa pacto), pode ser resumida nos seguintes
pontos:
421
ENCINAR, Juán José Gonzales. Estado unitário-federal, p. 214.
422
Os Articles of Confederacy formaram um documento imediatamente anterior à
Constituição de 1787 e que previa a formação de uma confederação através de um tratado.
423
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 417.
254 Paulo Márcio Cruz

1 – Inicialmente, a elaboração, pela Convenção da Filadélfia,


de uma Constituição Federal, que se juntava às normas já
existentes nas constituições dos Estados formadores, como
norma suprema do país. Esta Constituição desenhou um
conjunto de poderes para a União (Legislativo, Executivo e
Judiciário), mantendo cada Estado federado com suas
instituições equivalentes próprias;
2 – A Constituição enumerou os poderes da Federação, numa
lista expressa e restrita (na Constituição norte-americana, os
arts. I, II e III tratam, respectivamente, dos poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário)424. Esta técnica supõe que as
competências da Federação serão enumeradas, ou seja,
estabelecidas formalmente. Todos as competências não
mencionadas na Constituição correspondem aos Estados
federados, como poderes residuais;
3 – Os Estados federados têm garantida sua participação na
direção política da Federação através da criação de uma
Câmara Legislativa – o Senado Federal – integrada por
representantes dos Estados federados, tendo todos eles a
mesma representação425. Todos os Estados obtiveram, assim, o
mesmo peso num dos órgãos mais relevantes da União,
independente de seu tamanho, população ou riqueza: a
Federação foi concebida como um pacto entre iguais426;
4 – O Pacto Federativo, estabelecido na Constituição, só seria
revisável com a intervenção dos Estados federados, já que na
Constituição norte-americana de 1787, em seu art. V, está
previsto que as emendas à Constituição devem ser ratificadas
por três quartas partes destes Estados federados;
5 – Finalmente, foi atribuída à Suprema Corte a solução dos
conflitos que pudessem surgir entre os Estados ou entre estes e a
Federação.
O desenho da Constituição norte-americana provou ser
extraordinariamente adequado, mesmo com crises como a que conduziu à
Guerra Civil ou Guerra entre os Estados, e que durou de 1860 a 1864.
Uma de suas vantagens foi a considerável capacidade de adaptação a
novas situações sociais e econômicas, na passagem de uma Sociedade
424
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 417-425.
425
No Brasil, cada um dos Estados federados e o Distrito Federal possui três senadores
com mandato de oito anos, conforme o disposto no § 1º do art. 46 da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988.
426
Este é um dos traços que diferenciam o Estado Federal do Estado Regional. No
primeiro não há distinções entre os entes formadores da União. No segundo, há distinções
estabelecidas por critérios de tamanho, riqueza e população, como é o caso da Espanha.
Fundamentos do Direito Constitucional 255

relativamente reduzida e de economia agrária para um grande Estado,


essencialmente industrial e mercantil.
Nesta evolução histórica, a nota mais destacada foi o
crescimento do poder federal, derivado da necessidade de orientar o
desenvolvimento econômico, evitar crises econômicas e atender à projeção
exterior e à defesa da União. Assim “tanto na prática quanto na teoria
tem havido o reconhecimento de que, em determinadas circunstâncias,
prevalece o poder federal”427. A partir, principalmente, de 1933, sob a
orientação de Franklin D. Roosevelt, a competência federal se estendeu
de forma notável, através da interpretação extensiva das atribuições
constitucionais.
Esta extensão das competências da União pode ser
exemplificada pela cláusula de comércio, que encomendava ao Congresso
a competência para regular o comércio entre os Estados federados,
conforme o art. 1º, seção 8, da Constituição dos Estados Unidos da
América e que passou a ser utilizada para estender as competências da
Federação sobre todas as matérias relacionadas com este comércio 428.
Esta interpretação foi ratificada pela jurisprudência da
Suprema Corte e supôs a impossibilidade de manter a forma do
federalismo dual (dual federalism), na qual as instituições federais
atuavam em âmbitos totalmente desconectados. A colaboração passou a
ser uma obrigação.
Mas isto não impediu uma muito ampla autonomia dos Estados
federados, que conservaram seus poderes legislativos e executivos, assim
como sua própria estrutura judiciária.

10.6 AS VARIAÇÕES DO MODELO FEDERAL


O sucesso do modelo federal dos Estados Unidos da América
como fórmula para possibilitar a convivência numa união política de
comunidades dotadas de sua própria organização, inclusive com tradições
de independência, levou a considerável difusão das técnicas previstas na
Constituição norte-americana de 1787.
Ocorre que esta difusão não pôde, evidentemente, estender-se a
todos os seus aspectos. Foram introduzidos, nos Estados federais criados
ao longo do século XIX e, principalmente, no século XX, profundas
inovações relativas ao modelo original norte-americano.
Possivelmente, uma das inovações mais relevantes tenha sido a
substituição – ainda mais acentuada que nos Estados Unidos – do
427
DALLARI, Dalmo de Abreu. O estado federal, p. 69.
428
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo, p. 150.
256 Paulo Márcio Cruz

federalismo dual por um federalismo de cooperação. Principalmente na


Europa, as Constituições de Estados federais – como a alemã ou a
austríaca – acentuam a colaboração entre os entes federados. Nos Estados
Unidos, em que pese a evolução do sistema, continua sendo regra uma
clara separação dos âmbitos federal e federado.
No modelo norte-americano, o Governo Federal executa as leis
federais e os tribunais federais controlam os conflitos acerca desta
execução, enquanto os governos estaduais executam as leis dos Estados
federados, sob a supervisão dos juízes e tribunais estaduais.
Esta separação foi substituída, no federalismo europeu, por uma
colaboração entre as esferas federal e federadas em grande parte das
funções que lhes são atribuídas. Assim, no plano legislativo, em muitas
matérias, divide-se a função normativa, com a federação ditando normas
básicas, de caráter geral, e os Estados federados ditando normas
complementares e que permitem o desenvolvimento de ações específicas.
Quanto à função executiva, no modelo de federalismo europeu,
os Estados federados são executores da lei federal. Um bom exemplo é a
Lei Fundamental de Bonn, que em seu art. 83 estabelece que “os länder
executam as leis federais como matéria própria, salvo disposição ou
admissão em contrário contida nesta Lei Fundamental”429. Isto supõe que
a Federação atua, principalmente, através de leis, e os Estados federados
são os responsáveis pela ação governativa e administrativa, mesmo
quando disponham de capacidade legislativa.
O federalismo na Alemanha, na Áustria e na Suíça é,
principalmente, um federalismo de execução, sendo muito pequenos o
Governo e a administração federal. Por outro lado, no federalismo
europeu, o Poder Judiciário está reservado, exclusivamente, ao Estado
Federal. Há uma só hierarquia de tribunais, no lugar das hierarquias
simultâneas existentes, por exemplo, em Estados federais como o
Brasil430.
Desta forma, como alternativa ao federalismo dual, o
federalismo europeu adotou o modelo de cooperação, mantendo as
competências federais e federadas, mas com um traço de colaboração
entre elas.
A maior complexidade deste federalismo de cooperação está
traduzido, também, nos textos das Constituições, com uma técnica de
repartição de competências muito apurada. No lugar de levar-se a cabo tal
repartição mediante um único elenco (enumerando as competências do
Estado Federal e dos Estados-membros), a distribuição de competências
429
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 197.
430
Sobre isto ver SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República
Federativa do Brasil, p. 264.
Fundamentos do Direito Constitucional 257

se realiza através de diversos elencos, que contêm as competências


exclusivas da federação, dos Estados-membros, dos Municípios – no caso
do Brasil – e as competências compartilhadas, comuns ou concorrentes.
Um terceiro tipo de variações ocorre na composição da Câmara
legislativa representante dos Estados federados, o Senado Federal. No
caso norte-americano, os Estados estão representados em igualdade de
condições, e os senadores são eleitos diretamente pelo povo dos Estados
federados, a partir da emenda XVIII à Constituição, aprovada em 1913.
Já na Alemanha, os membros da Câmara Federal, ou Bundesrat
– equivalente ao Senado Federal – são repartidos entre os Estados de
forma aproximadamente proporcional à sua população, o que supõe que
haja Länder com maior representação que outros. Além deste fato, os
representantes de cada Land são designados diretamente pelo respectivo
Governo e votam de acordo com suas instruções 431. Na Áustria, os
componentes da Câmara Federal representam também os Länder segundo
sua população, mas são eleitos pelo Parlamento de cada Land.
No Brasil, sob a égide da Constituição da República de 1988, o
pacto federativo abriga traços de centralização, dispositivos de
cooperação e o caráter tripartido de sua organização federal, com o
Município sendo reconhecido como membro da federação e tendo suas
competências elencadas naquela Constituição.

10.7 O MODELO CONFEDERAL


O modelo confederal – ou a confederação – mostra-se como um
fenômeno diferente do Estado politicamente descentralizado, como é o
federal ou o regional. A análise deste modelo, sem dúvida, sempre
desperta interesse, por conta de ter sido ele, historicamente, aquele que
serviu de transição entre a mera aliança de Estados para a criação de uma
federação.
Foi assim com os Estados Unidos, por exemplo, que passaram de
uma confederação – entre 1778 e 1787 – a uma federação. Na Suíça,
ocorreu fenômeno semelhante, já que era uma confederação até 1848,
quando se converteu em Estado Federal, mantendo seu nome anterior, o de
Confederação Helvética. Também foi o caso da Alemanha, que era uma
confederação até 1871 e passou a ser uma federação a partir desta data.
A confederação, em suas manifestações históricas aparece,
desta forma, como uma manifestação típica do Direito Internacional,
mais perto da aliança de Estados do que do Estado Federal. É diferente
da aliança de Estados porque pode possuir – e normalmente possui –
431
Sobre isto ver CRUZ, Paulo Márcio. Parlamentarismo em Estados contemporâneos,
p. 136.
258 Paulo Márcio Cruz

órgãos específicos, que não pertencem, concretamente, a nenhum


Estado e que têm competências próprias em matéria de defesa e de
política exterior432.
A confederação se distingue do Estado Federal pela atuação dos
órgãos confederais, que não atuam como representantes, diretos ou
indiretos, dos cidadãos. Os órgãos da confederação são, portanto,
reuniões de representantes de cada Estado-membro. Entre os órgãos
confederais e o povo não existe relação direta ou indireta, nem,
usualmente, as decisões adotadas por estes órgãos são aplicáveis
imediatamente aos cidadãos, já que antes devem ser aceitas pela
representação política de cada Estado confederado.
A manutenção da soberania de cada Estado confederado supõe
grandes dificuldades para a sobrevivência deste tipo de organização. A
possibilidade de abandoná-las livremente – o que não é permitido na
federação – por parte de cada Estado-membro implica, na prática, a
necessidade de que as decisões sejam tomadas por unanimidade, o que
limita consideravelmente suas possibilidades de atuação.
Sobre este assunto, deve-se citar Dallari, quando comenta a
dificuldade de manutenção da confederação norte-americana,
predecessora dos Estados Unidos da América, escrevendo que
tudo isso tornava, de certo modo, muito frágil aquela união de
estados, pois havia sempre o risco de que alguns integrantes se
retirassem. A par disso, era difícil a obtenção de meios para as
ações conjuntas, uma vez que cada um se mantinha soberano e
não havia como obrigar um dos signatários do tratado a
fornecer recursos para o atendimento de alguma emergência 433.
Sendo assim, a confederação aparece como uma forma política
de caráter provisório e efêmero, pelo menos no século XX, como foi com
a Comunidade de Estados Independentes, a CEI, que sucedeu a extinta
União Soviética e que agrupava países que readquiriram soberania após
1989. Mais duradouras foram as confederações anteriores ao
constitucionalismo moderno, em momentos em que eram muito
diferentes, das de hoje em dia, as funções que deveriam ser cumpridas
pelos poderes públicos e menores as necessidades de coordenação e
cooperação.
Deste modo, pode-se dizer que a confederação é uma união de
Estados soberanos por um tratado internacional e que seus membros
possuem, ao contrário da federação, direito de secessão. Como ensina
Jorge Miranda, “à confederação é inerente o direito de secessão dos

432
BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo, p. 11.
433
DALLARI, Dalmo de Abreu. O estado federal, p. 12.
Fundamentos do Direito Constitucional 259

Estado confederados. Já não à federação, em que tal direito ou não é


reconhecido aos Estados-Membros ou depende da Constituição
federal”434. A federação existe, portanto, por conta de uma Constituição e
não de um tratado. Por isto pode-se dizer que uma Constituição é um
instrumento de direito público interno e o tratado de direito público
externo. O primeiro cria um organismo nacional, e o segundo, um
organismo internacional.

