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A redenção

Sempre
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J. M. DARHOWER

A redenção
Sempre
Sempre
Série Forever, volume 2
Copyright © 2013 by Jessica Mae
Darhower
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Department, 1230 Avenue of the
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sejam quais forem os meios empregados:
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gravação ou quaisquer outros.

Diretor editorial: Luis Matos


Editora-chefe: Marcia Batista
Assistentes editoriais: Aline Graça e
Letícia Nakamura
Tradução: Sally Tilelli
Preparação: Gabriella Veiga
Revisão: Geisa Oliveira e Rinaldo
Milesi e Rinaldo Milesi
Arte: Francine C. Silva e Valdinei
Gomes
Capa: Rebecca Barboza

Dados Internacionais de Catalogação na


Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057

D232s
Darhower, J. M.
Sempre : a redenção / J. M.
Darhower; tradução de Sally
Tilelli. – São Paulo: Universo
dos Livros, 2016.
512 p. (Forever, v. 2)
ISBN: 978-85-7930-988-5
Título original: Sempre
Redemption
1. Literatura norte-americana 2.
Romance 3. Tráfico humano –
Ficção 4. Máfia - Ficção I.
Título II. Tilelli, Sally
16-0071 CDD 813.6
Capítulo 1
NOITE DE 12 DE OUTUBRO, ÀS 23H56,
CORRADO ALPHONSE MORETTI PARA DE
RESPIRAR.
Os ferimentos à bala provocaram um
grande sangramento em seu peito. Ele
sentiu uma forte contração no estômago e
uma tontura repentina. Como uma onda, a
dor se espalhou pelo corpo todo e, em
seguida, ele foi tomado por uma
dormência generalizada. Tudo ficou
embaçado; visões e sons se distorciam à
medida que a realidade se alterava e o
mundo ao seu redor esvanecia.
E então veio o nada. Não havia
nenhuma luz brilhante, nenhuma voz
confortante, nenhuma presença angelical.
Apenas a escuridão. Ele já não escutava,
não via e não sentia.
Depois de tudo o que Corrado fizera na
vida, esperava se deparar com o fogo do
inferno e o cheiro de enxofre, por isso
ficou no mínimo um pouco frustrado ao
não ver nada daquilo.
Poucos minutos depois, no momento
em que o relógio marcou meia-noite,
Corrado foi violentamente trazido de
volta à vida por meio de um
desfibrilador. Seu coração bateu outra
vez e seu corpo ficou saturado de
oxigênio. Entretanto, essa nova sensação
de paz logo se desfez: no instante em que
foi trazido de volta a esse mundo e
retirado da escuridão pós-morte, ele se
viu transportado para um momento do
qual quisera ter se esquecido para
sempre. Em sua cabeça, ele revivia o que
acontecera há uma década, não muito
longe daquele mesmo hospital encardido
no qual se encontrava. Ele estava tomado
por uma sensação de sangue, suor e
lágrimas. O quarto do passado estava
repleto com os mesmos sentimentos: dor
e sofrimento. Mas havia ainda no ar o
cheiro fétido da morte iminente.
Na ocasião, um dia quente de outubro,
Corrado estava de pé à porta do quarto
estéril, com os olhos fixos no menino.
Carmine DeMarco sempre fora um pouco
pequeno para sua idade, e parecia ainda
menor naquela enorme cama de hospital.
Tubos e fios ligavam seu corpo frágil a
várias máquinas espalhadas ao seu redor.
Mas nem mesmo os ruídos e bipes
emitidos pelos equipamentos eram
capazes de abafar a voz embargada que
soava ao lado do garoto.
Vincent DeMarco estava sentado
próximo ao filho, balançando o corpo de
um lado para o outro e murmurando
palavras para si mesmo. Corrado jamais
o vira tão fora de controle, tão agitado e
desequilibrado em toda a sua vida. Ele
mais parecia um animal feroz. A sanidade
parecia desaparecer com os cabelos
desgrenhados e a camisa encharcada de
sangue. Mas aquele não era o sangue de
Carmine, e sim de sua esposa, Maura, que
também fora derramado menos de 24
horas antes.
Aquela imagem deixou Corrado
nauseado. Fora a primeira vez que vira o
sangue de Maura, e certamente seria a
última. Ela estava morta e jamais
voltaria. Vincent, entretanto, ainda lutava
para aceitar esse fato.
– Ela não pode estar morta – ele dizia,
lutando para soltar as palavras presas à
garganta. – É tudo culpa minha.
Corrado queria dizer a ele que parasse
de repetir aquele absurdo, mas seria
perda de tempo. Seria impossível
confortá-lo. Nenhuma palavra seria capaz
de aliviar a dor. E, para ser honesto, ele
sequer conseguia imaginar a angústia
sentida pelo cunhado. Corrado não temia
a morte, não temia ir para a cadeia e
sequer tinha medo da danação eterna.
Mas havia uma coisa que jamais
suportaria: perder Celia. Ele havia jurado
amá-la, honrá-la, respeitá-la e… protegê-
la.
Não o surpreendia, portanto, o fato de
Vincent ter assumido tão prontamente a
responsabilidade e a culpa pela morte da
esposa. Ele falhara em sua promessa pois
não conseguira proteger Maura.
– É minha culpa – Vincent repetia. –
Ela se foi e a culpa é toda minha.
Soltando um suspiro profundo,
Corrado olhou para o sobrinho. Carmine
fora encontrado quase sem vida atrás da
Pizzaria Tarullo. Ninguém sabia até então
o que acontecera, mas uma coisa estava
clara: quem quer que os tivesse
emboscado, desejava que o garoto
também tivesse morrido.
Aquilo fazia com que Corrado se
sentisse ainda pior. Ele nunca gostara
muito de crianças, de todas as
necessidades que elas tinham e de suas
pequenas mãos grudentas por todos os
lados, mas havia uma coisa que ele
valorizava nelas: a inocência. Ele
invejava aquilo. Ao longo da vida,
Corrado já havia assassinado muitos
homens em nome da Cosa Nostra, mas
sempre se orgulhara de jamais ter matado
alguém que não merecesse realmente sua
ira.
Olhando para o sobrinho, tão indefeso
e vulnerável, Corrado não conseguia
imaginar o que teria levado uma criatura
a machucar um garotinho de 8 anos.
Aquilo era impensável. Algumas coisas
não eram toleradas nem mesmo pelos
homens mais ímpios e cruéis, e matar uma
criança era uma delas.
Mas agora as coisas eram diferentes.
Por mais que aquilo o enfurecesse, os
tempos estavam mudando e ele imaginava
o que aquilo tudo significaria para
Carmine. Com apenas 8 anos, ele fora
atirado de cabeça naquele estilo de vida.
Quando acordasse, se é que iria
despertar, seu mundo já não seria o
mesmo. Quisesse ou não, ele jamais
poderia escapar de seu destino. Não
depois do ocorrido. Agora ele fazia parte
daquilo e Corrado sabia que o menino
passaria o resto de sua vida tentando
compreender o caos em que se envolvera
por acaso.
O ódio exalava das entranhas do tio.
Era como se um rio de lava corresse em
suas veias. E quanto mais ele ficava de
pé naquele lugar, ouvindo as lamentações
de um homem devastado, mais furioso ele
se tornava. Tudo em que conseguia pensar
era se vingar dos dois homens que
haviam cometido aquele crime hediondo.
E não se tratava apenas de cumprir o
juramento que fizera perante a
organização: “olho por olho, dente por
dente”. Aquele era um desejo de seu
próprio coração despedaçado.
Uma década mais tarde,
milagrosamente o coração de Corrado
ainda batia nos monitores do quarto, e se
fortalecia a cada dia. Ele sobrevivera ao
tiroteio ocorrido naquele galpão
abandonado em Chicago. O assassino à
prova de balas viveria para ver outro dia.
No dia 1º de dezembro, depois de ficar
em coma por seis semanas, Corrado
Alphonse Moretti abriu os olhos.
Capítulo 2
O Mazda RX-8 preto acelerava pela
estrada de cascalho desgastado, vagando
e se embrenhando cada vez mais na
encosta de Blue Ridge Mountains. Haven
apertava o banco do passageiro à medida
que o carro casualmente tecia o caminho
da densa floresta.
– Por acaso estamos perdidos? – ela
perguntou hesitante, enquanto encarava o
namorado. Carmine estava relaxado no
banco do motorista e mexia no rádio. Os
óculos escuros escondiam o olhar dele,
portanto, ela não podia saber se ele
estava prestando atenção na estrada.
– Não.
Haven olhou pelo para-brisa, piscando
por causa da luminosidade da manhã.
Tudo parecia igual em todas as direções.
Não havia nada além das infindáveis
árvores que os rodeavam. Como ele
poderia saber?
– Você tem certeza?
– Positivo.
Ela balançou a cabeça. Teimoso.
– Aonde estamos indo?
– Você vai ver.
Ela ficou assustada quando ele girou o
volante para a esquerda, quase
derrapando para fora da estrada estreita.
O cinto de segurança a protegeu,
mantendo-a em seu lugar enquanto ela
respirava fundo. Antes mesmo que
pudesse soltar o grito preso na garganta,
Carmine estacionou ao lado de uma cerca
na lateral da estrada, desligou o carro e
se virou para ela com um sorriso de
satisfação.
– Viu? Não estamos perdidos.
Haven acenou com a cabeça e
observou a área. A princípio parecia não
haver nada de especial no lugar, apenas
uma pequena clareira entre as árvores
com uma cabana de madeira a alguns
metros de distância. Então, avistou a
placa branca desbotada: FAZENDA LANDELL
DE ÁRVORES DE NATAL, em letras verdes
pintadas a mão. O entusiasmo se agitou
dentro dela, mas a sensação desapareceu
quando leu: ABERTA DE 22 DE NOVEMBRO
ATÉ 22 DE DEZEMBRO.
Embora parecesse que o tempo havia
parado para os dois, o calendário contava
uma história diferente. Já era 23 de
dezembro e fazia um mês desde que
haviam retornado à pequena cidade de
Durante, na Carolina do Norte, numa
tentativa de retomar suas vidas… De
garantir um pouco de normalidade e
juntar as peças de seu relacionamento.
Lidar com as consequências do sequestro
era uma luta, mas eles enfrentavam isso
dia após dia… minuto a minuto…
segundo por segundo.
– Estão fechados, Carmine – ela disse,
franzindo o cenho enquanto saíam do
carro. Ela tremeu e fechou mais o casaco
para se proteger do frio. – Ontem foi o
último dia.
Carmine abriu o porta-malas e retirou
de lá um machado, colocando-o sob o
ombro.
– Eu sei.
Ela o observava boquiaberta enquanto
ele subia pela cerca de madeira que
cercava a propriedade e pulava para o
outro lado.
– Isso não é… invasão de
propriedade?
Ele estendeu a mão que estava livre
para ajudá-la.
– É mais como uma entrada não
autorizada.
– E qual seria a diferença?
– Um é contravenção – ele respondeu.
– O outro é delito.
Haven suspirou e quis responder, mas
o olhar do jovem implorava a ela que não
discutisse. Hesitante, ela concedeu e
pegou na mãe dele. Carmine a ajudou a
passar pela cerca, enlaçando os dedos
dela e apertando-os gentilmente.
– Tem certeza disso? – ela perguntou.
– Sim, tenho. É Natal, e o Natal é
sobre isso.
– Invadir propriedades?
– Não, escolher uma árvore bem bonita
e decorá-la com bolinhas coloridas e
outras coisas como festões. É sobre
visgos e presentes e piscas-piscas e
estrelas e família e gemada. Gemada pra
cacete, mas sem o ovo e a gema e aquelas
merdas que eles colocam no rum. É
nojento.
– Então o significado de Natal é…
rum?
Ele riu.
– Claro!
– E eu aqui imaginando algo a ver com
religião.
Carmine desviou os olhos para ela.
– Detalhes técnicos, tesoro. Apenas
detalhes técnicos.
Juntos, caminharam pela fazenda.
Haven de vez em quando parava e
apontava uma árvore, mas em todas as
vezes Carmine encontrava um defeito.
Muito pequena ou muito grande; muito
grossa ou muito fina; muitos galhos ou
poucos ramos. Ele as deixava de lado por
causa da cor, do formato e simplesmente
zombou quando ela sugeriu que olhassem
a pilha de sobras das árvores já cortadas.
– E que tal essa aqui? – ela perguntou
depois de algum tempo, parando em
frente a uma árvore um pouco mais alta
que ela. – Você gosta?
Carmine praticamente nem olhou:
– É muito pelada.
Haven franziu o cenho, sem ter certeza
do que ele queria dizer com a palavra
pelada. Os galhos pareciam bem cheios
para ela.
– Você é tão enjoado.
– Que seja – ele resmungou. – Vê
alguma outra?
– Ah… – ela olhou ao seu redor,
movendo-se aleatoriamente, e apontou
para outra árvore que estava a alguns
metros de distância. – O que acha
daquela?
Carmine a examinou. Ela esperou pela
reclamação, certa de que ele encontraria
um defeito, mas ele sorriu.
– Perfeita!
Ela ficou surpresa.
– Tem certeza?
– Sim, por quê? Não gosta dela?
Haven ergueu os ombros. Todas
pareciam iguais para ela, assim como
todas pelas quais haviam passado ainda
na estrada.
– Para mim está ótima.
Soltando a mão dela, Carmine estudou
a árvore, decidindo como levá-la. Haven
o observou por um momento,
considerando a cena surreal, e explodiu
em risos quando ele deu o primeiro
golpe, que sequer arranhou o tronco.
Carmine resmungou:
– O que é tão engraçado?
– Isso vai levar o dia todo – ela disse.
– Deveríamos ter apanhado uma das que
já estão cortadas.
– Isso é trapaça – ele retrucou. – Só
porque é mais fácil não significa que seja
o melhor a fazer. Às vezes é preciso se
empenhar.
Haven achava que invadir uma fazenda
de árvores de Natal já era uma trapaça,
considerando que eles poderiam ter
pegado um pinheiro pequeno no quintal
de casa, mas ela reconsiderou falar isso.
A frustração dele crescia a cada golpe do
machado e ela não queria piorar as
coisas.
Ele golpeou o tronco repetidas vezes,
até que a madeira enfim cedeu. Apesar do
frio, quando o pinheiro finalmente se
inclinou para um lado, ele já estava
ofegante e ensopado de suor. Sua testa
estava molhada e as gotas escorriam pelo
seu rosto e caíam pelo maxilar. Haven
observou a luta dele em silêncio,
enquanto um familiar sentimento de culpa
voltava a invadir suas entranhas. A culpa
estava sempre ali, à espreita, prestes a
atingi-la de modo violento quando ela
menos esperava, como uma víbora
assustada lutando por sua vida. Aquilo a
roía, envenenando-a e evocando o
sentimento de vergonha quando ela se
lembrava do que havia feito.
Este garoto – teimoso, altruísta e
estúpido – entregara a própria vida à
Máfia. Em troca da vida dela, ele cedera
o controle de seu futuro aos homens que
ele mais odiava. Pela segurança dela. E
foi tão fácil para ele, tão rápido, como se
nem tivesse de pensar muito a respeito de
tudo aquilo… Como se sacrificar-se por
ela fosse tão natural quanto respirar.
O fato o havia despedaçado e Haven
ainda tentava aceitar a ideia de que
poderia demorar até que se reconstruísse
e se sentisse completo outra vez. E, por
mais que ela estivesse grata por estar
viva, por mais abençoada que se sentisse
por estar ali, escolhendo uma árvore de
Natal com o garoto que tanto amava, ela
também estava furiosa. Não com ele…
não mais. Aquela raiva se mostrara
infundada. Ela estava brava consigo
mesma… com o universo, porque não
importava o que fizesse, ela não poderia
ajudar Carmine. Ela era impotente diante
do flagelo dele. Ela não teria como
colocar um fim àquele tormento. Não
havia jeito de salvá-lo.
Mais uma vez em sua vida, Haven se
sentia impotente.
Então ela ficou ali de pé em silêncio,
observando, com medo de olhar nos
olhos dele um dia e ver arrependimento.
Apavorada com a ideia de que, um dia,
pudesse ver seu maior temor no
semblante dele: ela não valia a pena.
Por fim, a árvore cedeu e caiu na
direção de Haven. Ela deu um pulo para
o lado, quase sendo atingida.
– Desculpe, tesoro – disse Carmine,
soltando o machado e puxando a camisa
preta de mangas longas, expondo o
abdômen definido enquanto enxugava o
suor da testa. – Isso foi bem mais difícil
do que eu pensei.
Ele sorria orgulhoso enquanto
arrastava a árvore para o carro. Haven
pegou o machado, surpresa pelo quanto
aquilo pesava, e o seguiu. Ele jogou a
árvore pela cerca como se não fosse nem
um pouco difícil e a ajudou a pular.
– O que vamos fazer com isso? – ela
perguntou.
– Amarrar em cima do carro e levar
para casa – ele respondeu, pegando o
machado dela. Então, colocou-o no porta-
malas e pegou uma corda, erguendo-a
para mostrar a ela.
– Tem certeza? – Haven perguntou
enquanto Carmine agarrava a árvore e a
posicionava sobre o teto do carro. Ela
não conseguia imaginar que chegariam em
casa sem causar algum dano.
Ele suspirou exasperado.
– É claro que tenho certeza, Haven. O
que deu em você hoje para repetir a
mesma pergunta tantas vezes? Não confia
mais em mim?
Ela ficou surpresa com a indagação,
não percebera que estava se repetindo.
– É claro que confio em você! Eu só
estava… querendo me certificar.
– Bem, acho que me questionar é
sempre melhor que dizer tudo bem – ele
respondeu, posicionando a árvore e a
amarrando. Galhos ficaram pendurados
por todos os lados do pequeno
automóvel, bloqueando metade do vidro
dianteiro e a maior parte do traseiro. – Se
quer saber, ainda acredito em tudo o que
digo.
– Eu sei – ela respondeu. – Eu também
acredito em você.
Carmine balançou a árvore para ter
certeza de que estava bem presa.
Satisfeito com o trabalho que fizera,
sinalizou para que Haven entrasse no
carro, contudo, ela não se moveu.
– Então, o furto é o quê? – ela
perguntou. – Seria uma contravenção ou
um delito?
Carmine a encarou por um momento
antes que a ficha caísse. Em vez de
responder, pegou a carteira, retirou um
pouco de dinheiro, pulou novamente a
cerca e correu até a porta da fazenda,
enfiando as notas por baixo da porta.
– Furto? – ele perguntou ao retornar
com um sorriso travesso. – E o que a fez
pensar que nós furtaríamos alguma coisa
hoje?

