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Sempre
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J. M. DARHOWER
A redenção
Sempre
Sempre
Série Forever, volume 2
Copyright © 2013 by Jessica Mae
Darhower
All rights reserved, including the right to
reproduce this book or portions thereof in
any form whatsoever. For information
address Gallery Books Subsidiary Rights
Department, 1230 Avenue of the
Americas, New York, NY 10020.
D232s
Darhower, J. M.
Sempre : a redenção / J. M.
Darhower; tradução de Sally
Tilelli. – São Paulo: Universo
dos Livros, 2016.
512 p. (Forever, v. 2)
ISBN: 978-85-7930-988-5
Título original: Sempre
Redemption
1. Literatura norte-americana 2.
Romance 3. Tráfico humano –
Ficção 4. Máfia - Ficção I.
Título II. Tilelli, Sally
16-0071 CDD 813.6
Capítulo 1
NOITE DE 12 DE OUTUBRO, ÀS 23H56,
CORRADO ALPHONSE MORETTI PARA DE
RESPIRAR.
Os ferimentos à bala provocaram um
grande sangramento em seu peito. Ele
sentiu uma forte contração no estômago e
uma tontura repentina. Como uma onda, a
dor se espalhou pelo corpo todo e, em
seguida, ele foi tomado por uma
dormência generalizada. Tudo ficou
embaçado; visões e sons se distorciam à
medida que a realidade se alterava e o
mundo ao seu redor esvanecia.
E então veio o nada. Não havia
nenhuma luz brilhante, nenhuma voz
confortante, nenhuma presença angelical.
Apenas a escuridão. Ele já não escutava,
não via e não sentia.
Depois de tudo o que Corrado fizera na
vida, esperava se deparar com o fogo do
inferno e o cheiro de enxofre, por isso
ficou no mínimo um pouco frustrado ao
não ver nada daquilo.
Poucos minutos depois, no momento
em que o relógio marcou meia-noite,
Corrado foi violentamente trazido de
volta à vida por meio de um
desfibrilador. Seu coração bateu outra
vez e seu corpo ficou saturado de
oxigênio. Entretanto, essa nova sensação
de paz logo se desfez: no instante em que
foi trazido de volta a esse mundo e
retirado da escuridão pós-morte, ele se
viu transportado para um momento do
qual quisera ter se esquecido para
sempre. Em sua cabeça, ele revivia o que
acontecera há uma década, não muito
longe daquele mesmo hospital encardido
no qual se encontrava. Ele estava tomado
por uma sensação de sangue, suor e
lágrimas. O quarto do passado estava
repleto com os mesmos sentimentos: dor
e sofrimento. Mas havia ainda no ar o
cheiro fétido da morte iminente.
Na ocasião, um dia quente de outubro,
Corrado estava de pé à porta do quarto
estéril, com os olhos fixos no menino.
Carmine DeMarco sempre fora um pouco
pequeno para sua idade, e parecia ainda
menor naquela enorme cama de hospital.
Tubos e fios ligavam seu corpo frágil a
várias máquinas espalhadas ao seu redor.
Mas nem mesmo os ruídos e bipes
emitidos pelos equipamentos eram
capazes de abafar a voz embargada que
soava ao lado do garoto.
Vincent DeMarco estava sentado
próximo ao filho, balançando o corpo de
um lado para o outro e murmurando
palavras para si mesmo. Corrado jamais
o vira tão fora de controle, tão agitado e
desequilibrado em toda a sua vida. Ele
mais parecia um animal feroz. A sanidade
parecia desaparecer com os cabelos
desgrenhados e a camisa encharcada de
sangue. Mas aquele não era o sangue de
Carmine, e sim de sua esposa, Maura, que
também fora derramado menos de 24
horas antes.
Aquela imagem deixou Corrado
nauseado. Fora a primeira vez que vira o
sangue de Maura, e certamente seria a
última. Ela estava morta e jamais
voltaria. Vincent, entretanto, ainda lutava
para aceitar esse fato.
– Ela não pode estar morta – ele dizia,
lutando para soltar as palavras presas à
garganta. – É tudo culpa minha.
Corrado queria dizer a ele que parasse
de repetir aquele absurdo, mas seria
perda de tempo. Seria impossível
confortá-lo. Nenhuma palavra seria capaz
de aliviar a dor. E, para ser honesto, ele
sequer conseguia imaginar a angústia
sentida pelo cunhado. Corrado não temia
a morte, não temia ir para a cadeia e
sequer tinha medo da danação eterna.
Mas havia uma coisa que jamais
suportaria: perder Celia. Ele havia jurado
amá-la, honrá-la, respeitá-la e… protegê-
la.
Não o surpreendia, portanto, o fato de
Vincent ter assumido tão prontamente a
responsabilidade e a culpa pela morte da
esposa. Ele falhara em sua promessa pois
não conseguira proteger Maura.
– É minha culpa – Vincent repetia. –
Ela se foi e a culpa é toda minha.
Soltando um suspiro profundo,
Corrado olhou para o sobrinho. Carmine
fora encontrado quase sem vida atrás da
Pizzaria Tarullo. Ninguém sabia até então
o que acontecera, mas uma coisa estava
clara: quem quer que os tivesse
emboscado, desejava que o garoto
também tivesse morrido.
Aquilo fazia com que Corrado se
sentisse ainda pior. Ele nunca gostara
muito de crianças, de todas as
necessidades que elas tinham e de suas
pequenas mãos grudentas por todos os
lados, mas havia uma coisa que ele
valorizava nelas: a inocência. Ele
invejava aquilo. Ao longo da vida,
Corrado já havia assassinado muitos
homens em nome da Cosa Nostra, mas
sempre se orgulhara de jamais ter matado
alguém que não merecesse realmente sua
ira.
Olhando para o sobrinho, tão indefeso
e vulnerável, Corrado não conseguia
imaginar o que teria levado uma criatura
a machucar um garotinho de 8 anos.
Aquilo era impensável. Algumas coisas
não eram toleradas nem mesmo pelos
homens mais ímpios e cruéis, e matar uma
criança era uma delas.
Mas agora as coisas eram diferentes.
Por mais que aquilo o enfurecesse, os
tempos estavam mudando e ele imaginava
o que aquilo tudo significaria para
Carmine. Com apenas 8 anos, ele fora
atirado de cabeça naquele estilo de vida.
Quando acordasse, se é que iria
despertar, seu mundo já não seria o
mesmo. Quisesse ou não, ele jamais
poderia escapar de seu destino. Não
depois do ocorrido. Agora ele fazia parte
daquilo e Corrado sabia que o menino
passaria o resto de sua vida tentando
compreender o caos em que se envolvera
por acaso.
O ódio exalava das entranhas do tio.
Era como se um rio de lava corresse em
suas veias. E quanto mais ele ficava de
pé naquele lugar, ouvindo as lamentações
de um homem devastado, mais furioso ele
se tornava. Tudo em que conseguia pensar
era se vingar dos dois homens que
haviam cometido aquele crime hediondo.
E não se tratava apenas de cumprir o
juramento que fizera perante a
organização: “olho por olho, dente por
dente”. Aquele era um desejo de seu
próprio coração despedaçado.
Uma década mais tarde,
milagrosamente o coração de Corrado
ainda batia nos monitores do quarto, e se
fortalecia a cada dia. Ele sobrevivera ao
tiroteio ocorrido naquele galpão
abandonado em Chicago. O assassino à
prova de balas viveria para ver outro dia.
No dia 1º de dezembro, depois de ficar
em coma por seis semanas, Corrado
Alphonse Moretti abriu os olhos.
Capítulo 2
O Mazda RX-8 preto acelerava pela
estrada de cascalho desgastado, vagando
e se embrenhando cada vez mais na
encosta de Blue Ridge Mountains. Haven
apertava o banco do passageiro à medida
que o carro casualmente tecia o caminho
da densa floresta.
– Por acaso estamos perdidos? – ela
perguntou hesitante, enquanto encarava o
namorado. Carmine estava relaxado no
banco do motorista e mexia no rádio. Os
óculos escuros escondiam o olhar dele,
portanto, ela não podia saber se ele
estava prestando atenção na estrada.
– Não.
Haven olhou pelo para-brisa, piscando
por causa da luminosidade da manhã.
Tudo parecia igual em todas as direções.
Não havia nada além das infindáveis
árvores que os rodeavam. Como ele
poderia saber?
– Você tem certeza?
– Positivo.
Ela balançou a cabeça. Teimoso.
– Aonde estamos indo?
– Você vai ver.
Ela ficou assustada quando ele girou o
volante para a esquerda, quase
derrapando para fora da estrada estreita.
O cinto de segurança a protegeu,
mantendo-a em seu lugar enquanto ela
respirava fundo. Antes mesmo que
pudesse soltar o grito preso na garganta,
Carmine estacionou ao lado de uma cerca
na lateral da estrada, desligou o carro e
se virou para ela com um sorriso de
satisfação.
– Viu? Não estamos perdidos.
Haven acenou com a cabeça e
observou a área. A princípio parecia não
haver nada de especial no lugar, apenas
uma pequena clareira entre as árvores
com uma cabana de madeira a alguns
metros de distância. Então, avistou a
placa branca desbotada: FAZENDA LANDELL
DE ÁRVORES DE NATAL, em letras verdes
pintadas a mão. O entusiasmo se agitou
dentro dela, mas a sensação desapareceu
quando leu: ABERTA DE 22 DE NOVEMBRO
ATÉ 22 DE DEZEMBRO.
Embora parecesse que o tempo havia
parado para os dois, o calendário contava
uma história diferente. Já era 23 de
dezembro e fazia um mês desde que
haviam retornado à pequena cidade de
Durante, na Carolina do Norte, numa
tentativa de retomar suas vidas… De
garantir um pouco de normalidade e
juntar as peças de seu relacionamento.
Lidar com as consequências do sequestro
era uma luta, mas eles enfrentavam isso
dia após dia… minuto a minuto…
segundo por segundo.
– Estão fechados, Carmine – ela disse,
franzindo o cenho enquanto saíam do
carro. Ela tremeu e fechou mais o casaco
para se proteger do frio. – Ontem foi o
último dia.
Carmine abriu o porta-malas e retirou
de lá um machado, colocando-o sob o
ombro.
– Eu sei.
Ela o observava boquiaberta enquanto
ele subia pela cerca de madeira que
cercava a propriedade e pulava para o
outro lado.
– Isso não é… invasão de
propriedade?
Ele estendeu a mão que estava livre
para ajudá-la.
– É mais como uma entrada não
autorizada.
– E qual seria a diferença?
– Um é contravenção – ele respondeu.
– O outro é delito.
Haven suspirou e quis responder, mas
o olhar do jovem implorava a ela que não
discutisse. Hesitante, ela concedeu e
pegou na mãe dele. Carmine a ajudou a
passar pela cerca, enlaçando os dedos
dela e apertando-os gentilmente.
– Tem certeza disso? – ela perguntou.
– Sim, tenho. É Natal, e o Natal é
sobre isso.
– Invadir propriedades?
– Não, escolher uma árvore bem bonita
e decorá-la com bolinhas coloridas e
outras coisas como festões. É sobre
visgos e presentes e piscas-piscas e
estrelas e família e gemada. Gemada pra
cacete, mas sem o ovo e a gema e aquelas
merdas que eles colocam no rum. É
nojento.
– Então o significado de Natal é…
rum?
Ele riu.
– Claro!
– E eu aqui imaginando algo a ver com
religião.
Carmine desviou os olhos para ela.
– Detalhes técnicos, tesoro. Apenas
detalhes técnicos.
Juntos, caminharam pela fazenda.
Haven de vez em quando parava e
apontava uma árvore, mas em todas as
vezes Carmine encontrava um defeito.
Muito pequena ou muito grande; muito
grossa ou muito fina; muitos galhos ou
poucos ramos. Ele as deixava de lado por
causa da cor, do formato e simplesmente
zombou quando ela sugeriu que olhassem
a pilha de sobras das árvores já cortadas.
– E que tal essa aqui? – ela perguntou
depois de algum tempo, parando em
frente a uma árvore um pouco mais alta
que ela. – Você gosta?
Carmine praticamente nem olhou:
– É muito pelada.
Haven franziu o cenho, sem ter certeza
do que ele queria dizer com a palavra
pelada. Os galhos pareciam bem cheios
para ela.
– Você é tão enjoado.
– Que seja – ele resmungou. – Vê
alguma outra?
– Ah… – ela olhou ao seu redor,
movendo-se aleatoriamente, e apontou
para outra árvore que estava a alguns
metros de distância. – O que acha
daquela?
Carmine a examinou. Ela esperou pela
reclamação, certa de que ele encontraria
um defeito, mas ele sorriu.
– Perfeita!
Ela ficou surpresa.
– Tem certeza?
– Sim, por quê? Não gosta dela?
Haven ergueu os ombros. Todas
pareciam iguais para ela, assim como
todas pelas quais haviam passado ainda
na estrada.
– Para mim está ótima.
Soltando a mão dela, Carmine estudou
a árvore, decidindo como levá-la. Haven
o observou por um momento,
considerando a cena surreal, e explodiu
em risos quando ele deu o primeiro
golpe, que sequer arranhou o tronco.
Carmine resmungou:
– O que é tão engraçado?
– Isso vai levar o dia todo – ela disse.
– Deveríamos ter apanhado uma das que
já estão cortadas.
– Isso é trapaça – ele retrucou. – Só
porque é mais fácil não significa que seja
o melhor a fazer. Às vezes é preciso se
empenhar.
Haven achava que invadir uma fazenda
de árvores de Natal já era uma trapaça,
considerando que eles poderiam ter
pegado um pinheiro pequeno no quintal
de casa, mas ela reconsiderou falar isso.
A frustração dele crescia a cada golpe do
machado e ela não queria piorar as
coisas.
Ele golpeou o tronco repetidas vezes,
até que a madeira enfim cedeu. Apesar do
frio, quando o pinheiro finalmente se
inclinou para um lado, ele já estava
ofegante e ensopado de suor. Sua testa
estava molhada e as gotas escorriam pelo
seu rosto e caíam pelo maxilar. Haven
observou a luta dele em silêncio,
enquanto um familiar sentimento de culpa
voltava a invadir suas entranhas. A culpa
estava sempre ali, à espreita, prestes a
atingi-la de modo violento quando ela
menos esperava, como uma víbora
assustada lutando por sua vida. Aquilo a
roía, envenenando-a e evocando o
sentimento de vergonha quando ela se
lembrava do que havia feito.
Este garoto – teimoso, altruísta e
estúpido – entregara a própria vida à
Máfia. Em troca da vida dela, ele cedera
o controle de seu futuro aos homens que
ele mais odiava. Pela segurança dela. E
foi tão fácil para ele, tão rápido, como se
nem tivesse de pensar muito a respeito de
tudo aquilo… Como se sacrificar-se por
ela fosse tão natural quanto respirar.
O fato o havia despedaçado e Haven
ainda tentava aceitar a ideia de que
poderia demorar até que se reconstruísse
e se sentisse completo outra vez. E, por
mais que ela estivesse grata por estar
viva, por mais abençoada que se sentisse
por estar ali, escolhendo uma árvore de
Natal com o garoto que tanto amava, ela
também estava furiosa. Não com ele…
não mais. Aquela raiva se mostrara
infundada. Ela estava brava consigo
mesma… com o universo, porque não
importava o que fizesse, ela não poderia
ajudar Carmine. Ela era impotente diante
do flagelo dele. Ela não teria como
colocar um fim àquele tormento. Não
havia jeito de salvá-lo.
Mais uma vez em sua vida, Haven se
sentia impotente.
Então ela ficou ali de pé em silêncio,
observando, com medo de olhar nos
olhos dele um dia e ver arrependimento.
Apavorada com a ideia de que, um dia,
pudesse ver seu maior temor no
semblante dele: ela não valia a pena.
Por fim, a árvore cedeu e caiu na
direção de Haven. Ela deu um pulo para
o lado, quase sendo atingida.
– Desculpe, tesoro – disse Carmine,
soltando o machado e puxando a camisa
preta de mangas longas, expondo o
abdômen definido enquanto enxugava o
suor da testa. – Isso foi bem mais difícil
do que eu pensei.
Ele sorria orgulhoso enquanto
arrastava a árvore para o carro. Haven
pegou o machado, surpresa pelo quanto
aquilo pesava, e o seguiu. Ele jogou a
árvore pela cerca como se não fosse nem
um pouco difícil e a ajudou a pular.
– O que vamos fazer com isso? – ela
perguntou.
– Amarrar em cima do carro e levar
para casa – ele respondeu, pegando o
machado dela. Então, colocou-o no porta-
malas e pegou uma corda, erguendo-a
para mostrar a ela.
– Tem certeza? – Haven perguntou
enquanto Carmine agarrava a árvore e a
posicionava sobre o teto do carro. Ela
não conseguia imaginar que chegariam em
casa sem causar algum dano.
Ele suspirou exasperado.
– É claro que tenho certeza, Haven. O
que deu em você hoje para repetir a
mesma pergunta tantas vezes? Não confia
mais em mim?
Ela ficou surpresa com a indagação,
não percebera que estava se repetindo.
– É claro que confio em você! Eu só
estava… querendo me certificar.
– Bem, acho que me questionar é
sempre melhor que dizer tudo bem – ele
respondeu, posicionando a árvore e a
amarrando. Galhos ficaram pendurados
por todos os lados do pequeno
automóvel, bloqueando metade do vidro
dianteiro e a maior parte do traseiro. – Se
quer saber, ainda acredito em tudo o que
digo.
– Eu sei – ela respondeu. – Eu também
acredito em você.
Carmine balançou a árvore para ter
certeza de que estava bem presa.
Satisfeito com o trabalho que fizera,
sinalizou para que Haven entrasse no
carro, contudo, ela não se moveu.
– Então, o furto é o quê? – ela
perguntou. – Seria uma contravenção ou
um delito?
Carmine a encarou por um momento
antes que a ficha caísse. Em vez de
responder, pegou a carteira, retirou um
pouco de dinheiro, pulou novamente a
cerca e correu até a porta da fazenda,
enfiando as notas por baixo da porta.
– Furto? – ele perguntou ao retornar
com um sorriso travesso. – E o que a fez
pensar que nós furtaríamos alguma coisa
hoje?
Haven,
Franklin Delano Roosevelt disse certa
vez que a liberdade não podia ser
concedida, ela teria de ser alcançada.