434
MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição, p. 309.
260 Paulo Márcio Cruz
Fundamentos do Direito Constitucional 261

Capítulo 11

O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE
E A DEFESA DA CONSTITUIÇÃO

11.1 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DO CONTROLE DA


CONSTITUCIONALIDADE
A Constituição só faz sentido enquanto norma com pretensão
de validade e eficácia. É, como as demais normas do ordenamento
jurídico, um mandamento para ser cumprido. Mas isto – como ocorre
também com as outras normas – exige uma garantia, ou seja, um
mecanismo que assegure uma reação em caso de descumprimento ou
afronta, defendendo a efetividade dos dispositivos contidos no texto
constitucional.
As ameaças à vigência efetiva da Constituição podem ser de
dois tipos. Por um lado, a ameaça mais evidente será a negação
expressa da obediência à Constituição, com a conseguinte pretensão de
atingir o ordenamento constitucional. Tratar-se-ia de situações de
insurreição ou golpes de Estado. Mas também é possível uma ameaça
igualmente perigosa, consistente, não já no desafio expresso das
prescrições constitucionais, mas sim, na sua negação na prática, através
do seu não-cumprimento. No primeiro caso, busca-se a destruição da
Constituição por vias não jurídicas. No segundo, seu esquecimento e
irrelevância.
Diante destas ameaças, as Constituições passaram a ter
incluídos procedimentos para sua defesa. Frente aos perigos excepcionais
que podem acontecer, pondo em risco o próprio Estado Constitucional e
Democrático de Direito, foram previstas técnicas de defesa
extraordinária da Constituição. Já para confrontar-se com as ameaças à
Constituição em épocas de normalidade, combatendo seu esquecimento
ou não-cumprimento pelos poderes públicos, passaram a ser previstos, ao
262 Paulo Márcio Cruz

longo da história do constitucionalismo procedimentos de defesa


ordinária da mesma.
Esta defesa ordinária da Constituição, de caráter contínuo e
permanente, vigiando seu efetivo cumprimento, é levada a efeito através
de mecanismos de controle constitucional da atuação dos poderes
públicos. A defesa extraordinária da Constituição frente a seus inimigos
externos e internos passou a ser realizada mediante a concessão de
poderes extraordinários aos órgãos do Estado.
Em tempos de normalidade, o controle de constitucionalidade
mantém a vigência da Constituição, e em tempos de comoções sociais ou
ameaças externas, os poderes excepcionais garantem a manutenção da
ordem democrático-constitucional.

11.2 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS


ATIVIDADES DOS PODERES PÚBLICOS
Os procedimentos de controle de constitucionalidade da
atuação dos poderes públicos objetivam garantir a supremacia da
Constituição, supremacia esta que se revela como o elemento básico do
sistema constitucional democrático. A Constituição estabelece os
princípios fundamentais da comunidade política, o que torna possível,
por sua vez, a garantia de permanência do ordenamento jurídico e
assegura a liberdade dos cidadãos. A isto deve-se acrescentar seu papel
de integração da comunidade política, acima das diferenças sociais,
culturais ou religiosas.
Sendo assim, seus conteúdos necessitam de máxima
estabilidade e segurança, de forma que as previsões constitucionais não
sejam facilmente alteráveis nem vulneráveis por atuações públicas ou
privadas. A confiança na Constituição, nos ordenamentos jurídicos
positivos como o brasileiro, aparece como uma necessidade incontestável,
de maneira que as normas jurídicas sejam efetivamente respeitadas.
O princípio da supremacia constitucional tem dois aspectos. Por
um lado, significa que a norma constitucional, por sua origem e função,
não pode ser alterada ou modificada pela via ordinária de criação das
normas jurídicas, requerendo um procedimento específico para sua
alteração, que redunda em uma especial rigidez constitucional. Trata-se,
desta forma, de uma supremacia formal435.
Mas, por outro lado, a supremacia constitucional traduz-se em
que as normas constitucionais não poderão ser nem formalmente
alteradas e tampouco materialmente contraditadas por normas
infraconstitucionais, nem por nenhuma forma de atuação dos poderes
435
Sobre isto, ver o Capítulo 4, item 4, retro.
Fundamentos do Direito Constitucional 263

públicos. A supremacia constitucional exige que todo o ordenamento


jurídico esteja submetido à Constituição. Nenhuma norma ou ato poderá
legitimamente opor-se a seus mandamentos.
A supremacia da Constituição se identifica, em última análise,
com a supremacia do Direito, isto é, a submissão da ação dos poderes
públicos e privados às regras objetivas do Direito. A história do
constitucionalismo é, em boa parte, a história das tentativas de garantir a
supremacia da Constituição e assegurar que os poderes do Estado –
Executivo, Judiciário e Legislativo – atuem dentro do âmbito previsto
pela Constituição, sem ignorar nem contrariar seus preceitos.
a) O controle da constitucionalidade dos poderes executivo
e judiciário
O controle da adequação à Constituição da atuação dos poderes
Executivo e Judiciário não apresenta, numa perspectiva teórica, maiores
problemas, já que, desde os primeiros tempos do constitucionalismo,
foram colocadas, para este fim, ferramentas adequadas, principalmente a
revisão dos seus atos pelos órgãos jurisdicionais.
Quanto ao Poder Executivo, sua submissão à lei e, por
conseguinte, à Constituição, encontra-se garantida, em muitos
ordenamentos jurídicos, através dos procedimentos de controle judicial
do Governo e da administração. A chamada jurisdição contencioso-
administrativa (em suas múltiplas varáveis) tem a possibilidade de
submeter à Justiça Administrativa os atos do Poder Executivo. No Brasil,
não há uma justiça especial administrativa. Este trabalho é entregue às
justiças estadual e federal comum, o que retira intensidade deste tipo de
controle.
A administração pública – e o Governo – encontra-se sujeita ao
império da lei e não pode atuar contra as previsões legais e
constitucionais. Isto implica a necessidade de um mecanismo de controle
da adequação da atuação administrativa às previsões legais e
constitucionais, integrado pelo aparato judicial. Sua tarefa é sujeitar a
ação governativa e administrativa à Constituição e, por via de
conseqüência, à lei.
Uma afirmação similar pode ser feita em relação ao Poder
Judiciário. Este encontra-se igualmente submetido à lei e à Constituição.
Por isto, seus atos devem também ser controláveis, no sentido de não
estarem em oposição à lei ou à Constituição. Este controle é obtido através
de um sistema de recursos para os níveis superiores da hierarquia judicial.
Os órgãos superiores – até o Supremo Tribunal – podem revisar, através
dos recursos correspondentes – apelação, revisão etc. – as decisões dos
264 Paulo Márcio Cruz

órgãos judiciais inferiores, de modo a assegurar que não firam a lei ou a


Constituição.
Na realidade, nos sistemas constitucionais com alguma tradição,
as previsões constitucionais encontram-se regulamentadas por leis
complementares, de forma que a aplicação direta da Constituição não é
sempre necessária ou freqüente. Por isto, o controle para a adequação à
lei confunde-se com o controle da adequação à Constituição. Em todo
caso, a Constituição é que inspirará a interpretação da lei pelos poderes
Executivo e Judiciário. Estes, portanto, encontram-se sujeitos aos
mandamentos constitucionais e submetidos aos controles correspondentes
pelos órgãos judiciais em seus diferentes níveis.
b) O controle de constitucionalidade da atuação do Poder
Legislativo
A questão é diferente quando se refere ao Poder Legislativo.
Este não está sujeito à lei da mesma forma como estão o Governo e o
Poder Judiciário. Principalmente porque a função do Poder Legislativo é
alterar ou modificar as leis existentes ou criar outras novas. Por outro
lado, o Poder Legislativo aparece como o representante da vontade
popular e, por via de conseqüência, da soberania nacional. Desta
perspectiva, fica muito difícil justificar que seus atos possam ser
revisados – ou até anulados – por outro poder, pois isto supõe submeter a
soberania da nação a um controle “menos legítimo”.
Este fato coloca um problema de difícil solução no
desenvolvimento do constitucionalismo. Com certeza, o Poder
Legislativo não está sujeito à lei, mas está sujeito à Constituição. Por isto,
deve atuar, no desenvolvimento da função legislativa, conforme os
preceitos constitucionais. Não sendo assim, a lei aprovada pelo
Parlamento será inconstitucional. A dificuldade sempre esteve em
determinar quem deve apreciar se uma lei é inconstitucional ou não, já
que esta tarefa supõe a revisão, controle e, eventualmente, anulação das
decisões adotadas pela vontade popular através de seus representantes.
As soluções adotadas para garantir a adequação das leis aos
preceitos constitucionais têm sido muito diversas. Em alguns
ordenamentos, simplesmente se há renunciado a qualquer tipo de controle
externo sobre o Parlamento, já que este representa a vontade nacional e é
o melhor juiz para saber se seus próprios atos estão ou não de acordo com
a Constituição. Tal fórmula foi seguida pela maioria dos sistemas
constitucionais até o início do século XX e ainda está vigente em
pouquíssimos casos, como na Irlanda do Norte. Esta fórmula é, por outro
lado, “natural” naqueles ordenamentos desprovidos de um texto
Fundamentos do Direito Constitucional 265

constitucional codificado e com valor de “norma superior”, como é o caso


da Inglaterra.
Deixar que seja a própria representação popular a que decida
sobre se seus próprios atos estão ou não de acordo com a Constituição
não deixa de apresentar aspectos positivos. Esta representação não estaria
submetida a nenhum outro poder, sendo mantido, assim, o princípio
democrático.
Por outro lado, o caráter usualmente numeroso dos parlamentos
garante a existência de múltiplas opiniões, análises e intervenções.
Finalmente, a decisão da representação popular está submetida ao
pronunciamento futuro do eleitorado, que poderá, por seu turno,
corroborar ou não, com seu voto, a adequação do juízo emanado do
Parlamento. Deve-se, entretanto, assinalar que a prática mostra uma
vinculação necessária destes pressupostos ao Parlamentarismo e em um
nível razoável de consciência política da Sociedade.
Não obstante, aceitar que seja a mesma assembléia quem
decida sobre a adequação à Constituição de suas decisões apresenta
problemas consideráveis. É difícil, uma vez que a maioria do
Parlamento haja decidido aprovar uma resolução, que renuncie a esta
posição por argumentos de que esta resolução possa ser
inconstitucional. A tendência natural será a manutenção da posição
inicial, votando a favor de sua própria posição. É muito difícil ser, ao
mesmo tempo, juiz e parte no momento de adotar uma decisão sobre a
constitucionalidade das próprias decisões.
Por este motivo, os diversos sistemas constitucionais foram
adotando técnicas de revisão da constitucionalidade das leis por parte de
órgão diferente do próprio Parlamento.
Em alguns casos, foi defendido que este órgão de controle fosse o
Chefe de Estado, como encarregado da defesa da Constituição 436. Mas,
geralmente, para garantir que o trabalho dos órgãos controladores possa
responder a critérios estritamente jurídicos – ou o mais perto possível deste
princípio – e não a considerações ideológico-partidárias ou de oportunidade
política, esta função foi encomendada a órgãos jurisdicionais.
Isto implica que os órgãos jurisdicionais possuam membros
selecionados de acordo com sua capacidade jurídica, que atuem sem estar
submetidos a influências ou pressões, sujeitos somente à Constituição, e
que suas decisões sejam irrevogáveis.
Este controle judicial de constitucionalidade das leis passou a
ser tarefa encomendada, com a evolução do constitucionalismo, a dois

436
Sobre isto ver CANOTILHO, J. J. Gomes. Os poderes do presidente da república,
especialmente nas p. 31 e s.
266 Paulo Márcio Cruz

tipos de órgãos: na tradição jurídica norte-americana, foi confiado à


judicatura ordinária. Na tradição jurídica européia, foi encomendado a
um órgão jurisdicional especializado, a Corte ou Tribunal Constitucional.
Ambos os sistemas, o americano e o europeu, mesmo partindo
de bases diferentes, confluem em muitos aspectos. Desta forma, muitos
países, como o Brasil, adotaram fórmulas mistas, que contemplam os dois
sistemas.