Haven estava certa.


Pequenos arranhões podiam ser vistos
no teto do carro, um deles era mais
proeminente e bem no centro. Carmine
passou o dedo indicador sobre a marca.
– Cacete de árvore.
– Será que é fácil de consertar? –
perguntou Haven.
– É – ele respondeu. – É que detesto
ver meu bebezinho machucado. Devíamos
ter ido com a Mercedes do meu pai. Os
novos arranhões combinariam com aquele
que você deixou no retrovisor.
Haven sorriu ao se lembrar de sua
primeira aula de direção.
– Prefiro dirigir o seu.
– Prefere? – Carmine perguntou,
olhando para ela com genuína
curiosidade. – Então você gosta do
Mazda?
– Gosto – ela respondeu. – É legal.
Parece aconchegante e familiar. Além
disso, nunca fui jogada no porta-malas do
seu carro.
Carmine piscou rapidamente,
afastando-se dela e olhando para a árvore
deitada no jardim da frente. Em seguida
ele a pegou pelo tronco e a arrastou em
direção à casa, deixando uma trilha de
galhos pelo caminho.

As horas seguintes foram repletas de


atividades. Vincent se juntou a eles na
sala de estar, trazendo consigo um suporte
para a árvore e uma caixa de artigos de
decoração. O restante da família
apareceu depois. Eles haviam acabado de
colocar os piscas-piscas quando o irmão
de Carmine, Dominic, entrou pela porta.
Eram as férias de inverno na
Universidade de Notre Dame. Ele atirou
suas malas no chão do hall e correu na
direção de todos, derrubando Carmine no
chão. Bagunçou divertida e irritantemente
os cabelos do irmão antes de agarrar
Haven num abraço.
– Pé de Valsa! – ele a girou no ar em
círculos. – Senti sua falta, garota.
– Você a viu há um mês – Carmine
resmungou, colocando-se de pé. Uma dor
se espalhou pela espinha quando se
alongou, e ele fez uma careta.
– E oi pra você também, otário.
Dominic riu e colocou Haven no chão
antes de empurrar o irmão. Carmine se
desequilibrou e caiu sobre a árvore,
deixando-a torta.
– Também senti sua falta, cara. Estou
feliz em te ver.
Carmine revirou os olhos, fingindo
irritação diante dos modos do irmão, mas
um pequeno sorriso involuntário surgiu
em seus lábios. Não podia negar que
sentia falta da leveza e da
despreocupação que geralmente
acompanhavam a presença de Dominic.
Carmine sempre invejara aquilo – a
habilidade do irmão de amenizar
qualquer situação. Eles sem dúvidas
teriam apreciado aquele dom ao longo do
último mês, em que todos pareceram
caminhar sobre cascas de ovos, tentando
ignorar a realidade, mas, ao mesmo
tempo, temendo que uma bomba nuclear
fosse detonada a qualquer momento
naquela casa.
O futuro de Carmine, o passado de
Haven, as acusações contra Vincent, a
saúde de Corrado… Essas palavras
estavam sempre na ponta da língua de
Carmine, mas nunca eram pronunciadas
nas conversas do dia a dia. Todos
estavam sempre falando, mas ninguém
dizia porra nenhuma.
Aquela situação não se prolongaria
para sempre, e Carmine sabia. Uma vez
que o resto da família estivesse reunido e
aquela bolha de paz fosse invadida, todos
aqueles problemas já não poderiam ser
ignorados. Eles estavam prestes a ser
pressionados por todos os lados,
gostando ou não.
Uma parte de Carmine estava aliviada
e a outra, aterrorizada. O fato de aquele
barco ter sido violentamente sacudido
abria caminho para a possibilidade de ele
naufragar e, caso acontecesse, ele não
poderia garantir que ninguém iria se
afogar ao cair na água.
Ele só esperava que isso não
acontecesse com ele e Haven.

Celia e Corrado não demoraram muito


a chegar depois de Dominic. Carmine
acabara de colocar o último ornamento na
árvore quando ouviu uma batida suave na
porta da frente. Mas antes que qualquer
um se movesse, a porta se abriu e a voz
de Celia pôde ser reconhecida.
– Toc, toc… Tem alguém em casa?
Os dois também largaram suas malas
no hall de entrada. Celia entrou
rapidamente na sala de estar, abraçando
os meninos e Haven, antes de se
concentrar no irmão. Sua voz estava alta
e animada, e era possível sentir o amor
em cada palavra enquanto cumprimentava
cada um. Corrado, em contrapartida, só
chegou até a porta da sala, de onde
observou a interação dos outros em
completo silêncio.
Carmine o olhou com cautela. Ele não
havia visto Corrado desde o galpão,
quando o viu cair em meio a uma poça de
sangue. Nunca se sentira muito próximo
dele. Na verdade, ele o temia mais do
que qualquer outra coisa. Todavia, agora
parecia existir algo mais entre ambos;
algo maior e mais forte. Havia um
profundo respeito e quase uma
admiração.
Pela primeira vez na vida, Carmine
sentiu que podia se relacionar com ele.
Corrado, entretanto, não demonstrava
sinais de que o sentimento fosse
recíproco. Seu silêncio, mesmo depois de
ser cumprimentado por Vincent, abrigava
uma mensagem mais profunda do que
qualquer palavra seria capaz de
transmitir. Ele ficou ali, parado, alheio a
tudo o que acontecia, como se não tivesse
nada a dizer a ninguém. Sua pele estava
mais pálida que de costume, seu corpo
frágil apresentava uma figura quase
esquelética; a escuridão permanecia em
seus olhos e parecia até ter se
aprofundado ao longo daquelas semanas.
Se algo havia mudado, era certamente o
fato de que ele parecia ainda mais
aterrorizante.
Os olhos de Corrado se cruzaram com
os de Carmine depois de um momento;
estavam tão escuros que pareciam quase
negros. Não havia nenhum brilho neles,
nenhuma emoção. Aquilo fez que Carmine
sentisse um frio na espinha, e a afeição
que acabara de surgir foi logo substituída
por apreensão. Carmine se perguntava se
Corrado também sentia o que estava no
ar, porque ele se virou de repente, pegou
as malas e subiu a escada mancando, sem
dizer uma única palavra.
Carmine não fazia ideia do que dizer, e
o mesmo se aplicava a Haven e a Vincent,
que também ficaram sem palavras. Mas,
como esperado, Dominic não deixava
nada escapar.
– Ei, será que não merecemos nem um
olá?
Celia sorriu com tristeza.
– Não levem para o lado pessoal. Ele
ainda está se adaptando. Deem a ele
algum tempo para se reaproximar.
Pelo olhar de Vincent, Carmine
suspeitava de que seu pai não acreditara
na explicação da irmã.
Capítulo 3
O sol já começava a se pôr quando
todos se reuniram na sala de estar para
assistir a um filme. Sombras esguias se
esticavam pelo chão, decoradas pelas
luzes coloridas e brilhantes da árvore de
Natal. Antes de ligar para Tess – sua
namorada – e convidá-la para se juntar a
eles, Dominic pediu comida chinesa pelo
telefone. A jovem também estava em
férias da faculdade, visitando a cidade.
Em poucos minutos, Tess chegou e logo
se apertou numa poltrona ao lado de
Dominic, que segurava uma bacia de
pipoca. Haven e Carmine estavam
sentados no sofá, tão próximos que os
braços se tocavam. Celia pediu desculpas
e subiu para ficar com o marido; Vincent
afirmou ter trabalho para fazer no
escritório e também subiu.
– O que o doutor DeMarco está
fazendo? – Haven perguntou em voz
baixa, inclinando-se em direção a
Carmine. – Ele praticamente não fica
mais conosco.
– É, acho que ele está planejando
alguma coisa.
– Como o quê?
– Eu gostaria de saber – ele respondeu.
– Mas momentos desesperadores exigem
medidas desesperadas, portanto, seja lá
qual for o problema, a situação deve ser
complicada.
– Você acha que algo vai acontecer? –
ela perguntou, demonstrando certo pânico
na voz.
Carmine deu um sorriso seco.
– E quando é que não acontece?
Nesse momento a paz foi interrompida
pelo som de várias batidas na porta da
frente. Todos se olharam, mas ninguém
ousou se mover. Carmine se levantou,
acenando a cabeça e dizendo:
– Por favor, não se levantem todos ao
mesmo tempo.
– Eu teria atendido – disse Haven –,
mas não tenho nenhum dinheiro.
– Eu sei – ele respondeu. – Não se
preocupe.
– Obrigado, DeMarco – disse Tess,
atirando uma pipoca contra o cunhado. –
Pelo menos você serve pra alguma coisa.
Ele mostrou o dedo do meio a ela.
Tess torceu o nariz.
– Enfia esse dedo no rabo.
– Vai se foder.
Carmine seguiu em direção ao hall já
pegando sua carteira e o dinheiro. A
pessoa à porta continuou batendo de
maneira impaciente e com força.
– Jesus, já estou indo. Quem você
pensa que é para bater assim nessa bosta
de por…?
Ele ficou congelado ao abri-la e se
deparar com um distintivo dourado e
brilhante na altura de seus olhos.
– Polícia – disse o oficial com a voz
severa.
A resposta de Carmine foi automática:
– Não tenho nada a dizer.
– Você nem sabe o que eu quero –
respondeu o oficial, soltando uma risada
e se divertindo com a reação de Carmine.
– Sou o detetive Jack Baranski. Há uma
garota aqui chamada Haven?
– Por quê? – perguntou Carmine.
– Gostaria de falar com ela sobre um
rapaz chamado Nicholas Barlow.
Os músculos de Carmine se contraíram
na mesma hora e seu coração disparou ao
se lembrar da imagem brutal de seu
melhor amigo morto no jardim.