Acho que eu estava na quinta série
quando ouvi sobre ele, e lembro de ter
ficado irritado porque, no final, não
entendi porra nenhuma do que ele
queria dizer. Na época eu era um
merdinha ignorante, mas acho que essa
é justamente a questão aqui. Nunca me
preocupei muito com a vida e sempre
deixei de valorizar as pequenas coisas.
Na verdade, apenas depois de conhecê-
la foi que entendi isso. Você é uma
pessoa especial, e gostaria que mais
pessoas pudessem descobrir isso. Mais
pessoas precisam conhecer você. Então,
talvez o mundo se torne um lugar menos
fodido.
Eu deveria saber que apenas te dizer
que você é uma mulher livre não
adiantaria. A liberdade tem que ser
alcançada, e isso é exatamente o que
você tem que fazer, tesoro. Você tem que
ir lá e conseguir essa merda sozinha.
Você tem o mundo na ponta dos dedos,
uma vida esperando por você, cheia de
oportunidades que você não poderá ter
se ficar comigo. E sei que você sempre
teve sonhos; sonhos que você não pode e
não deve sacrificar por mim. Você já
sacrificou o suficiente de sua vida por
causa de alguns filhos da puta egoístas.
Eu não sou esse egoísta… não mais.
Pode ter certeza disso.
No momento em que você estiver
lendo isso eu já terei ido embora. Não
posso ficar aqui. Não é justo pra você, e
eu nunca me perdoaria por negar-lhe
uma vida real. Uma vida longe de toda
essa merda, onde você possa ser apenas
você mesma, a Haven. Vá e seja você
mesma, e não o que aquelas pessoas
tentaram fazer de você. Você tem que
mostrar a esses filhos da puta o que eles
estão perdendo por não conhecê-la.
Mostre pra eles que ninguém pode
manter o meu beija-flor preso numa
gaiola.
E não tenha medo. Você está pronta
para o mundo, Haven. Aliás, faz dezoito
anos que ele está esperando por você.
Não o faça esperar mais.
Carmine
Senhorita Antonelli,
CORRADO MORETTI
SYCAMORE CIRCLE
As sobrancelhas de Carmine se
enrugaram no momento em que Corrado
passou a rua que daria acesso à casa
dele. O jovem pigarreou.
– Ah, acho que você passou direto pela
rua.
Os olhos de Corrado se mantiveram no
caminho e ele não se deu ao trabalho de
responder, apenas ligou o rádio,
pressionando o botão para aumentar o
volume. A voz de Frank Sinatra vibrava
nos alto-falantes; a música deixava a pele
de Carmine arrepiada. Seu coração batia
forte dentro do peito e ecoava em seus
ouvidos.
Frank Sinatra costumava desencadear
certa reação em Carmine.
Entrando em pânico, a paranoia do
jovem chegou ao limite no momento em
que Corrado seguiu na direção de
algumas estradas vazias, entrando numa
região da cidade à qual Carmine não
retornava havia mais de uma década. Ele
sabia que havia feito merda e que haveria
consequências, mas nunca imaginara que
seria daquele modo. Ele jamais
considerara a possibilidade de que seu
tio realmente se enchesse dele. Nunca
pensara que Corrado pudesse de fato
colocar um ponto final em sua vida.
Até aquele instante, Carmine sempre
acreditara que fosse invencível.
Depois de dirigir por mais alguns
minutos, Corrado diminuiu a velocidade e
estacionou. Em seguida ele se esticou e
abriu a porta do lado do passageiro.
– Saia.
Os olhos de Carmine buscaram algum
sinal de vida no local. Corrado não o
mataria se houvesse testemunhas.
– O quê?
– Eu mandei sair!
Carmine obedeceu ao ouvir o tom do
tio. Ele saiu do carro e bateu a porta. Sua
mente não parava de pensar no que fazer.
O jovem considerou a possibilidade de
correr, imaginando se conseguiria fugir e
se esconder nas vielas no meio da noite,
mas ele não teve de fazer nada. Corrado
saiu cantando os pneus e deixando para
trás apenas uma nuvem de fumaça
enquanto acelerava e desaparecia,
deixando o sobrinho sozinho no meio do
nada.
Carmine observou as luzes traseiras
sumirem no meio da noite. De certo modo
ele se sentia mais aliviado, mas, ao
mesmo tempo, atônito.
– Mas que porra é essa?
Virando-se de costas, Carmine buscou
instintivamente por sua arma no cinto,
porém, sem se surpreender, não a
encontrou. Na verdade, ele não trazia
nada consigo, nem documento, nem
carteira, nem um centavo no bolso.
Ficou petrificado ao perceber a
situação. No entanto, seu pânico começou
a se dissipar ao perceber alguém com
uma batina a alguns passos de distância.
A primeira coisa que ele notou foi o
colarinho de padre, depois, as mangas de
tecido branco que brilhavam na
escuridão.
Confuso, Carmine olhou para trás do
homem e viu a grande construção
marrom, absorvendo a porta da frente
ornamentada e a escadaria que levava até
ela. Corrado o havia deixado na frente de
uma velha igreja.
– Desculpe, senhor – ele sussurrou. –
Quero dizer… Sua Santidade?
O padre sorriu.
– Pode me chamar de padre Alberto. O
que o está consumindo esta noite, meu
rapaz?
– Nada. Digo, não há nenhum
problema. Eu só… – Carmine não fazia
ideia do que dizer. Só, tipo, meio que
fodi com a minha vida e pensei que meu
tio fosse acabar com a minha vida pelas
merdas que eu fiz…? – Eu só preciso de
um telefone. Saberia me dizer onde eu
poderia encontrar um? Quero dizer, sei
que o senhor não teria, mas talvez saiba
de alguém que pudesse me emprestar.
Padre Alberto ergueu as sobrancelhas.
– E por que eu não teria um telefone?
– Não sei. Talvez pelo fato de o senhor
ser um padre mais velho, digo, da velha
escola.
O padre começou a rir.
– Sou católico, filho, não Amish. Não
tenho nenhuma aversão à tecnologia.
Venha comigo. Poderá usar meu telefone.
Fazendo um movimento para que ele o
seguisse, padre Alberto seguiu para
dentro. Carmine hesitou um pouco antes
de entrar na igreja e olhou para todos os
lados com cautela. O lugar estava escuro
e tinha um brilho dourado que, de um
jeito estranho, parecia convidativo e
caloroso. Carmine se sentiu mais leve e
tranquilo. Pelo menos, ele pensou, seu tio
não o mataria numa igreja.
Seguiu o padre até um pequeno
escritório nos fundos. Lá havia uma mesa
que ocupava a maior parte do espaço. Um
velho telefone branco estava no canto,
com o fio enrolado. Pegando o fone,
Carmine ligou para o número de Celia
enquanto o padre se sentou atrás de sua
mesa. O jovem se encostou no móvel,
esperando enquanto o telefone tocava.
A secretária eletrônica atendeu depois
do quinto toque e o celular foi direto para
a caixa postal. Ele tentou ambos os
números duas vezes antes de desistir.
– Não atendem? – perguntou o padre.
– Não.
– Então sente-se – disse o padre
Alberto, apontando para a cadeira à
frente da mesa. – Podemos conversar um
pouco enquanto você espera e tenta
novamente mais tarde.
O jovem ficou em dúvida por um
instante e então se sentou. Não que ele
tivesse outra opção além daquela. Sem
dinheiro nem amigos, ou ele esperava ali
ou começava a andar, e ele estava exausto
demais para a segunda alternativa.
– Obrigado – disse Carmine. – Pelo
telefone e pela cadeira.
– Não tem de quê. É o que nós, padres
da velha escola, costumamos fazer, afinal.
Sua voz era gentil e alegre, e Carmine
deu risada.
– Desculpe o que eu disse. Eu não
sabia. Nunca fui muito ligado às coisas
de igreja.
– E por que não?
Carmine deu de ombros.
– Sei lá, acho que não faz meu gênero.
Padre Alberto o encarou de um jeito
peculiar.
– Acredita em Deus?
Carmine temia aquela pergunta e por
um momento pensou em mentir para
agradar o padre, mas achou melhor ser
honesto, uma vez que estava numa igreja.
Ele escapara da morte duas vezes naquela
semana. Algo lhe dizia que não teria a
mesma sorte da terceira vez.
– Honestamente, não tenho certeza.
Talvez? Mas eu tenho visto muita mer…
digo, muitas coisas ruins na minha vida, e
isso me faz duvidar de que alguma porra
lá em cima dê a mínima, digo, se importe,
com quem está aqui embaixo. – Os olhos
do garoto se arregalaram ao perceber
que, mesmo se esforçando, não evitara
uma linguagem vulgar. – Merda. Ah, me
desculpe, padre. Está sendo uma noite
muito ruim.
Carmine esperava ser chutado para
fora dali, mas padre Alberto apenas
sorriu.
– Você não é o primeiro a dizer tais
palavras entre essas paredes e certamente
não será o último. Preocupo-me mais com
sua negatividade do que com as palavras
profanas.
– Bem, acho que é mais fácil o senhor
conseguir me fazer parar de xingar do que
mudar o meu modo de enxergar as coisas.
É difícil acreditar que exista alguém lá
em cima olhando por nós quando tanta
gente se fode todos os dias.
– Ah, esse é um argumento que ouço
com frequência – disse padre Alberto. –
Como pode existir um Deus quando tantos
parecem ter sido abandonados? Mas o
que você não percebe, filho, é que sem as
coisas ruins não podemos
verdadeiramente apreciar o que há de
bom. O sofrimento ensina a nos tornarmos
pessoas melhores. O que fazemos nos
tempos ruins nos permite avaliar quão
bons como pessoas nós somos.
Carmine deixou escapar um riso
amargo, recostando-se na cadeira
enquanto pensava em como havia se
adaptado àquela vida.
– Então acho que não devo ser um cara
muito legal.
– Ah… Eu não acredito nisso.
– Isso é porque o senhor não me
conhece. Não sabe as coisas que já fiz.
– Então me diga – desafiou o padre. –
Mude sua mente.
Carmine respondeu, em tom de
zombaria:
– Não posso.
– E por que não? – o padre perguntou –
Sente vergonha?
– Não – Carmine hesitou. – Bem, na
verdade sim, mas não é este o ponto.
– Sim, este é justamente o ponto –
retrucou o padre. – Este é um lugar
seguro. O que quer que diga entre essas
quatro paredes permanecerá aqui.
Portanto, a única coisa que o impede de
confessar seus pecados é sua relutância
em admiti-los.
– Porque eu tô ferrado. Quem iria
querer admitir isso?
– Alguém sem ética – respondeu o
padre –, o que nos leva de volta ao fato
de eu considerá-lo um bom homem.
Pessoas más não têm consciência, filho.
Carmine pensou sobre aquelas
palavras. O velho padre havia de algum
modo invertido as coisas.
– Se não quiser discutir seu passado,
por que não falamos sobre o seu futuro? –
sugeriu o padre. – Talvez possamos
compreender por que Deus o trouxe até
aqui esta noite.
– Deus não me trouxe aqui – respondeu
Carmine.
– Não?
– Não. Foi o diabo em pessoa quem me
largou aqui na frente.
De modo surpreendente, o padre sorriu
diante daquelas palavras.
– E existiria alguma razão para que ele
o fizesse?
– Sei tanto quanto o senhor, mas estou
começando a achar que ele tem senso de
humor.
O tempo passou enquanto os dois
conversavam no escritório apertado.
Ambos discutiram a respeito de religião e
da vida. Nenhum dos dois se deixou
abalar. De um lado, Carmine se recusava
a abandonar sua linha de pensamento,
mas começou a se sentir melhor à medida
que o padre falava. Algo na voz daquele
homem, a compaixão em suas palavras,
deixou Carmine mais calmo. Por fim, ele
começou a fazer pequenas concessões e a
se abrir um pouco enquanto abordava
superficialmente sua realidade e
compartilhava pequenas coisas.
O sol já havia começado a nascer
quando Carmine voltou a ligar para os
mesmos números, sem obter sucesso.
Desligou e franziu o cenho, percebendo
que ninguém viria para ajudá-lo.
– Ninguém atende ainda? – perguntou o
padre.
– Não – ele respondeu. – Acho melhor
eu ir embora. Tenho um longo caminho
pela frente.
– Pretende caminhar? – perguntou o
padre, fazendo um movimento negativo
com a cabeça. – Isso é bobagem. Eu lhe
darei uma carona.
Carmine piscou algumas vezes,
surpreso.
– O senhor tem um carro?
– Mas é claro – disse o padre. – Um
telefone, um carro e, inclusive, um micro-
ondas, caso precise de um. O que é meu é
seu.
Carmine encarou o padre sem
acreditar.
– Por que não me disse antes?
– Você não perguntou.
Carmine ficou de pé, esticou seus
membros cansados e passou as mãos no
rosto.
– Perdemos a noite toda aqui, quando
você poderia ter me levado para casa há
várias horas.
– Ah, mas eu não diria que perdemos a
noite toda – retrucou padre Alberto. –
Gostei muito de conversar com você. Foi
bastante esclarecedor.
Carmine seguiu o padre até o lado de
fora da igreja, onde estava estacionado
um velho Cadillac Deville. Ele sorriu ao
vê-lo, observando a cor azul-claro e o
interior bege.
– É seu? – Carmine perguntou.
– Bem, tecnicamente ele pertence à
igreja de Saint Mary, mas, sim –
respondeu. – Um antigo paroquiano o
doou para nós há anos. Acho que faz uns
treze anos.
– Caramba – disse Carmine, surpreso
que o veículo ainda se movesse e deu um
sorriso suspeito quando o padre o olhou
de um jeito peculiar. – É só que, puxa
vida. Meu avô tinha um igualzinho. Ele
costumava me pegar na escola às vezes
quando eu ainda era criança e me levar
para passear. É a única lembrança que
tenho dele.
– É mesmo?
– É, ele morreu quando eu ainda era
pequeno, talvez… – Carmine fez uma
pausa ao fazer os cálculos mentalmente –
há uns treze anos.
O padre sorriu para ele antes de entrar
no carro e ligar o motor. Ele não ligou de
primeira, mas logo o ronco pôde ser
ouvido e o carro começou a tremer ao
ganhar vida. Soltando um suspiro,
Carmine entrou no banco do passageiro e
disse qual era seu endereço, olhando para
fora da janela enquanto ambos cruzavam
a cidade.
Padre Alberto estacionou o carro na
garagem assim que chegaram. Carmine se
virou para agradecer ao padre, e foi então
que reparou na expressão de admiração
em seu rosto. Antes que o rapaz pudesse
dizer qualquer coisa, o padre começou a
gargalhar. Ele riu tanto que lágrimas
surgiram em seus olhos. Carmine o
encarou, confuso.
– O que é tão engraçado?
– A porta agora é azul.
– Sim, e daí?
O padre meneou a cabeça.
– Pensei que Vincenzo estivesse
brincando.
A expressão no rosto de Carmine ficou
séria ao ouvir o nome do pai. Em choque,
ele ficou apenas olhando o padre.
– Ele realmente fez um péssimo
trabalho pintando essa porta – continuou
o padre Alberto –, mas eu o parabenizo
por tê-lo feito mesmo assim.
– O senhor conhece meu pai?
– Claro que conheço – disse o padre. –
Não foi uma coincidência que tenha
terminado sua noite diante da minha
igreja, filho.
Carmine assentiu. O que foi isso, uma
intervenção divina ou algo assim?
– Feliz Natal – sorriu o padre, dizendo
adeus e completando –, e, só para deixar
registrado, sempre suspeitei de que
Corrado tivesse senso de humor.
Capítulo 26
O Natal em Upper East Side se revelou
um evento mais formal do que Haven
previra. Nenhum presente foi trocado
pela manhã, nenhuma história foi
compartilhada durante a tarde.
Precisamente às 15h, todos se reuniram
na ampla sala de jantar. Eram quatro
pessoas sentadas a uma mesa que tinha
comida suficiente para uma dúzia de
convidados. Os empregados serviram a
comida, em silêncio e com rapidez,
oferecendo um prato a cada um antes de
desaparecerem.
Enquanto os outros começavam a
comer, Haven olhou para seu prato e seu
estômago parecia dar nós. Aquelas
pessoas, os empregados… Será que eles
não tinham família? Por que estariam
trabalhando em pleno Natal?
Os piores pensamentos se infiltraram
em sua mente. Não era possível que eles
fossem… Será…? Um senador, um
homem da lei, também manteria
escravos em sua casa?
Será?
A possível resposta para aquela
pergunta deixava Haven aterrorizada.
– Então, Hayden…
Haven ergueu a cabeça e olhou para a
mãe de Kelsey, Anita, que estava à
extremidade da mesa. Ela usava os
cabelos escuros presos num coque no
topo da cabeça e um longo colar de
pérolas decorava seu pescoço. Ela pegou
o copo de vinho branco, que já havia sido
preenchido duas vezes desde que se
sentara, e tomou mais um gole.
– Sim, senhora?
– Conte-me a respeito de sua família.
Haven olhou para ela.
– Minha família?
– Sim, sua família. Gostaria de saber
por que não está com eles na noite de
Natal.
– Mãe… – Kelsey disse com os dentes
cerrados.
No mesmo instante, o pai murmurou:
– Anita, por favor.
– Relaxem, só estou curiosa – ela
retrucou, acenando com a mão enquanto
olhava para Haven. – Então, sua família?
– Bem, ah… Na verdade, eu não tenho
uma – ela respondeu. – Meus pais já
faleceram.
– Uma órfã? – disse Anita em voz alta,
inclinando-se em direção à mesa. – Mas
que trágico! E como foi que eles
morreram?
– Acidente de automóvel – ela
respondeu rapidamente, engolindo a
verdade cruel de que o único parente que
tivera havia tirado a própria vida para
libertá-la das correntes que a prendiam…
Correntes que lhe foram impostas pelo
homem que supostamente seria seu
próprio pai.
– Mas que triste – disse Anita. – E
quanto aos demais familiares? Irmãos,
primos, tios, tias? Você tem alguém?
– Já chega, Anita! – exclamou Cain
com a voz firme. – Pare com isso.
– Ah, pelo amor de Deus – disse Anita
antes de tomar mais um gole. – Você não
pode me dizer que não está curioso para
saber por que uma garota tão jovem não
tem um lugar para ir no Natal.