11.3 O MODELO NORTE-AMERICANO DE CONTROLE DE


CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS – O CONTROLE
DIFUSO OU INCIDENTAL
A primeira fórmula adotada, com sucesso, na história do
constitucionalismo para controlar a adequação à Constituição das normas
jurídicas consistiu em encomendar tal tarefa ao aparelho judicial
ordinário. Trata-se de uma fórmula introduzida nos Estados Unidos e que
se estendeu amplamente, tanto nos países anglo-saxônicos como em
outros ordenamentos. Costuma-se designar este modelo como próprio dos
Estados Unidos, confrontado com o modelo europeu de justiça
constitucional.
Deve ter-se em conta que a idéia de que os juízes ou tribunais
ordinários possam controlar a adequação ao ordenamento jurídico das leis
já tinha certa tradição nos séculos XVII e XVIII, mesmo que não o fosse
como realidade jurídica. “O precedente mais citado é o representado pela
sentença produzida para o chamado Dr. Bonham’s Case, editada pelo
tribunal inglês do King’s Bench presidido pelo Chief Justice, Sir Edward
Coke, em 1610”437.
Nesta sentença, Coke afirmou que
aparece em nossos códigos que em alguns casos os tribunais de
Direito comum devem controlar as leis do Parlamento e, em
determinadas ocasiões, as anular, já que quando uma lei do
Parlamento vai contra o Direito ou o sentido comum ou é
repugnante a estes e não passível de execução, os tribunais de
Direito comum a controlarão e a declararão nula e sem
efeito438.
A doutrina surgida a partir do Bonham’s Case não foi a
predominante na Inglaterra, e é, muito mais, uma curiosidade histórica.
Mesmo assim, exerceu uma profunda influência no pensamento
constitucionalista. Quando foi escrita a Constituição dos Estados Unidos,
437
CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no
direito comparado, p. 57.
438
LOEWENSTEIN, Carl. Teoría de la constitución, p. 197.
Fundamentos do Direito Constitucional 267

muitas propostas, prevendo o controle de constitucionalidade pelos juízes,


foram apresentadas. Apesar disto, no art. III daquela Constituição, que
trata do Poder Judiciário, não está incluída a competência para os juízes
fazerem o controle judicial das normas jurídicas.
A origem do sistema norte-americano de controle da
constitucionalidade das leis não está na Constituição mas numa decisão
da Suprema Corte, redigida pelo juiz John Marshal, no caso Marbury
contra Madison, de 1803. Nesta sentença, o Juiz Marshal entendeu que a
Judictial Act, uma lei federal de 1789, ampliava os poderes da Suprema
Corte, alargando a área de atuação judiciária prevista no art. III da
Constituição. Diante de uma contradição entre uma lei e a Constituição, o
tribunal deveria decidir qual aplicar.
Sobre isto, vale ressaltar o que Cappelletti ensina, ao escrever
que
é famosa, a este respeito, a sentença da Supreme Court
(redigida pelo seu Chief Justice, John Marshal) na causa
Marbury contra Madison de 1803, na qual a alternativa entre
constituições flexíveis e a necessidade de uma escolha entre
uma e outra das duas soluções encontram-se enunciadas com
insuperável clareza. É de todo evidente – diz-se com precisão
naquela sentença – que ou a Constituição prepondera sobre
os atos legislativos que com ela contrastam ou o Poder
Legislativo pode mudar a Constituição através de lei
ordinária439.
Como o juiz Marshal decidiu que sempre, a norma a ser
aplicada, por ser mais forte, seria a Constituição, o sistema de controle
judicial da constitucionalidade das leis estabelecido nos Estados Unidos
ficou com as seguintes características:
a) o controle de constitucionalidade das leis pode ser feito por
qualquer juiz, no momento que entenda ser inconstitucional
a norma que deveria ser aplicada num determinado
processo. Este tipo de sistema passou a ser denominado de
“controle difuso” de constitucionalidade. Mesmo assim,
cabe assinalar que a função principal pertence à Suprema
Corte. Não só porque representa o ápice do sistema judicial,
mas sim, porque lhe corresponde a decisão final sobre a
constitucionalidade das normas jurídicas. A jurisprudência
produzida pela Suprema Corte é vinculante para os níveis
judiciais inferiores;

439
CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no
direito comparado. p. 47.
268 Paulo Márcio Cruz

b) a competência dos juízes, no “controle difuso”, está restrita


ao caso em específico. Isto quer dizer que o
pronunciamento do juiz sobre a constitucionalidade ou
inconstitucionalidade de uma lei deve ser realizada num
processo determinado e como um incidente no curso do
procedimento (a via incidental, que será vista mais
adiante). Desta forma, não cabe ao juiz impugnar
diretamente a lei, já que o seu pronunciamento causará
efeitos somente naquele caso e naquele processo, trazendo
resultado a um dos litigantes. Não é um procedimento
específico de inconstitucionalidade, já que a decisão está
dentro de um caso de Direito Civil, Penal etc., já iniciado.
Em todo caso, não faltam vias para provocar, mais ou
menos artificialmente, procedimentos que dêem lugar ao
incidente de inconstitucionalidade;
c) o juiz se pronuncia exclusivamente sobre o caso concreto e
em função do qual o litígio se estabeleceu. A decisão do juiz
é, portanto, ad causum e serve para a solução deste caso
particular. Não há, portanto, um pronunciamento de
inconstitucionalidade formal e com efeitos gerais ou erga
omnes. O Juiz limita-se a não aplicar a lei que entenda
inconstitucional, derroga-a ou a declara inexistente. Não
obstante, uma declaração de inconstitucionalidade pela
Suprema Corte representa a impossibilidade de aplicação da
norma no caso concreto, e também a sua não-aplicação geral
no futuro pelos outros juízes e tribunais, com base na
decisão da Suprema Corte.
No modelo norte-americano, desta forma, cabe aos juízes – a
todos os juízes – a vigilância da constitucionalidade das normas jurídicas,
sempre submetidos à decisão final da Suprema Corte. Na prática, a
Suprema Corte dos Estados Unidos tem sido muito contida neste
procedimento. Depois do caso Marbury contra Madison, demorou
cinqüenta anos para declarar outra lei federal inconstitucional, desta vez
no Dredd contra Stanford, de 1857. Mesmo atualmente continua sendo
muito contido em sua atuação.
Isto contrasta com a atuação do Poder Judiciário brasileiro, que
tem tido intensa atuação neste sentido. O Brasil adota, como já
assinalado, os dois modelos de controle de constitucionalidade – o difuso
e o concentrado, que será visto mais adiante – e o Supremo Tribunal
Federal é o encarregado da apreciação final em ambos.
Fundamentos do Direito Constitucional 269

11.4 O MODELO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE


POR UM ÓRGÃO JURISDICIONAL ESPECIALIZADO –
O “CONTROLE CONCENTRADO”
O modelo norte-americano de controle de constitucionalidade
apresenta muitos problemas, tanto práticos como de princípio. A sentença
Marbury contra Madison não se baseou nas previsões constitucionais
nem em precedentes jurisprudenciais, mas sim, numa construção lógica,
que foi muito criticada, inclusive pelos norte-americanos. Este sistema,
criado pelo juiz Marshal, foi mantido não por sua coerência lógica, “mas
sim, por sua conveniência política”440. Esta é a posição da maioria dos
autores europeus.
Desde uma perspectiva lógica, a escola européia acredita que se
deve ter em conta que todos os poderes do Estado estão sujeitos à
Constituição. Esta é a norma suprema para todos e não só para os juízes.
Aplicando a lógica de Marbury contra Madison generalizadamente,
qualquer poder ou autoridade do Estado, diante de uma suposta
contradição entre a Constituição e a Lei, deveria não aplicar esta última.
Desta forma, o ordenamento jurídico ficaria à mercê da opinião de toda
autoridade constituída e não haveria, por conseguinte, a sujeição à lei, já
que qualquer autoridade poderia não aplicar a lei por entendê-la
inconstitucional.
Segundo ainda muitos dos doutrinadores europeus, como
Gonzales Casanova441, a estas dificuldades lógicas uniram-se problemas
práticos. Primeiro, deve-se ponderar que este tipo de controle, ao permitir
sua aplicação por qualquer juiz, diminuiria a autoridade da própria lei.
Além disto, este tipo de controle também suporia a subordinação do
Poder Legislativo ao Poder Judiciário. Contra o controle difuso também
serve de argumento, na Europa, o caráter conservador do Poder Judiciário
dos Estados Unidos, que impediria reformas progressistas levadas a efeito
pelo Poder Legislativo.
Estes argumentos contrários ao controle difuso são, na verdade,
muito mais uma defesa do controle concentrado adotado na Europa, já que
ninguém, em sã consciência, pode acreditar que o Poder Legislativo norte-
americano seja “mais progressista” que o Poder Judiciário. São todos
liberais, capitalistas e, mesmo que com matizes diferentes, conservadores.
O que se nota, de fato, é que a tradição constitucional européia,
que sempre sustentou o império da lei como expressão da vontade
popular, não seria compatível com um controle de constitucionalidade das

440
SCHMITT, Carl. A defesa da constituição, p. 156.
441
CASANOVA, José António Gonzales. Institucionaes políticas y derecho
constitucional, 565 p.
270 Paulo Márcio Cruz

leis através do aparato judiciário. Por conta disto, a introdução, na


Europa, do controle de constitucionalidade das leis foi levado a cabo
através da criação – como teorizou Kelsen – de órgãos especializados,
encarregados desta tarefa e que atuassem com todas as garantias de
imparcialidade e independência dos juízes ordinários, mas que fossem
órgãos completamente separados destes.
O chamado Tribunal Constitucional, criado nos principais
países europeus, separado e independente dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, passou a contar com componentes nomeados de
maneira diferente daquela utilizada para os juízes ordinários e que atuam
de acordo com procedimentos próprios. No modelo europeu, ficou
concentrada num órgão específico a tarefa de controlar a
constitucionalidade das leis.
Como exemplos, podemos utilizar a Alemanha que, através da
Lei Fundamental de Bonn prevê, em seu art. 94, que compete ao Tribunal
Federal Constitucional:
1 – a interpretação desta Lei Fundamental a propósito de
litígios acerca da extensão dos direitos e deveres de um órgão
federal supremo ou de outras entidades envolvidas dotadas de
direitos próprios por esta Lei Fundamental ou pelo regimento
interno de um órgão federal supremo442.
Na mesma Lei Fundamental, mas em seu art. 94, está prevista a
composição do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, com o
seguinte texto:
1 – o Tribunal Constitucional Federal é composto por juízes
federais e outros membros. Os membros do Tribunal
Constitucional Federal serão eleitos em partes iguais pelo
Parlamento Federal e pelo Conselho Federal. Não poderão
pertencer nem ao Parlamento Federal, nem ao Conselho
Federal, nem ao Governo Federal, nem a órgãos
correspondentes de um Land443.
Organizado em duas câmaras, o Tribunal Constitucional Federal
alemão não está sediado na capital federal, mas em Karlsruhe.
As duas câmaras judiciais tratam, respectivamente, de
problemas relacionados puramente com a Lei Fundamental e com o
Direito Público em geral.
Nuno Rogeiro esclarece que os membros do Tribunal
Constitucional Federal alemão são “eleitos pelo parlamento federal
(Bundestag) e pela Câmara das Regiões ou Conselho Federal
442
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 210.
443
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 212.
Fundamentos do Direito Constitucional 271

(Bundesrat), representando assim, simultaneamente, o povo da


federação e os Länder”444.
Konrad Hesse, membro aposentado do Tribunal Constitucional
Federal, ressalta a independência deste órgão escrevendo o seguinte:
A influência do Parlamento Federal e do Conselho Federal
sobre o Tribunal Constitucional Federal restringe-se à eleição
dos juízes. Esses são, segundo o art. 94, alínea 1, frase 2, da
Lei Fundamental, eleitos por metade do Parlamento Federal e
por metade do Conselho Federal445.
Também em Portugal, a partir de 25.04.1976, foi instituído, pela
Constituição, o Tribunal Constitucional, em seu art. 281. Assim, o controle
concentrado de constitucionalidade das leis passou a ser competência
deste órgão. Sua composição está definida no art. 284, que prevê o
seguinte:
1 – O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo
dez designados pela Assembléia da República e três cooptados
por estes.
2 – Três dos juízes designados pela Assembléia da República e
os três juízes cooptados são obrigatoriamente escolhidos dentre
juízes dos restantes tribunais e os demais entre juristas.
3 – Os juízes do Tribunal Constitucional são designados por
seis anos.
4 – O presidente do Tribunal Constitucional é eleito pelos
respectivos juízes446.
Na Europa, a criação destes tribunais constitucionais foi
justificada pelo culto à supremacia da Constituição e pela subordinação
dos poderes públicos aos seus mandamentos, inclusive o Poder
Legislativo. Prevalece, assim, a posição de que os poderes do Estado
não podem deixar de aplicar a lei, mesmo quando a entendam
inconstitucional. A inconstitucionalidade de uma lei só poderá ser
declarada por um órgão a que a própria Constituição, expressamente,
tenha conferido esta competência. Enquanto não for assim declarada, a
lei será sempre vinculante.
A fórmula kelseniana foi aplicada, inicialmente, nas
Constituições da Tchecoeslováquia, em 1920, e da Áustria, também em
1920, bem como na Constituição espanhola de 1931. Posteriormente,
após a II Guerra Mundial, esta fórmula, com algumas variações, foi
444
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha, p. 213.
445
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da
Alemanha, p. 489.
446
PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa, p. 178.
272 Paulo Márcio Cruz

adotada na maioria dos países da Europa Ocidental, como já foi dito. O


modelo europeu também se estendeu para fora da Europa, principalmente
nos países latino-americanos de língua espanhola.
A técnica idealizada por Kelsen foi amplamente difundida na
Europa, com seus defensores argumentando que ela mantém o equilíbrio
entre os poderes do Estado, já que o Poder Judiciário continua
submetido à lei e não pode deixar de aplicá-la nem declarar sua
inconstitucionalidade.
A eliminação de possíveis influências no controle de
constitucionalidade por possíveis tendências ideológicas ou corporativas
existentes na magistratura ordinária é outro argumento muito comum em
defesa do controle concentrado. Além disso, seus defensores apontam o
mandato por tempo determinado dos membros dos tribunais
constitucionais e sua escolha periódica pelos outros órgãos
constitucionais como uma possibilidade concreta de adaptação da
jurisprudência à evolução dos conceitos jurídicos e às circunstâncias
sociais.