O som alto de um tiro à distância. Um


grito no ar. Nicholas caindo de joelhos e
segurando o peito enquanto abria a
boca para dizer palavras que jamais
seriam pronunciadas. Só restara o
silêncio. O rapaz morrera na hora.
Ele estava morto. O filho da puta
estava morto.

– Só levará alguns minutos – disse o


detetive quando Carmine não respondeu.
– Posso entrar?
Carmine acenou negativamente a
cabeça, quase sem conseguir falar.
– Vá embora.
No entanto, antes que o rapaz tentasse
bater com a porta no rosto do policial, a
voz de Vincent pôde ser ouvida ao fundo:
– Deixe-o entrar, filho.
Carmine se virou para o pai e o viu de
pé na escada. Talvez ele não ouvira
corretamente. Vincent DeMarco jamais
permitiria que um policial entrasse em
sua casa.
– Como é?
– Você me ouviu – disse Vincent
descendo os últimos degraus e
caminhando em direção ao hall. – Deixe
que ele pergunte o que quiser.
– De jeito nenhum – Carmine retrucou.
O jovem estava prestes a perguntar ao pai
se ele havia perdido a cabeça, quando o
irmão o interrompeu.
– Cadê a comida? Estou morrendo de
fome – disse Dominic, saindo da sala de
estar e dando de cara com a situação.
Seus olhos se arregalaram ao ver o
oficial. – Caramba, definitivamente você
não é o entregador de comida chinesa! O
que foi que você aprontou dessa vez,
maninho?
Carmine rosnou. Por que Dominic
sempre presumia que Carmine tivesse
feito alguma coisa?
– Ele não está aqui por causa de
Carmine – disse Vincent. – Ele só quer
fazer algumas perguntas a Haven, e logo
irá embora.
Resmungando, Carmine saiu do
caminho para que Vincent conduzisse o
detetive até a sala de estar. Dominic se
desculpou e subiu para o quarto, levando
a namorada junto. Carmine já se
preparava para fechar a porta quando o
rapaz da entrega estacionou bem atrás do
carro do policial, que não apresentava
qualquer identificação. Carmine pagou o
sujeito, bateu a porta, colocou o jantar no
balcão da cozinha e correu para a sala de
estar.
O jovem se sentou no braço do sofá,
bem ao lado de Haven, sem querer se
afastar dela enquanto o detetive
pigarreava.
– Eu preferiria conversar com ela a
sós, se vocês não se importam.
– Bem, infelizmente para você eu me
importo – disse Vincent. – Eu o convidei
para entrar, mas você não me fará sair.
– Muito bem – disse o detetive,
retirando um pequeno bloco de notas do
bolso. – Haven, você conhece Nicholas
Barlow?
Haven entrelaçou os dedos e começou
a gaguejar.
– Sim. Bem, eu sei quem ele é, mas eu
não o conhecia muito bem, digo, eu não o
conheço… muito bem.
Seus olhos em pânico se voltaram para
Carmine rapidamente, antes de se
concentrarem no chão.
– Quando o viu pela última vez?
– No final de setembro – ela disse. –
Carmine teve um jogo de futebol naquela
noite.
– E você se lembra de algo fora do
normal que tenha acontecido no jogo?
– Eu dei um chute no traseiro dele –
disse Carmine, bufando e tentando poupá-
la de recontar toda a história. – Mas isso
não é nada anormal. Nós brigávamos o
tempo todo.
– Ah… Bem, e o que aconteceu depois
da briga?
– Ele fugiu – respondeu Carmine. –
Como, aliás, ele sempre fazia quando nós
brigávamos.
Curioso, o oficial encarou o jovem.
– E essa foi a última vez que você o
viu?
– Não, eu o vi de novo na semana
seguinte – Carmine admitiu. – Eu estava
prestando os exames na escola quando
ele apareceu.
– Por quê?
– Porque eu não tinha nada de mais
interessante para fazer, então fui prestar
exames. Caramba, para que existem
exames?
– Não lhe perguntei por que estava
prestando exames – retrucou o detetive
Baranski, já um pouco impaciente. –
Quero saber por que Nicholas Barlow
estava lá.
Carmine deu de ombros, sabendo
perfeitamente o que o detetive quisera
dizer da primeira vez, mas tentando se
abster de responder à pergunta.
– Aconteceu alguma coisa na ocasião?
– O que aconteceu, de fato, em todas as
outras ocasiões em que nos encontramos.
– Outra briga – concluiu o policial, não
demonstrando surpresa. – E a última vez
que você o viu, Haven, foi no jogo de
futebol?
– Sim – ela disse, antes de hesitar. –
Bem… não. Eu o vi no lago Aurora mais
tarde naquela noite. Conversamos um
pouco e daí eu fui embora.
– Então essa foi a última vez em que
você o viu?
Os olhos dela rapidamente
percorreram a sala e ela viu um leve
aceno positivo por parte de Vincent. O
movimento foi tão discreto que Carmine
quase não percebeu.
– Sim – ela disse em voz baixa,
mentindo.
– E você tem alguma ideia do que
possa ter acontecido com ele?
Dessa vez, ela respondeu sem qualquer
hesitação:
– Sim.
Mostrando-se tenso, Carmine a olhou
sem acreditar.
– Como assim?
– Naquela noite, no lago, ele disse que
não havia restado nada para ele nesta
cidade. Falou alguma coisa sobre sair
daqui, desaparecer e recomeçar em algum
lugar onde ninguém o conhecesse. Pensei
que estivesse brincando, mas… Agora
fico pensando se ele realmente não levou
isso a sério.
– É possível – disse o detetive,
recolocando o bloquinho no bolso.
– Não posso evitar me sentir culpada –
ela continuou. – Talvez eu pudesse tê-lo
impedido, tê-lo ajudado. E então ele não
teria… partido.
O peito de Carmine se encheu de culpa
diante daquelas palavras.
– Não pode se culpar pelas decisões
tomadas por outras pessoas, senhorita –
disse o oficial, já se preparando para
sair. – Obrigado pelo seu tempo. Se você
se lembrar de qualquer outra coisa que
possa nos ajudar a encontrar o rapaz,
ligue para mim.
Ele então retirou do bolso um cartão de
visitas e o entregou a Haven. Vincent
levou o policial até a porta e a jovem se
manteve imóvel por um momento, antes
de cerrar o punho e amassar o cartão.
A tensão na sala aumentou. Carmine
não conseguiu suportar o silêncio e se
voltou para ela assim que a porta se
fechou.
– Você acha mesmo que o que
aconteceu foi sua culpa?
– É claro que foi minha culpa – ela
disse em voz baixa. – Se eu não tivesse…
– Isso é ridículo – ele a interrompeu,
sem lhe dar a chance de explicar. – Você
não provocou nada disso.
– Provoquei sim – ela retrucou. – Você
não vê? Tudo o que aconteceu até agora
foi por minha causa, Carmine; tudo
porque eu sou alguma princi… princip…
Ah, eu sei lá! Uma princesa idiota! Sua
mãe e Nicholas morreram, Corrado se
feriu gravemente e você abriu mão de sua
vida, do seu futuro, como se nada disso
importasse. E agora, o que mais irá
acontecer? O que mais acontecerá por
minha causa?
Ao perceber as lágrimas de tristeza
inundando os olhos de Haven, aquelas
que talvez vinha represando há semanas,
Carmine enfim se deu conta de que não
havia mais volta: o botão vermelho fora
pressionado e a bomba nuclear havia sido
acionada. A frágil bolha de felicidade
que se formara ao redor dos dois estava
prestes a explodir.
– Mas não vou deixar você carregar
esse fardo – ele disse. – E não se atreva a
se sentir culpada pelo que eu fiz. Se
quiser culpar alguém por isso, culpe a
mim. Eu o fiz por vontade própria, não
porque tivesse de fazê-lo. Eu o fiz porque
te amo, Haven, e você não me forçou a
amá-la. Fiz tudo isso sozinho. E não me
arrependo de nada.
– Por que não?
– E por que eu me arrependeria? Você
finalmente está segura. Finalmente está
livre!
– Estou? – disse Haven, meneando a
cabeça, frustrada. – Eu estou segura?
Estou livre?
– É claro que está – ele retrucou,
franzindo as sobrancelhas. – E por que
não estaria livre e segura?
– Eu não sei – ela disse, com as
lágrimas escorrendo pelo rosto. – Nem
sei o que isso significa.
– Nós já conversamos sobre isso – ele
disse, atirando os braços para cima,
exasperado. – Significa que você pode
fazer o que quiser de sua vida; ir aonde
quiser; ser o que quiser; ser quem você
quiser.
– E você, pode?
Aquela pergunta pegou Carmine de
surpresa.
– Ah…
A voz da jovem falhou por conta do
desespero.
– Você não entende, Carmine? Como
posso me sentir livre quando você não
está? Como eu poderia fazer qualquer
coisa se você mesmo não pode?
– Eu acho que… – O celular tocou no
bolso do rapaz e interrompeu sua linha de
raciocínio. Ele pegou o aparelho e sequer
precisou olhar para a tela para saber
quem estava do outro lado da linha:
Salvatore. Haven se levantou sem dizer
uma palavra e se preparou para sair da
sala. – Espere, Haven. Temos de
conversar sobre isso, então apenas
espere, ok? Só vai levar um minuto.
Ela parou próxima ao hall e se virou
para ele sem dizer uma palavra, com os
olhos ainda cheios de lágrimas.
O telefone continuou a tocar na mão de
Carmine e ele resmungou, sabendo que
precisava atender. Dando alguns passos
de volta ao sofá, ele se sentou de costas
para ela.
– Olá, senhor.
– Estava me perguntando se você iria
atender minha ligação – disse Salvatore.
– Claro que sim – ele murmurou,
abaixando a cabeça e passando a mão nos
cabelos. Logo ele viu o cartão de visita
do detetive amassado e atirado no chão e
o chutou com o pé, franzindo o cenho. –
Está uma bagunça aqui. Eu não tinha
ouvido o telefone.
– Certo. Bem, só estou ligando para
saber como estão indo suas férias.
Acredito que Corrado já tenha chegado
aí, mas não consigo falar com ele, ele não
atende o celular.
Carmine cerrou as sobrancelhas. Um
contato social?
– Sim, ele está aqui. Acho que está
dormindo.
– Faz sentido – disse Sal. – Ele ainda
está se recuperando, então acho que
precisa mesmo repousar. As coisas não
têm sido as mesmas aqui sem ele. Será
ótimo contar com vocês dois no trabalho
depois do Natal.
A cor desapareceu do rosto de
Carmine.
– Como?
– Corrado ainda não lhe disse? –
perguntou Sal. – Pedi a ele que vocês
viessem juntos para Chicago. Tenho sido
mais que paciente com você, digo, com a
sua situação, mas é chegada a hora de
construir sua vida aqui, principe.
Chicago será seu lar a partir de agora.
Aliás, onde sempre planejamos que fosse.
– Mas só se passaram…
– Já se passou um mês – ele disse com
a voz severa. – Não resta mais nada aí
para você.
Carmine sabia que não havia como
argumentar com Salvatore. Ele já havia
tomado sua decisão e nada mudaria seu
modo de pensar.
– Sim, ok. Tudo bem.
– Fico feliz que isso esteja resolvido –
disse Sal. – Mal posso esperar para tê-lo
aqui junto a mim, principe. Ah, e diga a
Corrado que me ligue assim que acordar.
Buon Natale.
Carmine desligou e olhou para trás,
imaginando quanto da conversa Haven
teria escutado, mas ficou preocupado ao
ver o hall vazio.
Ela não esperara por ele, afinal.

