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entrevista

ARNALDO

ANTUNES
Fotos Juan Esteves

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NOVEMBRO • 1997
O poeta e compositor Arnaldo Antunes está
apostando na simultaneidade. Seu novo livro,
2 ou + corpos no mesmo espaço, que acaba
de ser publicado pela coleção Signos, da
Editora Perspectiva, é o resultado estético
dessa pesquisa. Como declara nessa
entrevista para a revista CULT, ele havia
percebido que “mais de um vocábulo podia
ocupar o mesmo espaço sintático”. E tratou
de explorar ao máximo essa idéia, cortando
palavras, encavalando-as no espaço da
página e até mesmo entoando. Aos 37 anos,
ex-integrante da banda de rock Titãs, Antunes
chega ao seu quinto livro com uma poética
bastante pessoal e que trafega por registros
diferentes, abarcando suas experiências com
a canção popular, com a poesia visual e com
procedimentos próximos aos das artes
plásticas. Sua voz grave, coada em café e
cigarro, também é parte integrante do livro.
Encartado, Antunes incluiu um CD no qual
mostra a versão entoada de seus poemas.
Nessa entrevista, feita no estúdio Rosa
Celeste, onde o poeta está se preparando
para começar a gravar um novo disco, ele
também apontou suas preferências literárias,
contou como surgiu a sua paixão pelas artes
gráficas e falou sobre seu processo criativo.

Heitor Ferraz

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CULT Pensando numa das leituras possíveis do título de seu CULT Isso também pode ser notado de alguma forma dentro
novo livro, 2 ou + corpos no mesmo espaço, você acha que sua da sua temática?
poética hoje é marcada pela simultaneidade de sons, imagens, A.A. Eu tenho muito um procedimento que já aponta para
palavras? um duplo, ou seja, falar da coisa, mas da coisa pela sua própria
Arnaldo Antunes O título reflete um pouco isso, apesar ausência. Por exemplo, fazer um poema para a lua nova que
de permitir várias interpretações. Pode parecer uma lei de física, está lá e você não vê. Meus discos também têm um pouco isso.
afirmando uma impossibilidade, e isso é uma coisa que me Em Ninguém, falo da perda da identidade. Já em Silêncio, da
agrada muito, essa potência de no espaço artístico se viabilizar ausência do som. Isso tem um pouco a ver com a coisa taoísta,
uma coisa impossível. Ele também pode ser interpretado como de você chamar a atenção para o vazio e não apenas para a
uma relação amorosa, uma cópula sexual, onde dois corpos se matéria. Se você pensar no ato de andar, é necessário o chão e o
fundem. Mas a origem da expressão “2 ou + corpos no mesmo pé. Mas é claro que é necessário também o espaço entre o chão
espaço” veio de um procedimento formal, que foi se tornando e o pé, senão o andar não acontece. Então, estou sempre
recorrente em minha poesia: o fato de mais de um vocábulo chamando a atenção para esses vazios.
ocupar o mesmo espaço sintático. Por exemplo, o poema “solto” CULT Você se considera um poeta de linhagem concretista?
permite mais de uma leitura, pode-se ler “solto do solo” ou A.A. Hoje em dia, não vejo mais essa coisa de filiação. Vejo
“sol todo solo”; o mesmo acontece em “meu nome”, com “não
projetos individualizados dentro de uma situação muito mais
me coa” e “não me ecoa”. Isso aparece em muitos poemas. No
diversa e múltipla, onde a novidade pode acontecer para muitos
terreno gráfico isso acontece mais explicitamente, como nos
lados. No meu caso, tem uma influência que veio da poesia
poemas “agouro” e “espelho”.
concreta, mas não só. A própria tradição da música popular
CULT Como esse procedimento surgiu dentro do seu
trabalho?
A.A. Apareceu a partir de cortes de palavras. Um corte numa
palavra faz aparecer uma outra parte dela que já é uma outra
palavra, como nos exemplos de que falei. A partir desse
procedimento, veio a idéia do título do livro. Ele contém a
idéia do ideograma, em que as partes formam uma terceira
coisa, só que elas se preservam enquanto informação autônoma.
Os radicais têm a informação deles, mas juntos são a
combinação. Então, você não tem uma soma, como na dialética,
em que você perde as partes para ter uma síntese. No raciocínio
icônico e poético, você tem uma preservação das partes e ao
mesmo tempo a combinação delas. E assim cria-se essa
multiplicidade que se abre para várias interpretações.