11.5 OS PROCEDIMENTOS DE CONTROLE DA


CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PELOS
TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS
Quando se definem os tribunais constitucionais como órgãos
específicos e separados da jurisdição ordinária, com a função de decidir
sobre a constitucionalidade de forma diferente do controle incidental
implantado nos Estados Unidos, torna-se necessário definir
procedimentos específicos, destinados expressamente a este tipo de
decisão.
Estes procedimentos podem ser definidos como de controle
abstrato de constitucionalidade. Neles, realmente é julgada a lei, em tese,
e não seus efeitos, com resultado erga omnes447.
a) A via de ação ou principal
Esta técnica, seguida em geral pelos ordenamentos jurídicos
europeus, consiste em legitimar (isto é, dando capacidade para iniciar o
procedimento), para impugnar as normas legais perante o Tribunal
Constitucional, um número limitado de sujeitos.
É como está escrito na Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, em seu art. 103 da seção II, que trata do Supremo
Tribunal Federal:

447
Expressão latina que significa “contra todos” ou que “atinge a todos”.
Fundamentos do Direito Constitucional 273

Podem propor ação de inconstitucionalidade:


I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – a Mesa de Assembléia Legislativa;
V – o Governador de Estado;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso
Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito
nacional448.
Também a Lei Fundamental de Bonn prevê os sujeitos que
podem recorrer ao Tribunal Constitucional pela via de ação. Está assim
escrito em seu art. 93, inc. II:
(1) Compete ao Tribunal Constitucional Federal apreciar:
2. no caso de divergências de opinião ou dúvidas acerca da
compatibilidade formal e material do direito federal ou estadual
com esta Lei Fundamental, ou da compatibilidade do direito
estadual com o restante direito federal, a requerimento do
Governo Federal, do governo de um land ou de um terço dos
membros do Parlamento Federal449.
Trata-se, desta forma, de um procedimento pela via principal ou
direta, através do qual se ataca expressamente a constitucionalidade de uma
lei como objeto único do processo. Tal ataque dá-se independentemente de
qualquer aplicação que haja ocorrido desta lei. O que se impugna é o texto
legal, não sua aplicação. Por isto a via principal é o exemplo típico de
controle abstrato de constitucionalidade como procedimento específico.
Como já se pôde observar com os exemplos do Brasil e da
Alemanha, acima descritos, existe uma notável variedade entre os
diversos ordenamentos quanto aos sujeitos legitimados para iniciar o
processo de impugnação da lei supostamente inconstitucional. Em alguns
deles, como na Itália450, são poucos os sujeitos aptos para esta tarefa (o
Governo e as regiões), como está previsto no Título VI da Constituição
448
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
67-68.
449
ROGEIRO, Nuno. A lei fundamental da República Federal da Alemanha,. p. 210-
211.
450
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 542-543.
274 Paulo Márcio Cruz

deste país, promulgada em 1948. Já em outros, como na Espanha 451, o


número é um pouco maior (o Governo, o Ministério Público, 50
deputados, 50 senadores e os governos e parlamentos das comunidades
autônomas), conforme está previsto no art. 162 da Constituição
Espanhola de 1978.
De qualquer forma, a legitimação é sempre muito restrita, com a
iniciativa para o início do processo sendo considerada uma função de
especial importância, que deve estar limitada a sujeitos específicos, de
forma a evitar impugnações de leis por motivos frívolos ou de mero
interesse pessoal ou corporativo.
Também é freqüente o estabelecimento de prazos para o
ingresso da ação de inconstitucionalidade como via principal, de forma a
evitar que as leis estejam permanentemente submetidas a eventuais
impugnações.
Deve-se assinalar que na grande maioria dos ordenamentos
jurídicos, a impugnação dos textos legais deve acontecer depois de sua
entrada em vigor (controle a posteriori ou repressivo).
Também não são incomuns os procedimentos de controle
preventivo, através dos quais se ataca a constitucionalidade de um texto
legal antes de sua entrada em vigor. O caso da França 452 é o mais
destacado, ao ser o controle preventivo o único que pode ser exercido. As
leis e outros textos com força de lei podem ser impugnados perante o
Tribunal Constitucional antes de sua promulgação – no caso das leis – ou
antes de sua aprovação – no caso dos tratados – pelo Parlamento.
Também é possível coexistirem o controle repressivo e o
controle preventivo, como ocorre na Itália e na Espanha.
Já a Ação Declaratória de Constitucionalidade funciona, no
Brasil, como uma possibilidade de, a qualquer tempo, o Tribunal
Constitucional – o Supremo Tribunal Federal – resolver as eventuais
dúvidas acerca da constitucionalidade de qualquer norma jurídica. Não há
prazo preestabelecido para a interposição de ação de
inconstitucionalidade.
b) O controle pela via de exceção ou incidental
Este item é especialmente interessante dada a dupla
interpretação do que seja o controle pela via de exceção ou incidental.
Os doutrinadores europeus admitem que o controle de
constitucionalidade pela via principal – ou concentrado – apresenta
algumas deficiências, principalmente por conta da legitimação restrita a
451
GUERRA, Luís Lopes. Constitución española, p. 126.
452
BRASIL. Constituição do Brasil e constituições estrangeiras, p. 452-453.
Fundamentos do Direito Constitucional 275

uns poucos sujeitos e à existência de prazos de prescrição, cujo


transcurso impede que se possa impugnar determinada lei perante o
Tribunal Constitucional. Também concordam que os efeitos
inconstitucionais de uma lei podem se manifestar somente a longo
prazo, quando os prazos para a interposição das ações junto ao Tribunal
Constitucional já tenham decorrido.
A via direta – ou concentrada – precisa, assim, ser
complementada. Na Europa, isto foi conseguido através da adoção da
chamada via de exceção.
Na concepção européia, a via de exceção – ou difusa – acontece
quando um juiz questiona a constitucionalidade de uma lei que tem de
aplicar, solicitando ao Tribunal Constitucional que se manifeste sobre ela.
A dúvida sobre a constitucionalidade da lei pode surgir da própria
apreciação do juiz ou por conta da argüição por uma das partes, como
uma exceção de constitucionalidade.
Quando um destes dois casos acontece, diferentemente do
sistema norte-americano, o juiz não decide no caso concreto, mas envia
uma petição ao Tribunal Constitucional, que deverá responder à questão,
dizendo se a lei é constitucional ou não, para que o caso seja resolvido.
Nestes casos, os prazos processuais são interrompidos.
Este sistema pressupõe que o juiz ordinário continue,
diferentemente do sistema norte-americano, submetido à lei, dado que não
pode deixar de aplicá-la, mas que esteja também e, principalmente, submetido
à Constituição, já que, em caso de dúvida e antes de aplicar uma lei que
considere inconstitucional, pode pedir o pronunciamento do Tribunal
Constitucional.
Assim, no sistema europeu, mesmo quando o monopólio da
declaração de inconstitucionalidade esteja nas mãos do Tribunal
Constitucional, o juiz ordinário pode colaborar em sua tarefa de
depuração do ordenamento jurídico, pleiteando, quando lhe pareça
necessário, questões de constitucionalidade. Em alguns sistemas
europeus, como o italiano, esta é a via mais usualmente seguida para que
o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre a inconstitucionalidade de
normas jurídicas.
No Brasil, o controle incidental ou por via de exceção também
supõe a existência prévia de um processo judicial em curso, no qual o
lesado – e só ele, e não juiz – em vez de atacar o ato diretamente, limita-
se a se defender dele no exato momento em que a autoridade tenta
submetê-lo à sua aplicação.
Como ensina Reis Friede,
276 Paulo Márcio Cruz

trata-se, portanto, de um controle sobre uma lei ou ato


normativo ‘em concreto’, que opera como verdadeira questão
prejudicial da lide principal, em face do prejuízo à parte na
aplicação da norma jurídica, reputada inconstitucional em
relação aos processos em curso e da conseqüente decisão de
mérito da causa litigiosa453.
No sistema brasileiro de controle de constitucionalidade por via
de exceção ou incidental – ou difuso –, diferentemente do sistema
europeu, a constitucionalidade não é, de fato, declarada e sim,
reconhecida, pois, como já ressaltado, trata-se de mera e simples questão
prejudicial, cuja decisão pelo juiz tão-somente suspende a eficácia da lei
retroativamente (efeito ex tunc) e com alcance somente entre as partes
litigantes (efeito inter partes). Assim, o juiz decide sobre a
constitucionalidade da lei para o caso concreto e específico.
Apesar de não ter sido objeto de análise nesta obra, vale
sublinhar que aquele controle de constitucionalidade levado a efeito antes
de a norma jurídica entrar efetivamente em vigor, normalmente realizado
nos parlamentos e pelos governos, quando encarregados de sancionar as
leis, deve também merecer atenção, em estudos adicionais, daqueles que
pretendam se aprofundar neste tema.
Mais especificamente sobre o controle de constitucionalidade e
a defesa da Constituição no Brasil, é importante trazer algumas posições
doutrinárias que sintetizem o sistema adotado pela Constituição de 1988.
No âmbito da doutrina nacional, pode-se citar, por exemplo,
Reis Friede, quando estabelece o seguinte raciocínio sistematizador:
no Brasil, foi adotado, ainda que pesem algumas pequenas
controvérsias doutrinárias, o sistema jurisdicional, na forma
repressiva e por meio difuso (como critério formal incidental)
e também concentrado (com critério formal direto), existindo,
pois, nesse aspecto, o controle jurisdicional da
constitucionalidade por via de exceção (incidental) e por via de
ação direta454.
Por seu turno, Ivo Dantas também discorre sobre o sistema
empregado no Brasil, ensinando que a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 trouxe um grande avanço quanto ao controle
de constitucionalidade:
A criação de novos institutos (ex. Inconstitucionalidade Por
Omissão, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental), as novas
atribuições que foram conferidas pela Constituição ao Supremo
453
FRIEDE, Reis. Lições objetivas de direito constitucional, p. 115.
454
FRIEDE, Reis. Lições objetivas de direito constitucional, p. 115.
Fundamentos do Direito Constitucional 277