– Ela tem um lugar para ir – Cain
contra-atacou. – Ela está aqui, não está?
Anita debochou:
– Por favor, Cain. Ninguém realmente
deseja estar aqui. Nem mesmo nossa
própria filha gosta de estar nesta casa.
– É justamente pelo fato de você
aplicar um interrogatório a todos que
entram aqui – ele disse. – Nem eu gosto
de estar aqui na maior parte do tempo por
conta de suas perguntas intermináveis.
– Ah, não me venha com essa! Não é
por isso que você não vem para casa!
Talvez possa mentir para todo mundo e
fazê-los acreditar nas mentiras que saem
de sua boca, mas eu não.
– Mentiras? – Cain bateu com a mão na
mesa. – Você quer falar sobre mentiras,
muito bem, falemos sobre mentiras.
E os dois continuaram a discutir e a
ofender um ao outro, utilizando de
palavras duras. Kelsey continuou a comer
normalmente, como se nada estivesse
acontecendo, enquanto Haven piscava e
se encolhia diante de toda aquela
hostilidade. A discussão parecia não ter
fim, até que ambos ficaram sem ter o que
dizer.
O silêncio tomou conta da sala de
jantar. Haven comeu algumas garfadas do
que estava em seu prato, forçando a
comida goela abaixo, feliz por tudo
aquilo ter acabado.
Até que Anita voltou a falar.
– Então, Kelsey, querida, como foi o
seu fracasso na escola dessa vez?
– Eu não fracassei na escola –
respondeu Kelsey. – A maioria das
minhas notas ficou entre A e B, com
exceção de um único D.
– E em que matéria você conseguiu
tirar um D?
– Pintura.
– Mas como você conseguiu tal
façanha? – disse Anita, acenando
negativamente em desaprovação. – Até
mesmo um macaco é capaz de passar
nessa matéria. Qualquer idiota consegue
passar tinta numa tela.
Aquelas palavras abriram uma fissura
no peito de Haven. Ela não conseguiu se
controlar e soltou um suspiro
involuntário, sentindo-se ofendida por
aquele insulto. Os olhos de Cain se
desviaram da garota e se fixaram na
esposa.
– Mas que diabos está fazendo, Anita?
– Ah, você é pintora? – ela perguntou.
– Tenho certeza de que seu trabalho é
adorável, querida. O de minha filha, em
contrapartida…
A discussão recomeçou.
Haven soltou um suspiro aliviado
quando o jantar terminou. Kelsey pediu
licença e foi ao banheiro. Anita pegou sua
garrafa de vinho e saiu da sala, deixando
Haven sozinha na companhia de Cain.
Os empregados apareceram para
limpar a mesa. Haven os encarou curiosa,
esquecendo-se de que o pai de Kelsey
ainda estava na sala, até que ele abriu a
boca.
– Eles trabalham para minha família já
há muito tempo.
Haven olhou para ele, curiosa.
– O que disse?
– Os empregados. Eles já estão
conosco há vários anos, desde que
Kelsey era bebê. Estar aqui no Natal só
depende deles, porém, uma vez que
recebem o dobro nos feriados, em geral
preferem trabalhar parte de seu turno.
– Entendo – Haven sentiu certa
suspeita em relação àquela resposta. –
Como o senhor…?
– Como eu soube que você estava
imaginando isso? – ele perguntou,
interrompendo-a no ato. – Não nasci um
homem rico. Minha mãe fazia bico como
dançarina de boate. Meu pai era um
vigarista. Portanto, não é necessário dizer
que conheço bem esse olhar em seu rosto.
– E que tipo de olhar é esse?
– O olhar de quem não entende como a
vida pode ser tão difícil – respondeu
Cain, levantando-se e acenando a cabeça.
– Foi muito bom conhecê-la, minha
jovem. Será sempre bem-vinda em nossa
casa.
Ele saiu e deixou Haven sozinha na
gigante sala de jantar. Kelsey retornou em
seguida, ficando de pé à porta.
– E aí, o que achou?
– O que eu achei? – disse Haven,
colocando-se de pé. – Que talvez você
não tenha exagerado, no final das contas.
Kelsey deu risada.
– Eu te disse. É terrível.
Terrível? Talvez a palavra “terrível”
não fosse a mais adequada, mas eles
certamente a fizeram se lembrar de
pessoas que ela tentara evitar desde que
era uma criança.
POW
9º DIA
Escutas telefônicas.
O som da voz de Corrado soava alto e
claro no tribunal vindo dos alto-falantes
colocados na frente. Pilhas de
transcrições estavam espalhadas sobre as
mesas, intocadas. A voz dele era clara e
concisa. Não era preciso ler o que estava
escrito, uma vez que suas palavras eram
absolutamente claras.
– Faça o que estou mandando – sua
voz reverberava pela sala. – Quando eu
acordar amanhã é melhor não ouvir que
ele ainda esteja respirando, ou então é
você que não estará até a hora que eu
voltar para cama.
Corrado passou a mão no rosto,
frustrado. Como seu advogado explicaria
aquelas palavras?
Fita após fita, ameaça após ameaça.
Não havia ali nenhuma prova, mas muitas
insinuações perigosas.
Todos ficaram apreensivos quando a
promotoria colocou a última gravação do
dia. Corrado se recostou na cadeira,
ficando tenso ao ouvir uma voz familiar
nos alto-falantes.
– Está feito – disse Vincent. –
Aconteceu esta noite, finalmente.
Corrado identificou o diálogo. Ele
estava sentado em casa quando seu
cunhado ligou de Blackburn para dizer
que havia conseguido Haven.
– Já era hora – respondeu Corrado. –
E quanto foi que você pagou?
– Duzentos e cinquenta mil –
respondeu Vincent. – Mas eu teria pago
mais se fosse o caso.
– Eu sei – retrucou Corrado. – Pagou
bem caro por essa garota.
– Sim – Vincent suspirou do outro lado.
– Todos nós pagamos.
Quando aquelas palavras soaram em
seus ouvidos, Corrado acenou
negativamente com a cabeça: tráfico de
pessoas para trabalho escravo. Aquelas
palavras em sua acusação faziam sentido.
As intenções ali não importavam. Aliás,
em geral, não importam.
17º DIA
Testemunho do perito.
Corrado não se ateve muito à parte em
que a promotoria chamou um perito em
contabilidade para testemunhar. Eles
estavam vasculhando seus registros de
caixa e tentando encontrar alguma grande
soma em dinheiro que pudesse ter sido
adquirida de maneira ilegal. Corrado
estava entediado, sabendo que eles não
encontrariam nada substancial. Pelo que
sabia, alguns dólares aqui e ali não
contavam.
– Objeção! – exclamou seu advogado,
interrompendo a linha de questionamento.
– Não compreendo a importância de
saber quanto o senhor Moretti gastou em
suprimentos para os banheiros no mês de
julho.
– Objeção rejeitada! – disse o juiz, e
acenou para que o promotor continuasse.
Mais perguntas, mais bisbilhotices e
mais desespero. Corrado olhou para o
júri que, aliás, parecia tão entediado
quanto ele próprio. Ele se fixou na jurada
número seis, esperando que ela desviasse
o olhar, mas ela o encarou, estudando-o
com curiosidade nos olhos.
– Objeção! – exclamou novamente o
advogado. – Não vejo qual a relevância
de tudo isso.
O juiz respirou fundo.
– Objeção rejeitada.
Aquilo se estendeu por duas horas
excruciantes antes que a acusação
terminasse. O senhor Borza se levantou e
se dirigiu à testemunha.
– Com base em seus cálculos, qual o
total de dinheiro no Luna Rossa que não
foi reportado no ano passado?
– Ah, US$15.776, 49 – respondeu o
especialista.
Corrado se encolheu. Eram mais que
alguns dólares, afinal.
– Parece muito dinheiro – disse Borza,
verbalizando os pensamentos de seu
cliente. – Porém, estamos falando aqui de
um clube cujo faturamento no ano
passado foi de três milhões de dólares,
está correto?
– Sim.
– Esse dinheiro não registrado seria,
portanto, o equivalente a meio por cento?
– Um pouquinho mais que isso, mas…
sim.
– Então mais de 99% da receita do
Luna Rossa está nos registros, preto no
branco. Considerar esse meio por cento
seria o mesmo que acusar um homem de
perder alguns centavos ao ganhar um
dólar numa loja. Isso dificilmente poderia
ser rotulado como um elaborado esquema
de lavagem de dinheiro.
– Objeção! – gritou a promotoria. –
Ele está tentando distorcer os fatos.
– Mantida! Continue, senhor Borza.
A resposta do juiz não abalou o
advogado. Ele havia conseguido
estabelecer um ponto importante, e
prosseguiu:
– E esse meio por cento poderia ser
apenas um erro matemático?
– É possível.
– Então pode ser que nenhum dinheiro
tenha sumido, afinal.
– Objeção.
– Negada! Responda à pergunta.
– É possível – respondeu o contador. –
É justamente por isso que os impostos
são auditados ao longo de um período de
anos em busca de consistência e exatidão
nos dados, porque erros desse tipo
podem ocorrer.
O senhor Borza sorriu e se sentou.
– Erros desse tipo podem ocorrer. Eu
não teria colocado melhor.
22º DIA
Testemunha de acusação.
Várias testemunhas juraram sobre a
Bíblia e responderam às perguntas que
lhes foram colocadas. Eram ex-parceiros,
alguns da própria Cosa Nostra, que
contaram algumas histórias violentas;
donos de estabelecimentos e transeuntes
sem muita sorte também disseram o que
viram. Nenhum deles, entretanto, apontou
o dedo diretamente para Corrado, mas
havia o suficiente para associá-lo aos
crimes, pelo menos de maneira
superficial.
– Senhor Gallo – disse o advogado de
Corrado, dirigindo-se a um ex-capanga
da Máfia. – O senhor testemunhou que,
juntamente a outros três homens, esteve
envolvido em uma série de roubos no mês
de março de 1980. Isso está correto?
– Sim.
– E qual teria sido o papel do senhor
Corrado Moretti nesse caso?
– Ele nos mandou fazê-lo.
– Em pessoa?
– Por mensagem de texto.
– Então imagino que haveria registros
dessas mensagens, correto?
– Não, eram aparelhos pré-pagos,
descartáveis.
– Certo, e as mensagens vieram do
número do meu cliente?
– Não, de um número privado.
– Ainda possui esse aparelho pré-
pago?
– Não, foi destruído. Você sabe,
descartado.
– Então, deixe-me ver se entendi
corretamente… Você roubou esses
lugares porque recebeu mensagens de
texto anônimas para que assim o fizesse;
mensagens das quais não há nenhuma
evidência, e espera que aceitemos a sua
palavra de que elas vieram de Corrado
Moretti.
– Foi ele.
– E se eu lhe dissesse que os outros
três nomes mencionados nesses roubos
afirmam não conhecer o senhor Corrado
Moretti? E vão ainda mais longe, dizendo
que esse foi um esquema planejado e
executado por vocês quatro. O que o
senhor me diria?
– Eu diria que eles estão mentindo.
– Ah, então é possível que os três
estejam mentindo – retrucou o senhor
Borza. – Não seria mais provável que o
senhor o estivesse?
– Explique novamente.
Haven ignorou Kelsey, agindo como se
a amiga não tivesse dito nada ao olhar
para a tela à sua frente. A tinta fresca
brilhava sob as luzes fluorescentes do
estúdio, e a vasta combinação de cores se
cruzava como um arco-íris entrelaçado.
Arte abstrata. Haven ainda estava
tentando se aprimorar naquilo.
– Está bom? – perguntou ansiosa.
– Parece legal – respondeu Kelsey. –
Agora explique para mim de novo.
Haven soltou um suspiro.
–Nós saímos, foi legal, mas não houve
química entre nós.
– E é isso?
– Sim, é isso – confirmou Haven, ainda
olhando para a tela. – Tem certeza de que
isso está bom? Faz algum sentido?
– É abstrato. Não precisa fazer sentido
– retrucou Kelsey. – Mas não
compreendo por que você e Gavin não
podem ser amigos. Tudo bem, não tem
nenhuma faísca, mas vocês eram tão
amigos antes, não é? O que mudou?
Haven bufou. Ela não queria mais falar
naquele assunto. Elas já haviam discutido
aquilo por várias semanas.
– Acho que para ele era tudo ou nada.
– Isso é besteira – Kelsey argumentou.
– Ele não é desse tipo.
Haven revirou os olhos.
– Você sequer o conhecia.
– Mas você sim.
O estúdio foi tomado pelo silêncio.
Será que ela o conhecia mesmo? Ele
trabalhava naquela obra. Negócio de
família, ele dissera, mas Haven não sabia
nada a respeito da família dele. Na
verdade, ela pouco sabia além do nome
dele: Gavin alguma coisa. Ela ouvira seu
último nome antes, mas não conseguia se
lembrar.
– Não importa – disse Haven. – Não
era para acontecer. As pessoas passam
pela nossa vida por alguma razão, então
prefiro acreditar que tenha havido um
motivo para isso, algum motivo, mas não
era que nos tornássemos amigos, eu acho.
Repousando o pincel, Haven se afastou
da tela. O Novak Gala se aproximava
rapidamente, e todos deveriam entregar
seus trabalhos até o final da semana. A
garota lutava para criar algo que valesse
a pena apresentar.
– Vou sentir falta de ver o rosto dele
por aí – disse Kelsey. – O cara era bem
bonitão!
Haven deu risada.
– Se gosta tanto assim dele, porque não
o convida para sair?
Com os olhos arregalados, Kelsey
balançou firmemente a cabeça.
– Nunca. Eu não poderia fazer isso.
– E por que não?
– Por sua causa, dã – ela disse. – É
como quebrar um código de amizade.
– Não seja boba. Ele é um ótimo cara.
Engraçado. Legal. Você seria capaz de
fazer coisas bem piores. Aliás, você já
fez coisas piores.
– Você gostava muito dele – uma
afirmação, não uma pergunta.
– Sim.
– Então por quê? De verdade.
Haven ergueu levemente os ombros e
acenou a cabeça.
– Não havia nada ali.
A expressão de Kelsey se tornou mais
suave.
– É o seu ex-namorado. Carmine.
– O que tem ele?
– Foi por isso que não sentiu nada por
Gavin. Porque já sentiu isso por outra
pessoa.
Haven considerou aquelas palavras,
lembrando-se da química que sentia com
Carmine. Entre eles havia eletricidade.
Tanta, na verdade, que ele a fazia brilhar.
O pensamento de nunca sentir aquilo
novamente e de ter de viver sua vida
apenas com lembranças de como havia
sido a incomodava.
– Você acha possível sentir isso mais
de uma vez?
– É claro que sim – respondeu Kelsey.
– Eu sinto isso toda vez que um cara olha
para mim ultimamente.
Haven sorriu.
– Ou… – Kelsey deu alguns passos na
direção da amiga, olhando para o quadro
colorido. – Ou talvez eu jamais tenha
sentido nada como isso e você seja uma
privilegiada.
– Olá.
O cumprimento de Vincent pairava no
ar, em algum lugar entre os lábios dele e
os ouvidos da garota. Boquiaberta e com
o rosto tão pálido como se tivesse visto
um fantasma, ela continuou parada no
meio da calçada, equilibrando-se nos
saltos.
– Doutor DeMarco?
Ele soltou um riso envergonhado
quando ela repetiu seu nome pela segunda
vez.
– Sim.
Ela acenou a cabeça sem acreditar,
olhando cuidadosamente para os lados e
dando um passo à frente em direção a ele.
– Há algo de errado? Aconteceu
alguma coisa?
– Não – ele respondeu, esfregando a
parte de trás do pescoço de maneira
ansiosa quando alguém saiu da galeria
atrás dela. Ele desviou o olhar, virando-
se levemente para evitar ser visto de
frente por aquelas pessoas antes que
desaparecessem pela rua.
Paranoico, talvez, mas ele tinha todas
as razões para se sentir assim.
– O senhor está bem? – ela perguntou,
dando mais um passo em sua direção. – O
senhor parece…
– Um esboço de mim mesmo? – ele
completou a frase dela.
– Eu diria nervoso – ela respondeu.
Nervoso. Aquele era certamente um
bom eufemismo.
– Estou bem – ele assegurou, sorrindo,
esperando que aquilo aliviasse sua
preocupação. – Acha que poderíamos ir a
algum lugar para conversarmos?
– É claro – Haven olhou rapidamente
para a galeria antes de se aproximar dele.
E deu apenas alguns passos antes de
retirar os sapatos e carregá-los nas mãos.
Ele assentiu, sorrindo suavemente,
enquanto os dois desciam a rua. Ambos
caminharam em silêncio, e a garota ainda
o olhava de vez em quando sem acreditar
que ele estivesse ali, enquanto ele
mantinha a cabeça baixa, observando os
arredores.
Em poucos minutos chegaram ao seu
destino. Haven pegou o chaveiro e abriu
a porta do apartamento. Vincent não
esperou pelo convite para entrar, e soltou
um suspiro ao se sentir seguro longe das
ruas.
– Este é o seu apartamento? – ele
perguntou, observando o pequeno espaço
de um único dormitório. Aquele era o
lugar em que Corrado a havia
colocado? – É bem pequeno, não é?
– Não é tão pequeno. Digo, é maior
que a cocheira onde cresci.
Touché.
– Então, o senhor queria me dizer
alguma coisa? – ela perguntou, ansiosa,
sentando-se numa cadeira na sala. – O
que faz aqui?
Vincent se aproximou do sofá e se
sentou.
– Bem, eu estava imaginando se
poderia me dizer alguma coisa a respeito
do seu sequestro.
Como que por milagre, Haven
conseguiu ficar ainda mais pálida.
– Meu sequestro?
– Sim – ele respondeu. – Você não tem
de fazer isso, é claro, mas eu estava
imaginando se você poderia me dizer de
quem se lembra de ter visto no local.
Ela hesitou, mas tentou se concentrar.
– O senhor já sabe. Digo, eles estavam
lá quando… Bem, quando vocês vieram
me resgatar.
– Sim, eu sei, mas gostaria de ouvir de
você – ele disse. – Gostaria de saber do
que exatamente você se lembra.
A garota suspirou fundo e olhou para
as mãos sobre as pernas. DeMarco
conseguia ver que Haven não desejava
falar a respeito daquilo e quase se sentiu
envergonhado por levantar a questão, mas
era importante que ele escutasse de sua
boca. Muito importante, aliás.