– Ele está bem?


Vincent olhou por cima da pilha de
papéis que tinha sobre a mesa, encarando
seu filho por sobre os óculos de leitura.
Carmine entrou no escritório e se atirou
na cadeira de couro na frente do pai,
deslizando o corpo. A linguagem corporal
demonstrava indiferença, mas Vincent
pôde ver a genuína preocupação nos
olhos do filho.
– Seu tio?
– Sim.
– Bem, ele ainda está se recuperando –
disse Vincent. – Ele só recobrou a
consciência há poucas semanas. Sequer
deveria estar viajando.
– Mas acha que ele ficará bem?
– Você ouviu sua tia Celia. Ela disse
que…
Carmine o interrompeu:
– Eu sei o que ela disse, mas não estou
perguntando a ela. Estou perguntando a
você.
Vincent colocou os papéis sobre a
mesa e se recostou na cadeira. Em
seguida, removeu os óculos e esfregou os
olhos cansados enquanto seu filho ainda
aguardava por uma resposta. Carmine
trazia uma pequena bolinha consigo e a
atirava de uma mão para outra.
– Veja bem, Corrado esteve
clinicamente morto. O corpo humano é
resistente, mas o cérebro é vulnerável. É
muito raro alguém se recuperar por
completo depois de ficar inconsciente por
mais de três minutos.
– E quanto tempo Corrado ficou
inconsciente?
– Quatro minutos.
Carmine ficou sem palavras; sua boca
estava entreaberta, mas ele não conseguia
dizer nada.
– Não estou dizendo que ele não ficará
bem – Vincent continuou, sem querer
alarmar o filho. No entanto, ele não podia
mentir ou tentar amenizar a situação. – Só
acho que ainda é cedo para dizer com
segurança. Não há como prever que tipo
de efeitos de longo prazo Corrado terá de
enfrentar.
– Você está falando de danos
cerebrais?
– Sim, mas não só isso – respondeu
Vincent, enquanto remexia sem perceber
um arquivo sobre a mesa. – A morte tem
um jeito todo especial de mudar as
pessoas, filho. Quando nos deparamos
com nossa própria mortalidade, em geral,
passamos a ver a vida de um jeito
diferente. O que mais importava no
passado talvez já não seja uma
prioridade. E nem sempre é fácil as
outras pessoas aceitarem isso. Ficamos
felizes quando alguém se salva, quando
uma vida é poupada, mas, às vezes, é
preciso parar e pensar: A que custo?
Será que não estamos apenas adiando o
inevitável? Será que estamos intervindo
quando não teríamos o direito de fazê-
lo? Estaríamos interferindo no destino?
Queremos que as pessoas vivam, mas é
preciso considerar que talvez o melhor
para elas seja o oposto.
Apenas quando Vincent olhou para o
filho foi que percebeu que havia ido
longe demais. Os olhos de Carmine
estavam arregalados, mas cautelosos; sua
boca se mantinha entreaberta.
– Só estou falando por falar – disse
Vincent, voltando atrás. – Estou exausto e
estressado e nem sei mais o que estou
dizendo. Seu tio ficará bem, Carmine. Ele
desafiou a medicina no momento em que
acordou, então não há razão para
acreditarmos que ele não continue a fazê-
lo. Afinal, de acordo com a mídia, o
homem é feito de aço.
– Eu ouvi – disse Carmine. – Mamãe
tentava nos manter afastados de tudo isso,
mas Dom e eu costumávamos ver as
manchetes no jornal quando morávamos
em Chicago. Corrado Moretti, o
assassino de aço… Preso dezenas de
vezes, mas jamais condenado por nenhum
de seus crimes.
– Acusações não comprovadas –
Vincent completou. – Eu perdi a conta do
número de vezes em que ele saiu ileso de
situações que deveriam tê-lo derrubado.
– Isso é bom – retrucou Carmine. – Já
que ele detém o recorde de sair livre de
todas as acusações, é provável que vocês
dois saiam ilesos das últimas. Problema
resolvido.
– É um pensamento positivo, mas há
um problema com essa teoria – disse
Vincent. – A acusação pediu que nossos
casos sejam julgados separadamente,
portanto, acho que estarei por conta
própria.
Carmine começou a responder, mas
uma voz o interrompeu antes mesmo que
conseguisse dizer duas palavras. Vincent
ficou imóvel ao ver que, atrás do filho,
estava Corrado de pé à porta do
escritório.
– Você ficará perfeitamente bem –
disse Corrado, com a voz desprovida de
qualquer emoção.
– Acha mesmo? – Vincent perguntou.
Corrado acenou de maneira positiva
com a cabeça.
– Nós dois ficaremos bem.
Vincent teria dito mais se não tivesse
ficado alarmado com a repentina
aparição do cunhado. Ele havia tomado
um banho; seus cabelos ainda estavam
úmidos e o rosto ficara com uma
aparência melhor depois de barbeado.
– Bem, já estou indo para a cama –
resmungou Carmine, levantando-se e
saindo antes mesmo que o pai pudesse lhe
desejar boa-noite. Corrado ficou parado
no mesmo lugar por um instante, antes de
entrar no escritório e sentar-se na mesma
cadeira que ficara vaga. Ele não disse
nada, mas seus olhos encaravam Vincent
de modo intenso.
– Quanto você ouviu da conversa? –
perguntou Vincent.
– O suficiente.
– E?
– Acho que está certo sobre o fato de
as pessoas mudarem – retrucou Corrado
–, mas não acho que estivesse falando
sobre mim.
Capítulo 4
O som estridente de um toque familiar
no celular interrompeu o sono de
Carmine. Ele se esforçou para abrir os
olhos e tateou a mesa de cabeceira
tentando encontrar o aparelho, e xingou
ao derrubá-lo no chão, provocando um
barulho alto.
– Desligue isso – Haven murmurou,
sem sequer abrir os olhos.
– Merda, estou tentando – ele disse,
agarrando o telefone no chão.
Ele rosnou ao perceber quem era.
Salvatore. De novo?
– Alô?
– Não gosta de atender prontamente,
não é? – perguntou Salvatore com um tom
severo. Com certeza aquela não era uma
chamada social.
Ele olhou para o relógio e viu que
passavam apenas alguns minutos das
quatro da manhã. Haven já estava
dormindo quando ele subiu… Ou pelo
menos fingia estar, o que seria mais
provável. Ele ainda conseguia sentir a
tensão que pairava entre eles por conta da
conversa que ela com certeza estava
tentando evitar.
– Desculpe, senhor – ele disse,
cobrindo os olhos com o braço enquanto
voltava a se deitar. – É que ainda está
cedo pra caralho.
– Você é cheio de desculpas, não é? –
Sal perguntou de maneira retórica. – E
também não pediu a Corrado que me
ligasse, conforme mandei.
– Ele estava dormindo e, bem… – ele
havia esquecido. – Eu também caí no
sono.
– Muito bem, então é ótimo que esteja
acordado agora, pois preciso que pegue
um pacote para mim em Charlotte.
– Agora? – perguntou Carmine,
incrédulo. Charlotte ficava a duas horas
dali, e era véspera de Natal. A última
coisa que ele queria era deixar Haven
sozinha o dia todo.
Salvatore soltou um riso amargo e
Carmine cerrou o punho. Aquele som o
deixou perturbado.
– Sim, agora.
Sal passou um endereço e o jovem
pulou da cama para pegar uma caneta e
achar algo em que pudesse escrever. Ele
encontrou um caderno de Haven, abriu na
última página e anotou o endereço de
maneira rápida. Sal desligou.
– Que ótimo – ele resmungou,
cambaleando até o armário. – Era só
disso que eu precisava.
– Aonde você vai? – Haven perguntou.
Ele a olhou e percebeu que agora ela
estava com os olhos abertos e o encarava,
confusa; ele soltou a primeira coisa que
surgiu em sua mente:
– Preciso terminar as compras de
Natal.
– Agora? – ela perguntou sem
acreditar. – Tem alguma loja aberta a essa
hora?
– Elas estarão abertas na hora em que
eu chegar – ele disse, na expectativa de
que ela não o pressionasse ainda mais.
Ele se vestiu e deu um beijo na jovem,
passando a mão em seu rosto e retirando
alguns fios de cabelo de sua face. – Eu
volto mais tarde, tesoro.
Haven resmungou algo incoerente e
fechou os olhos de novo.
Carmine pegou suas coisas e o caderno
de Haven e saiu da casa tentando fazer o
mínimo de barulho possível. Entrou no
Mazda e deu início à viagem a Charlotte.
Como estava com a visão turva por causa
do sono, ele não conseguia se concentrar
bem ao volante e saiu da estrada algumas
vezes. Agitado, xingou, aumentou o
volume do rádio e abriu as janelas na
esperança de que o barulho e o ar frio o
mantivessem acordado.
Ele chegou em Charlotte pouco depois
do amanhecer e levou em torno de vinte
minutos para encontrar o endereço. Era
uma pequena barbearia; um lugar
sombrio, com os tijolos desmoronando e
o letreiro mal se aguentando na parede do
edifício antigo.
Carmine pegou a arma que mantinha
escondida debaixo do banco e colocou-a
na cintura antes de sair do carro. Foi em
direção ao prédio e forçou a porta, mas
ela não se moveu. Então ele apertou a
campainha antiga e suja sob a caixa de
correio. Um som estridente e
desagradável fez que ele se encolhesse.
Logo ouviu reclamações no interior, antes
de a porta se abrir.
Um homem de pele parda parou diante
do jovem; ele tinha uma tatuagem no
pescoço e seus cabelos longos estavam
trançados até a metade. Carmine podia
ver o brilho dos dentes de ouro na boca
do sujeito. O pescoço e as orelhas
estavam cravados de diamantes. Não
parecia ser alguém com quem Salvatore
faria negócios, então, Carmine se
perguntou se não havia anotado o
endereço errado. No entanto, antes que
pudesse considerar a ideia de ir embora,
o homem deu um passo para o lado e fez
sinal para que o rapaz entrasse.
O interior era tão decadente quanto o
lado de fora, tudo coberto com uma
sujeira malcheirosa. Carmine observou
com nojo e ouviu quando o sujeito bateu a
porta atrás dele e cambaleou pela sala,
enfiando a mão no bolso para apanhar um
maço de cigarros. Em seguida, colocou
um na boca e outro atrás da orelha, antes
de amassar a embalagem vazia e jogá-la
no chão.
– É o jovem DeMarco, certo? –
perguntou o homem. – Você não se parece
nada com o seu pai. Tem certeza de que é
filho dele? Acho que sua mãe andou
pulando a cerca por aí.
Carmine estreitou os olhos; suas mãos
tremiam com furor no momento em que
ele pegou a arma.
O cara entendeu e levantou as mãos na
defensiva.
– Porra, você deve ser mesmo filho
dele. Nenhum dos dois aceita uma piada.
– Não fale sobre minha mãe – retrucou
Carmine, enquanto o homem dava as
costas para ele e abria um armário.
– Você é quem manda – ele murmurou.
– Diga-me uma coisa… Você tem
namorada?
– Como é?
– Porra, você é surdo? – perguntou o
sujeito, voltando-se para o rapaz.
Carmine ficou tenso ao vê-lo pegar uma
Glock 22 no armário e apontá-la para ele
sem hesitar. Com o coração disparado e
assustado, Carmine mirou rapidamente
sua arma e os dois ficaram frente a frente
com as armas em punho. O jeito
zombeteiro logo desapareceu da
expressão do sujeito e seus olhos
faiscavam de raiva. – Eu perguntei se
você tem namorada.
– Sim – disse Carmine, tentando
manter a compostura, mas o cara estava
claramente alterado. A ideia de que tudo
aquilo poderia ser uma armação passou
pela cabeça de Carmine, mas ele logo a
deixou de lado, sem querer considerar a
possibilidade de Salvatore fazer aquilo
com ele. Não agora. Não assim. Ele não
tinha feito nada para merecer qualquer
punição.
– Qual é o nome dela? – o cara
perguntou. – E não minta para mim. Posso
descobrir sozinho, mas não acho que
você iria querer que eu fizesse isso.
– Haven – ele disse. – O nome dela é
Haven.
– Bom – o cara baixou a arma e pegou
uma mochila gigante no armário. Carmine
a agarrou hesitante, mantendo a arma
apontada por precaução –, você tem doze
horas para trazer meu dinheiro. Se não
estiver aqui até às 19h, um minuto depois
do horário eu já estarei no meu carro,
indo fazer uma visitinha a Haven, e então
ela mesma me pagará. Você entendeu?
– Se você ousar tocar nela…
– Eu perguntei se você entendeu. – ele
repetiu, apontando a arma mais uma vez.
Instintivamente, Carmine deu um passo
para trás.
– Sim.
– Bom. Agora saia da porra da minha
loja antes que eu te mande para o inferno.
Carmine empurrou a porta e
precipitou-se para fora apressado,
sentindo como se a mochila pesasse mais
do que ele. O jovem enfiou a arma de
volta na cintura enquanto corria em
direção ao carro, atrapalhando-se todo
com as chaves e xingando enquanto
destrancava a porta.
Ele jogou a mochila no banco do
passageiro e saiu em disparada, querendo
sumir dali. A poucos quilômetros de
distância, olhou para a enorme mochila e,
curioso, abriu-a, percebendo que estava
cheia de armas e munição. Atordoado, o
jovem freou de maneira brusca e, em
seguida, parou o carro no estacionamento
de um restaurante próximo. Ele olhou de
novo para a mochila e se perguntou o que
deveria fazer com aquilo. Ele não tinha
certeza de que Salvatore havia lhe dado
instruções, considerando que estava
sonolento e não prestara atenção. De
repente, ele se preocupou, acreditando
que havia deixado passar alguma
informação.
Então pegou o celular e procurou pelo
nome do pai na lista de contatos. Em
seguida apertou o botão de discagem
automática e esperou que Vincent o
atendesse.
– Carmine? – respondeu Vincent,
parecendo preocupado. – Onde você
está? Percebi que seu carro não estava na
garagem de manhã.
– Eu, hum… Acho que preciso de
ajuda.
– Com o quê?
– Estou em Charlotte – ele disse. –
Recebi um telefonema esta manhã.
Salvatore me mandou pegar uma coisa
com um sujeito, que me deu uma mochila
enorme e disse que queria o dinheiro dele
ainda esta noite. Mas não faço ideia do
que diabos tenho que fazer com isso. E de
que dinheiro o sujeito está falando?
– Você deve ter conhecido Jay – disse
Vincent, respirando fundo. – Basta retirar
algum dinheiro de sua conta e pagar-lhe.
Temos um acordo, cinquenta mil cada
visita.
– E o que faço com essa maldita
mochila gigante?
– Há um depósito aqui na cidade, bem
ao lado da mercearia. Vou deixar a chave
no balcão. Unidade 19-B.