Tribunal como decorrência das novéis ações e a amplitude da


Legitimação Ativa para a propositura de ADIn explicam a
freqüência com que, a partir de 1988, têm sido propostas, junto
àquele pretório, inúmeras Ações Diretas de
Inconstitucionalidade, isto sem falarmos nas possibilidades de
que, por via de controle incidental, principalmente, no tocante
aos Direitos e Garantias Individuais e Sociais, grande número
de questões seja submetido à apreciação dos Tribunais e do
Supremo Tribunal Federal, através de Recurso
Extraordinário455.
Entre os doutrinadores estrangeiros que tratam do tema, Jorge
Miranda oferece um excelente resumo sobre o controle de
constitucionalidade e a defesa da constituição no Brasil. É o seguinte:
O sistema brasileiro compreende um acervo de meios de
garantias de constitucionalidade quase sem paralelo noutros
sistemas:
a) Fiscalização concreta a cargo de todos os tribunais (art. 97
da Constituição);
b) Julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de recursos
extraodinários das causas decididas em única ou última
instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivos
da Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou
lei federal ou julgar válida lei ou acto de governo local
contestado em face da Constituição (art. 102-II)456;
c) Acção direta de inconstitucionalidade de lei ou acto
normativo federal ou estadual, a propor pelo Presidente da
República, pela Mesa do Senado Federal ou pela da Câmara
dos Deputados, por Mesa da Assembléia Legislativa, por
Governador de Estado, pelo Procurador-Geral da República,
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados, por partido
político com representação no Congresso Nacional e por
confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional
(arts. 102-V, alíneas a), 1ª parte, e p), e 103)457;
d) Acção declaratória de constitucionalidade de lei ou acto
normativo federal (arts. 102-I, alínea a), 2ª parte, e § 2º, e 103, §
4º);

455
DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. p. 236.
456
E continuando a ter o Senado o poder de suspensão da execução de lei declarada
inconstitucional (art. 52-X).
457
Esta ação corresponde à transformação e ao alargamento da “representação” do
Procurador-Geral da República vinda de 1965.
278 Paulo Márcio Cruz

e) Arguição de descumprimento de preceito fundamental


decorrente da Constituição, a apreciar pelo Supremo Tribunal
Federal (art. 102, par. 1º);
f) Acção de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º);
g) Mandado de Injunção (arts. 5º-LXXI e 102-I, alínea q)
...
Quanto à arguição de descumprimento de preceito fundamental
(regulamentada pela Lei 9.883, de 03.12.1999), poderia ser um meio de
defesa de direitos fundamentais quando esgotados ou inviáveis outros
meios, aproximável da Verfassungsbechwerde alemâ 458.
A Constituição brasileira de 1988 realmente traz, em seu conteúdo,
toda a experiência dos ordenamentos jurídicos anteriores e as melhores
técnicas de controle de constitucionalidade e defesa dela mesma presentes
em países ocidentais. Mesmo assim, o sistema somente será eficaz a partir da
efetiva melhoria da consciência jurídica e política da Sociedade. Caso
contrário, ter-se-á um ótimo instrumento sem a capacidade teórica para
utilizá-lo.

458
MIRANDA, Jorge. Teoria do estado e da constituição. p. 531.
Fundamentos do Direito Constitucional 279
280 Paulo Márcio Cruz

Capítulo 12

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE


A CONSTITUIÇÃO NA ORDEM
INTERNACIONAL

12.1 SOBERANIA ESTATAL E COMUNIDADE


INTERNACIONAL
A proclamação da soberania como independência ante
qualquer poder externo tornou-se uma manifestação característica e
essencial do Estado Moderno desde seu início. A consolidação do
princípio democrático supôs a reafirmação da soberania com relação ao
exterior, passando a ser proibida qualquer interferência nas decisões
internas da comunidade, adotadas livremente por esta. Em muitos casos,
como nos movimentos pela independência colonial, estavam unidas
aspirações pelo estabelecimento do sistema democrático e a consecução
da independência nacional.
A soberania nacional, nos tempos atuais, debate-se para conciliar-
se com um fato inegável: que as comunidades políticas – os Estados –
fazem parte de uma sociedade internacional, que é regida por normas
próprias. O Estado Soberano encontra-se, forçosamente, vinculado a
obrigações externas junto com os demais Estados, obrigações estas que
podem ter origens muito diversas. Podem ser resultado de tratados
bilaterais, de convenções multilaterais ou podem ser resultado da
existência, reconhecida e consolidada, de uma prática costumeira no
âmbito internacional.
Hodiernamente, o descumprimento de obrigações
internacionais pode acarretar sanções bastante intensas por parte dos
outros Estados, normalmente representados por um organismo
específico. Progressivamente, o ordenamento internacional passa a
dispor de mais armas, jurídicas e econômicas, destinadas a assegurar o
cumprimento destas sanções.
Fundamentos do Direito Constitucional 281

A existência de uma sociedade internacional e,


conseqüentemente, de obrigações vinculantes para o Estado, não é
incompatível, em princípio, com a soberania deste. Tal compatibilidade é
resultado do princípio de que os compromissos internacionais do Estado
derivam do consentimento deste mesmo Estado.
Hans Kelsen, referindo-se à vinculação do Estado por meio de
tratados, escreveu que “em regra geral, pode-se dizer que o tratado não
prejudica a soberania, já que, definitivamente, esta limitação se baseia
na própria vontade do Estado limitado; mais ainda: em virtude desta
limitação, fica assegurada a soberania estatal”459. Conforme esta
construção histórica, o Estado assume voluntariamente suas obrigações
internacionais, ficando, desta forma, submetido ao Direito Internacional
por sua própria vontade soberana.
Como reflexo desta concepção, são as Constituições que prevêem
que o Estado “soberano” poderá assumir voluntariamente obrigações
internacionais. Desta forma, fica ressalvada a doutrina da soberania.
Acrescente-se que estas obrigações dependem, pelo menos as mais
importantes, da aprovação dos respectivos parlamentos representantes do
povo. Mesmo que seja o Poder Executivo o encarregado de gerir as
relações internacionais, normalmente é exigido que os tratados sejam
aprovados pelos parlamentos.
Desta forma, o Estado assume compromissos internacionais
porque tanto o Poder Constituinte como o poder constituído assim o
decidem. Como exemplo, pode-se citar a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 49, inc. I, que prevê o seguinte:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos
internacionais que acarretem encargos ou compromissos
gravosos ao patrimônio nacional460.
E no art. 84, inc. VIII, da mesma Constituição brasileira de
1988 também se prevê a atuação do chefe do Poder Executivo nas
relações internacionais, com o seguinte teor:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
.....
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais,
sujeitos a referendo do Congresso Nacional461.

459
KELSEN, Hans. Teoría general del derecho y del estado, p. 421.
460
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. p.
49.
282 Paulo Márcio Cruz

Até pouco tempo, esta construção teórica bastava para a


discussão sobre a inserção do Estado do âmbito internacional. Ocorre que
a crescente inter-relação e interdependência entre Estados e a
consolidação de princípios reitores do comportamento entre eles foram
provocando, de maneira evidente, a consolidação de uma ordem jurídica
internacional, cuja força vinculante é difícil de explicar em virtude da
“aceitação” de cada Estado.
A comunidade internacional interpreta que determinados
princípios, acolhidos nos estatutos de organizações internacionais são
vinculantes, inclusive para aqueles países que estejam fora de dita
organização. O Estado, membro ou não das Nações Unidas, que não
cumpra as regras estabelecidas no concerto internacional, estará exposto a
sanções por parte da comunidade internacional.
A consciência da existência de uma ordem internacional, com
normas situadas acima dos ordenamentos internos dos Estados, está
traduzida no fato de que muitas constituições admitem, de forma expressa
e direta, a primazia destas normas. É expressivo o que consta no art. 25
da Lei Fundamental de Bonn, que trata do Direito Internacional Público
como parte integrante do direito federal: “As regras gerais do direito
internacional público fazem parte integrante do direito federal.
Prevalecem sobre as leis e produzem diretamente direitos e deveres para
os habitantes do território federal”462.
Também a Constituição Brasileira de 1988, embora com
menos ênfase, trata de afirmar o reconhecimento de uma ordem jurídica
internacional com força vinculante. O § 2º do seu art. 5º diz o seguinte:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte”463.
Os ordenamentos jurídicos estatais, desta forma, passaram a
reconhecer, com maior ou menor intensidade, a primazia do Direito
Internacional, pelo menos no que diz respeito às suas regras mais
universais. É de se destacar também que o princípio da “voluntariedade”
da sujeição dos Estados às normas internacionais se vê também
consideravelmente marcado pelo da incorporação dos Estados por
organizações internacionais que supõem uma limitação da soberania, já
que uma vez efetuada é praticamente irreversível. Desta forma, os
461
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
60.
462
ROGEIRO, Nuno. A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, p. 154-
155.
463
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, p.
25.
Fundamentos do Direito Constitucional 283

“Estados soberanos” assumem obrigações de caráter permanente, às quais


ficam sujeitos por tempo indeterminado.
No que se refere, sobretudo, ao âmbito europeu, podem-se
assinalar, pelo menos, dois exemplos desta irreversibilidade, ou seja, de
entrada dos Estados organizações que implicam obrigações internacionais
com uma vocação de permanência de tal monta que supõem uma
renúncia à parte de sua soberania. Um deles diz respeito às organizações e
tratados para a proteção dos direitos humanos. O outro é relativo a
organizações e tratados destinados, expressamente, à criação de uma nova
comunidade política supra-estatal como é a União Européia.

12.2 OS DIREITOS HUMANOS COMO MATÉRIA DE


PROTEÇÃO INTERNACIONAL
Um dos aspectos no qual o tradicional princípio da soberania
estatal vem mostrando notáveis indícios de exaustão diante das normas
jurídicas internacionais é aquele relativo à proteção dos direitos humanos.
O reconhecimento e garantia de um conjunto de direitos do homem,
considerados como fundamentais, foi elemento caracterizador, como já
foi visto, do próprio constitucionalismo, desde sua origem. Apesar deste
fato, a experiência tem mostrado que este reconhecimento constitucional
não pôde evitar, em muitas ocasiões e em muitos e diferentes países, que
fossem desrespeitados direitos considerados, na cultura moderna e
contemporânea, inerentes à dignidade humana em qualquer momento ou
circunstância. Particularmente as experiências dos regimes totalitários dos
anos trinta e quarenta do século XX e o retrocesso dos direitos humanos
em muitas áreas – inclusive naquelas consideradas como as mais
“civilizadas” e cultas – deram lugar a uma tendência de reconhecer e
garantir estes direitos através de documentos internacionais, como forma
adicional de promover seu cumprimento. A Carta das Nações Unidas 464,
de 1945, foi o primeiro reconhecimento internacional do primado dos
direitos humanos. E no âmbito da Organização foram elaboradas
declarações que buscaram o reconhecimento e aceitação destes direitos
como regra comum a todos os países-membros. O destaque é para a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas no dia 10.12.48. Esta Declaração teve,
inevitavelmente, um caráter genérico, tendo sido complementada por
outros documentos posteriores, como o Pacto Internacional de Direitos

464
A Carta das Nações Unidas foi assinada, em 1945, pelos países em guerra contra o
Eixo, reunidos em San Francisco, nos Estados Unidos, com o objetivo de garantir a paz e
a segurança mundiais e instituir entre as nações uma efetiva cooperação econômica, social
e cultural. No mesmo momento entrou em vigor o estatuto da Corte Internacional de
Justiça. Ambos documentos entraram em vigor em 24 de outubro daquele mesmo ano.
284 Paulo Márcio Cruz

Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos Civis


e Políticos, ambos de dezembro de 1966.
Estas declarações tiveram uma inegável repercussão na
cultura e na prática jurídica dos Estados. Esta repercussão deveu-se,
sobretudo, a um sentimento de obrigação ética, que prevaleceu sobre a
presença de técnicas que sancionassem seu não-cumprimento.
Efetivamente, estes documentos não prevêem fórmulas de controle ou
de reparação de direitos violados. Também não prevêem a possibilidade
de que os indivíduos disponham de um direito de ação ou petição ante
organismos internacionais em caso de não-cumprimento por parte de
algum Estado.
A eficácia destas declarações reside em sua força de persuasão
ética e moral, levando a que os Estados cumpram seus preceitos. Mesmo
assim, em que pese sua adoção pelas Nações Unidas, não faltam Estados-
membros que não ratificaram alguns dos acordos internacionais nesta
área ou, mesmo o fazendo, não trasladaram estas normas para seus
ordenamentos jurídicos internos, não obrigando aos poderes públicos
quanto a elas465.
Por estes motivos e para conseguir uma maior efetividade na
proteção internacional dos direitos humanos, em algumas áreas preferiu-
se elaborar acordos de alcance geográfico limitado, incluindo países que,
por suas características culturais e políticas muito próximas, facilitem a
adoção de legislações comuns neste sentido, com um controle
supranacional efetivo.
Exemplos deste tipo de acordo “localizado” são a Convenção
Americana dos Direitos do Homem, que passou a ser conhecido como
Tratado de San José da Costa Rica, firmado em 1969 e, principalmente, a
Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos Humanos e
Liberdades Fundamentais, assinado em Roma no dia 04.11.1950.
Estas convenções podem ser caracterizadas pela efetiva sujeição
das autoridades estatais às obrigações acordadas, que passaram a ser
exigíveis não só pelos demais Estados signatários mas também pelos
cidadãos sujeitos à sua jurisdição, através de instâncias supranacionais,
cujas decisões são vinculantes a todos os Estados-membros.
A convenção européia tem, por seu caráter precursor neste tipo de
acordo, uma relevância especial466. Como foi criada no âmbito do Conselho
da Europa, com os países-membros desta organização subscrevendo-a,
tornou-se um mecanismo revolucionário na ordem jurídica internacional.
Como suas características essenciais podem-se destacar as seguintes:
465
Sobre isto ver SILVA, Luiz Roberto. Direito econômico internacional e direito
comunitário, p. 127.
466
Sobre isto ver FERNANDES, António José. Direito institucional europeu. p. 329.
Fundamentos do Direito Constitucional 285

a) a Convenção impõe uma série de obrigações aos Estados


que a ratifiquem, entre elas a de respeitar os direitos
humanos nela reconhecidos. Deve-se destacar que, diante
dos acordos internacionais clássicos, que criavam
obrigações “entre Estados”, a Convenção Européia criou
obrigações dos Estados-membros frente aos indivíduos
submetidos a sua jurisdição. Em virtude da Convenção, são
os indivíduos os que se convertem em “sujeitos de direitos”;
b) esta característica tem importantes conseqüências de ordem
pessoal. Diante de eventuais desrespeitos aos direitos
reconhecidos na Convenção, os demais Estados-membros
podem reagir, assim como os indivíduos atingidos. Isto
acrescido da particularidade de que os Estados signatários
estão legitimados para reagir contra a violação do tratado,
tanto se esta for produzida por seus habitantes ou se for
produzida por habitantes de outros países que tenham
aderido ao mesmo tratado. Existe, desta forma, uma
“garantia coletiva” da Convenção;
c) para levar a efeito esta garantia, criam-se instâncias
internacionais que decidem sobre as reclamações dos
Estados e/ou dos indivíduos. Um papel de destaque é o da
Comissão Européia de Direitos Humanos, perante a qual os
cidadãos podem apresentar suas reclamações quando
entendam que um Estado-membro tenha desrespeitado
algum dos direitos que são reconhecidos pela Convenção
Européia. Caso a Comissão entenda que tal desrespeito
tenha efetivamente acontecido, pode apresentar o caso
perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, que é sua
instância superior. Também os Estados-membros podem
apresentar reclamações diretamente ao Tribunal Europeu de
Direitos Humanos, caso entendam que outro Estado tenha
desrespeitado os direitos recepcionados pela Convenção;
d) a Convenção estabelece a obrigação das partes signatárias
de se conformarem com as decisões do Tribunal Europeu de
Direitos Humanos nos litígios em que sejam parte. Este
Tribunal, desta forma, se configura como um órgão
supranacional, que adota decisões vinculantes para os
Estados-membros. É neste ponto que se pode perceber, de
forma mais evidente, a “diminuição” da soberania do
Estado-membro. Um Estado deve se submeter à decisão de
um órgão externo em matérias que dizem respeito às suas
relações com seus próprios cidadãos. Em outras palavras, o
286 Paulo Márcio Cruz

poder estatal, em uma matéria concreta como são os direitos


humanos, deixa de ser a instância suprema, passando este
papel ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
Esta construção, que efetivamente internacionaliza, no âmbito
da União Européia, a proteção dos Direitos Humanos, situando-a num
plano superior ao estatal, está muito bem configurada na citada
Convenção.
Desta forma, é evidente que a sujeição a este regime de
submissão ao Tribunal Europeu e à Convenção de Roma indica uma clara
limitação da soberania. Esta limitação se baseia na voluntária aceitação,
por parte dos Estados, através da ratificação da Convenção, tornando
vinculante a doutrina do Tribunal Europeu no momento de interpretar o
alcance dos direitos constitucionalmente reconhecidos.
Em última análise, portanto, a vinculação dos Estados é
resultado de sua própria Constituição e, por via de conseqüência, de sua
própria soberania para adotá-la. É como ensina Sílvio Dobrowolski, ao
assinalar que “o exemplo europeu da criação de um direito comunitário
subtraído do controle parlamentar, ou de vínculos constitucionais,
ilustra, de modo conveniente, a afetação da soberania dos Estados”467.
Norberto Bobbio também escreve sobre a “nova soberania”,
ensinando que a colaboração internacional, cada vez mais intensa, está
desgastando os poderes tradicionais dos Estados soberanos. O autor
italiano, assinala que
o golpe maior veio das chamadas comunidades
supranacionais, cujo objetivo é limitar fortemente a soberania
interna e externa dos Estados-membros; as autoridades
‘supranacionais’ têm a possibilidade de conseguir que
adequadas Cortes de Justiça definam e confirmem a maneira
pela qual o direito ‘supranacional’ deve ser aplicado pelos
Estados em casos concretos 468.
Mesmo assim, deve-se ter em conta, pelo menos em teoria, que
os Estados-membros podem denunciar a Convenção e ficar sem as
limitações de soberania em matéria de direitos humanos. Entretanto, e
isto deve ficar bem claro, na prática tal retirada e liberação aparecem
como irrealizáveis. Devido às forças ética e moral da Convenção, a saída
de um Estado supõe uma evidente condenação, fazendo que o Estado
perca prestígio internacional, pondo em dúvida seu próprio regime
democrático e constitucional.

467
DOBROWOSKI, Sílvio. A constituição no mundo globalizado, p. 305.
468
BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de política, p. 1.187.
Fundamentos do Direito Constitucional 287

Alguns casos, como o da Grécia, são paradigmáticos. Depois do


“golpe dos coronéis”, em 1967, a ditadura passou a não garantir os
direitos humanos reconhecidos na Convenção e retirou-se da mesma em
1969, condenando-se assim a uma situação de marginalização entre a
nações européias. Restaurada a democracia, o novo regime tratou de
reintegrar-se, imediatamente, à Convenção e ao Conselho da Europa, o
que aconteceu em novembro de 1974.
A adesão à Convenção e a integração ao Conselho da Europa –
como condição prévia – representam a admissão na ordem democrática
européia. Os países que saíram de situações de ditadura trataram, tão logo
atingiram um nível suficiente de democracia, de solicitar sua integração
no mecanismo europeu de direitos humanos. Este também foi o caso de
Portugal, que ingressou no Conselho da Europa em 1976 e ratificou a
Convenção em 1978.
O Estado Democrático de Direito, como já se disse, é uma
proposta de civilização atualmente, principalmente na Europa Ocidental.
Assim, como resultado deste fato, a adesão ao Tribunal Europeu e à
Convenção, por voluntária que seja, é praticamente irreversível, pelo
menos nas condições atuais da política européia ocidental.

12.3 RÁPIDAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO


INTERNACIONAL HUMANITÁRIO COMO
INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AOS
DIREITOS HUMANOS
A guerra, em qualquer de suas manifestações, é o momento
mais propício para o desrespeito aos Direitos Humanos. O ideal seria
evitá-la e bani-la para sempre, porém sabe-se que no atual estágio de
desenvolvimento da humanidade isto ainda não é possível.
Partindo-se deste pressuposto, o mais indicado é perseguir a
consolidação do Direito Internacional Humanitário como instrumento de
proteção às vítimas dos conflitos armados, permitindo que as guerras, que
sempre são violentas e traumáticas, não sejam, de todo, desumanas.
O Direito Internacional Humanitário é considerado por muitos
autores, como César Amorim Krieger, um “ramo emergente do
Direito”469, destina-se a disciplinar o comportamento dos povos nas
guerras, estabelecendo os limites do conflito, o tratamento do soldado
preso, à mulher, à criança e ao patrimônio conquistado dos vencidos.

469
KRIEGER, César Amorim. A consolidação do direito internacional humanitário:
precedente do comitê internacional da Cruz Vermelha e a contribuição definitiva da
Convenção de Roma de 1998. p. 207.
288 Paulo Márcio Cruz

Krieger, em sua tese de doutorado, também faz um competente


esforço conceitual. Ele Ensina que as expressões Direito Internacional
Humanitário, direito dos conflitos armados ou direito de guerra, podem
estar apresentados como sinônimos, já que a opção por uma ou outra
expressão dependerá do entendimento dos próprios autores
internacionalistas470.
Assim, o Direito Internacional Humanitário é o conjunto de
normas elaboradas por convenção ou pelo costume, destinadas a proteger
os seres humanos e seu patrimônio vítimas de conflitos armados, em
poder de forças adversárias, sejam feridos, enfermos, náufragos,
prisioneiros de guerra ou pessoas civis471.
Como resultado do conceito de Direito Internacional
Humanitário, o autor indica quatro tipos de efeitos – ou ações – possíveis
da aplicação das normas formadoras deste ramo do Direito: a) o efeito
preventivo, considerando-se que, em momentos de guerra.
Desta forma, o Direito Internacional Humanitário significa um
importante instrumento de proteção dos Direitos Humanos em caso de
guerra.
Após a Segunda Guerra Mundial, ficou mais do que evidente a
necessidade da existência de um Direito normatizador dos problemas
oriundos dos conflitos armados e suas repercussões, principalmente,
quanto aos Direitos Humanos.
Como um dos ramos do Direito Internacional Público, o art.
38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça é, segundo a melhor
doutrina, a enumeração das fontes Direito Internacional Humanitário,
como os tratados e protocolos multilaterais, o Direito Internacional
Consuetudinário, os princípios fundamentais do Direito Internacional
Humanitário472 e a jurisprudência das Cortes em julgados que tratam da
matéria.
Evitar as atrocidades das guerras e suas repercussões são os
principais objetivos do Direito Internacional Humanitário. Para isso, é

470
KRIEGER, César Amorim. A consolidação do direito internacional humanitário:
precedente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e a contribuição definitiva da
convenção de Roma de 1998. p. 229.
471
KRIEGER indica, para a conceituação de Direito Internacional Humanitário, autores
como Christophe SWINARSKI, em seu A norma e a guerra, editado por Sérgio Fabris, e
Juan Bautista RIVAROLA PAOLI, em seu Derecho internacional público, editado pela
Intercontinental de Asunción, Paraguai.
472
KRIEGER indica como princípios gerais do Direito Internacional Humanitário os da
Humanidade, Necessidade, Proporcionalidade, Distinção, Distinção ou Restrição de
Armas que Causem Sofrimento Desnecessário e a Independência entre o Direito de Fazer
a Guerra e o Direito de Guerra.
Fundamentos do Direito Constitucional 289

necessário que os cursos de Direito comecem a tratar deste tema em suas


matrizes curriculares e em suas produções científicas.
Considerado o panorama internacional que se tem atualmente, é
mais do que fundamental o espargimento das informações básicas sobre
os direitos destinados a proteger o ser humano em situações de conflito
bélico.