– Bem, Nunzio estava lá. O homem
chamado Ivan era quem dava as ordens.
Havia alguns outros homens, mas não me
lembro dos nomes. A maioria era de
russos. E havia ainda as mulheres… A
enfermeira apareceu e então veio a outra.
– Que outra?
Haven hesitou por um momento.
– Não me recordo o nome dela.
– Certo – respondeu Vincent. – Então
isso é tudo?
– Bem, eu acho que sim.
– Você acha? – perguntou Vincent,
inclinando-se para frente e apoiando os
cotovelos sobre as coxas. – Quem mais
estava lá?
– Só pessoas que já não estão entre nós
– ela sussurrou. – Se é que algum dia
estiveram.
Vincent processou lentamente aquelas
palavras; o significado se tornando mais
claro ao repensar nas imagens que vira no
diário de Haven. A memória o feria.
– Maura.
– Sim – ela sussurrou –, e também
minha mãe. E a número 33.
Os olhos dele se fixaram nos dela com
curiosidade.
– Número 33?
– Uma garota que vi num daqueles
lugares… Ela estava à venda. Seu
número era 33.
Vincent franziu o cenho quando se deu
conta do que ela estava lhe dizendo.
– Um leilão?
– Sim. Frankie me levou quando eu
ainda era criança.
Vincent sentiu seu estômago revirar.
Ele jamais soubera daquilo.
– Mas por quê?
– Ele disse que era para me ensinar
uma lição – ela respondeu. – Aquela
garota tentou escapar, então… Bem…
Frankie a matou. E então ele disse que
era aquilo o que acontecia com pessoas
que esqueciam qual era seu lugar. É por
isso que quando o senhor me disse que ia
me fazer lembrar do meu olhar naquele
dia, eu pensei que…
Vincent cerrou os olhos quando a
garota disse aquilo. Ele ainda podia se
lembrar do olhar no rosto dela naquela
tarde, quando despertou algemada na
cama.
Por favor, ela sussurrara. Não quero
morrer.
Antes que Vincent pudesse dizer
qualquer coisa, Haven voltou a falar.
– Sei que elas não estavam realmente
ali, mas eu as vi no armazém.
Conversaram comigo e me deram a força
de que precisava para me manter viva.
– Havia mais alguém? – perguntou
Vincent. – Talvez alguém menos
desejável, como um… monstro, quem
sabe?
Haven ficou imóvel, olhando para
Vincent antes de sussurrar.
– Carlo.
DeMarco ficou surpreso.
– Você sabe o nome dele.
– Eu ouvi quando Frankie disse seu
nome no dia do leilão – ela respondeu. –
Ele queria que meu mestre me vendesse
para ele. Fiquei aterrorizada. Pensei que
fosse me vender.
– Graças a Deus que não o fez.
– Sim, mas ele ainda me perseguiu ao
longo dos anos. Eu costumava vê-lo
quando vinha a Blackburn. Ele ficava de
pé na minha frente, olhando para mim.
Era só um olhar. Ele sempre machucava
minha mãe. Sempre… – Ela fez uma
pausa, com lágrimas de raiva surgindo em
seus olhos. – Ele fazia coisas com ela,
mas nunca me tocou. Apenas me olhava o
tempo todo, como se estivesse esperando
o momento certo.
– E você o viu naquele armazém?
Ela acenou afirmativamente a cabeça,
secando os olhos quando uma lágrima
escorreu pelo rosto.
– Eu o imaginei, eu acho. Sobre mim,
apenas me encarando como sempre, como
se ainda não tivesse chegado a hora. Ele
parecia mais velho, mas com certeza era
ele. Eu jamais esqueceria aquele rosto.
Haven soltou um riso amargo e Vincent
permaneceu imóvel. Ele não queria
acreditar, mas algo nas palavras da
menina o fizeram imaginar se ela não
havia de fato imaginado tudo aquilo.
– Muito obrigado – respondeu Vincent.
– Eu só precisava que você o
confirmasse.
– De nada – Haven respondeu,
olhando-o com atenção. – Tem certeza de
que está bem, doutor DeMarco? Será que
as pessoas que o monitoram não me
rastrearão até aqui agora?
– Já não uso mais o meu monitor
eletrônico.
Os olhos dela se arregalaram.
– Seu julgamento terminou?
Ele a encarou, percebendo naquele
momento o quão ela estivera afastada de
tudo o que acontecera nos últimos
tempos. Ele já a vinha seguindo há
semanas, reunindo coragem para abordá-
la… Um homem que a maioria das
pessoas acreditava estar morto. Mas ela
nem fazia ideia daquilo. Não sabia de
nada.
Colocando-se de pé, Vincent esticou
suas costas doloridas.
– Ainda não acabou, mas logo tudo
chegará ao fim. Não há nada com que se
preocupar.
– Muito bem.
– De qualquer modo, é melhor eu ir
embora agora. Já tomei muito do seu
tempo.
Haven o levou até a porta, e, por um
instante, ambos hesitaram em silêncio no
hall. Havia tanto que Vincent achava que
precisava ser dito. As palavras estavam
na ponta da língua e ele quase conseguiu
forçá-las para fora tentando superar o
orgulho que ainda lhe restava, assim
como a grande vergonha que guardava.
Foi então que a porta da frente do prédio
se abriu atrás dele. O riso feminino se
espalhou pelo piso inferior.
Vincent imediatamente abaixou a
cabeça, mas seus olhos observaram a
moça com cuidado, tentando reconhecê-
la.
A filha do senador Brolin.
– Ah, uau – disse a moça com um
sorriso no rosto. – Mais um?
Vincent não permaneceu ali para tentar
descobrir o que a jovem queria dizer.
Capítulo 36
No primeiro fim de semana de junho,
Carmine recebeu uma ligação de
Salvatore a respeito da celebração pelo
livramento de Corrado. Sem nenhuma
vontade de comparecer, ele se vestiu
naquela noite de sábado e dirigiu até a
casa de Salvatore quando já estava
anoitecendo, estacionando o carro na
parte de trás antes de sair do automóvel,
ainda hesitante. Ele apertou a campainha
e Abby apareceu, aparentando estar
aliviada ao se deparar com Carmine.
– Olá – ele disse quando ela o deixou
entrar. – Como você está?
Ela sorriu suavemente; sua voz era
apenas um sussurro.
– Bem, e o senhor?
– Bem, estou aqui com esses filhos da
puta, então obviamente não me sinto tão
bem.
– Fico feliz que esteja aqui – disse a
moça, envergonhada, oferecendo-se para
retirar o casaco do rapaz. – Você fala
comigo como se eu fosse uma pessoa.
– Você é uma pessoa, Abby. Eles
apenas são infames demais para percebê-
lo.
Ela o encarou, surpresa pela resposta
franca, antes de se afastar para fazer seu
trabalho. Carmine seguia para o
escritório quando alguém chamou seu
nome. Ele se virou e o sangue congelou
em suas veias no momento em que olhou
para Carlo. O sujeito deu um sorriso
amarelo ao caminhar na direção de
Carmine.
– Tem sorte pelo seu padrinho não ter
ouvido essa conversa. Algo me diz que
ele não ficaria muito feliz.
Carmine o encarou enquanto lutava
para controlar seu temperamento diante
da expressão esnobe do homem.
– Não há nada de errado em dizer olá.
– Mas você disse muito mais que
apenas olá.
Carlo parecia pronto para dizer mais
alguma coisa quando Corrado entrou no
cômodo e o interrompeu:
– Carlo, Carmine. Algum problema por
aqui?
– Eu só estava lembrando o jovem
senhor DeMarco de que ele deveria
tomar mais cuidado com o que diz e com
quem conversa – retrucou Carlo. –
Afinal, se ele não for cuidadoso, alguém
pode ter uma impressão errada.
– Eu não…
O rapaz estava prestes a dizer que não
havia feito nada de errado quando
Corrado o interrompeu:
– O jeito sarcástico de Carmine é
notório. Acho que as pessoas teriam uma
impressão errada se ele não ostentasse
sua ironia de vez em quando.
Carmine olhou para Corrado em
choque, sem esperar que ele o
defendesse.
Carlo soltou um riso amargo.
– Só porque é esperado não significa
que seja aceitável. Ele precisa aprender a
demonstrar respeito. Ele estava
conversando com aquela escrava…
– Respeito? – retrucou Corrado. – E
suponho que considere que você poderia
ensiná-lo isso depois de falar dessa
maneira na presença dele? Sabe muito
bem qual é o histórico da mãe dele, e
ainda assim quer falar sobre ter respeito?
Talvez você mesmo precise aprender a
demonstrar algum.
– Eu conquistei meu lugar aqui… Já
me dediquei o suficiente – respondeu
Carlo, com o rosto tomado pela fúria. –
Eu já provei meu valor, mas ele ainda
não. Ele precisa respeitar seus
superiores.
– O mesmo se aplica a você – disse
Corrado com a voz afiada. – Ou será que
já esqueceu de que eu sou seu superior?
Conhece o protocolo. Ou também
esqueceu? Carmine é meu homem. Se
tiver um problema com ele, dirija-se a
mim.
Carlo estreitou os olhos. Corrado
certamente o havia irritado.
– Tudo o que estou dizendo é que ele
não deveria tagarelar tanto.
– Eu o ouvi da primeira vez, mas não
vejo o porquê de você querer criar uma
cena aqui – disse Corrado. – Não é nada
tão sério assim. Então ele é bocudo? Não
é como se ele houvesse matado sua
família, Carlo.
Carmine congelou ao ouvir aquelas
palavras amargas saindo da boca do tio.
Carlo parecia um veado pego pelos faróis
de um carro no momento em que Corrado
o encarou com uma sobrancelha erguida,
esperando por uma resposta que nunca foi
dada.
– Senhores – disse Salvatore,
colocando-se entre eles com a expressão
extremamente séria. – Talvez devêssemos
nos sentar mais tarde para amainar o
clima, mas, por enquanto, vamos apenas
celebrar. Vão se divertir, tomar uma
bebida, conhecer uma das belas garotas
que estão lá dentro.
Corrado acenou de modo obediente.
– Claro, senhor.
Carlo repetiu as mesmas palavras
quando Salvatore pediu licença; a bomba
parecia ter sido desativada por enquanto.
– Não sei o que você disse, mas ele
estava certo – falou Corrado quando os
dois ficaram sozinhos. – Precisa mesmo
aprender a controlar sua boca.
– Eu sei.
– Também deveria ter vestido um terno
– repreendeu o tio. – Parece um
desleixado.
Carmine olhou para si mesmo. Estava
vestindo uma camisa de mangas longas e
calças. Só havia deixado de lado a
gravata. Não era como se estivesse com
jeans desbotados e um casaco esportivo
com capuz, embora fosse exatamente o
que desejasse naquele momento. Assim,
se fosse forçado a se sentir miserável,
pelo menos estaria mais confortável.
O garoto passaria as próximas duas
horas batendo papo com outros homens e
associados, conhecendo as famílias
daqueles que eram descarados o
suficiente para fazê-las conviver com
homens tão odiosos e sem coração.
Carmine fingia se importar, sorrindo e
encarando perguntas curiosas a respeito
do paradeiro de seu pai (Não, não o tenho
visto. Tenho certeza de que está apenas se
mantendo discreto nesse momento.);
fazendo o papel de Principe, neto de
Antonio (Sim, meu avô era um Deus entre
esses homens; espero um dia ser como
ele.). Entretanto, em sua mente, ele
apenas contava os minutos para poder
sair daquele lugar (Duas outras horas
ainda pela frente; duas já haviam ficado
para trás.).
Para um grupo que se orgulhava de seu
silêncio e honradez, eles fofocavam mais
que um bando de meninas no colegial.
Aquele não fora o primeiro encontro
obrigatório para Carmine, mas com
certeza era o mais desconfortável. A
reputação de seu pai estava arruinada e
todos estavam cientes daquilo, ou seja, de
que o “prazo de validade” para Vincent
DeMarco já havia vencido.
Carmine bebeu bastante durante todo o
tempo, dolorosamente consciente de que
Corrado o observava do outro lado da
sala. Ele já o havia instruído a não beber
naqueles encontros, mas o garoto não
conseguia evitar. O álcool que invadia
sua corrente sanguínea era a única coisa
que o impedia de tentar escapar de sua
própria pele.
Com o tempo, o número de pessoas no
lugar começou a diminuir; associados e
homens de posições mais rasas, os
soldados, pouco a pouco deixaram o
lugar; os que faziam parte da cadeia de
comando se reuniram no escritório.
Carmine percebeu a mudança na
atmosfera como uma dica de que a noite
finalmente chegara ao fim. Pouco depois
das nove, ele se dirigiu até Corrado, já se
sentindo um pouco mais relaxado e
aliviado, e disse:
– Bem, estou indo.
– Ótimo – respondeu Corrado. – Vá
para casa e fique sóbrio.
Carmine se virou e fez uma continência
de brincadeira para o tio por trás de suas
costas enquanto ele entrava no escritório.
Em seguida, dirigiu-se até a porta, mas
logo ouviu a voz estridente de Salvatore:
– Aonde pensa que vai, Principe?
O garoto o olhou de maneira
apreensiva.
– Para casa, senhor.
– Isso é bobagem – disse Salvatore,
fazendo um movimento na direção do
escritório. – Junte-se a nós.
Carmine suspirou, sem a menor
vontade de permanecer ali por um minuto
sequer.
– Senhor, eu realmente preferia…
– Não foi um convite – disse Sal,
interrompendo-o enquanto tentava
escapar.
Carmine xingou em silêncio,
observando um olhar alarmado no rosto
de Corrado no instante em que adentrou o
escritório.
– Achei que estivesse indo embora.
– Ah, ele estava, mas eu pedi que
permanecesse – retrucou Salvatore,
acomodando-se na cadeira de sempre. E
então apontou para uma cadeira vaga ao
lado dele para que Carmine se sentasse.
Nervoso, o garoto passou a mão nos
cabelos. Havia cerca de uma dúzia de
homens ao lado dele naquele espaço, mas
ele era o único soldado raso presente.
Essas reuniões eram somente para
convidados e, até então, o jovem
apreciava o fato de que nunca antes fora
chamado a participar, pelo menos até
aquela noite.
Por algum tempo, os homens
conversaram sobre coisas que não
importavam, como times de beisebol e
marcas de uísque, enquanto Carmine
permanecia quieto, bebendo ainda mais
para acalmar seu nervosismo. Ele não
fazia ideia de por quanto tempo aquele
pessoal ficou na conversa fiada, até que
por fim mergulharam nos negócios: quem
devia dinheiro; quem não estava
produzindo o suficiente; quem tinha
potencial; e com quem eles já estavam
cheios de ter de lidar. Os que pertenciam
à última categoria logo foram ticados,
sem que nenhuma pergunta fosse feita e
nenhuma objeção fosse levantada. Não
havia qualquer preocupação em relação à
família dos sujeitos ou quanto às
obrigações deles. Intenções não
importavam. Foram julgados e
condenados sem que sequer tivessem a
chance de se defender.
Aquilo fez o estômago de Carmine
revirar, de saber que algum dia eles
poderiam estar falando a respeito dele
mesmo. Sua vida poderia ser decidida
por aqueles homens como algo tão sem
importância como marcas de bebida.
– Acho melhor desmembrá-lo – disse
alguém à mesa. – Corte o cara em
pedaços e então queime os restos.
– Não, faz muita sujeira – disse um
outro. – Apenas coloque algo na comida
dele. Faça parecer um ataque cardíaco.
Fácil e limpo.
– Isso é covardia! É melhor colocar
uma bomba no carro dele.
– Isso é baboseira! E uma bomba não
seria covardia?
– Não. Isso enviaria a todos uma
mensagem quando a rua toda explodisse.
– É, isso seria uma mensagem, com
certeza… E provavelmente mandaria
muitos de seus vizinhos para o hospital.
Essas pessoas não fizeram nada para nós.
– E daí? Como se transeuntes nunca
tivessem se machucado antes.
– É, mas eles têm crianças. E nós não
machucamos crianças, pelo menos se
pudermos evitar.
– Ah, apenas desapareça com ele –
sugeriu outro. – Não é uma atitude
covarde… É inteligente. O fato é que ele
não vale nada. Não há motivo para uma
cena. Apenas puff e pronto.
Alguém zombou:
– Sempre é covardia, a menos que
você o torne pessoal. Não é isso, Carlo?
É isso que você sempre diz.
Os olhos de Carmine cruzaram a sala
até onde o homem com o rosto deformado
estava sentado, bebendo seu uísque.
Carlo apenas acenou afirmativamente a
cabeça, confirmando o que fora dito.
– Sempre olhe para eles nos olhos para
que saibam que foi você, e também para
que você possa ver seu medo. Você quer
que eles associem a própria morte ao seu
rosto… É assim que se sabe que está
fazendo a coisa certa. Então, quando
compreendem, você faz isso rápido:
explode a cabeça; atira na boca do cara
no momento em que ele tenta gritar por
ajuda. Não há nada melhor. Sempre foi
minha assinatura.
Aquelas palavras atingiram Carmine
profundamente, revirando suas entranhas
enquanto flashes daquela noite na viela
voltavam à sua mente. O som dos gritos
aterrorizados de sua mãe, o pavor nos
olhos dela no instante em que soube que
iria morrer.
– Cale a boca dela! – gritou um
sujeito. – Vá logo! – Então tudo o que
pôde ser ouvido foi o som de um tiro
disparado na boca de Maura, para
silenciá-la.
Carmine se levantou antes mesmo de se
dar conta do que estava fazendo. A
bebida escorreu do copo que ele
esmigalhou e caiu no chão. Seu
movimento repentino assustou a todos,
fazendo com que a conversa parasse e
todos se levantaram, já treinados para
sentir o perigo. Todos empunharam suas
armas e vários cliques foram ouvidos no
cômodo à medida que as travas foram
desativadas e as pistolas apontadas para
a cabeça de Carmine.
Os olhos do garoto se fixaram única e
exclusivamente em Carlo, que
permaneceu esticado em sua cadeira, de
modo casual, enquanto girava o copo com
uísque que tinha na mão e encarava
Carmine. O rosto do homem era pura
indiferença, mas seus olhos contavam
outra história bem diferente. Eles se
mostravam desafiadores e incitavam o
jovem a dizer algo.