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brasileira, além da cultura pop e da tradição do rock’n’roll,
acabam influenciando não só minha produção musical, mas
também a produção poética e de uma maneira intensa. Porém,
é claro que o meu repertório de influências inclui uma
contribuição preciosa de Augusto e Haroldo de Campos e do
Décio Pignatari. Mas há também outros poetas, como João
Cabral de Melo Neto, Oswald de Andrade, Carlos Drummond
de Andrade e Manuel Bandeira. Recebi também influências
da prosa a partir da leitura de Guimarães Rosa, José Agripino
de Paula e do Leminski, de Catatau. Também não nego um
certo repertório que vem das artes plásticas, dos trabalhos do
Tunga, Nuno Ramos, Regina Silveira, Jac Leirner, Waltercio
Caldas, Hélio Oiticica e Lígia Clark. São coisas que acabam
fazendo parte do meu repertório de influências. Gosto de
trabalhar nesse interstício entre as linguagens, da inclusão das
várias manifestações que foram me formando.
CULT Como você vê a produção poética brasileira
contemporânea?
A.A. Como digo em uma canção “somos o que somos,
inclassificáveis”. Assim eu gostaria de ser classificado – como
inclassificável. E é assim que eu vejo a época atual, um estado
de diversidade muito grande. Não vejo a necessidade de um

“solto”, extraído de 2 ou + corpos no mesmo espaço


movimento estético, como foram o Concretismo e a Tropicália.
Não vejo necessidade de se encaminhar a tradição para uma
direção única. É muito mais saudável esse estado de coisas com
o qual a gente convive cotidianamente, um estado pluralista,
diverso, no qual a novidade pode despontar para muitos lados e
acaba-se criando um repertório mais solto. Meu livro, por
exemplo, inclui poemas absolutamente verbais e outros visuais,
outros caligráficos; além do CD, que é a sonorização disso.
CULT Falando sobre seu livro, como você o concebeu?
A.A. Às vezes, eu penso que aquilo parece uma revista.
Sempre gostei muito desse tipo de linguagem. Li as revistas de