12.4 A CONSTITUIÇÃO E AS ORGANIZAÇÕES


SUPRANACIONAIS
A relativização do conceito de soberania estatal e mesmo do
poder supremo da Constituição torna-se cada vez mais evidente,
principalmente por conta do fenômeno chamado de integração em
comunidades supra-estatais – ou supranacionais – que afeta,
decisivamente, muitos países, principalmente os europeus ocidentais. E
ainda como escreve Dobrowolski,
também deve ser objeto de consideração, a real perda do poder
soberano do Estado, com a ascensão de novas fontes de
produção jurídica. A nível externo, o fenômeno das integrações
regionais exclui da capacidade decisória da organização
estatal diversos tópicos, que passam a ser regidos por meio de
acordos internacionais473.
Quando se fala em “integração” supranacional está-se falando
de algo muito além da mera cooperação. Não só o Estado contrai
obrigações vinculantes (caso dos tratados internacionais clássicos) mas
também, mais do que isto, se submete ao controle de organismos
supranacionais quanto ao seu cumprimento (como é o caso das
Convenções Européia e Americana de Direitos Humanos), transferindo
poderes a estes organismos, que se convertem em titulares de
competências que antes pertenciam ao Estado: o poder deste, portanto, se
“esvazia” paulatinamente.
O exemplo da Comunidade Econômica Européia e sua
progressiva construção podem ser considerados um paradigma neste
processo. Diversos instrumentos jurídicos contribuíram para a
estruturação desta Comunidade. Primeiramente, os tratados que criaram
a Comunidade Européia do Carvão e do Aço, assinados em Paris; em
1951; a Comunidade Econômica Européia, assinado em Roma, em 1957
e a Comunidade Européia da Energia Atômica, assinado também em
Roma e no mesmo ano.
A amplitude da Comunidade Econômica Européia foi sendo
efetivada através de diversos tratados de adesão, e seu desenvolvimento
473
DOBROWOSKI, Sílvio. A constituição no mundo globalizado, p. 305.
290 Paulo Márcio Cruz

institucional, no tocante às suas competências, prosseguiu por meio da


aprovação da Ata Única Européia, em 1987, e o Tratado da União
Européia, assinado em Maastricht, em 1992.
Nesta direção, Joana Stelzer leciona que,
a partir do Tratado da União Européia, o aprofundamento da
integração verificou-se em diversos âmbitos: consagrou o
espaço comunitário através da denominação União Européia,
criou novos direitos para os cidadãos europeus (com a
cidadania da União), conferiu mais poderes ao Parlamento,
alargou o âmbito da responsabilidade da EU ao se estender às
áreas de proteção ao consumidor e ao meio ambiente, política
de saúde pública e industrial, infra-estrutura de transportes
etc.474.
O processo de transformação da Comunidade Econômica
Européia em União Européia foi baseado, essencialmente, na cessão de
competências – ou soberania – pertencentes aos Estados-membros para a
Comunidade e para a União Européia. E isto com uma importante
particularidade: não se trata de competências enumeradas taxativamente,
mas de competências que se definem de forma indireta.
Por outro lado, este traslado de soberania supõe que os órgãos
da União Européia irão exercê-la de modo a espargir seus efeitos dobre
todos os Estados-membros e, dentro destes, sobre os cidadãos, impondo-
se sobre as normas internas destes Estados.
Este novo Direito, chamado de Comunitário, e as instituições
que o criam e aplicam não representam um conjunto desorganizado ou
incoerente de normas e poderes. São expressão, pelo contrário, de uma
estrutura coordenada, que possui ordenamento jurídico próprio para o
cumprimento de determinados fins. António Fernandes aborda esta
questão quando trata do Direito Internacional Europeu e do Direito
Internacional, entendendo que o primeiro está matizado pelo segundo,
mas as organizações européias também praticam atos jurídicos
que escapam às regras do Direito Internacional e estão mais
próximos das normas jurídicas do direito estadual. E são estes
atos, previstos nos tratados originários (constitutivos), que
consubstanciam a autonomia do ordenamento jurídico desta
organização475.
O crescimento dos poderes e funções da União Européia não
deixaram de suscitar, como seria esperado, reações desde a perspectiva da
474
STELZER, Joana. União européia e supranacionalidade: desafio ou realidade?, p.
90.
475
FERNANDES, António José. Direito institucional europeu (das organizações
européias), p. 380-381.
Fundamentos do Direito Constitucional 291

soberania nacional. As reações acontecem, principalmente, com relação a


dois aspectos: como deve ser feita a transferência de soberania dos
Estados-membros para a União Européia e quais são os limites desta
transferência?
Mas acontecem também reações a partir de posições contrárias
à globalização da economia, fatalmente vinculada à formação de
comunidades de Estados com fins econômicos. Assim, a posição de José
Eduardo Faria é elucidativa quando escreve que com
o gradativo fenecimento do Estado nacional, a soberania vai
sendo erodida na mesma velocidade com que a política
tradicional se descentraliza, desterritorializa e transnacionaliza,
conduz, assim, a uma outra importante questão: como a
globalização vai levando a ‘racionalidade do mercado’ a se
expandir sobre âmbitos não especificamente econômicos, as
fronteiras entre o público e o privado tendem a se esfumaçar e os
critérios de eficiência e produtividade a prevalecer às custas dos
critérios ‘sociais’ politicamente negociados na democracia
representativa476.
De qualquer maneira, pode-se dizer que a soberania dos
Estados-membros, em organizações como a União Européia, continua
sendo mantida. Mesmo que esta manutenção seja meramente formal. A
União Européia está definida como uma organização com vontade de
permanência indefinida. Os poderes já cedidos à União Européia muito
provavelmente não voltarão mais aos Estados cedentes. Além disto, estes
poderes – que na prática são irrecuperáveis – aumentam continuamente,
subtraindo dos Estados-membros mais âmbitos da soberania.
As reformas constitucionais são, portanto, a melhor expressão
da força integradora que obriga os Estados a mudarem sua própria
Constituição para adaptá-la a processos de integração.
Foi possível conceber uma nova dimensão, relativizada, da
soberania e da Constituição diante do processo de integração. Mesmo
quando formalmente é mantida a autonomia do Poder Constituinte de
cada Estado, não é menos correto reconhecer que a atuação das
instituições supraestatais – ou supranacionais – como é o Caso da União
Européia, através de seus atos e suas normas, podem, de fato, alterar os
mandamentos constitucionais, inclusive em aspectos básicos.
Isto pode ser produzido porque estes mandamentos serão
reinterpretados à luz do Direito Comunitário, surgido da agregação de
Estados em torno de Comunidades. Pode-se dizer que a Constituição
muda de conteúdo normativo, mesmo quando seu enunciado literal não
476
FARIA, José Eduardo. Direito e globalização econômica, p. 143.
292 Paulo Márcio Cruz

tenha sido alterado. É produzida, desta forma, uma mutação


constitucional, no mesmo sentido de como foi tratada, anteriormente, no
capítulo 4. Com isto, o Poder Constituinte, na prática, seria transferido a
instâncias supranacionais. A Constituição passaria, desta forma, a ser lida
à luz do Direito Comunitário e não ao contrário.
Este processo, ao que parece, se desenvolverá ainda mais
amplamente no futuro. Isto supõe uma radical alteração nos princípios do
Direito Constitucional. Muitas das percepções atuais e comuns relativas
aos fundamentos culturais do constitucionalismo, como a soberania
nacional, a supremacia da Constituição e o Estado como ordenamento
jurídico completo deverão sofrer profundas revisões.
O grande desafio neste século XXI será encontrar uma fórmula
que compatibilize estas tendências de globalização e comunitarização,
com o constitucionalismo social tardio, imprescindível a países como o
Brasil que, desde sua independência, se debate para encontrar seu modelo
de desenvolvimento completo, não só o econômico.
Fundamentos do Direito Constitucional 293
294 Paulo Márcio Cruz

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VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria geral do direito econômico. São Paulo: RT,
1977.
WOLKMER, Antônio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris, 1990. 64 p.
_____. Ideologia, estado e direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. 213 p.
Fundamentos do Direito Constitucional 299
300 Paulo Márcio Cruz

ÍNDICE ALFABÉTICO

• Agentes e métodos de exercício do Poder Constituinte.................................... 68


• Algumas considerações sobre a Constituição na ordem internacional........... 275
• Aplicação do direito pelos juízes.................................................................... 139
• Aplicação do princípio da separação dos poderes. Os sistemas
presidencialista e parlamentarista.................................................................... 143
• Autonomia contratual. Regulação estatal e autonomia contratual.................. 225

• Bibliografia. Referências................................................................................ 289

• Centralização e descentralização como alternativas constitucionais.............. 239


• Cidadão. Defesa dos direitos e garantias fundamentais pelos cidadãos......... 173
• Conceito de Poder Constituinte........................................................................ 60
• Conceito jurídico. Direito constitucional como sistema de conceitos
jurídicos............................................................................................................ 34
• Concepções filosófica e jurídica dos direitos e garantias fundamentais......... 153
• Considerações preliminares dobre o direito constitucional.............................. 21
• Constitucional. Centralização e descentralização como alternativas
constitucionais................................................................................................ 239
• Constitucional. Controle de constitucionalidade das atividades dos poderes
públicos........................................................................................................... 258
• Constitucional. Democracia e Estado constitucional...................................... 179
• Constitucional. Direito constitucional e forma de Estado.............................. 239
• Constitucional. Mutação constitucional............................................................ 86
Fundamentos do Direito Constitucional 301
• Constitucional. Separação de poderes como princípio básico da
organização constitucional.............................................................................. 121
• Constitucionalidade. Modelo norte-americano de controle de constituciona-
lidade das leis. O controle difuso ou incidental.............................................. 262
• Constitucionalidade. Modelo de controle de constitucionalidade por um ór-
gão jurisdicional especializado. O controle concentrado................................ 264
• Constitucionalidade. Procedimentos de controle da constitucionalidade das
leis pelos tribunais constitucionais................................................................. 268
• Constitucionalismo. Estado e nação cultural no constitucionalismo: a
população como elemento estatal..................................................................... 44
• Constitucionalismo. Princípios constitucionais no constitucionalismo
brasileiro......................................................................................................... 114
• Constituição. Algumas considerações sobre a Constituição na ordem
internacional.................................................................................................... 275
• Constituição. Conteúdo da Constituição........................................................... 80
• Constituição. Controle da constitucionalidade e a defesa da Constituição............
257
• Constituição. Direito constitucional. Fontes..................................................... 77
• Constituição. Partidos políticos, democracia e Constituição.......................... 206
• Constituição. Reforma da Constituição............................................................ 83
• Constituição. Supremacia da Constituição....................................................... 81
• Constituição como fonte primária do direito constitucional............................. 77
• Constituição e democracia.............................................................................. 179
• Constituição e a intervenção e regulação do Estado....................................... 217
• Constituição e as organizações supranacionais............................................... 284
• Constituinte. Poder Constituinte....................................................................... 55
• Conteúdo da Constituição................................................................................. 80
• Conteúdo material do direito constitucional..................................................... 28
• Controle concentrado. Modelo de controle de constitucionalidade por um ór-
gão jurisdicional especializado. O controle concentrado................................ 264
• Controle da constitucionalidade. Pressupostos teóricos................................. 257
• Controle da constitucionalidade e a defesa da Constituição........................... 257
• Controle de constitucionalidade. Modelo norte-americano de controle de
constitucionalidade das leis. O controle difuso ou incidental......................... 262
• Controle de constitucionalidade. Modelo de controle de
constitucionalidade por um órgão jurisdicional especializado. O controle
concentrado..................................................................................................... 264
• Controle de constitucionalidade. Procedimentos de controle da
constitucionalidade das leis pelos tribunais constitucionais............................ 268
• Controle de constitucionalidade das atividades dos poderes públicos............ 258
• Controle difuso. Modelo norte-americano de controle de
constitucionalidade das leis. O controle difuso ou incidental......................... 262
• Controle externo do Poder Judiciário............................................................. 142
• Controle incidental. Modelo norte-americano de controle de
constitucionalidade das leis. O controle difuso ou incidental......................... 262
302 Paulo Márcio Cruz
• Costume. Lei, jurisprudência e o costume como fontes do direito
constitucional.................................................................................................... 87
• Costume e direito constitucional....................................................................... 95