Longos segundos se passaram,
carregados de tensão e confusão, antes
que Salvatore interferisse:
– Cavalheiros, isso é desnecessário.
Somos todos família aqui.
Os homens abaixaram suas armas
imediatamente, escondendo-as mais uma
vez e retornando aos seus lugares.
Burburinhos faziam a sala vibrar. Era
impossível compreender o que era dito,
mas o ar estava repleto de hostilidade, o
que sufocava Carmine. Aqueles homens
teriam facilmente atirado nele; bastaria
que um dedo escorregasse para que sua
vida chegasse ao fim.
Ele se sentiu como se estivesse prestes
a vomitar ao se dar conta daquilo.
– Carlo, Carmine – disse Sal, olhando
para os dois naquele momento. – Saiam
agora.
Sal deixou o escritório, mas Carmine
permaneceu no lugar por um momento,
enquanto seus olhos acompanhavam os
movimentos de Carlo, que seguia as
ordens do chefe. De modo hesitante,
Carmine os seguiu, sabendo que não teria
escolha. Os três se sentaram nas cadeiras
de couro no pátio externo, ao lado da
piscina coberta. Sal pediu a Abby que
lhes trouxesse bebidas antes de mandá-la
sair com um aceno e orientando que
permanecesse em seu quarto pelo resto da
noite.
Não escapou aos olhos de Carmine que
Carlo observou a menina conforme ela se
afastou. Era o olhar de um predador se
preparando para atacar sua presa.
Era doentio.
Depois que ela saiu, Salvatore ergueu
as sobrancelhas com curiosidade.
– Como vão as coisas, Principe?
Carmine não gostou da pergunta. Está
tudo maravilhoso, obrigado por
perguntar.
– Tudo bem.
– Tudo bem – repetiu Salvatore,
observando os dois homens brevemente
antes de se voltar para Carmine. – E o
que está acontecendo entre vocês dois?
– Nada.
– Nada? Posso sentir a tensão entre
ambos. Você está me escondendo alguma
coisa. O que aconteceu antes para
provocar aquela briga no meu hall?
Carmine não disse nada.
Independentemente de permanecer em
silêncio ou contar seu lado da história,
sabia que perderia a batalha.
Percebendo que não conseguiria uma
resposta de Carmine, Salvatore voltou-se
para Carlo:
– Talvez você esteja mais disposto a
falar.
– Só fiquei surpreso com a atitude do
jovem DeMarco – disse Carlo. – Nunca
ouvi alguém falar de maneira tão vulgar e
desrespeitosa.
Salvatore se voltou para Carmine,
curioso, mas antes que o garoto pudesse
falar, um riso inesperado foi ouvido ao
lado dos três. Aquele som quase fez o
coração de Carmine parar de bater. Ele
rapidamente olhou para a direção de onde
a risada surgira e, sem acreditar no que
via, se fixou em seu pai. Vincent
DeMarco estava de pé a uns cinco metros
de distância, vestido dos pés à cabeça de
preto, com um terno novo italiano,
coberto por um casaco longo que chegava
aos calcanhares e expunha apenas de
relance um par de sapatos de couro
pretos que brilhavam sob o luar. Seus
cabelos escuros estavam penteados para
trás e seu rosto estava bem barbeado.
– Bem, Carlo, sabe que isso não é
verdade – disse Vincent, dando alguns
passos na direção deles. – Age como se
essa organização estivesse repleta de
santos. Meu filho certamente não é o
primeiro a falar mais que a boca.
– Ah, Vincent – disse Salvatore com
um tom evidente de surpresa na voz. Seus
braços estavam tensos; sua expressão
dura como se estivesse entalhada em
pedra. Não acontecia com frequência,
mas o chefe fora pego de surpresa. –
Estava imaginando se voltaria a vê-lo.
Nenhum dos três sabia como reagir.
Carmine só olhou para o pai, e Carlo
colocou a mão em sua arma sob a mesa.
– Com certeza você sabia que nos
encontraríamos novamente, Sal. Seria
rude da minha parte tirar uma licença
permanente sem me despedir de você.
– É verdade – respondeu Salvatore de
modo cauteloso, desesperado por retomar
o controle. – Venha, sente-se conosco.
Vamos conversar.
Vincent negou com a cabeça.
– Estou bem aqui.
Sal se moveu sutilmente na cadeira
para ver melhor.
– Você esteve sumido por bastante
tempo. Estava preocupado que algo de
ruim tivesse lhe acontecido.
– Tenho certeza de que estava.
– Eu estava, honestamente – respondeu
Sal. – Em especial quando faltou ao
julgamento. Fiquei muito apreensivo com
o que aquilo significaria para o seu
futuro.
– Ah, sim, aquilo. Bem, achei que não
valia mais a pena prosseguir com aquela
charada.
– Não posso dizer que esteja surpreso,
Vincent. Desapontado, sim, mas não
surpreso.
– Bem, você me conhece a fundo –
respondeu Vincent. – É uma pena que eu
nunca tivesse conhecido você, entretanto.
Achei que sim, mas estava equivocado.
Sal deu risada, com certo nervosismo
na voz.
– O que vê é exatamente quem eu sou.
– Gostaria que isso fosse verdade –
disse Vincent. – Sempre pensei que fosse
um homem de palavra; um homem que via
o mundo em branco e preto. Nunca
imaginei o quanto você se ocultava nas
sombras para atender às próprias
necessidades.
– E o que o faz imaginar algo tão
ridículo?
– Haven Antonelli.
Carmine involuntariamente abriu os
lábios ao ouvir aquele nome. Os olhos de
Salvatore se voltaram para o garoto, com
ódio, antes de ele se virar de novo para
Vincent.
– E o que essa garota tem a ver com
tudo isso?
– Tudo – disse Vincent. – Não aja
como se não soubesse do que estou
falando.
Salvatore olhou para Vincent sem
acreditar, mas não estava claro se ele
estava de fato surpreso ou apenas
chocado diante daquilo. O coração de
Carmine batia acelerado enquanto seus
olhos vagavam entre os dois. Todos
estavam no limite, com os ombros tensos
e prontos para atacar.
– Entre, filho – disse Vincent. –
Gostaria de conversar com seu padrinho
a sós.
Afastando a cadeira devagar, Carmine
começou a se levantar quando Salvatore
bateu com o punho na mesa à sua frente.
– Fique onde está!
Carmine sabia que não podia
desrespeitar uma ordem direta do chefe.
Olhando para o pai, ele tentou se
desculpar e voltou a se sentar.
Uma expressão de pânico tomou conta
de Vincent e Carmine percebeu. O que
quer que estivesse prestes a acontecer
não parecia nada bom.
– Ainda não compreendo o que a
menina Antonelli tem a ver com qualquer
coisa – retrucou Salvatore, voltando sua
atenção para Vincent. – Diga-me, por
favor.
– Sabia que ela virou uma artista?
– Eu não podia estar menos
preocupado com o que ela é ou deixa de
ser – respondeu Sal. – Ela não é nada
para mim.
– Ah, mas é claro que sabe que ela é
uma artista – continuou Vincent,
ignorando a hostilidade. – Na verdade,
sabe bastante sobre ela, mais do que
jamais admitiria, incluindo o fato de que
ela não representa nada para você.
– Não sabe do que está falando – disse
Sal. – Ela jamais será nada além de uma
escrava aos meus olhos, um pedaço de
carne sem valor por quem vocês, idiotas,
desperdiçam suas vidas. Ela é irrelevante
em meu mundo. Ela sequer deveria
existir!
Carmine se encolheu ao perceber a
irritação tomar conta do rosto de seu pai.
– Sabe, não parecia fazer sentido na
época – disse Vincent. – Nunca
compreendi por que Frankie se recusou a
entregá-la; por que ele não abria mão
dela uma vez que não queria ter nada a
ver com a menina. Ela era apenas um
fardo, outra boca para alimentar, então,
por que não aceitar dinheiro para se
livrar logo dela?
– Ela era neta dele – afirmou
Salvatore. – E você sabe disso.
– Mas isso não importava para ele –
retrucou Vincent. – O fato de seu filho
engravidar uma escrava não seria
nenhuma desgraça a seu ver, ou uma
mancha em sua descendência; ele teria
apenas desejado se livrar da criança.
Então por que ele não só a manteve ali
como matou por causa dela?
– Ele não queria que ninguém
soubesse.
– Sim, isso foi o que você me disse –
retrucou Vincent, acenando com a cabeça.
– E acreditei nisso por anos, porque não
achei que mentiria para mim, afinal você
afirmou ter certeza. Eu matei Frankie e a
esposa, e em seguida coloquei a arma na
cabeça daquela menina enquanto ela
dormia e puxei o gatilho, porque você
jurou que ela fora a razão para tudo que
perdi. E era justamente isso o que você
queria que eu fizesse, não era? Você usou
meu sofrimento para resolver o seu
problema, e quase funcionou. Se a minha
arma não tivesse falhado, eu teria matado
tudo o que respirasse naquele lugar.
– Não mandei que você matasse
ninguém.
– Não precisou fazê-lo! Você sabia
exatamente o que eu faria com a
informação que me passou, e me deu
tempo suficiente para executá-lo antes de
me chamar.
– Eu jamais teria ordenado a morte de
uma criança!
– Porque não pode! Os homens jamais
teriam voltado a acreditar em nada do
que dissesse se ao menos suspeitassem
que estava envolvido nisso. Teria havido
um motim! Mas você sabia como me
controlar, como fazer com que eu
reagisse. Você queria todos mortos e usou
a mim para manter suas mãos limpas.
– Isso é ridículo – retrucou Salvatore.
– Por que eu os quereria mortos?
– Evidência – disse Vincent. – Nunca
deixe nada para trás que possa ser ligado
a você. É bem simples, algo que todos
nós sabemos. Mas no momento em que
percebeu seu erro, queria que ele fosse
apagado.
– Que evidência?
– A descendência da menina.
O rosto de Salvatore foi tomado pelo
pânico. Carmine o olhou em choque,
percebendo que o padrinho não estava
surpreso… Ele de fato sabia. O garoto
ficou totalmente confuso e aquela
informação quase o deixou paralisado. O
tempo todo, diante de tudo o que
aconteceu, Salvatore sabia do parentesco.
– Está maluco.
– Pode ser, mas ainda estou certo –
disse Vincent. – Tudo o que foi
necessário foi uma picada no dedo e uma
vida inteira de segredos se revelou por
completo.
– Não sei do que você está falando.
– É, eu cheguei a acreditar nisso.
Pensei que fosse tão vítima quanto ela,
mas isso mudou quando ela foi
sequestrada. Você não queria se envolver
porque sabia o motivo pelo qual eles a
haviam levado e não queria ter nada a ver
com isso! Teve medo de que eles o
expusessem e então pensou… ou
esperou… que eles fossem se livrar dela.
Mas eles não conseguiram. Você tinha
fome por poder e fez com que sua própria
família fosse assassinada. Costumava
falar sobre o quanto a família significava
e eu sentia pena de você pelo fato de que
não lhe havia restado ninguém. E o tempo
todo fora culpa sua!
– Como você ousa me acusar disso? –
disse Salvatore com ódio. – Eu o matarei
por isso!
No momento em que ouviu aquelas
palavras, Vincent sacou sua arma e a
apontou para Salvatore. Carmine deu um
pulo, assim como Carlo, chocando as
cadeiras na pressa de se proteger. Um
deles pulou na piscina rasa. Salvatore
permaneceu imóvel, sem sequer piscar.
Carmine congelou ao ver Carlo puxar a
arma e mirar em Vincent.
– Você não fazia ideia de que depois
de trinta anos surgiria o teste de DNA –
ele prosseguiu, mantendo os olhos e a
arma fixos em Salvatore. – É por isso que
ele não me vendia a menina… Ele estava
tentando proteger você, e talvez até
protegê-la em meio a tudo isso. Quando
você ouviu dizer que Maura estava
fazendo perguntas, você entrou em
pânico, e foi aí que colocou o plano em
andamento. Mandou que matassem minha
esposa para encobrir seus rastros, e eu
nunca quis acreditar nisso. Jamais quis
imaginar que você pudesse fazer aquilo
comigo, que fizesse aquilo com meus
filhos. Mas Haven desenhou alguns
retratos depois de seu sequestro. Afinal,
como eu disse antes, ela é uma artista. E
ela desenhou um de Carlo. Eu não quis
acreditar nisso, neguei para meu próprio
filho, mas chegou um momento em que
não podia mais negar. Seu homem de
confiança, seu melhor amigo, estava ali
para cuidar de tudo!
Lágrimas escorreram dos olhos de
Vincent. Carlo gritou, negando as
afirmações, e Salvatore olhou para o
lado, aterrorizado. Carmine fitou o
padrinho com nojo.
– Carmine – ordenou Sal com firmeza.
Ele sabia o que queria e esperava que o
rapaz seguisse suas ordens e fizesse o que
já lhe havia sido ordenado.
– Não dirija a palavra ao meu filho –
disse Vincent entredentes. – Você já o
feriu o suficiente! Mas, diga-me uma
coisa, quando mandou que matassem
minha esposa, também queria que ele
tivesse morrido?
– É claro que não! Ele é meu afilhado!
– Mas não nega que queria minha
esposa assassinada? Não nega que
mandou matar sua irmã? Não nega que
estava mancomunado com os russos? Meu
Deus, quão doente um homem precisa ser
para transformar os entes da própria
família em escravos?
– A vida dela deveria ter sido
tranquila! – resmungou Salvatore,
perdendo o controle e buscando sua arma.
Carmine soltou um palavrão e deu alguns
passos para trás, quase tropeçando numa
cadeira. – Frankie me implorou para que
eu lhe desse a menina, aquele estúpido!
Ele me implorou para que deixasse a
criança viva. Foi ele quem falhou! Ele a
tratou como um lixo! Permitiu que o filho
a estuprasse! Ela estaria melhor se
tivesse morrido!
– É por isso que jamais ia até
Blackburn, apenas mandava que nós
fôssemos até lá? – perguntou Vincent, sem
qualquer hesitação na voz. – Não podia
olhar para ela, sabendo o que fizera?
– Está errado!
– E foi por isso que insistiu tanto em
ver Haven quando nos visitou? Foi por
isso que ficou feliz pelo fato de Carmine
ter se apaixonado por ela? Foi por isso
que você quis que ele se
responsabilizasse por ela? Vocês
finalmente voltariam a formar uma
família?
– Cale a sua boca!
– Achou que seria um tipo de
redenção! Eles eram suas propriedades!
E teve a ousadia de me perguntar se teria
valido a pena comprá-la? Se ela valia a
pena depois de tudo o que eu sofrera,
tudo o que perdi, e foi você quem
provocou tudo isso! Você sentiu prazer
em fazer isso? Você sente tanta satisfação
pelo fato de exercer poder sobre as
pessoas?
– Você está completamente maluco!
– E você é um perturbado mental! Um
traidor!
– Como você ousa me acusar disso?!
Justo você, que tem fornecido
informações aos federais? Diga-me,
Vincent, como se sente em agir como um
rato? Como se sente em quebrar o
juramento que fez? Como é saber que irá
morrer por causa disso?
Vincent ficou imóvel por um segundo
antes que um sorriso sinistro surgisse no
canto de seus lábios.
– Você primeiro.
O disparo da arma de fogo ecoou pela
noite e Carmine se encolheu, percebendo
que seu pai puxara o gatilho. Ele se
cobriu de modo defensivo enquanto
Salvatore cambaleou para trás e soltou
sua arma depois de levar um tiro no
ombro. Virando a mesa do pátio,
Salvatore se abaixou quando Carlo
revidou. Vincent atirou novamente,
atingindo Carlo na coxa e fazendo-o
dobrar a perna. Mesmo assim, o sujeito
conseguiu se manter de pé e atirar.
Uma bala da arma de Vincent atingiu a
mesa atrás da qual Salvatore se escondia,
ricocheteando e seguindo na direção de
Carmine, que se abaixou ao ouvir o
barulho. A bala quase o atingiu.
– Merda!
– Carmine! – gritou Salvatore, com a
voz quase inaudível em meio ao tiroteio.
– Mate-o!
Carmine não sabia o que fazer. Ele
lentamente puxou sua arma e,
completamente atordoado, tentava se
manter lúcido. Mate ou seja morto. Ele
sabia como tudo aquilo funcionava. Se
ele não matasse seu pai, Sal com certeza
o mataria.
Antes de poder considerar a ideia de
mirar em qualquer coisa, outro tiro
passou por ele. Carlo caiu para trás, com
a camisa ensanguentada. O homem
tropeçou e caiu, com o corpo tremendo
enquanto agarrava o estômago. Gritos
horríveis escapavam de sua garganta
enquanto Vincent se aproximou e
disparou mais duas vezes com ódio. Cada
tiro atingiu um braço de Carlo, que ficou
sem ter como se defender. Outro projétil
cruzou sua rótula enquanto ele tentava se
arrastar.
Salvatore deu um salto para o lado e
agarrou sua arma antes de se abaixar.
Vincent estava determinado, com a
expressão séria ao se abaixar e pegar
Carlo pelo colarinho. Ele enfiou o cano
na boca de Carlo e puxou o gatilho sem
hesitar. Sangue se espalhou por todos os
lados conforme o crânio de Carlo
explodiu. Carmine mal conseguia conter a
dor que reverberava pelo seu peito ao se
recordar do que acontecera com sua mãe.
Vincent olhou para Carmine com
preocupação, em busca de possíveis
ferimentos.
– Saia daqui, filho – ele ordenou antes
de se voltar para Salvatore, que se
escondera na porta de trás. Vincent se
levantou, mas não teve tempo de mirar,
sendo atingido no peito por Salvatore.
Ele sentiu o impacto e cambaleou, mas
conseguiu se manter de pé e atirar de
volta.
– Carmine, é uma ordem! – gritou
Salvatore, continuando a atirar, mas sem
conseguir atingir o alvo. – Faça-o agora
ou eu mesmo o matarei!
– Não ameace meu filho!
As palavras de Salvatore fizeram com
que Vincent recuperasse sua força. Houve
uma grande comoção quando a porta do
escritório se abriu e vários homens
correram para fora. Corrado os seguiu,
mas ficou petrificado, avaliando a cena
enquanto Carmine soltava o pino de
segurança de sua arma.
Corrado percebeu o movimento.