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poesia dos anos 70 e 80, como Navilouca, Artéria, Código, Qorpo nesse livro há uns dois anos. Agora, é claro que tem uma série
Estranho, Muda, Zero à Esquerda. Para mim, elas criaram uma de poemas que são anteriores a esses dois anos. Chega uma
certa estética, uma tradição gráfica, de objeto gráfico, que me hora em que você percebe que os poemas que você está fazendo
agrada muito. Quando eu concebo um livro, sou muito constituem um corpo. Daí você passa a trabalhar em função
influenciado por essa linguagem, que foi para mim uma coisa desse corpo e passa a escrever já pensando no livro.
muito forte, muito intensa. Atualmente, sinto uma carência CULT No seu caso, como os poemas surgem?
dessas publicações. Eu mesmo cheguei a editar algumas
revistas, como o Almanak 80, a Kataloki e a Atlas. A.A. Eu nunca penso sobre o assunto antes. Ele sempre vem
com algum jogo formal já determinado. Eu nunca falo “vou
CULT Como foi a experiência de editar essas revistas? fazer um poema sobre esse tema ou preciso escrever um poema
A.A. Sempre gostei muito de gráfica. Quando editei as sobre isso”. Esse exercício voluntário, do assunto vir primeiro,
primeiras revistas, ainda não tinha a produção gráfica no não existe muito. Agora, muito raramente um poema vem
computador. Então, era aquela coisa de ir ao fotolito fazer um instantaneamente. Sempre aquilo é matéria-prima para um
PMT, o paste-up. O meu primeiro livro, Ou E, que teve uma retrabalho de montagem e de eliminação. Acho que eu trabalho
tiragem reduzida de 500 exemplares, era uma edição de autor. mais por subtração do que por adição. Faço e depois elimino
Fiz todo o acabamento manualmente. O livro todo era feito em muito. Normalmente, eu trabalho com muitos rascunhos. Gosto
caligrafia, um pouquinho baseado na idéia da entonação gráfica. de trabalhar no computador e no papel, escrever à mão, corrigir
Assim como a gente tem os recursos da fala, de entoação, eu no computador, imprimir e de novo corrigir à mão. No meu
queria fazer um correspondente daquilo para a escrita manual, caso, tenho uma necessidade de ver materialmente o poema.
a manuscritura. Então, todos os poemas eram caligrafados e eu Não fico trabalhando mentalmente e depois a coisa vem pronta.
usava muitas dobras, muitos tipos de papéis, muitas cores, Eu preciso de todas as alternativas, de todas as rimas que me
formatos e tal. Ele foi o resultado dessa paixão pela coisa gráfica. vêm à cabeça sobre aquele assunto para ir escolhendo. É um
CULT Essa curtição pelo lado gráfico é patente ainda hoje, trabalho material mesmo.
já que normalmente nos seus livros você bola tanto a capa quanto CULT O processo é diferente no caso de escrever uma letra
o projeto gráfico. Como se dá esse trabalho? de música?
A.A. Na verdade, é um trabalho demorado e solitário, porque A.A. Muitas vezes quando é para ser cantado, sei que é para
eu fico muito indeciso em relação à arte-finalização. Alguns ser cantado logo ao fazê-lo. Quando é para ter algum recurso
poemas já vêm em função até de um recurso gráfico, como visual, aquilo já vem um pouco impregnado de um pensamento
“espelho”. Ele surgiu com uma idéia de sobreposição das gráfico. Porém, tem coisas que eu fiz só para serem lidas, mas
palavras “escrevo” e “esqueço”. Agora, tem poemas nos quais a que acabei musicando meses depois. Como também tem letras
idéia gráfica vem depois. Eu preciso experimentar todas as de canções que viraram poemas autônomos, como fiz nesse
soluções para escolher uma. Às vezes, chego a fazer 20, 30 artes- livro. Retirei um fragmento de uma letra de música e deu o
finais diferentes para um poema. Venho trabalhando e pensando poema “o seu olhar”. Essas coisas acontecem pois também aí

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há essa intersecção entre terrenos que pertencem ao trabalho
com a palavra em si. Existe um diálogo entre as atividades.
Mas, em geral, o destino da coisa já vem impregnado na origem
dela, seja letra de música ou poema. Às vezes, eu já faço letra e
música juntas.
CULT Para você, existe distinção entre o poema e a letra de
música?
A.A. Para mim, a letra de música é indissociável da melodia.
Canção é canção. Agora, há um preconceito e uma questão de
valor poético, muito comum, de desvalorização da letra da
canção. Muitas vezes, uma letra de música pode ter uma
sofisticação construtiva mais intensa do que um poema escrito.
Não é o registro que vai dar essa qualificação de valor. Isso é
preconceituoso, é burro. Muitas vezes uma letra de música
pode se sustentar como um poema escrito. E um poema
maravilhoso musicado inadequadamente vai ser uma canção
medíocre. Para mim, é claro que se trata de códigos diferentes,
apesar de a música popular brasileira, em geral, ter uma
sofisticação textual. Qualquer pensamento sobre o corpo
poético brasileiro tem que incluir a tradição da canção popular.
Isso para mim é inegável. Mas é um registro específico e não
“ávida”, extraído de 2 ou + corpos no mesmo espaço

dá para dizer que é a mesma coisa que o poema.


CULT Alguns de seus trabalhos me remetem aos poemas de
Edgard Braga. Você o conheceu? Como foi esse contato?
A.A. Eu o conheci pessoalmente já no final da vida. Ele chegou
a fazer uma apresentação para uma exposição de caligrafias. A
gente pediu para ele escrever um texto para o convite e ele
acabou fazendo um trabalho caligráfico, uma apresentação em
manuscritura. Ele tinha um trabalho maravilhoso, além de ser
um cara muito importante por ter sido um precursor, aqui no
Brasil, do uso da manuscritura. Tivemos dadaístas, futuristas,
vários exemplos disso. Mas no Brasil isso foi radicalmente