• Defesa da Constituição. Controle da constitucionalidade e a defesa da Cons-


tituição............................................................................................................ 257
• Defesa dos direitos e garantias fundamentais pelos cidadãos......................... 173
• Definição formal do direito constitucional....................................................... 30
• Democracia. Eleições e democracia............................................................... 195
• Democracia. Estado democrático de direito................................................... 212
• Democracia. Partidos políticos, democracia e Constituição........................... 206
• Democracia direta........................................................................................... 185
• Democracia e Estado constitucional............................................................... 179
• Democracia representativa.............................................................................. 190
• Descentralização administrativa..................................................................... 244
• Descentralização política. Diversas fórmulas de descentralização política...........
247
• Descentralização política. Modelo confederal................................................ 254
• Descentralização política. Modelo federal...................................................... 249
• Descentralização política. Variações do modelo federal................................. 252
• Desenvolvimento da intervenção do Estado................................................... 219
• Dimensão externa da soberania........................................................................ 51
• Dimensão interna da soberania......................................................................... 49
• Direito. Aplicação do direito pelos juízes....................................................... 139
• Direito constitucional. As outras fontes do direito constitucional.................... 87
• Direito constitucional. Considerações preliminares sobre o direito
constitucional.................................................................................................... 21
• Direito constitucional. Constituição como fonte primária do direito cons-
titucional........................................................................................................... 77
• Direito constitucional. Conteúdo material do direito constitucional................ 28
• Direito constitucional. Costume e direito constitucional.................................. 95
• Direito constitucional. Definição formal do direito constitucional.................. 30
• Direito constitucional. Estado e direito constitucional..................................... 37
• Direito constitucional. Fonte. Jurisprudência como fonte do direito
constitucional.................................................................................................... 92
• Direito constitucional. Fontes. Lei, jurisprudência e o costume como
fontes do direito constitucional......................................................................... 87
• Direito constitucional. Legislação como fonte do direito constitucional......... 88
• Direito constitucional. Origem histórica do direito constitucional................... 25
• Direito constitucional. Reconhecimento de direitos......................................... 28
• Direito constitucional como conjunto de normas jurídicas............................... 32
Fundamentos do Direito Constitucional 303
• Direito constitucional como garantia dos direitos fundamentais.................... 153
• Direito constitucional como ramo do direito público....................................... 21
• Direito constitucional como sistema de conceitos jurídicos............................. 34
• Direito constitucional e forma de Estado........................................................ 239
• Direito constitucional e os poderes instituídos do Estado............................... 119
• Direito público. Direito constitucional como ramo do direito público............. 21
• Direito público e direito privado. Elementos diferenciadores.......................... 23
• Direito público e direito privado. Variação dos âmbitos................................... 24
• Direito constitucional e forma de Estado........................................................ 239
• Direito de prestação e intervenção estatal....................................................... 228
• Direito de propriedade e a intervenção e regulação estatal............................. 231
• Direito fundamental. Defesa dos direitos e garantias fundamentais pelos ci-
dadãos............................................................................................................. 173
• Direito fundamental. Direito constitucional como garantia dos direitos fun-
damentais........................................................................................................ 153
• Direito fundamental. Limites dos direitos e garantias fundamentais.............. 177
• Direito fundamental. Tipificação do conteúdo dos direitos e garantias
fundamentais................................................................................................... 156
• Direito fundamental. Titularidade dos direitos e garantias fundamentais..............
170
• Direito humanitário. Rápidas considerações sobre o direito internacional
humanitário como instrumento de proteção aos direitos humanos................. 282
• Direito internacional humanitário. Rápidas considerações sobre o direito
internacional humanitário como instrumento de proteção aos direitos
humanos.......................................................................................................... 282
• Direito político. Direitos de participação ou direitos políticos....................... 160
• Direitos de participação ou direitos políticos.................................................. 160
• Direitos difusos e os direitos pós-contemporâneos: a terceira e quarta
dimensões........................................................................................................ 163
• Direitos e garantias de liberdade e de participação: a primeira dimensão.............
158
• Direitos e garantias fundamentais. Concepções filosófica e jurídica dos
direitos e garantias fundamentais.................................................................... 153
• Direitos e garantias fundamentais como manifestação jurídica...................... 165
• Direitos humanos como matéria de proteção internacional............................ 278
• Direitos sociais. Segunda dimensão................................................................ 161
• Diversas fórmulas de descentralização política.............................................. 247

• Economia como atividade do Estado.............................................................. 235


• Eleições e democracia..................................................................................... 195
• Elementos diferenciadores do direito público e do direito privado.................. 23
304 Paulo Márcio Cruz
• Emmanuel Sieyès. O pensamento de Emmanuel Sieyès e a teoria do Poder
Constituinte....................................................................................................... 57
• Estado. Democracia e Estado constitucional.................................................. 179
• Estado. Descentralização administrativa........................................................ 244
• Estado. Desenvolvimento da intervenção do Estado...................................... 219
• Estado. Direito constitucional e forma de Estado........................................... 239
• Estado. Direito constitucional e os poderes instituídos do Estado.................. 119
• Estado. Direito de propriedade e a intervenção e regulação estatal................ 231
• Estado. Economia como atividade do Estado................................................. 235
• Estado. Intervenção do Estado como teoria.................................................... 218
• Estado. Intervenção estatal e direito de prestação.......................................... 228
• Estado. Regulação estatal e autonomia contratual.......................................... 225
• Estado. Soberania como Poder do Estado......................................................... 48
• Estado centralizado......................................................................................... 241
• Estado como ente territorial.............................................................................. 42
• Estado como condição prévia ao direito constitucional.................................... 38
• Estado como forma específica de organização................................................. 39
• Estado como ordenamento jurídico.................................................................. 52
• Estado democrático de direito......................................................................... 212
• Estado e direito constitucional.......................................................................... 37
• Estado e nação cultural no constitucionalismo: a população como elemen-
to estatal............................................................................................................ 44
• Estados Unidos. Modelo norte-americano de controle de
constitucionalidade das leis. O controle difuso ou incidental......................... 262

• Forma de Estado. Direito constitucional e forma de Estado........................... 239

• Garantia fundamental. Defesa dos direitos e garantias fundamentais pelos


cidadãos.......................................................................................................... 173
• Garantia fundamental. Direitos e garantias fundamentais como
manifestação jurídica...................................................................................... 165
• Garantia fundamental. Limites dos direitos e garantias fundamentais........... 177
• Garantia fundamental. Tipificação do conteúdo dos direitos e garantias fun-
damentais........................................................................................................ 156
• Garantia fundamental. Titularidade dos direitos e garantias fundamentais..............
170
• Geração. Direitos de terceira e quarta dimensões........................................... 163
• Governo. Poder Executivo. As funções do governo....................................... 129
Fundamentos do Direito Constitucional 305

• História. Origem histórica do direito constitucional......................................... 25


I

• Independência do Poder Judiciário................................................................. 136


• Intervenção do Estado como teoria................................................................. 218
• Intervenção estatal. Direito de propriedade e a intervenção e regulação
estatal.............................................................................................................. 231
• Intervenção estatal e direito de prestação....................................................... 228

• Juiz. Aplicação do direito pelos juízes............................................................ 139


• Jurisdicional. Poder Judiciário e a função jurisdicional.................................. 135
• Jurisprudência. Lei, jurisprudência e o costume como fontes do direito cons-
titucional........................................................................................................... 87
• Jurisprudência como fonte do direito constitucional........................................ 92

• Legislação como fonte do direito constitucional.............................................. 88


• Lei. Procedimentos de controle da constitucionalidade das leis pelos
tribunais constitucionais................................................................................. 268
• Lei, jurisprudência e o costume como fontes do direito constitucional............ 87
• Liberdade. Direitos e garantias de liberdade................................................... 158
• Liberdade. Direitos e garantias de liberdade e de participação: a primeira
dimensão......................................................................................................... 158
• Limites do Poder Constituinte.......................................................................... 71
• Limites dos direitos e garantias fundamentais................................................ 177

• Manifestação jurídica. Direitos e garantias fundamentais como


manifestação jurídica...................................................................................... 165
• Método. Agentes e métodos de exercício do Poder Constituinte...................... 68
• Modelo norte-americano de controle de constitucionalidade das leis. O con-
trole difuso ou incidental................................................................................ 262
• Modelo confederal.......................................................................................... 254
• Modelo de controle de constitucionalidade por um órgão jurisdicional
306 Paulo Márcio Cruz
especializado. O controle concentrado........................................................... 264
• Modelo federal. Descentralização política...................................................... 249
• Modelo federal. Variações do modelo federal................................................ 252
• Mutação constitucional..................................................................................... 86

• Nação cultural. Estado e nação cultural no constitucionalismo: a população


como elemento estatal....................................................................................... 44
• Norma jurídica. Direito constitucional como conjunto de normas jurídicas.........
32
• Nota introdutória. Segunda edição.................................................................... 13
• Nota introdutória ao Poder Constituinte........................................................... 55

• Ordem internacional. Algumas considerações sobre a Constituição na


ordem internacional........................................................................................ 275
• Ordenamento jurídico. Estado como ordenamento jurídico............................. 52
• Organização. Estado como forma específica de organização........................... 39
• Organização dos poderes.................................................................................. 29
• Organização supranacional. Constituição e as organizações supranacionais...........
284
• Origem histórica do direito constitucional........................................................ 25

• Parlamentarismo. Aplicação do princípio da separação dos poderes. Os sis-


temas presidencialista e parlamentarista......................................................... 143
• Parlamento. Poder Legislativo. O Parlamento................................................ 123
• Participação. Direitos e garantias de liberdade e de participação: a primeira
dimensão......................................................................................................... 158
• Partido político, democracia e Constituição................................................... 206
• Pensamento de Emmanuel Sieyès e a teoria do Poder Constituinte................. 57
• Poder Constituinte............................................................................................. 55
• Poder Constituinte. Agentes e métodos de exercício do Poder Constituinte.........
68
• Poder Constituinte. Conceito............................................................................ 60
• Poder Constituinte. Nota introdutória............................................................... 55
• Poder Constituinte. Titularidade do Poder Constituinte................................... 61
• Poder Constituinte derivado e originário.......................................................... 63
Fundamentos do Direito Constitucional 307
• Poder Constituinte e o pensamento de Emmanuel Sieyès................................ 57
• Poder Constituinte originário e derivado.......................................................... 63
• Poder. Estado. Direito constitucional e os poderes instituídos do Estado.............
119
• Poder Executivo. As funções do governo....................................................... 129
• Poder Judiciário. Controle externo do Poder Judiciário................................. 142
• Poder Judiciário. Independência do Poder Judiciário..................................... 136
• Poder Judiciário e a função jurisdicional........................................................ 135
• Poder Legislativo. O Parlamento.................................................................... 123
• Poder. Separação de poderes como princípio básico da organização
constitucional.................................................................................................. 121
• Poder Constituinte. Limites.............................................................................. 71
• Poder Constituinte derivado. Limites............................................................... 73
• Poder Constituinte originário. Limites.............................................................. 71
• Poder público. Controle de constitucionalidade das atividades dos poderes
públicos........................................................................................................... 258
• Política. Diversas fórmulas de descentralização política................................ 247
• População. Estado e nação cultural no constitucionalismo: a população co-
mo elemento estatal.......................................................................................... 44
• Presidencialismo. Aplicação do princípio da separação dos poderes. Os sis-
temas presidencialista e parlamentarista......................................................... 143
• Pressupostos teóricos do controle da constitucionalidade.............................. 257
• Princípios constitucionais................................................................................. 99
• Princípios constitucionais. Classificação........................................................ 107
• Princípios constitucionais. Conceito e caracterização.................................... 101
• Princípios constitucionais. Síntese classificatória........................................... 112
• Princípios constitucionais no constitucionalismo brasileiro........................... 114
• Procedimentos de controle da constitucionalidade das leis pelos tribunais
constitucionais................................................................................................ 268
• Propriedade. Direito de propriedade e a intervenção e regulação estatal..............
231
• Proteção internacional. Direitos humanos como matéria de proteção
internacional.................................................................................................... 278

• Rápidas considerações sobre o direito internacional humanitário como ins-


trumento de proteção aos direitos humanos.................................................... 282
• Referências bibliográficas............................................................................... 289
• Reforma da Constituição................................................................................... 83
• Regulação estatal. Direito de propriedade e a intervenção e regulação
estatal.............................................................................................................. 231
• Regulação estatal e autonomia contratual....................................................... 225
308 Paulo Márcio Cruz

• Separação de poderes. Aplicação do princípio da separação dos poderes.


Os sistemas presidencialista e parlamentarista............................................... 143
• Separação de poderes como princípio básico da organização
constitucional.................................................................................................. 121
• Sistemas racionalizados.................................................................................. 150
• Soberania. Dimensão externa da soberania...................................................... 51
• Soberania. Dimensão interna da soberania....................................................... 49
• Soberania como Poder do Estado..................................................................... 48
• Soberania estatal e comunidade internacional................................................ 275
• Sumário............................................................................................................. 17
• Supremacia da Constituição.............................................................................. 81

• Territorialidade. Estado como ente territorial................................................... 42


• Tipificação do conteúdo dos direitos e garantias fundamentais...................... 156
• Titularidade do Poder Constituinte................................................................... 61
• Titularidade dos direitos e garantias fundamentais......................................... 170
• Tribunal. Procedimentos de controle da constitucionalidade das leis pelos
tribunais constitucionais................................................................................. 268

• Variação dos âmbitos do direito público e do direito privado........................... 24


• Variações do modelo federal........................................................................... 252
Fundamentos do Direito Constitucional 309

Esta obra foi impressa em oficinas próprias.


Ela é fruto do trabalho gráfico das seguintes pessoas:

Professor revisor: Acabamento:


Adão Lenartovicz Anderson A. Marques
Bibiane Rodrigues
Impressão: Luzia Gomes Pereira
Andrea L. Martins Maria José Rocha
Carlos de Lara Nádia Sabatovski
Doreval Carvalho
Marcelo Schwb

Editoração: Índices:
Eliane Peçanha Emilio Sabatovski
Elisabeth Padilha Iara Fontoura
Tânia Saiki

“O critério é o porteiro da imaginação: a sua função consiste em não


deixar entrar nem sair as idéias suspeitosas.”
Sterne

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