Levantando sua arma, ele mirou em
Carmine.
– O que diabos voc… – ele tentou
dizer, sem conseguir pronunciar o resto
da frase antes que o tio puxasse o gatilho.
A bala atingiu levemente as costas de sua
mão e ele deu um berro, derrubando a
arma e segurando o ferimento, que
queimava como fogo e sangrava muito.
Corrado correu na direção de Carmine
e o derrubou, colocando-o de barriga
contra o chão e ordenando:
– Não se mexa.
Colocando-se de pé, Corrado atirou ao
acaso, mas as balas deliberadamente não
acertaram o alvo. Vincent se virou e
atirou contra Corrado, com a mira
igualmente ruim, antes de se abaixar e
buscar abrigo atrás da casa.
Salvatore e os outros se protegeram
próximos da porta de trás, enquanto
Corrado e Carmine se moveram para o
lado, de onde tinham uma visão clara. Os
tiros diminuíram enquanto todos
recarregavam suas armas. Outros homens
se juntaram ao grupo para ajudar
Salvatore.
Carmine viu o pai soltar a pistola e
segurar o peito ao dar alguns passos.
Vincent abriu o casaco revelando uma
pequena Uzi presa em seu ombro. O
sangue que corria nas veias de Carmine o
deixou sem ação; a visão do garoto se
embaralhou enquanto lágrimas escorriam
pelo seu rosto.
Vincent abaixou a cabeça, fez o sinal
da cruz e moveu sua boca rapidamente
falando consigo mesmo. Rezando, ele
percebeu. Seu pai estava rezando.
– Não! – Carmine gritou ao perceber o
que iria acontecer. Seu pai nunca tivera a
intenção de sair vivo daquela missão.
Vincent se virou, olhando rapidamente
para o filho antes de dar um passo ao
lado e se colocar de frente para onde os
homens de Salvatore estavam. Corrado se
atirou no chão e puxou Carmine para
baixo quando ele tentou se levantar. O tio
segurou o sobrinho no solo enquanto uma
tempestade de balas reverberou em meio
à noite. Aquilo foi ensurdecedor. A
cabeça do garoto parecia explodir a cada
disparo quando o tiroteio iluminou o
jardim.
Carmine gritou, implorando que seu
pai não prosseguisse com aquilo, mas já
era tarde demais. Não havia como voltar
atrás. Ele fizera sua cama e estava
disposto a deitar nela… Ele estava
pronto para cair.
Mas Carmine não se sentia assim. Ele
jamais se sentiria assim. Tentou empurrar
Corrado para o lado, mas o tio não se
moveu um milímetro, protegendo o jovem
durante todo o tempo. Dois sujeitos
caíram nas proximidades com os corpos
convulsionando no solo; outros se
abaixavam em busca de cobertura. No
meio do caos, Carmine perdeu a noção de
quem estava lá. Corpos caíam enquanto
outros corriam. Gritos de dor se
misturavam ao som das balas.
Um tiro atingiu o estômago de Vincent,
que cambaleou, tirando o dedo do gatilho
por um segundo, tempo suficiente para
que os outros se recuperassem. Eles
atiraram sucessivamente, atingindo o
ombro de Vincent e então sua panturrilha.
Ele ficou de joelho, vacilando e tentando
se manter firme. Vincent mais uma vez
puxou o gatilho e atingiu mais homens
com a Uzi.
A troca de tiros parou abruptamente
quando o cartucho ficou vazio. Vincent
tirou a arma do ombro e a deixou cair no
chão. Ele se sentou no jardim, com o
corpo tremendo enquanto olhava para a
grama pisoteada. Alguém ficou de pé
próximo à casa e Carmine entrou em
pânico porque seu pai estava desarmado,
mas Corrado reagiu instintivamente. Ele
atirou e atingiu o homem na têmpora.
Carmine gritou pelo seu pai, mas
Corrado o empurrou ainda mais contra o
chão, enfiando a cabeça do rapaz contra o
concreto para silenciá-lo. O garoto
xingou enquanto sangue jorrava de seu
nariz. Sirenes começaram a soar à
distância. Alguém gritou:
– É a polícia!
Todos tentaram desaparecer no escuro
da noite.
Corrado enfim soltou o sobrinho
quando a multidão se dispersou. Carmine
se levantou e olhou para o jardim no
momento em que seu pai se arrastava até
o canto da casa. Corrado foi na direção
dele quando Vincent chegou ao canto,
ajoelhando-se, sentando-se sobre as
pernas, segurou sua pistola vazia.
– Vincent! – gritou Corrado, com
pânico na voz.
Vincent olhou na direção deles.
Carmine soltou um suspiro ao olhar o
rosto de seu pai. A cor havia
desaparecido; sua pele estava
acinzentada e seus olhos inertes e sem
vida. Ele ainda conseguiu dizer alguma
coisa em voz baixa, mas Carmine não
pôde ouvi-lo; no entanto, o que quer que
tenha sido fez com que os passos de
Corrado vacilassem. As sirenes se
tornavam cada vez mais altas. Corrado
negou com a cabeça, com firmeza e raiva,
mas Vincent acenou com determinação.
– Saia daqui, Carmine! – gritou
Corrado.
Carmine começou a correr na direção
deles, ignorando a ordem do tio, mas
ficou petrificado ao ver seu pai erguer a
arma e apontar para o próprio queixo.
– Não! Pai, não!
Os olhos de Vincent se fecharam e seu
dedo tremia violentamente no gatilho.
Corrado abaixou a cabeça e suspirou
fundo, dizendo com a voz baixa:
– Perdonami.
Perdoe-me.
Sem hesitar, Corrado ergueu a arma e
puxou o gatilho. Um grito rouco vibrou no
peito de Carmine e dolorosamente subiu
pela sua garganta, quando a última bala
atravessou o cérebro de seu pai. Vincent
caiu para trás, imóvel sobre o gramado.
Carmine caiu ao mesmo tempo, sem
conseguir se mover, apenas tremendo e
soluçando de dor.
Corrado passou por ele e se aproximou
da piscina. Pegou a arma de Carmine e a
sua própria, as limpou com a camisa e as
atirou na água com cloro. Seus olhos se
voltaram para a carnificina. Havia corpos
espalhados por todos os lados.
As sirenes estavam agora bem
próximas e as luzes dos carros de polícia
já invadiam a propriedade. Corrado
ergueu as mãos e se atirou ao chão antes
que o mandassem fazê-lo. Carmine se
virou de bruços e fez o mesmo que o tio.
Carmine estava completamente confuso
e atordoado quando os policiais
algemaram os dois. Corrado deitado ao
lado dele na grama, murmurava para si
mesmo em italiano. Levou um momento
para que Carmine percebesse que o tio
estava rezando. O jovem perdeu o
controle ao ouvir aquilo e soltou um
soluço forte ao ver um lençol branco
sendo colocado sobre o corpo sem vida
do pai. O tecido imediatamente se tingiu
de vermelho.
Carmine tentou silenciar seus gritos
quando os oficiais puxaram Corrado do
chão e o levaram, mas não fazia sentido.
Ele estava totalmente perturbado.
– Sete mortos, incluindo o doutor
DeMarco – disse um oficial. – Ainda
aguardando a confirmação sobre outros
seis.
– Ande com isso – retrucou uma voz
vagamente familiar. – Alguém lá dentro?
– Apenas a vítima de tráfico que
DeMarco avisou que estaria aqui – disse
o homem. – A moça não quer falar nada,
então não sabemos sequer o nome dela.
– Dê algum tempo a ela, falará ao
perceber que está segura.
Passos se aproximaram e Carmine
ouviu a voz familiar chamar seu nome.
Ele olhou para cima e se deparou com o
agente especial Cerone, que se abaixou e
abriu as algemas do garoto, suspirando ao
pegar a mão dele e olhar o ferimento.
– Chamem um médico para cuidar
desse ferimento, por favor.
– Sim, senhor.
Cerone olhou Carmine por um
momento enquanto ele se sentava.
– Bem, você terá de prestar um
depoimento, mas estará livre pela manhã,
desde que coopere. Quer fazer alguma
declaração agora?
Carmine passou a mão no rosto,
tentando enxugar as lágrimas e gemeu ao
perceber que tudo o que fez foi espalhar
sangue em sua face.
– Abby – ele disse em voz baixa. A
garganta dele doía de tanto gritar e a
palavra quase não foi ouvida.
– Abby?
– A garota lá dentro – disse Carmine. –
O nome dela é Abby.
Capítulo 37
A sala de interrogatório na central de
polícia cheirava como se alguém tivesse
tentado limpá-la com urina velha.
Corrado fez uma careta e suspirou
profundamente, sentindo o forte cheio de
amônia e água sanitária queimando seus
pulmões. Olhando para o outro lado da
mesa, na sua frente, ele encarou o agente
especial Cerone com tédio.
O agente se preparou para falar, mas
Corrado o interrompeu antes que pudesse
começar:
– Eu não estava lá. Eu estava em casa.
Estava sozinho, dormindo, e ninguém me
viu.
O agente ficou boquiaberto.
– Eu o vi esta noite, senhor Moretti.
Corrado ergueu as sobrancelhas.
– É mesmo?
– Claro.
– Tem certeza?
– O senhor foi preso na cena do crime.
– Fui?
– Há algo de errado com a sua
memória?
– Talvez – respondeu Corrado. – Acho
que não me lembro de nada desta noite –
completou, mantendo um olhar de
indiferença à medida que o agente o
encarava sem acreditar no que ouvia. O
oficial se recompôs rapidamente,
cerrando os dentes enquanto virava as
folhas de seu caderno de anotações. Ele
tinha centenas de documentos, mas nada
que o preparasse para enfrentar Corrado.
– Sabe, Vincent DeMarco era um bom
homem.
– Era? – perguntou Corrado. –
Aconteceu algo com ele?
Exasperado diante daquela situação, o
agente acenou negativamente com a
cabeça.
– Você vai mesmo se fazer de idiota,
não é?
Corrado deu de ombros.
– Bem, como eu estava dizendo, ele
era um bom homem. Acho que o julguei
mal. Ele não era egoísta nem insensível.
Preocupava-se com sua família e faria
qualquer coisa por eles. E então comecei
a pensar… Talvez o senhor seja igual a
ele. Talvez eu estivesse errado em
relação ao senhor também.
Os lábios de Corrado formaram um
sorriso sarcástico.
– Duvido.
O agente o olhou por um momento
antes de cair na risada. Corrado era
esperto demais para cair nas táticas
psicológicas da polícia. Ele já passara
por tudo aquilo antes e conhecia os
truques utilizados.
– É provável que tenha razão. Só por
curiosidade, o senhor aceitaria passar
pelo polígrafo?
– Não – ele respondeu. – É contra
minha religião.
O agente franziu o cenho.
– Como disse?
– Somente Deus pode me julgar. E eu
certamente não confiaria numa máquina
para fazê-lo.
– Só teria de temer a máquina se
pretendesse mentir. Planeja mentir?
– Não, planejo ficar só aqui, sentado
mesmo.
O agente soltou um suspiro.
– Quando começou a ser assim tão
sarcástico?
– Não sei se entendo o que está
dizendo – disse Corrado. – Aliás, nem sei
o que estou fazendo aqui.
– Vejo que estou perdendo meu tempo
– retrucou o agente Cerone. – Há algo que
gostaria de dizer antes que acabemos com
isso?
– Só que gostaria de ver meu
advogado.
O agente Cerone reuniu suas coisas
sem demonstrar surpresa.
– Mas é claro. Aguente firme. Vai
demorar um pouco até que o senhor seja
liberado, mas acho que vai sair com
tempo de ir ao funeral.
– Funeral de quem?
– Vincent DeMarco.
– Vincent está morto?
O agente acenou negativamente com a
cabeça.
– Pelo menos é consistente no que fala.
Mas, sim, ele está. Eles devem avisar a
família a qualquer momento.
Quando o agente já se preparava para
sair, a expressão de Corrado mudou.
Estava cansado demais para manter
aquela charada. Ele se aprumou na
cadeira e olhou a parede à sua frente,
sentindo um frio no estômago…
demonstrando certa ansiedade. Ele já não
percebia mais o cheiro da sala. Agora sua
preocupação se mostrava ainda mais
forte.
– Espere – disse ele, interrompendo os
passos do agente.
– Sim, senhor Moretti?
– Preciso fazer uma ligação.
O agente suspirou.
– Seu advogado está na sala ao lado
com Carmine DeMarco. Eu o mandarei
entrar assim que terminarmos lá.
– Não precisa chamar meu advogado –
ele retrucou. – Quero ligar para a minha
esposa.
– Sua esposa não poderá ajudá-lo neste
momento.
Corrado olhou para o homem.
– Ela vai achar que fui eu?
– O quê?
– Disse que eles a notificariam logo.
Assim que chegarem à porta da minha
casa, ela pensará que eu morri.
Naquele momento, o rosto do agente
ficou confuso e seus lábios franziram.
– Seu irmão, seu marido… Ela ficará
mal de qualquer modo. Os oficiais
explicarão o que aconteceu.
– Eu fiz uma promessa a ela. Disse que
jamais a deixaria novamente – retrucou
Corrado. – Não quero que ela pense que
quebrei minha promessa, mesmo que por
um único momento.
O agente franziu as sobrancelhas.
– Como pôde fazer uma promessa
dessas a ela com a vida que leva? É
óbvio que um dia irá quebrá-la.
– Não – ele respondeu. – Não há nada
que não faria para cumprir minhas
promessas.
– Mesmo que isso implique matar?
Corrado apenas encarou o agente, que
também o olhou com firmeza. O oficial
desistiu primeiro, embora um suspiro
ainda ecoasse em seu peito ao olhar para
o outro lado. Franzindo o cenho, ele tirou
Corrado da sala de interrogatório e o
levou para um cubículo, em que pegou um
telefone preto e o entregou na mão dele.
– Tem cinco minutos.
Corrado ligou imediatamente para
casa, mas demorou bastante até que a
esposa o atendesse. De fato, ele estava
quase desistindo quando ouviu a voz de
Celia. Embora ela falasse com hesitação,
ele conseguiu perceber que não estava
magoada. Preocupada, mas não de
coração partido. Ela não havia recebido a
notícia ainda.
– Alô?
– Pensei que não fosse atender.
Celia soltou um suspiro.
– Corrado, por que o identificador de
chamadas está dizendo que esta ligação
está vindo da central de polícia de Cook
County?
– É uma longa história.
– E ela termina com você sendo preso
novamente?
– Não – ele disse, olhando para si
mesmo e observando as algemas nos
pulsos. – Tecnicamente não.
– Precisa que eu o tire daí? – ela
perguntou. – Não acho que consiga
arrumar o dinheiro da fiança até amanhã
cedo, embora possamos ter…
– Celia, pare de falar. Não estou
ligando por minha causa. Posso cuidar de
mim mesmo.
– Carmine! – Ela ficou desesperada. –
Ah, meu Deus, o que foi que ele fez? Ele
está bem?
– Ele está… – Corrado acenou a
cabeça. – Carmine ficará bem. Também
não é sobre ele. É sobre o pai dele.
A linha ficou muda por alguns
momentos. Se ele não tivesse detectado a
respiração regular da esposa, poderia ter
imaginado que ela desligara.
– Celia, Vincent está…
– Não… Por favor, Corrado, apenas
não diga isso.
– Sinto muito, bellissima.
Antes que ela pudesse reagir, antes que
ele pudesse dizer outra palavra, o agente
esticou a mão e desligou o telefone,
encerrando a ligação.
– Você tem muita coragem – disse
Corrado, com os dentes cerrados.
– Queria lhe contar pessoalmente e já o
fez – respondeu o agente. – E eu não
precisava lhe conceder esse favor.
Desorientado, Carmine sentia como se
a sala de interrogatório se movesse; as
paredes cinza-escuro pareciam se fechar.
Mesmo com o ar gelado soprando sobre
ele, resfriando sua pele tensa, seu corpo
parecia estar em chamas. O suor pingava
de sua camisa rasgada e manchada de
sangue, deixando-o desconfortável.
O rapaz tentava explicar tudo o que
acontecera, mas não conseguia pensar de
maneira clara. Tudo aquilo era demais
para ele. O agente Cerone e um outro
homem, cujo nome Carmine não se
lembrava de ter ouvido, estavam sentados
à frente dele, enquanto o doutor Borza se
mantinha à sua direita. O advogado pedia
a Carmine que cooperasse, mas as luzes
fluorescentes piscantes não permitiam
que ele se concentrasse.
– Quem atirou primeiro?
– Não me lembro. Foi tudo muito
rápido.
– Quantas pessoas estavam atirando?
– Eu não faço ideia. Algumas.
– Você também disparou alguma arma?
– Não.
– E quanto a Corrado Moretti?
– Não sei dizer. Eu já disse, tudo
aconteceu rápido demais.
– Bem, e o que você fez quando o
tiroteio começou?
– Nada.
– Nada?
– É, nada.
– E não viu o que aconteceu?
– Tiros.
– Quantos?
– Muitos. Eu não contei.
– Quem estava envolvido no tiroteio?
– Eu não sei.
– Então poderia ter sido Corrado?
– Poderia ter sido Jimmy Hoffa!
– Eu apreciaria se não agisse com
sarcasmo. Essa é uma situação séria.
– Não estou sendo sarcástico. Eu já
disse que não vi. Não vi quem atirou
primeiro, quem atirou em quem, quem
está morto ou quem está vivo. Só sei o
que eu fiz.
– E o que foi que você fez?
– Nada. Não fiz absolutamente nada.
Eles continuaram em círculos, obtendo
as mesmas respostas vagas para as
mesmas perguntas. Ele não viu nada, não
fez nada e não conseguia se lembrar de
nada.
E era verdade… Pelo menos
parcialmente.
Carmine não sabia o que esperavam
dele. Tudo de que conseguia se lembrar
era dos últimos momentos de seu pai.
Aquela imagem brutal o assombrava,
como se alguém tivesse pegado uma tocha
e queimado a cena em seu cérebro.
Morto… Seu pai estava morto.
À medida que o peito de Carmine se
contraía, uma lembrança surgia em sua
mente. Acontecera poucas semanas antes
de sua mãe ter sido assassinada, quando
seus pais levaram ele e o irmão ao
parque de diversão Six Flags. Ambos
entraram numa daquelas xícaras
giratórias, e o movimento foi tão brusco e
constante que, quando tudo terminou, ele
não sabia para que lado ir. Suas pernas se
dobraram ao deixar o brinquedo e seu
estômago se contorcia violentamente. Ele
simplesmente caiu ao chão e vomitou sem
parar no meio do parque.