Carmine parou em frente à unidade de


armazenamento. A mochila era a única
coisa dentro dela. Ele a encarou por mais
um momento, balançando negativamente a
cabeça antes de fechar a porta de metal e
colocar o cadeado.
Ao deixar o lugar, ele guardou a chave
no bolso e caminhou até a mercearia, que
ficava ao lado, para comprar algo para
beber. O lugar estava vazio, exceto pela
atendente, que, aliás, mal olhou para ele.
Parecia mais interessada na revista barata
de fofocas, então ele atirou algum
dinheiro sobre o balcão para pagar por
uma garrafa de Coca-Cola de cereja e um
Toblerone.
No caminho de volta ao
estacionamento, as pernas do jovem
estremeceram quando se deparou com um
cartaz já enrugado colado no vidro da
porta de saída. Ele o pegou e o olhou com
cuidado enquanto caminhava pelo
estacionamento já escuro. A palavra
DESAPARECIDO estava escrita no topo,
destacada de maneira ameaçadora,
enquanto uma imagem bastante familiar
cobria a maior parte da página: era
Nicholas Barlow. Ele estava usando suas
calças camufladas favoritas e seu boné de
beisebol puxado para baixo.
Carmine se lembrou imediatamente do
dia em que a foto fora tirada. Forçando os
olhos, ele podia ver a si mesmo ao fundo.
Eles tinham ido até o Lago Aurora, pouco
tempo antes de a amizade desmoronar…
Antes de suas vidas tomarem rumos tão
dramáticos. Mais tarde, naquele mesmo
dia, ambos acabariam no pronto-socorro
depois de uma luta ferrenha – Nicholas
tinha uma torção no tornozelo e Carmine
ostentava um corte na sobrancelha. Foi o
dia em que Carmine desafiara seu melhor
amigo a ir para a cama com Jen, a
enfermeira do hospital.
Aquele seria o único desafio que os
rapazes nunca levariam a cabo, visto que
Nicholas estava morto, assim como a
enfermeira.
O brilho sutil do poste iluminava o
carro de Carmine no fundo do
estacionamento. O dia havia começado e
chegado ao fim com ele longe de casa;
ele perdera a véspera de Natal com a
família.
Ao entrar no carro, acendeu a luz
interna para dar mais uma olhada no
cartaz. Logo se sentiu tomado pela culpa
ao perceber que estavam oferecendo uma
recompensa por informações. As
palavras de Haven retornaram à sua
cabeça. O que mais irá acontecer por
minha causa?, ela perguntou. Mas o que
Carmine queria saber era quanta dor mais
ele próprio causaria. Quantas famílias
estragaria, quantas vidas arruinaria? O
jovem sentia como se houvesse uma
maldição sobre ele, pronta para aniquilar
qualquer um que ousasse se aproximar.
Seu melhor amigo estava morto. Quem
seria o próximo?
Suspirando, ele jogou o papel no banco
do passageiro e pegou o caderno de
Haven, na expectativa de se livrar
daqueles pensamentos. Após os
acontecimentos daquele dia, ele só queria
esquecer de tudo por um tempo. Foi então
que passou os olhos nos rabiscos à
procura de uma distração, mas o
sentimento de vazio em seu estômago só
aumentou quando ele começou a ler as
palavras escritas de maneira frenética por
Haven. Ela narrou todo o sofrimento pelo
qual passara e, quanto mais ele lia, mais
desesperadoras se tornavam as palavras
da jovem. Havia dezenas de desenhos que
as acompanhavam, alguns tão vagos que
ele nem conseguia entender o que eram;
outros eram tão detalhados que era como
se visse as imagens com os próprios
olhos.
Ao abrir numa página no meio do
caderno, Carmine se deparou com seu
nome. Nesse momento, seus olhos
cautelosamente percorreram o parágrafo
circundante. Haven meditava sobre o tipo
de futuro que eles teriam juntos; estava
desanimada com a situação em que ambos
se encontravam. Tomado pela tensão e
pela ansiedade, ele leu tudo até se
deparar com a última frase: O que você
faz quando a coisa que você mais quer,
de repente, parece estar fora do seu
alcance?
Por mais que Carmine não quisesse
deixar que aquilo o atingisse, aquela
pergunta o incomodava. Depois de
libertá-la, ele se esquecera daquilo.
Embora não quisesse admitir, ela estava
certa… Enquanto estivesse com ele,
Haven jamais teria o controle da própria
vida.
Ele folheou mais algumas páginas
quase sem prestar atenção no que havia
nelas, e estava prestes a deixar o caderno
de lado quando um desenho chamou sua
atenção. Era muito intenso; as feições do
homem com detalhes perfeitos. Um dos
lados do rosto era imaculado, enquanto a
outra metade estava severamente
desfigurada. Sua pele parecia ser feita de
cera derretida, que escorria e pingava,
criando uma figura grotesca. A palavra
monstro estava escrita ao lado da figura;
a caligrafia era furiosa e quase ilegível.
Aquilo não teria sido tão horrível se
Carmine não tivesse reconhecido aquele
homem.