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assumido pela figura do Braga. Eu fui muito influenciado por
ele, assim como o Walter Silveira. Ele foi um precursor numa
época em que as pessoas trabalhavam mais com tipos, como no
contexto da poesia concreta. Ele tinha essa coisa da
manuscritura. E além disso era uma figura maravilhosa, muito
doce, lúcida, contava histórias do convívio dele com o Oswald
de Andrade, já que ele era médico e fez o parto dos filhos do
Oswald com a Pagú.
CULT Como foi a concepção da leitura do CD que está
incluído no seu livro? Você criou uma espécie de partitura de
leitura para cada um dos poemas?
A.A. Na verdade, foi uma construção muito prática. Eu ia
fazendo e ia editando no computador. Gravava e experimentava
várias soluções. Mais ou menos como faço minhas artes-finais.
Eu gravei várias alternativas, montei e editei. Teve várias coisas
que fiz e o resultado não me agradou e acabei não incluindo.
CULT É um trabalho de laboratório?
A.A. É bem assim. Eu queria desde o começo que fossem
“esquecimento”, extraído de 2 ou + corpos no mesmo espaço

peças que tivessem apenas a voz como matéria-prima.


CULT Você nota alguma diferença desse livro em relação
aos anteriores?
A.A. Algumas diferenças. É claro que tem alguma
continuidade que eu sempre prezei dentro do que eu faço, como
a busca da precisão, da síntese e de trabalhar com a materialidade
gráfica. Mas acho que ele leva ao extremo aquele procedimento
que falei antes, de usar mais de um vocábulo no mesmo espaço
sintático, realçando isso com as quebras de versos, com os cortes
no meio de uma palavra indicando que aquela parte da palavra
é também uma outra, autônoma. Esse é um procedimento que
eu já havia usado antes, mas que agora se tornou mais constante.
Fora isso, tem alguns novos procedimentos gráficos como, por

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exemplo, os murais de cartazes colados e rasgados que fiz. Esse
trabalho eu fiz inicialmente para a exposição Arte Cidade (em
Livros de Arnaldo Antunes
1994). Esse procedimento pintou nesse momento e me agradou.
Depois, fui imprimindo cartazes com outros poemas. Nele, a Ou E, álbum de poemas visuais, edição do autor, 1983
ordem do poema fica toda fragmentada, você pode ler aquelas Psia, Expressão, 1986; 2a edição, Iluminuras, 1991
palavras de várias maneiras. Além disso, enquanto estou fazendo Tudos, Iluminuras, 1990
esses murais, eu me sinto como se estivesse fazendo uma pintura. As Coisas, Iluminuras, 1992
Eu que tenho de colar e rasgar, um trabalho que acaba tendo
um sentido visual e manual muito intenso. Esse procedimento Lançamento:
não existia nos outros livros. Já a seqüência final do livro, com
os poemas “volve” e “agouro” também é nova, apesar de lem- 2 ou + corpos no mesmo espaço
brar um pouco algumas coisas que eu fiz no CD Nome, ou seja, Editora Perspectiva, coleção Signos
fazer um poema que, olhando seqüencialmente, é quase 136 págs. – R$ 25,00
cinematográfico.
CULT Alguns temas são freqüentes em seus livros, como o
silêncio e o vazio. Por quê?
A.A. John Cage dizia que todo silêncio é grávido de som.
Claro que quem trabalha com música ou quem fala qualquer
discurso não está trabalhando só com as palavras em si ou com
os sons, mas está trabalhando com elas e com o silêncio que as
reveste. Você tem gradações de sons e silêncios; nos intervalos
entre as palavras, surge o silêncio. É uma idéia muito presente
no que faço, por ser quase que matéria-prima para mim. O
vazio é a matéria-prima, assim como o espaço vazio é a matéria-
prima para você poder movimentar uma roda ou poder andar.
O espaço vazio é muito interessante quando se pensa na visão,
porque se você tiver uma coisa encostada no olho, você não vê
nada. Você só vê alguma coisa porque existe um espaço vazio.
Todo movimento se faz no vazio e toda fala se faz no silêncio. A
gente vive muito a materialidade das coisas, então tenho muito
esse desejo de chamar a atenção para a ausência. c
Heitor Ferraz
jornalista e poeta, autor de Resumo do dia (Ateliê Editorial)

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