Agora, dentro daquela sala, ele se
sentia exatamente igual. Confuso e
desorientado, atônito nas mãos da
polícia.
Vincent o havia colocado de pé
naquele dia no parque, ajoelhando-se
diante do filho. O rosto de Carmine ficou
vermelho e lágrimas de embaraço se
formaram em seus olhos. Ele os manteve
fixos no cimento, sem querer que ninguém
o visse chorar, especialmente seu pai.
– Você está bem? – perguntou Vincent.
Carmine hesitou, mas aos poucos ergueu
os olhos, acenando afirmativamente
enquanto via a expressão séria do pai. –
Todos caem em algum momento da vida,
filho, mas o truque é se levantar
imediatamente. As pessoas sempre terão
como alvo aqueles que parecerem
vulneráveis, então precisa ser forte. Finja
até conseguir.
Carmine não entendeu naquele
momento, mas seu pai estava lhe
oferecendo o primeiro conselho sobre
como sobreviver àquele estilo de vida, e
aquela fora uma lição que surgiu em sua
cabeça durante aquele tenso
interrogatório. Lágrimas não derramadas
queimavam seus olhos. Ele lutava para
represá-las, sem querer se dobrar sob o
peso do sofrimento. Precisava ser forte;
precisava manter-se firme.
Não podia deixar que aqueles filhos da
puta o vissem em pedaços.
O som de seu nome sendo chamado o
tirou daquele transe e o trouxe de volta à
realidade. O agente Cerone e o outro
sujeito o encararam, repetindo as mesmas
perguntas. Os ouvidos dele ainda zuniam
por conta do tiroteio incessante; aquele
barulho em sua cabeça o estava levando
ao limite. Ele cerrou as mãos, querendo
que tudo aquilo acabasse e franziu o rosto
quando a dor provocada pelo tiro em sua
mão subia pelo braço. Olhou para sua
mão e viu sangue pingando da bandagem.
Tudo ficou branco à sua frente e flashes
de memória começaram a surgir diante de
seus olhos. Ele segurou seu próprio
colarinho. O ar estava tão denso que ele
achou que estava sufocando.
Sangue… Havia tanto sangue por
todos os lados.
Fechando os olhos, forçou-se a pensar
em mais alguma coisa, tentando evocar a
imagem de Haven. Ela estava livre, ele se
fez lembrar. Ela estava perseguindo seus
sonhos. Desde que estivesse assim, desde
que tivesse sua própria vida, tudo teria
valido a pena. A dor em seu peito, sua
mão latejando e o fato de ele estar ali
naquela sala. Tudo teria valido a pena.
Todo o sangue, o suor e as lágrimas que
ele derramara haviam valido a pena,
porque ela merecia tudo aquilo.
Ele sentia falta dela.
Deus, como sinto falta do meu beija-
flor.
Carmine estava tão envolvido em seus
pensamentos que se esqueceu de onde
estava, até que alguém o cutucou. Ele deu
um pulo, batendo no peito com a mão
machucada e fazendo uma careta ao abrir
os olhos. O agente Cerone se colocou de
pé ao lado dele e segurou em seu ombro,
erguendo as sobrancelhas e perguntando:
– Posso lhe arrumar alguma coisa? Um
copo d’água, talvez?
– Pode me deixar ir embora – ele
retrucou. – Quanto tempo vocês planejam
me manter aqui? Eu não fiz merda
nenhuma.
– Só precisamos lhe fazer mais
algumas perguntas.
– Não há nada mais para falar – ele
disse, acenando negativamente com a
cabeça.
– Quem é seu beija-flor? – perguntou
Cerone ao se sentar de novo.
Os olhos de Carmine se arregalaram.
– O quê?
– Há um momento você disse que
sentia falta de seu beija-flor.
O jovem o olhou em choque,
percebendo que havia dito aquilo em voz
alta, sem saber o que mais teria falado
sem perceber.
– Não vejo o que isso pode ter a ver
com o incidente desta noite – interrompeu
Borza. – Eu apreciaria se vocês se
mantivessem no assunto em questão.
– É justo. – Os olhos de Cerone se
mantiveram mais um pouco em Carmine.
– Há quanto tempo conhece Salvatore
Capozzi?
– Ele é meu padrinho – ele sussurrou.
A expressão no rosto de Cerone se
iluminou naquele instante. Carmine então
negou com a cabeça e esclareceu. – Ele é
meu padrinho de batismo.
– Ah, então ele é como um parente para
você?
– Ele era.
– Era? – Cerone perguntou com
curiosidade. – Está dizendo que não é
mais?
– Ele está morto, não está? – o jovem
retrucou.
– Ah, bem… Não.
Carmine encarou Cerone, esperando
que tivesse ouvido errado.
– Não?
– Não – repetiu o agente. Aquela
confirmação fez o coração de Carmine
disparar. Se Salvatore não estava morto,
sua vida estava em risco… Muito em
risco. Ele havia testemunhado tudo e
conhecia seus segredos sujos, os fatos
que ele, Salvatore, tentaria encobrir de
qualquer modo para evitar ser exposto.
Além disso, Carmine desobedecera a uma
ordem direta. Não havia como Sal
esquecer aquilo e perdoá-lo. Ele tinha
muito a perder se desse uma chance ao
afilhado. – Pelo que sabemos, ele
conseguiu se evadir do local. Temos
razões para crer que ele esteja ferido,
mas não há nenhuma evidência de que não
tenha sobrevivido ao ataque.
Carmine absorveu aquela informação,
tentando manter a expressão firme,
embora estivesse em pânico por dentro.
– Há quanto tempo você foi iniciado? –
perguntou o outro agente, casualmente
mudando de assunto.
Carmine o olhou, surpreso com a frieza
da pergunta.
– Iniciado no quê?
– La Cosa Nostra.
O jovem retrucou:
– Tá de brincadeira, né?
– Parece que eu estou brincando? – o
oficial perguntou, elevando o tom de voz.
– Sabemos que está envolvido, portanto
não faz sentido você negar.
– Você deve ter exagerado e assistido
demais a Scarface – ele resmungou. –
Essa coisa não existe, não é real.
O homem respirou fundo e olhou para
Carmine irritado.
– Sabemos que existe. Não somos
estúpidos.
– Nem eu – Carmine retrucou. – Leve
essas suas perguntas sobre a Máfia para
outra pessoa, porque não tenho nada a ver
com isso. Ponto. Fim de conversa.
Um silêncio tenso se fez presente na
sala antes que o agente Cerone limpasse a
garganta.
– Eu a vi, sabia?
– Quem? – perguntou Carmine. A
mudança de tópico o pegou de surpresa.
– Haven – explicou o agente, franzindo
os lábios ao tentar evitar um sorriso.
– Como…? – A confusão em sua mente
se aprofundou. – Como é que você…?
Você está mentindo.
– Não, não estou – ele respondeu. –
Estou pensando em ir atrás dela
novamente.
– Deixe-a em paz, pelo amor de Deus –
Carmine respondeu, colocando-se de pé e
empurrando a cadeira para trás. – Eu juro
por Deus que se você…
Antes que pudesse terminar, Borza
segurou seu braço e o puxou de volta para
a cadeira.
– Ameaçar as pessoas que meu cliente
ama não irá ajudar em nada.
– Eu não estava ameaçando ninguém.
Estava simplesmente dizendo que…
– Estamos todos cientes do que você
está dizendo – respondeu Borza –, e não
foi nada mais, nada menos que uma
ameaça velada. Você diz que quer a
cooperação dele, mas ainda assim traz à
tona o nome da senhorita Antonelli,
apenas para irritá-lo ainda mais.
– Não fiz isso – disse o agente Cerone.
– Pelo que sei, ele não dá a mínima para
ela. Na verdade, da última vez que
conversamos ele sequer admitiu conhecê-
la.
– Então por que falar sobre ela? –
retrucou Borza. – Eu já lhe pedi que se
mantivesse no tópico, mas me parece
óbvio que não tem a intenção de fazê-lo.
O senhor DeMarco concordou em
responder a suas perguntas, mas não tem
tal obrigação. Considerando o fato de que
há apenas algumas horas ele testemunhou
o assassinato do próprio pai, eu diria que
ele tem sido bastante cooperativo.
– Ele não nos deu nada – disse o outro
agente, encarando Carmine.
– Isso é porque ele não tem nada a
oferecer – respondeu Borza. – Não pode
arrancar o que ele não sabe. E por causa
disso acho que a conversa está encerrada.
Faça uma acusação formal ou deixe-o ir.
– Não temos de fazer nenhum dos dois
– retrucou o agente de maneira arrogante,
cruzando os braços sobre o peito. –
Temos todo o direito de detê-lo.
– É verdade, mas não farão isso. Não
apenas por meu cliente estar ferido, mas
também por estar traumatizado. A mídia
teria um prato cheio se soubesse que
vocês o detiveram… Como se já não
tivessem muitos danos a conter. Não
precisam da acusação de assediar um
jovem inocente para complicar as coisas.
– Assediar? Inocente? Ele é um deles!
– Ele? – perguntou Borza, olhando
para Carmine. – Acha mesmo que alguém
irá olhar para este jovem e considerá-lo
um criminoso?
O agente Cerone suspirou.
– É, tem razão.
O outro agente olhou para o colega sem
acreditar.
– Vai deixar que ele vá embora?
– Eu dei minha palavra – disse o
agente Cerone em voz baixa, empurrando
sua cadeira e olhando para o relógio. –
Aguardem um pouco enquanto cuido da
soltura do rapaz. Eu disse a você que o
deixaria sair pela manhã e parece que eu
estava certo, considerando que o sol logo
vai nascer.
Capítulo 38
Kelsey e Haven estavam sentadas na
lanchonete próxima ao prédio, numa
cabine perto da porta. Era manhã de
domingo do primeiro fim de semana de
suas férias de verão. Havia alguns outros
clientes no local, um casal de idosos a
pouca distância e uma família nos fundos,
e também dois homens bebendo café no
balcão.
Uma senhora usando calças cáqui,
blusa branca e um avental preto entregou
às garotas dois cardápios plastificados.
– O que as moças gostariam de beber?
– Café – respondeu Kelsey. – Com
creme, um pouquinho de leite desnatado e
três pacotes de adoçante. Ah, e dois
cubos de gelo.
– Também quero café – completou
Haven. – Mas puro, por favor. Você sabe,
comum.
A mulher retornou com as bebidas
enquanto Haven abria o cardápio e o
examinava. Kelsey disse uma lista de
itens, enfatizando sua necessidade por
bastante bacon, enquanto Haven pediu
uma pilha de panquecas. Por mais faminta
que estivesse, nada parecia lhe agradar.
– Providenciarei tudo num momento –
respondeu a garçonete, afastando-se
novamente e levando consigo os
cardápios.
Haven suspirou e tomou um gole de seu
café, enquanto olhava pela janela. Ela
ouviu quando um dos homens sentados ao
balcão pediu que a garçonete ligasse a
TV e, poucos segundos depois, o local
estava tomado pelo som das notícias.
As reportagens eram em sua maioria de
caráter político, com escândalos locais
dominando as manchetes. Ela investira
algum tempo aprendendo a respeito dos
partidos políticos de Nova York. O pai
de Kelsey mais uma vez estava
concorrendo a uma vaga no senado e
Haven sempre lhe perguntava sobre isso,
mas a amiga costumava evitar o assunto,
dizendo que aquilo não importava para
ela, que nem se incomodaria em votar se
o emprego de seu pai não dependesse
disso, afirmando que nada jamais
mudaria, independentemente de quem
assumisse o comando.
Haven nunca se contrapôs à amiga,
embora não concordasse. Abraham
Lincoln e o 38º Congresso dos Estados
Unidos aprovaram a 13ª Emenda, que
aboliu a escravatura. Woodrow Wilson e
o 66º Congresso norte-americano
aprovaram a 19ª Emenda, que garantia às
mulheres o direito de votar. Para Haven,
tudo aquilo importava.
Os dois homens começaram a debater
as questões mencionadas e pareciam estar
em lados opostos em cada detalhe. Ela
continuou tomando seu café enquanto a
discussão de ambos se tornou mais
audível. Eles falavam sobre controle de
armas e Haven congelou, derramando seu
café ao olhar de relance para a TV. Seu
estômago se contraiu ao ver o rosto
familiar na tela e seus olhos se voltaram
para o nome que aparecia na parte
inferior do vídeo: agente especial Donald
Cerone, Departamento de Justiça.
Deixando a xícara escorregar de sua
mão e bater com força na mesa, o líquido
quente queimou sua pele, fazendo-a
cerrar os dentes por causa da dor. Todos
ficaram em silêncio no local ao
perceberem a comoção da garota na
mesa, mas Haven os ignorou,
concentrando-se apenas na TV. Ela não
conseguia ouvir bem as palavras, por
conta da ardência na mão, mas sentiu
como se estivesse se afogando.
– […] fez uma declaração sobre o
incidente na cidade de Chicago […] um
grande embaraço para o departamento
[…] massacre na suposta mansão do
Chefão da Máfia, Salvatore Capozzi […]
que teria sido o incidente mais mortal na
história da organização criminosa […] o
debate sobre como as testemunhas devem
ser adequadamente ouvidas […].
Haven ficou petrificada ao ver a
imagem do doutor DeMarco na tela.
– O suposto membro da Máfia estava
desaparecido […]
– Meu Deus – disse o homem ao ver a
imagem de uma grande mansão e dúzias
de carros de polícia estacionados diante
de um cordão de isolamento amarelo.
– Uma testemunha dos agentes federais
[…] teria fornecido informações que
desencadeariam a invasão ao local […] o
tiroteio teve início antes da chegada da
polícia […] não têm certeza de qual era o
principal alvo […] um mandado foi
expedido contra Capozzi […]
supostamente ferido durante a troca de
tiros… – uma imagem de Salvatore
apareceu na tela com um número de
telefone no rodapé. Haven estremeceu e
lágrimas imediatamente se formaram em
seus olhos. – […] sete mortos no local
[…] vários levados em custódia […]
Haven respirou fundo ao ver a figura
de Carlo na tela, seguida de vários
outros. Vítimas, segundo eles, que já
estavam mortas antes de a polícia chegar.
Ela ficou em choque… Carlo estava
morto? A garota estava tão perplexa que
mal conseguiu registrar as palavras
seguintes.
– O funeral de DeMarco está marcado
para amanhã […]
Funeral.
Um dos sujeitos na lanchonete suspirou
exasperado.
– Um ótimo exemplo de por que
precisamos de um controle de armas
neste país.
– De jeito nenhum – retrucou o outro. –
Eles nos fazem um grande favor ao matar
uns aos outros.
Um forte soluço escapou da garganta
de Haven quando conseguiu registrar tudo
aquilo e ela levou a mão à boca para
abafar. Tremia de maneira incontrolável e
acenava com a cabeça furiosamente, sem
acreditar. Funeral? O doutor DeMarco
estava morto?
– Hayden? – chamou Kelsey. – Você
está se sentindo bem?
Haven tentou responder, mas assim que
tirou a mão da boca outro soluço ecoou
pela lanchonete. Ela saiu correndo da
mesa e quase caiu ao sentir que suas
pernas mal conseguiam segurar seu
corpo. Ela passou pela amiga e saiu pela
porta, desceu a rua às pressas até seu
apartamento. Kelsey gritou tentando
chamar a atenção da amiga, mas ela não
se virou. Lutando para encontrar as
chaves, entrou rapidamente e se encostou
à porta, fechando os olhos e tentando se
controlar. Aquelas palavras do noticiário
se repetiam em sua mente, mas não
conseguia compreender o que havia
acontecido. Como ele podia estar morto?
O que acontecera, afinal?
Depois de controlar a respiração, ela
abriu os olhos e secou as lágrimas que
escorriam pelo rosto. Então pegou o
telefone preto e discou o número de
Chicago, esperando ser atendida.
– Corrado Moretti. Deixe uma
mensagem.
Haven afastou o nervosismo que
sempre acompanhava aquelas chamas. A
queimação em seu peito foi aplacada por
outra sensação. Diante daquele choque,
de todo o horror que sentia e do medo,
ela se decidiu e as seguintes palavras
escaparam de sua boca:
– Estou a caminho de Chicago.
Haven saiu de seu apartamento no
escuro da noite, levando consigo apenas
uma pequena mala de roupas. Trancou o
apartamento e caminhou pelo quarteirão
até o estacionamento mais próximo,
pegando o elevador até o terceiro piso.
Localizou o Mazda parado precisamente
onde o havia deixado quase um ano antes.
A grossa camada de poeira cobria a tinta
e escondia os arranhões que ainda
adornavam o teto.
Custou-lhe quase todo o dinheiro que
tinha pagar pelo tempo que o carro ficara
estacionado ali e ainda encher o tanque
para iniciar a viagem.
Seu coração doía enquanto dirigia
rumo à estrada. Sua mente estava tomada
por pensamentos envolvendo doutor
DeMarco. Diferentemente do que
ocorrera tantas vezes no passado, em que
o incidente em que ele a punira sempre
voltava à sua cabeça, agora tudo em que
conseguia pensar era nos bons momentos:
o dia em que Vincent lhe dera uma foto de
sua mãe, os feriados, as risadas que
ecoavam pela casa e o olhar de orgulho
no rosto de Dominic ao se graduar. Ela
pensou em tudo que recebera de
DeMarco e na ocasião em que ele lhe
entregara as chaves de seu próprio carro
para que ela aprendesse a dirigir. Ele
sequer ficou irritado quando ela voltou
para casa com um arranhão no espelho.
Parecia que mais de um ano de boas
memórias tinham invadido sua mente e,
com elas, as lágrimas também inundaram
seus olhos. As palavras de Dominic
ressurgiram em sua cabeça, aquelas que
ele lhe dissera quando caminhavam perto
do rio em Durante:
– Já perdi minha mãe para esta vida –
ele disse. – Não quero perdê-lo também.
Dominic fizera Haven compreender
que não havia nada de errado em querer
mais da vida. Ele a ajudara a encarar
seus piores medos. Era mais que justo
que ela estivesse ao lado dele para
também ajudá-lo a suportar aquela dor.