A casa estava em silêncio quando


Carmine chegou, trazendo o caderno de
Haven escondido debaixo do braço.
Mentalmente exausto por causa do dia
tumultuado, ele subiu a escada e hesitou
no segundo andar quando viu a porta do
escritório do pai aberta. Carmine
caminhou até lá, parando na entrada com
certa curiosidade.
Vincent estava sentado à mesa com o
telefone no ouvido, sem saber que não
estava mais sozinho. Ele tamborilava
impacientemente os dedos no braço da
cadeira, bufando com frequência
enquanto ouvia a pessoa no outro lado da
linha.
– Isso é inaceitável – disse ele, com
uma expressão severa. – Eu entendo sua
situação, mas você precisa entender a
minha. Tenho uma família a considerar, e
talvez você não se preocupe com ela, mas
eu sim. É sobre minha vida que estamos
falando, então não me menospreze! Não
preciso de você para fazer disso algo que
não é, e não gosto de ser enganado.
Encontre outra solução.
Outra pausa breve sobreveio, seguida
por uma risada nervosa e penetrante de
Vincent.
– Muito bem, então não conte comigo.
Pego de surpresa pela seriedade da
conversa, Carmine mudou de posição, e o
movimento chamou a atenção do pai. O
pânico se instalou nos olhos de Vincent.
Ele desligou de imediato, sem dar ao
interlocutor a chance de responder, e
olhou Carmine com cuidado, mas sem
oferecer nenhuma explicação.
– Quem era? – Carmine perguntou.
– O advogado.
Carmine estreitou os olhos.
– O que você estava fazendo?
Montando seu esquema de suborno?
– Eu diria que estava apenas tentando
resolver as coisas antes de colocarem a
corda no meu pescoço.
– A situação está tão ruim assim?
Eles podiam não ter passado muito
tempo juntos ao longo dos anos, mas
Carmine não gostava da ideia de perder o
pai.
– Sim, está bem ruim, filho – disse
Vincent. – Nós costumávamos ser capazes
de fazer as coisas da nossa maneira, mas
nosso poder tem ainda menos influência
que nosso dinheiro nos dias de hoje.
Curioso sobre a amargura do pai,
Carmine sentou-se sem esperar ser
convidado.
– Posso lhe perguntar uma coisa?
Vincent reclinou-se para trás em sua
poltrona.
– Certamente.
– Você se arrepende de ter se
envolvido?
– Sim… e não. Cometi muitos erros, e
destes eu me arrependo, mas fazer o
juramento por sua mãe… Não… Não
posso me arrepender disso. Eu desejaria
não tê-lo feito, mas fiz. E faria de novo –
Vincent fez uma pausa. – Você sabe,
fiquei furioso quando descobri o que
você havia feito, entretanto, por mais que
odeie isso, eu entendo, filho. É genético,
acho. Está impregnado em seu DNA. No
fim, você teria se sacrificado por ela de
alguma maneira, de algum modo. Afinal
de contas, você é filho de sua mãe.
– Aparentemente sou seu também.
Vincent sorriu com simpatia.
– Por que perguntou? Está
arrependido?
– De jeito nenhum – disse Carmine. –
É só que, caramba… Eu sei que foi
necessário, mas acho que fodi com tudo
fazendo isso.
– Eu também me senti assim – disse
Vincent. – Comecei pensando em libertar
sua mãe, mas tudo o que fiz foi arrastá-la
de um mundo perigoso para outro. Ele era
mais bonito e tinha outro nome, mas não
era muito diferente. Sua mãe nunca teve a
chance de viver uma vida em que
ninguém a conhecesse… Em que ninguém
soubesse o que ela havia sido. Ela nunca
chegou a se reinventar.
Carmine assentiu.
– Era isso o que eu achava.
Vincent tamborilou os dedos mais uma
vez.
– Não me interprete mal, não trocaria
os anos que tive com sua mãe por nada, e
sem dúvidas nunca desistiria de você.
Você é a única coisa que fiz certo na vida.
Mas nunca vou me perdoar por não ter
dado uma chance a ela. Sei que ela me
amava, e ter uma família a fazia feliz, mas
acho que ela nunca percebeu que tinha
outra opção. Eu fiz de tudo para dar a ela
outras escolhas, mas, no final das contas,
nunca lhe disse que ela as tinha. Não
posso fazer mais nada agora, mas, depois
de todos esses anos, eu ainda me
pergunto: Como seriam as coisas se eu a
tivesse deixado partir?
– A mamãe nunca o deixaria – disse
Carmine.
– Ela não conhecia nada melhor –
retrucou Vincent. – E é isso o que
realmente importa. Ela nunca precisou
escolher ficar comigo.
– É por isso que me sinto tão miserável
– disse Carmine. – Eu imaginei que
conseguiria isolar essas duas partes da
minha vida, mantê-las separadas. Fazer o
que tivesse que ser feito e, ao mesmo
tempo, oferecer a ela tudo o que ela
queria, mas já não sei se ainda é
possível. Não sei o que devo fazer sobre
isso e estou correndo contra o tempo,
considerando que estão me esperando em
Chicago depois do Natal.
– Não estou surpreso – disse Vincent,
abrindo uma gaveta e pegando uma chave
dourada. Ele brincou com ela por um
momento antes de empurrá-la sobre a
mesa na direção de Carmine.
– A chave da casa em Chicago.
Carmine pegou-a com cuidado.
– Por que você está me dando essa
chave?
– Você vai precisar de um lugar para
ficar, não vai?
Ele queria argumentar, devolver aquela
chave, mas não podia. Afinal, aquilo era
a pura verdade. Ele não havia pensado no
que faria quando chegasse lá.
– Ah… Sim. Obrigado.
– De nada – ele respondeu. – Você vai
ficar bem?
– Sim, vou ficar bem. É com Haven
que estou preocupado. Peguei este
caderno dela hoje de manhã e, depois de
folheá-lo, posso dizer que a cabeça dela
está uma bagunça do caralho. – Ele virou
as páginas ao acaso, balançando a cabeça
ao chegar ao desenho intitulado monstro.
Com um sorriso amargo, ele levantou o
esboço para seu pai. – Olha só essa
merda.
O tamborilar dos dedos de Vincent
cessou instantaneamente; sua postura
tornou-se rígida e seu rosto empalideceu.
Os cabelos na nuca de Carmine eriçaram-
se com a postura do pai. Vincent olhava
para o caderno com atenção, como se
estivesse memorizando o rosto mutilado.
– Ela ficará bem – disse Vincent
depois de um momento. – Ela não tem
nada a temer em relação a ele.
– Talvez não, mas ela o chama de
monstro, como se ele fosse a porra do
Chupa-Cabra. Ela está apavorada, e esse
é o tipo de pessoa com quem ela terá de
conviver. Monstros.
– Carlo é nosso amigo.
Carmine zombou:
– Meu amigo ele não é.
– Pelo contrário, filho… Ele é sim.
Está na organização já faz tempo.
Salvatore o iniciou logo após o
falecimento de seu avô.
Foi então que Carmine percebeu a
razão de ter reconhecido o sujeito. Ele se
lembrou exatamente de onde o tinha visto.
– Nós temos que dizer ao Sal.
– Dizer o quê ?
– Que um de seus homens é sujo – ele
pigarreou. – Ele esteve envolvido no
sequestro. Ele estava naquele armazém!
– O que o faz pensar que ele estava lá?
Carmine olhou para seu pai, incrédulo.
– Haven o viu. Ele tinha que estar lá.
– Não, não tinha – Vincent balançou a
cabeça. – Ele nem mesmo estava em
Chicago na ocasião.
– Sim, ele estava. Eu o vi! Eles
estavam discutindo no escritório do Sal,
mas, quando eu apareci, ele foi embora
Vincent hesitou:
– Isso não significa que ele tenha feito
isso ou aquilo.
– Então como diabos ela o desenhou
com tanta perfeição?
Suspirando, Vincent virou a página do
caderno e o segurou firme, detendo-se
por um momento. A cor do rosto de
Carmine sumiu quando ele viu outro
desenho, tão detalhado quanto os demais,
exceto que, em vez de um monstro, esse
representava um anjo. A imagem de sua
mãe o afetou profundamente, e ele sentiu
um aperto no coração, quase perdendo o
fôlego.
– Da mesma maneira como desenhou
Maura – disse Vincent, com calma –, de
memória. Ela já me contou que teve
alucinações no armazém, e Carlo tem um
rosto que ninguém esqueceria, ainda mais
se considerarmos que você se lembra
dele, quando raramente repara em
qualquer um, exceto em si mesmo. Não é
exagero dizer que ela o tenha visto
quando ainda era criança.
Carmine revirou os olhos, não
acreditando naquela explicação.
– E se você estiver errado?
– Não estou – disse Vincent.
– Mas e se você estiver? – Carmine
perguntou de novo. – E se ele esteve de
fato envolvido nisso tudo?
– Ele não estaria. Sua lealdade a Sal é
inabalável. Ele faria qualquer coisa pelo
Chefe; nunca iria traí-lo. E Sal sente o
mesmo por ele. Eu diria apenas que não
faz o menor sentido. Você pode perguntar
ao Corrado se não acredita em mim.
– E você pode perguntar à Haven –
disse Carmine, irritado com a falta de
vontade do pai em considerar a ideia.
Certamente não era novidade, mas isso o
deixou com os nervos ainda mais à flor
da pele. – Vou deixá-lo sozinho agora
para que possa ligar de volta para a
pessoa com quem realmente estava
falando. Tenho minhas próprias merdas
para resolver.
Ele se levantou para sair e seu pai
limpou a garganta.
– Ascoltare il tuo cuore, Carmine.
Ouça seu coração. Apenas lembre-se
disso e tenho certeza de que fará a coisa
certa, seja ela qual for. Como eu disse,
você é filho de sua mãe.
Se não fosse tão angustiante, Carmine
poderia ter visto a ironia no que sua mãe
sempre lhe dizia. Uma pessoa não pode
escapar do seu destino, pois o que era
para ser sempre será. Não importava o
quanto Carmine tivesse tentado evitar a
Máfia, no final ele acabou indo parar
exatamente ali.
Já o destino de Haven era a
liberdade… Sua mãe havia se assegurado
disso.
Carmine saiu do escritório do pai e
puxou o celular do bolso, percorreu seus
contatos até encontrar o nome de sua
amiga Dia. Ele discou o número, ouviu
tocar e tocar, e soltou um profundo
suspiro quando caiu na caixa postal:
– Ligue para mim quando puder.
Capítulo 5
– Feliz Natal!
Haven se assustou com a voz
inesperada e virou-se de maneira rápida,
desviando o olhar da janela da cozinha.
Celia estava parada de pé na entrada,
sorrindo calorosamente; seus olhos
brilhavam cheios de entusiasmo, mesmo
com o sol preguiçoso ainda por se
levantar lá fora.
– Ah… Feliz Natal – disse Haven. –
Bom dia.
Celia se dirigiu à despensa a fim de
apanhar os ingredientes necessários para
preparar a ceia de Natal. Ela trajava um
vestido cinza de mangas compridas e um
par de sapatos de salto alto que
combinavam com perfeição; seus cabelos
escuros e brilhantes caíam em cascata
sobre as costas. Ela havia acabado de se
maquiar. Sua imagem era o oposto
daquela que Haven havia guardado na
memória, quando estivera em Chicago
apenas um mês antes. Seu brilho estava
de volta; compaixão e amor irradiavam
dela como a luz quente do sol.
A saudade apertou no peito de Haven.
Aquela visão a fez lembrar-se de sua
mãe. Como ela sentia falta dela,
especialmente em dias como aquele,
quando precisava de alguém com quem
conversar, alguém que a conhecesse de
fato e que saberia o que dizer.
– Não é muito cedo para você estar
acordada? – perguntou Celia.
– Acho que sim – Haven voltou-se
para a janela. A escuridão diminuía
gradualmente a cada segundo que
passava, tornando o carro de Carmine
mais visível na frente da casa. – Eu não
conseguia dormir. Havia muita coisa na
minha cabeça na noite passada.
– Como o quê?
– Como tudo.
Celia riu.
– Bem, isso com certeza foi bastante
esclarecedor.
Haven conseguiu esboçar um sorriso
ao sentir o bom humor contagiante de
Celia.
– É só que Carmine voltou muito tarde
na noite passada. Ele esteve fora o dia
todo, me disse que tinha compras para
fazer, mas não trouxe nenhuma sacola
para casa.
– Ah, compras – Celia suspirou com
conhecimento de causa. – Corrado usava
essa mesma artimanha. É claro que ele
tinha experiência suficiente para parar
numa loja e comprar alguma coisa antes
de voltar para casa. Ele às vezes trazia
algumas flores para me agradar. Eu meio
que sinto falta daqueles dias, acredite ou
não. Agora ele não se incomoda mais.
– Com as flores?
Celia riu de novo.
– Não, minha criança, em inventar
desculpas… Mas receber flores de novo
seria bom. Já faz bastante tempo.
Haven brincou com a bainha de sua
camisa, remoendo as palavras de Celia.
– Então, você não se incomoda em ser
enganada?
– No começo, eu me incomodava sim.
Ficava muito zangada, achando que era
um sinal de que ele não confiava em mim.
Eu lhe disse que queria ter um tipo de
relacionamento em que nós contássemos
tudo um ao outro.
– O que mudou?
– Um dia ele me disse tudo. E nunca
mais lhe perguntei nada. – Ela fechou os
olhos e se concentrou, acenando
negativamente a cabeça. – Acho que é
mais fácil para eles não trazer trabalho
para casa. Isso os ajuda a lembrar que
existe um santuário, um lugar para onde
possam ir e não ter de agir como mafiosi
por um tempo. Nunca vou conseguir me
esquecer das coisas que ele me disse
naquele dia, tampouco do olhar em seu
rosto enquanto falava, por mais que eu
queira. Não gosto de saber que meu
marido sai matando por aí, e mesmo que
eu seja egoísta e prefira isso a vê-lo
morto, aprendi, naquele dia, que também
não quero ouvir sobre isso.
Haven não sabia ao certo o que dizer.
– Eu não posso sequer pensar em
Carmine agindo dessa maneira. Ele não é
assim. Esse não é o garoto que eu
conheço. Ele não… ele não mata.
– Você está certa – disse ela. – Vincent
tampouco, acredite ou não. Maura temia
que o homem que ela amava fosse
desaparecer. Mas eu lhe digo que, se
existir uma boa razão para ficarem, eles
não desaparecerão. Lá no fundo, Carmine
será sempre a mesma pessoa. Ele verá
coisas que desejará poder esquecer, se
sentirá extremamente culpado por coisas
que não poderá controlar, mas, afinal, nós
não fazemos o mesmo? Seu amor por ele
ainda irá salvá-lo no final do dia.
Haven franziu a testa.
– Parece que nada mais é como antes.
– Isso é porque você está com medo –
disse Celia, envolvendo os braços ao
redor de Haven num abraço. Ela
acariciou os cabelos de Haven assim
como sua mãe costumava fazer quando
era mais jovem. A dor em seu peito se
intensificou. – Nenhum de vocês parece
perceber que o medo pode ser uma coisa
boa. Ele é saudável e nos mantém
seguros, nos adverte do perigo. Quando
você para de temer as coisas, você para
de lutar. Perde a motivação, perde a
perspectiva. Você nunca vai querer que
isso aconteça, não é?
Alguém pigarreou atrás delas. Celia
soltou Haven e se virou para olhar.
Corrado encostou-se no batente da porta
com os braços cruzados sobre o peito.
– Estou interrompendo?
Haven abaixou a cabeça. Ela não o via
desde que os dois chegaram. Ele
permaneceu no andar de cima, isolado da
família.
– Não, senhor.
– Claro que está – disse Celia. –
Estamos tendo uma conversa de meninas.
– É, eu ouvi – disse ele. – Pensei que
tivéssemos concordado que você ficaria
fora disso.
– E eu pensei que você me conhecesse
melhor do que isso – Celia respondeu. –
Você não pode ser tão estúpido, Corrado.
Haven ficou boquiaberta com Celia,
impressionada por alguém se dirigir a
Corrado daquela maneira.
– Perdoe-me por esperar que você
fosse ouvir a voz do bom senso, pelo
menos uma vez – ele respondeu. – Você
está se intrometendo nos assuntos de
outras pessoas.
– Isso só machuca as pessoas – disse
ela, interrompendo-o. – Eu sei. Ouvi você
dizer isso um milhão de vezes, mas eles
são apenas crianças, pelo amor de Deus.
– Eles são adultos – disse Corrado. –
O que eles escolherem fazer de sua vida
privada não é da nossa conta.
Celia riu secamente.
– Não é da nossa conta? Você se
esqueceu de que responde por ela?
– Isso não significa que eu seja o dono
dela! – disse Corrado, olhando de
maneira rápida para Haven, o que causou
um arrepio na espinha da jovem. Ela
nunca tinha o visto levantar a voz antes.
Celia estreitou os olhos.
– Não, mas é seu dever ajudá-la.
– Eu sei quais são minhas obrigações –
ele respondeu com frieza. – Vou tomar
conta dela.
– Assim como fez com Maura? – Celia
ergueu as sobrancelhas. – Você me disse
para ficar de fora, para cuidar de minha
própria vida. Muita coisa boa aconteceu
então, não é mesmo?
– Maura não era responsabilidade
minha. Era de Vincent.
– Você está certo – respondeu Celia –,
mas Haven é sua responsabilidade.
Corrado ficou em silêncio e olhou para
a esposa sem demonstrar qualquer
emoção. Celia devolveu o olhar de
maneira firme. A tensão na sala
aumentava a cada segundo.
Desconfortável, Haven se mostrou
inquieta; estava zonza e sentia o sangue
correr com furor por suas veias.
– Eu, uh… Talvez eu não devesse estar
aqui – ela sussurrou, movendo-se em
direção à porta. Caminhou em direção ao
hall, até que a voz firme de Corrado a
interrompeu:
– Espere.
Ela se virou e viu Corrado adentrar o
hall, olhando para ela e acenando com a
mão antes de se dirigir para a sala de
estar. Ela o observou por um segundo,
sem saber o que fazer, então o seguiu,
vagarosa.
O sol já começava a espreitar sobre as
árvores lá fora, mas a sala permanecia
estranhamente escura. Haven estava tão
quieta que mais parecia um cadáver ao se
sentar no sofá e olhar para as unhas
quebradiças, evitando, com cautela, o
poderoso olhar de Corrado.
– Você sabe o que significa responder
por alguém, Haven? – ele perguntou,
quebrando o silêncio tenso que, como
uma nuvem espessa e tóxica, envolvia a
sala.
Sem olhar para ele, Haven assentiu
com a cabeça.
– Carmine me disse que significava
que se alguma vez eu contasse a alguém
sobre o meu passado, de onde eu vim,
você ficaria em apuros, mas juro que
nunca farei isso.
Ele ergueu a mão para silenciá-la antes
que ela pudesse começar a argumentar
sobre seu caso.
– É mais do que isso. Não se trata
apenas do que você diz e para quem
diz… É o que você faz, também. Pessoas
como eu… respondem pelos outros todos
os dias. Associados, amigos, família. Nós
juramos que elas são pessoas boas, que
nunca irão nos trazer qualquer problema.
Juramos que são dignas de confiança. Se
estivermos errados, significa que
mentimos. Significa que elas não nos
beneficiam ao estarem lá fora, no mundo,
por estarem vivas, e, francamente, talvez
nós não devêssemos estar também. Sua
vida pode ser apenas sua agora, mas essa
dúvida não pode persistir em minha
cabeça. Sendo assim, existem algumas
limitações por causa das circunstâncias.
Haven se retesou.
– Limitações?
– Sim, limitações – disse Corrado. – É
melhor do que a alternativa.
– E qual seria a alternativa?
– Ficar com Salvatore – disse ele. –
Ou a morte. Eu não saberia dizer qual
você acharia pior, mas nenhuma seria
agradável. Então, nos concentremos nas
limitações. Além disso, todos as têm. A
maioria das pessoas é governada por leis
mesquinhas, como: usar o cinto de
segurança, não pegar o que não é seu. Os
católicos seguem os Mandamentos: Não
cobiçarás a mulher do próximo, ou não
tomarás o nome do Senhor em vão. As
freiras comprometem-se com o celibato,
os advogados e os padres invocam o
sigilo, e nós, Haven, fazemos um voto de
silêncio e lealdade. Todos vivemos no
mesmo inferno, apenas os demônios são
diferentes.
Fazendo uma pausa, Corrado mexeu em
seu anel de casamento. Haven não tinha
certeza do que deveria dizer, por isso
permaneceu calada. Ele continuou depois
de um momento:
– Nosso demônio não nos dá o
benefício da dúvida. Ele atira primeiro e
pergunta depois, ponto final. Um olhar,
um movimento errado, e você é culpado.
Eles irão puni-lo antes mesmo que você
saiba do que foi acusado. Nosso demônio
não mostra piedade. Ele não pode. Você
entende?
Ela assentiu.
– Sim, senhor.
– Se você quiser se manter segura,
fique longe do centro das atenções –
disse ele. – Cuide de sua vida, fique
calada e nunca se associe à polícia. Se
um policial alguma vez tentar interrogá-
la, peça para falar com seu advogado e
me chame. Não importa o que seja. E
nunca convide um a entrar em sua casa.
Nunca.
A cor sumiu do rosto da jovem de
imediato, e um calafrio percorreu seu
corpo quando ela se lembrou do oficial
Baranski.
– Eu, hum… Eu não sabia…
– Não sabia do quê?
– Um oficial nos visitou para perguntar
sobre Nicholas. Eu não sabia que não
deveria falar com ele. O doutor DeMarco
me disse para responder às perguntas
para que ele fosse embora.
Corrado a encarou.
– Vincent lhe disse para falar com a
polícia?
Ela assentiu, hesitante.
– Ele o convidou para entrar.
A fisionomia de Corrado se alterou.
Ele franziu a testa brevemente antes de se
recompor.
– Quando foi isso?
– Dois dias atrás – ela disse. – Você
estava recolhido. Foi logo depois que
vocês chegaram.
A sala permaneceu em silêncio por
alguns minutos. Haven não fez nada,
apavorada com a possível reação dele.
Ele só olhava para a frente, imóvel, e se
não fosse pelo fato de piscar os olhos, ela
poderia até se perguntar se ele ainda
estava vivo.
– Você não sabia de nada – ele disse
enfim. – Ninguém lhe explicou isso, mas
agora você sabe.
– Sim, senhor.
Corrado levantou-se sem dizer uma
palavra e começou a se afastar. Caminhou
até a porta antes de seus passos
vacilarem. Ele permaneceu ali por um
momento enquanto a sorridente Celia se
aproximou com orgulho do hall. Ela
estava claramente escutando atrás da
porta.
– Fique fora disso – ele a alertou de
novo. – Não quero que você se intrometa
mais.

A manhã de Natal passou indistinta.


Carmine parecia distraído, distante; seus
olhos observavam a todos como se
estivesse esperando que algo
acontecesse. Em vez de estar na casa com
a família, o jovem estava recolhido em
algum lugar de seus pensamentos.
Ocasionalmente, Haven o via lançando
olhares furiosos para os lados e, quando
se afastava, ouvia apenas sussurros
inflamados.
Confusa, ela perguntou algumas vezes
o que estava acontecendo, mas ele apenas
sorriu e pediu a ela que não se
preocupasse.
Não se preocupe. Ela tinha ouvido isso
tantas vezes na última semana que a frase
por si só já começava a preocupá-la.
Eles assistiram às filmagens das férias
e trocaram presentes à noite. Haven
ganhou alguns livros e materiais de arte,
roupas e um novo par de tênis Nike, rosa
e branco. As festividades foram
silenciosas e, de certo modo, quase
sombrias. Algo compartilhava o ambiente
com eles, infectando o ar que todos
respiravam. Ela não chamaria isso de
aflição, mas sem dúvida era quase –
culpa misturada com tristeza, perturbação
e ressentimento.
Quando a ceia ficou pronta, todos se
sentaram à mesa da sala de jantar.
Carmine puxou a cadeira ao lado dele
para Haven enquanto Celia e Corrado
sentaram-se de frente para os dois.
Doutor DeMarco pigarreou e Carmine
logo agarrou a mão direita de Haven,
enquanto Corrado estendeu sua mão sobre
a mesa e a ofereceu para segurar a dela.
A jovem empalideceu diante da situação
e ficou parada estudando a mão
estendida. À exceção de uma grande
cicatriz irregular em diagonal na palma
da mão, quase camuflada pelos vincos e
linhas naturais, ela parecia incólume. As
unhas estavam bem cuidadas, e a pele era
lisa, sem um único corte ou calo. Ela não
tinha certeza do que esperava ver, mas
aquilo a surpreendeu – suas mãos
pareciam limpas demais para um homem
que costumava tê-las encharcadas de
sangue.
Tomando cuidado para não causar uma
cena, Haven assentiu com a cabeça.
– Senhor, obrigado pelas bênçãos
sobre a mesa nesta noite, e por todas as
pessoas que se reuniram em torno dela –
disse doutor DeMarco. – Nós pedimos
que nos ajude a permanecer atentos às
necessidades uns dos outros e também
que continue a abençoar-nos com amor e
perdão, felicidade e paz e, acima de tudo,
pedimos que ajude os inocentes entre nós
a encontrarem a liberdade que eles tanto
merecem. Em nome de Jesus, amém.
– Amém – todos murmuraram, soltando
as mãos e erguendo as cabeças. Haven
olhou para doutor DeMarco com
curiosidade, surpresa com as palavras
dele, e ele sorriu suavemente quando seus
olhos se cruzaram.
– Dai nemici mi guardo io dagli amici
mi guardi iddio – Corrado murmurou
baixinho enquanto pegava o garfo.
Carmine riu amargamente. Dos
inimigos eu me protejo sozinho; dos
amigos, que Deus me proteja.
– Amém para isso também.
Todos começaram a comer, mas Haven
apenas empurrava a comida de um lado
para o outro em seu prato. Mais uma vez,
o pesado silêncio dominava a sala. Todos
se entreolhavam com cautela e de
maneira disfarçada. Era como se
compartilhassem um segredo comum,
algo sobre o que Haven, sem dúvidas,
não estava ciente. Ela se remexia de
maneira nervosa enquanto ouvia os garfos
tilintando nos pratos; seu apetite se
dissipava conforme seu estômago
revirava de ansiedade.
Haven estava tão desconfortável com o
silêncio que, por um instante, considerou
sair da mesa. Mas antes que pudesse agir,
Dominic pigarreou. O som pareceu
amplificado, ecoando nas paredes
estéreis.
– É difícil acreditar que já se passaram
dez anos.
Carmine ficou imóvel, o garfo parado
no ar. Percebendo que Dominic estava se
referindo à morte de sua mãe, Haven
olhou em volta com cautela, esperando a
explosão de raiva iminente.
O doutor DeMarco baixou a cabeça,
seus olhos vagaram pela mesa enquanto
colocava o garfo no prato.
– Parece que foi ontem que a
perdemos.
– Nós não a perdemos – replicou
Carmine, uma ponta de raiva entremeando
suas palavras. – Isso faz parecer que
fomos negligentes. Não é nossa culpa que
aquela merda tenha acontecido. Ela foi
tirada de nós… De todos nós.
– Você está certo – admitiu doutor
DeMarco. – Ela foi arrancada de nós de
uma forma injusta.
A atmosfera de repente se tornou mais
leve depois que ele disse aquelas
palavras; era como se aquela frase tão
simples tivesse retirado um enorme peso
de seus ombros. Todos passaram a
conversar de modo casual, rindo
enquanto compartilhavam histórias do
passado. Eles falaram sobre Maura e, em
vez de se fechar, doutor DeMarco
resolveu participar da conversa.
– Ela adorava o Natal – disse ele,
sorrindo. – Ela dava tantos presentes aos
garotos que era quase impossível arrumá-
los embaixo da árvore.
– Eu me lembro disso – disse Dominic.
– Ela mimou demais o merdinha do
Carmine.
Revirando os olhos, Carmine pegou
uma ervilha com o garfo e atirou-a por
cima da mesa na direção do irmão.
– Você foi tão mimado quanto eu,
porra.
– Ah, vocês foram – confirmou doutor
DeMarco. – Vocês ganhavam o que
queriam, e não apenas no Natal.
– Eu nunca tive a bicicleta que queria –
disse Dominic. – Lembra-se disso? Era
aquela pequena Mongoose camuflada
com um chifre enorme na frente e o cesto
de madeira. Eu cansei de implorar por
ela.
DeMarco suspirou.
– Você a teve.
– Não, não a tive.
– Sim, você a teve – disse ele em voz
baixa. – Você apenas não ficou sabendo
disso. Ela foi entregue em casa logo
depois… logo depois que Maura faleceu.
Ela a comprou para você, porque
Carmine já havia recebido o piano. Ela
queria ser justa.
Um silêncio solene dominou a sala até
Dominic falar outra vez.
– Você ainda a tem?
DeMarco balançou a cabeça.
– Eu me livrei dela.
– Droga – disse Dominic. – Eu ainda a
usaria, sabia?
Um sorriso escapou dos lábios de
DeMarco.
– Tenho certeza de que sim, filho.
Eles passaram a falar sobre as viagens
que tinham feito juntos, as coisas que a
mãe lhes havia ensinado e os livros que
tinham lido, cada memória acompanhada
de sorrisos em vez de lágrimas. Foi
emocionante testemunhar o amor por
Maura, ainda tão forte, embora ela
tivesse partido há mais de uma década.
Após o jantar, Haven se ofereceu para
ajudar Celia com os pratos. As duas
trabalharam em silêncio. A atenção de
Celia parecia estar em outro lugar, como
se ela estivesse em transe. Elas estavam
terminando, quando Celia deixou escapar
um suspiro de resignação, pegando um
prato das mãos de Haven.
– Eu termino aqui. Vá e aproveite o
resto do seu Natal.
– Está bem – ela murmurou, secando as
mãos antes de se dirigir em silêncio para
a sala de estar. Estava no meio do
caminho quando ouviu a voz ruidosa de
Dominic; as palavras dele a pegaram
desprevenida.
– Você está cometendo um erro,
Carmine – disse ele. – Não há como levar
isso a sério. Você não está pensando de
maneira clara.
– Deixe-o em paz – disse DeMarco. –
Você não pode compreender a situação, a
menos que esteja ciente do que está
acontecendo.
– Você está errado – disse Dominic. –
Eu entendo, e ele vai se arrepender! Não
é tarde demais para mudar de ideia. Pelo
amor que tem por todos nós, por favor,
mude de ideia. Eu estou lhe implorando,
irmão.
– É tarde demais – disse Carmine. – Eu
entendo que não concorda, mas você não
precisa. Sou o único que tem que viver
com isso.
– E você acha que consegue? –
perguntou Dominic, incrédulo. – Falando
sério, você acha mesmo que conseguirá
viver com isso?
– Eu preciso.
– Não, você não precisa – disse
Dominic, a paixão em sua voz era
impressionante. – Não posso acreditar
que alguém realmente ache que isso seja
uma boa ideia!
Haven deu os últimos passos que
faltavam na direção deles, parando na
entrada da sala de estar. Dominic andava
de um lado ao outro, frenético, enquanto
Carmine permanecia imóvel, segurando
os cabelos, numa demonstração de
aborrecimento. Vincent e Corrado apenas
observavam os meninos. O ambiente
estava tão tenso que ela podia sentir o ar
cortante em sua pele.
– Ele é meu filho – disse DeMarco. –
Vou apoiá-lo da melhor maneira que
puder.
– Isso é besteira! – Dominic replicou.
A força de suas palavras assustou
Haven, e ela se encolheu. Todos se
voltaram na direção dela; quatro pares de
olhos agora a perfuravam.
– Está tudo bem? – perguntou hesitante.
– Está tudo bem – disse DeMarco. –
Tivemos apenas um pequeno
desentendimento, mas este não é o lugar
nem a hora para isso.
Ela olhou ao seu redor. A apreensão
tomou conta dela ao captar a expressão
dos quatro. Apesar do que ele havia dito,
algo com certeza estava errado. Ela se
virou para Carmine, erguendo as
sobrancelhas, esperando que ele
oferecesse algum tipo de explicação real,
mas ele apenas acenou negativamente a
cabeça.
– Não se preocupe com isso.
Não se preocupe com isso.
– Acho que vou me deitar – disse ela,
dando um passo para trás.
– Eu vou com você – disse Carmine,
olhando zangado para Dominic enquanto
se afastava. Sem dizer uma palavra, ele
pegou a mão dela e a puxou em direção à
escada enquanto ela se despedia de
todos.
– Eles estão furiosos com o que você
fez em Chicago? – ela pressionou quando
chegaram ao quarto.
– É, mais ou menos – ele murmurou. –
Olha, eu não quero falar sobre isso agora.
Prefiro apenas… ser. Só mais um pouco.
– Tudo bem – disse ela, tentando
deixar para trás a sensação de mal-estar
no estômago. Ele se atirou na cama e ela
seguiu seu exemplo, deitando-se ao lado
dele.
– La mia bella ragazza – ele
murmurou, puxando-a em seus braços.
Ela deitou a cabeça para o lado; ele se
inclinou e beijou seu pescoço,
sussurrando contra sua pele. – Eu
esperava que hoje o dia fosse perfeito.
– Nós passamos o dia juntos – ela
sussurrou. – Isso fez com que ele fosse
perfeito para mim.
Capítulo 6
Haven não tinha a intenção de cair no
sono, mas seu cansaço era mais profundo
do que previra. Emocionalmente
esgotada, ela adormeceu em questão de
minutos.
Despertando no meio da noite, seu
braço caiu sobre o outro lado do colchão.
Ela procurou por Carmine na escuridão,
suspirando quando percebeu que estava
sozinha.
Haven saltou da cama e caminhou em
silêncio até a porta, enquanto escutava o
som suave de “Serenata ao luar”. Ela
franziu as sobrancelhas de maneira
involuntária quando percebeu as notas
desconexas na melodia já familiar.
Carmine estava sentado em sua cadeira
habitual na biblioteca, dedilhando
casualmente seu violão. Na escuridão, um
facho de luz que adentrava pela grande
janela iluminava sua expressão sombria.
Ela chamou por seu nome, mas ele
permaneceu imóvel, apenas dedilhando
as cordas como se nem a tivesse ouvido.
Ela deu um passo em sua direção e estava
prestes a chamá-lo de novo quando ele
soltou um longo e profundo suspiro.
– Eu tive um sonho.
– Outro pesadelo? – ela perguntou,
caminhando até ele. Ele parou de tocar e
olhou para ela enquanto relaxava os
dedos, mas Haven nem notou o silêncio.
Ela não conseguia se concentrar em nada,
exceto naqueles olhos verdes que
pareciam perfurar seu corpo. Outrora
vivos de paixão, agora ela não via nada
dentro deles, exceto uma profunda tristeza
que roubava todo o seu brilho.
Carmine deixou o violão de lado e se
ajeitou na poltrona para abrir espaço,
fazendo sinal para que ela se juntasse a
ele. Ela se sentou em seu colo e ele
passou os braços em volta dela.
– Dessa vez não foi um pesadelo –
disse ele. – Foi um sonho bom.
– Sobre o quê?
– Você – disse ele, com calma. – Você
fez uma pintura, alguma merda abstrata,
sei lá, mas era tão boa que eles a
expuseram num museu e todos a
elogiaram pelo seu talento. Era como se
você fosse a porra do Picasso, tesoro.
Ela riu.
– Eu nem sei como pintar, Carmine.
– Você poderia aprender – disse ele. –
Você gostaria?
– Talvez, mas não sei se seria boa
nisso.
– Oh, você seria muito boa – disse ele,
confiante. – Você não deve duvidar de si
mesma. Pode fazer qualquer coisa que
imaginar.
– Exceto tocar piano – disse ela,
brincando. – Nem violão.
Ele riu.
– Sim, pelo amor que temos aos
ouvidos de todos é melhor você deixar a
música para mim, mas o resto do mundo é
todo seu. Provavelmente você será capaz
de fazer tudo isso. Você sabe, desenhar,
pintar, esculpir formas estranhas. E
depois dizer às pessoas que é isso ou
aquilo, embora não se pareça com nada.
Isso exige talento.
Ela sorriu.
– E você acha que eu tenho esse tipo
de talento?
– É claro – disse ele. – Nada irá
impedi-la de ter sucesso uma vez que
começar.
– Obrigada – ela sussurrou, uma onda
de emoção surgindo por causa das
palavras dele. – Significa muito que você
acredite em mim.
– Eu seria um idiota se não acreditasse
– disse ele, beijando sua testa. – Sabe,
nós nunca terminamos nossa conversa do
outro dia.
– Qual delas?
– Aquela sobre sua liberdade.
Haven suspirou, aconchegando-se mais
perto dele.
– O que mais há para dizer?
– Eu quero ouvir o que isso significa
para você de verdade.