Capítulo 39
Haven ficou sentada dentro do carro
estacionado próximo à guia; seu estômago
parecia uma gelatina enquanto ela olhava
para a porta azul da antiga casa. Ela só
havia estado ali uma vez, quando se
sentara no primeiro degrau ao lado de
Carmine. De algum modo, mais de um
ano se passara desde aquele dia… Mais
de um ano desde que ela o vira pela
última vez. Ela ficou imaginando se ele
ficaria feliz em revê-la ou bravo pelo fato
de ela ter vindo.
Tantos cenários inundaram sua mente
no momento em que ela saiu do carro e
atravessou a rua. Ela tentou controlar sua
ansiedade ao caminhar para a varanda,
mas antes mesmo que pudesse bater à
porta, ouviu seu nome vindo da rua. Sua
visão ficou turva e seu coração acelerou
no momento em que se virou e viu
Corrado, que se aproximava lentamente.
– Senhor.
– Fico feliz por saber que está bem. –
Ele a olhou intensamente, com uma
expressão séria em seu rosto. Haven
ficou nervosa, imaginando se seria errado
ela estar ali.
A garota entrou em pânico diante da
possibilidade de estar em perigo.
– Eu não sabia se deveria vir.
– Você fez bem em aparecer – ele disse
ao se aproximar.– Peço desculpas por
não ter ligado antes. Quando tive a
oportunidade, já havia recebido sua
mensagem, então presumi que alguém lhe
tivesse dito.
– Eu vi na TV – ela disse em voz
baixa. – Eles disseram que houve um
massacre.
Corrado zombou da palavra utilizada.
– Aquilo não foi um massacre. Se este
fosse o caso, ninguém teria sobrevivido,
mas Carmine e eu conseguimos sair
vivos.
– Carmine? – ela perguntou
horrorizada. – Ele também estava lá?
– Sim – respondeu Corrado. – E como
você pode imaginar, ele não está nada
bem. Depois do assassinato de Maura,
ele não falou uma única palavra com
ninguém por muito tempo. Parece que está
lidando com a morte do pai do mesmo
jeito.
– Meu Deus! – A queimação se
espalhou pelo peito enquanto seus olhos
se encheram de lágrimas. – Ele viu os
dois morrerem.
– É verdade.
– Ele está…? – ela perguntou,
apontando para a porta. – Ele está em
casa?
Corrado negou com a cabeça.
– Ele já foi para o funeral com minha
esposa.
– Ah…
– Pode vir comigo – disse Corrado. –
Estou esperando que um carro me apanhe
aqui. Há muito tempo para nos
encontrarmos com eles no cemitério.
Haven olhou para si mesma e reparou
em sua camiseta amarrotada e jeans
sujos. Ela vestia a mesma roupa desde a
manhã do dia anterior. Não tivera tempo
de se trocar.
– Não tenho nada comigo para usar.
– Deus não se importa com o que está
vestindo, Haven – disse Corrado. – Isso
também não importaria para Vincent. Mas
se isso a fizer se sentir melhor, tenho
certeza de que algo no armário de minha
esposa resolverá o problema.
– Ah, não, eu não poderia – disse
Haven, negando. – Eu não quero abusar
tanto de sua paciência.
Corrado soltou uma gargalhada.
– Depois de tudo o que já fiz, acho que
uma troca de roupas não é nenhum abuso.
Aquilo a fez ficar em silêncio.
– Venha – ele insistiu. – E sem
desculpas.
Haven o acompanhou em silêncio até a
casa dele e seguiu para o quarto de Celia,
para escolher algo para vestir. Ao abrir o
armário, ela foi direto a um vestido preto
e simples. Era um pouco grande, mas lhe
caiu melhor que o esperado.
Ela também tomou emprestado um par
de sapatos que, embora apertassem um
pouco, eram mais que adequados para o
momento. Ela não se preparou muito e em
menos de vinte minutos já estava de volta
à sala.
Corrado a esperava no andar inferior e
olhou para a porta ao ver o carro preto
estacionar na frente da casa. Ambos
entraram no veículo e Haven se mostrou
ansiosa, mexendo-se sem parar no banco
de couro.
– Eu tentei – disse Corrado em voz
baixa depois de alguns minutos. – Fiz
tudo o que podia por Carmine, mas
parece que está além de minha
capacidade. Ele é muito teimoso e
descuidado demais. Do jeito que vão as
coisas, a vida dele já está por um fio.
Por um fio? Aquelas palavras
reverberaram dentro dela, enquanto ela
sentiu um frio percorrer seus ossos.
– Você desistiu dele?
– Não importa… Não quando ele já
desistiu de si mesmo.
Antes que Haven pudesse responder, o
telefone de Corrado tocou. Ele o tirou do
bolso, soltando um longo suspiro ao
responder a chamada.
– Moretti… Sim, está tudo arranjado.
Tenho certeza de que tudo correrá
conforme os planos.
Ele desligou rapidamente, recolocando
o celular no bolso e voltando a se
concentrar na garota.
– Essa visita é temporária ou precisa
que suas coisas sejam trazidas de Nova
York?
Ele ficou sem resposta.
– Bem, eu… Eu não sei.
Corrado se virou para a frente e se
concentrou no caminho.
– Diga-me assim que se decidir.
O longo caixão em tom dourado se
destacava sobre o pequeno monte de terra
coberto de grama. Havia coroas de flores
coloridas por todos os lados. Uma
multidão de pessoas se reunira ali, dúzias
de pessoas vestidas com suas melhores
roupas, cabisbaixas e com os olhares
absortos, como se tentassem evitar
enfrentar a realidade. A tristeza e o
sofrimento envolviam a todos; a
atmosfera estava pesada e a dor pairava
no ar.
Haven fez uma pausa a alguns metros
de onde o funeral acontecia, suas pernas
estavam fracas. O corpo do doutor
DeMarco jazia naquele caixão, seu
coração já não batia e a vida o deixara
para sempre. Ele havia partido e jamais
voltaria a abrir seus olhos para enxergar
um novo dia.
O ar parecia ser forçado para fora dos
pulmões da garota diante daquele
pensamento, e sua visão ficou turva. Ela
deu alguns passos para o lado e encostou-
se numa árvore para recuperar o fôlego.
Corrado prosseguiu e se reuniu à
multidão. Ela os observou de longe
enquanto se recompunha, conseguindo
identificar de longe apenas Celia e
Dominic. Os demais estavam fora de sua
visão.
Ela queria se aproximar, desesperada
para ver Carmine, mas seus pés não se
moviam, apesar de todo o esforço que
fazia.
– Vincenzo era um homem leal –
declarou o padre, de pé ao lado do
caixão, segurando uma Bíblia contra o
peito. – Ele foi um marido e um pai, um
filho e um irmão. Não era um homem
perfeito, e certamente cometeu erros, mas
nenhum homem é perfeito. Todos nós
cometemos pecados; todos nos tornamos
vítimas da tentação. Vincenzo não era
diferente de ninguém.
– Soberba, luxúria, gula, preguiça, ira,
inveja e avareza. Os sete pecados
capitais. Ele lutava contra todos, tentando
equilibrar o que havia de bom e de ruim
em sua vida e, em muitas ocasiões, ele
falhou. Mas apenas pelo fato de ter
sucumbido ao mal que existe no mundo,
não significa que ele fosse um homem
mau. Vincenzo me visitou várias vezes
antes que sua vida chegasse ao fim e
expressou remorso por todo o sofrimento
que provocou e, por causa disso, tenho
certeza de uma coisa: apesar de suas
falhas, Vincenzo Roman DeMarco era um
verdadeiro homem honrado.
Choro e soluços podiam ser ouvidos
entre a multidão, mas Haven não
conseguia decifrar de onde vinham.
Quando o padre terminou depois de
alguns minutos, os presentes se revezaram
atirando longas rosas vermelhas sobre o
caixão, despedindo-se individualmente
do homem que jazia ali dentro. Haven
conseguiu identificar Tess e Dia, mas a
família estava à frente de ambas,
bloqueando a passagem.
Nervosa, Haven mexia as mãos sem
parar enquanto a multidão se dispersava,
descascando o esmalte rosa-claro que
cobria parcialmente suas unhas. Foi então
que viu Carmine pela primeira vez. Ele
estava usando um terno preto; os cabelos
estavam penteados para trás e a cabeça
abaixada, olhando para o buraco na terra.
As pessoas se dirigiam a ele ao se
despedir, mas ele não olhava para
ninguém. Apenas se mantinha ali, parado,
como uma fria estátua de mármore,
imóvel e em silêncio, de pé no mesmo
lugar.
Ela viu quando Celia acariciou as
costas de Carmine antes que ela e
Corrado se afastassem. Corrado colocou
a esposa na direção de Haven. Surpresa,
Celia sentiu as pernas vacilarem ao se
aproximar da jovem com um sorriso
caloroso e abraçá-la com carinho.
– Você está ótima, criança. Já faz tanto
tempo.
– Obrigada – agradeceu em voz baixa,
vendo o rosto de Celia vermelho e com a
maquiagem borrada de tanto chorar. –
Estou tão triste pela sua perda, Celia.
– Eu também, minha querida – ela
sussurrou, olhando de volta para Carmine
e franzindo o cenho antes de olhar de
volta para a moça. – Vá – ela disse,
apontando para o rapaz. – Certifique-se
de que ele volte para casa em segurança,
ok?
Corrado colocou o braço ao redor dos
ombros de Celia, acenando positivamente
para Haven, antes de levar a esposa
embora. Haven ainda permaneceu parada
ali por mais um momento, olhando para
Carmine, e imaginando se ela de fato
conhecia a pessoa que estava à sua frente.
Ele parecia tão diferente, desde sua
postura até o modo como estava vestido.
Tudo era tão estranho. Seus ombros
caídos mostravam um homem derrotado.
O jovem parecia alheio a tudo o que
havia ao seu redor.
Haven deu alguns passos na direção
dele, mas parou novamente ao vê-lo se
abaixar, pegar uma rosa e se aproximar
do túmulo. Ele se agachou diante da
lápide e depositou a flor no solo antes de
passar os dedos sobre as palavras
gravadas no mármore envelhecido.
Haven deu mais alguns passos, curiosa.
Foi então que percebeu onde estava.
Certa vez, ele lhe dissera que sua mãe
estava em Hillside. O coração da garota
bateu acelerado ao sentir que talvez
estivesse invadindo a privacidade de
Carmine. A lembrança dele sentado
diante de seu piano, com os ombros
caídos, chorando no dia do aniversário
da morte de Maura surgiu em sua mente e
a dor tomou conta de seu peito.
Nesse instante, ela deu um passo atrás.
Carmine deve ter sentido o movimento,
pois o corpo dele se enrijeceu; seus
ombros ficaram retos e ele ergueu a
cabeça, como se estivesse em alerta.
Algo na atmosfera havia mudado. O sol
da tarde desaparecia por trás das nuvens
pesadas, tornando o cemitério ainda mais
sombrio. Uma brisa suave fez balançar o
vestido de Haven, provocando nela um
frio na espinha.
Tudo pareceu acontecer em câmera
lenta. Carmine se virou em direção a
Haven e seus olhos se cruzaram. Ela
enfim viu o rosto do rapaz, com os lábios
franzidos e os olhos vermelhos e
inchados. A expressão vazia mudou
quando ele a viu, e seu rosto foi tomado
por emoções fortes; as mesmas que
surgiam dentro dela. Choque, descrença,
confusão, desespero, medo, saudade,
esperança, tristeza, sofrimento… Tudo
aquilo atingiu Haven imediatamente no
instante em que o viu em frangalhos;
aquele mesmo homem a quem ela
entregara seu coração e jamais o
recuperara.
Ela o amava, tanto quanto sempre
amou, e quando viu o mesmo sentimento
refletido nos olhos dele tudo fez sentido.
Afinal, apesar de tudo que havia mudado,
a despeito de tudo que não lhe parecia
familiar, independentemente da dor e do
coração partido, o amor entre os dois
ainda estava lá.
Naquele momento, algo parecia estar
certo novamente.
De um jeito hesitante, o rapaz deu um
passo em direção a ela, o que a fez sair
em disparada. Ela tirou os sapatos, os
jogou longe e correu para ele, tremendo e
chorando ao se atirar nos braços de
Carmine, que se firmou numa tentativa de
se manter de pé e se desequilibrou um
pouco ao abraçá-la. O corpo dele tremia
violentamente quando um gemido abafado
rasgou seu peito.
Nenhum dos dois disse uma única
palavra. Parecia que a garganta de Haven
estava bloqueada, o que tornava
impossível que ela pronunciasse qualquer
coisa; ela apenas chorava. Ela fechou os
olhos quando ele a abraçou, entregando-
se ao perfume e ao calor tão familiares.
Apesar de saber o quanto ele estava
vulnerável, do quanto o solo debaixo dos
pés dele parecia inseguro, ela se sentiu
tranquila nos braços dele. Era como se
tudo o que havia enfrentado e encarado se
resumisse agora àquele momento único
em que ela finalmente se sentia em casa
de novo.
Ele era o seu lar. Sempre fora.
Haven não sabia dizer quanto tempo
ficaram ali, entre os túmulos dos pais de
Carmine, abraçados um ao outro e
compartilhando todo seu sofrimento, sua
dor, seus corações partidos através de
suspiros trêmulos, compartilhando cada
lágrima salgada que escorria pelo rosto
dos dois. Podiam ter se passado alguns
minutos, ou até mesmo algumas horas. O
tempo mais uma vez congelou para os
dois.
– La mia bella ragazza – ele suspirou,
com a voz fracionada.
Aquelas palavras a fizeram sentir toda
a saudade que se acumulara desde a
separação. A garota fechou os olhos e
deixou que a eletricidade do toque de
Carmine percorresse suas veias.
– Carmine!
Ele se afastou por um segundo para
olhá-la. O rosto dele estava coberto de
lágrimas e seus cabelos estavam
alvoroçados. Ela esticou a mão para
tentar ajeitá-los, mas seus dedos logo
ficaram presos no que parecia um ninho
de produtos para fixar os fios.
– Seus cabelos.
Um sorriso triste surgiu no cantinho da
boca do jovem e, embora ele não tivesse
respondido, ela sabia que ele
compreendia. Ele esticou a mão e secou
as lágrimas que escorriam pelo rosto
dela, que fechou os olhos ao sentir o
toque carinhoso. Então, deslizou os dedos
pela face e pelo maxilar da garota,
gentilmente, explorando cada milímetro
de seu rosto. Em seguida, afastou um
cacho de cabelos e o colocou atrás da
orelha de Haven.
Também secando as lágrimas do rapaz,
Haven repetiu o que ele fizera, olhando
de modo peculiar para a pequena marca
na bochecha do jovem e passando os
dedos sobre ela. Ela nunca vira aquela
marca antes.
– Você tem uma nova cicatriz.
– Você é tão linda – ele disse,
esboçando um sorriso quando viu o rosto
dela ficar vermelho. – E continua ficando
envergonhada também.
– Você ainda me deixa assim – ela
sussurrou, olhando para ele. – Está
usando um terno.
Olhando para si mesmo, ele fez uma
careta.
– Eu ainda detesto ternos, mas é um
funeral – a voz dele falhou ao dizer
aquela palavra e ele se virou, respirando
de maneira profunda e calculada. Então
olhou para algo atrás dela. – Você estava
usando saltos.
– Eu ainda os odeio, mas… é um
funeral – ela disse, repetindo aquelas
palavras. – Você não está usando seus
tênis Nike.
– Gostaria de estar com eles – ele
murmurou. – Essa porra de sapato
machuca meus pés.
Ela segurou uma risada.
– E você ainda diz essa palavra.
– Que palavra? – ele perguntou,
erguendo as sobrancelhas quando ela não
respondeu. – Bem, acho que você ainda
não a utiliza.
Haven ergueu os ombros.
Ambos permaneceram ali por algum
tempo. Aquela conversa podia parecer
trivial, considerando-se a situação, mas
era a maneira de eles se reconectarem.
Lembraram-se de todos os detalhes a
respeito um do outro e tentavam
descobrir as novidades, à medida que o
conforto e a familiaridade se
restabeleciam. Inúmeras vezes ela
imaginou o que diria se voltasse a ver
Carmine, pensando no que ele
responderia ao vê-la, mas a garota nunca
pensou que o reencontro seria tão
reconfortante, como se nunca tivessem se
separado.
Ambos haviam mudado e aquilo era
óbvio. Bastava que ela olhasse para os
profundos olhos verdes do rapaz para
perceber que a escuridão pairava dentro
deles, mas ainda assim aquilo não o havia
consumido. Carmine parecia em
frangalhos, mas sua alma continuava
intacta. Foi como encontrá-lo pela
primeira vez, só que dessa vez já sabendo
exatamente quem ele era: Carmine
Marcello DeMarco… E, mesmo
parecendo um trapo velho, ele ainda era
muito bonito.
– Não consigo acreditar que esteja
aqui – ele disse, abraçando-a novamente.
Ele enterrou seu rosto nos cabelos da
garota para sentir o cheiro. – Isso tem que
ser uma porra de um sonho.
– Não é um sonho – ela respondeu. –
Eu estou aqui.
– E por quanto tempo?
Ela hesitou. O telefone de Carmine
tocou e a tensão entre ambos cresceu
quando ele fez um movimento para que
ela permanecesse onde estava. Ela o
olhou preocupada enquanto ele se
afastou, levando o fone até o ouvido e
falando em voz baixa para se assegurar
de que ela não ouvisse.
Ela sentiu algo forte na boca do
estômago. Sabia que a tranquilidade não
duraria para sempre, que aquilo que mais
parecia um encontro, não um reencontro,
se racharia em breve. Ele fazia parte
daquela vida e havia coisas sobre ele
com as quais ela não poderia se envolver;
coisas que ela jamais deveria saber.
Carmine guardava segredos que nunca
seriam compartilhados.
Sem querer parecer curiosa, Haven deu
um passo para trás e olhou para a lápide
no túmulo da mãe dele.
MAURA DEMARCO
ABRIL 1965 – OUTUBRO 1996
“AMA, RIDI, SOGNA – E VAI DORMIRE”
Às vezes eu perco a
perspectiva, mas parar e olhar
para os lados ajuda. Talvez eu
não tenha tudo, mas tenho mais
que o suficiente. E suficiente,
aos meus olhos, é bem mais do
que muitos possuem.