Eles passaram a próxima hora sentados


na frente da janela da biblioteca escura,
examinando a mente um do outro. Não
falaram sobre a tortura que sofreram ou a
dor que ainda sentiam. Em vez disso, se
concentraram nas coisas que os faziam
felizes. Ele perguntou sobre seus desejos
mais profundos, querendo saber que tipo
de coisas ela faria se acordasse no dia
seguinte com um passado limpo. O que
ela faria, se algum dia, pudesse começar
de novo, do zero?
Ela falou sobre ter amigos e família;
uma casa cheia de livros e meia dúzia de
animais de estimação. O sonho americano
completo: filhos, no mínimo dois, quem
sabe uns cinco; uma cerca branca recém-
pintada; churrascos nos fins de semana
com os vizinhos e férias de verão na
Disneylândia.
Parecia que todo o resto havia
desaparecido naquele momento. A
realidade de sua situação fora deixada de
lado enquanto ambos consideravam um
futuro alternativo; aquele que Haven
sempre desejara, mas jamais acreditara
ser possível. Um futuro longe de tudo. Um
futuro sem limitações.
Liberdade.
– Eu só quero que as pessoas me vejam
– disse ela. – Quero que, ao entrar numa
sala, todos saibam que estou lá. O lugar
não importa, na verdade. Apenas não
quero mais ser invisível.
Carmine acariciou seu rosto quente
com as costas da mão. Ela murmurou,
satisfeita, inclinando-se na direção do
toque.
– Eu vejo você, beija-flor – ele
sussurrou, com brilho nos olhos.
– Eu sei.
– Quer saber o que mais eu vejo?
– O quê?
Ele acenou a cabeça em direção à
janela.
– Neve.
Haven deu uma espiada, identificando
os abundantes flocos brancos que
despencavam do céu. Antes que ela
pudesse comentar, Carmine levantou-se
rapidamente e a colocou de pé.
– Venha.
Ela riu quando ele a puxou para o
quarto.
– O que estamos fazendo?
– Nós vamos lá fora.
– Agora? – ela perguntou, incrédula,
olhando para o relógio enquanto ele
soltava a mão dela. Os números
vermelhos brilhavam na escuridão: era
uma da manhã.
Ele empurrou a janela do quarto para
abri-la. Ela gemeu, mas não ofereceu
muita resistência. Uma lufada de ar frio
invadiu o quarto, agitando as cortinas
grossas e fazendo Haven tremer. Ela logo
se envolveu com os próprios braços; o
arco de suas sobrancelhas exibia dúvida.
– O doutor DeMarco não fixou a janela
de novo?
– Sim, mas ele fez um trabalho de
merda – Carmine respondeu. – Foi fácil
reabri-la.
Haven queria perguntar quando ele
havia feito aquilo, ou até mesmo por que
se incomodara, mas ela não teve a menor
chance de questioná-lo. Carmine logo
calçou os sapatos e se preparou para sair.
– Vamos lá – disse ele de novo,
atirando um casaco para ela. Ele já
estava com meio corpo para fora da
janela antes mesmo que ela pudesse
pensar em se opor.
Haven se agasalhou rapidamente antes
de se juntar a ele na longa sacada que
rodeava a casa. Era a terceira vez que ela
pisava ali, mas essa aventura seria mais
difícil que as outras. Uma fina camada de
gelo cobria tudo, fazendo Haven
escorregar um pouco enquanto caminhava
ao longo do trajeto estreito de madeira
em direção à enorme árvore estéril no
canto da casa. Há muito tempo ela estava
desfolhada, desde a chegada do inverno,
mas seus galhos grossos ainda se
mantinham tão resistentes quanto antes.
– Isso é mesmo necessário? – Haven
perguntou quando começou a subir na
árvore. – Não poderíamos ter saído pela
porta?
– Poderíamos – disse Carmine,
pulando para o chão –, mas onde estaria a
diversão?
Haven conseguiu transpor os primeiros
obstáculos com facilidade, mas seu pé
escorregou quando já se aproximava da
parte inferior do tronco. De repente ela
perdeu o equilíbrio e soltou o galho.
Percebendo que ia direto para o chão, ela
deu um grito e fechou os olhos,
preparando-se para o doloroso impacto,
porém Carmine foi mais rápido e se
posicionou para segurá-la. Ele até que
tentou agarrá-la de maneira graciosa, mas
o golpe acabou derrubando ambos no
chão.
Carmine gemeu quando o ar foi
violentamente forçado para fora de seus
pulmões. Haven afastou-se dele, rolando
para o lado. A terra congelada parecia
concreto sob as costas dos dois.
– É, com certeza isso foi… bem…
divertido.
– É, não imaginei que essa merda fosse
acontecer – disse Carmine, já se
levantando. Ele limpou as roupas antes de
pegar a mão de Haven e colocá-la de pé.
– Pois é, talvez tivesse sido melhor se
tivéssemos usado a maldita porta.
O ar frio da noite fazia parecer que
alfinetes e agulhas penetravam no rosto
corado de Haven, mas,
independentemente do que acontecia ao
seu redor, ela sorria. Os flocos estavam
começando a se acomodar na terra,
pontilhando a grama sem vida com
pequenas manchas brancas. Nuvens
pesadas cobriam o céu, bloqueando a
visão das estrelas, mas a lua vibrante
continuava a brilhar. Não havia nenhum
animal por ali àquela hora, muito menos
os belos vaga-lumes que costumavam
piscar durante as noites de verão; nenhum
sinal de vida, exceto por eles dois.
Era como se eles estivessem sozinhos
no mundo e, por mais aterrorizante que
isso parecesse para Haven – o
pensamento de que nada mais existia –,
ela se sentia segura sabendo que, pelo
menos, ele ainda estava ali.
Ela deu alguns passos no jardim
olhando para o céu enquanto a neve caía
sobre seu corpo. A umidade atingia sua
pele; o frio penetrava por suas roupas.
Um arrepio percorreu seu corpo quando
ela fechou os olhos e abriu a boca,
capturando alguns flocos com a língua.
Apesar do frio intenso, uma sensação
de calor espalhou-se por seu corpo.
Então Haven abriu os olhos e procurou
por Carmine. Ela o encontrou parado,
olhando para ela, com alguns flocos
presos nos cachos grossos e escuros do
rapaz. Ela estendeu a mão e deslizou os
dedos pelos cabelos dele, para limpá-los.
– Você é linda, tesoro – disse ele em
voz baixa.
Seu rosto ficou ainda mais vermelho
com as palavras dele.
– Você é um amor.
– Fuja comigo – continuou ele,
inclinando-se para beijar suavemente
seus lábios. – Nós dois podemos
desaparecer antes de o sol nascer.
Pressionando a mão contra o peito
dele, ela se afastou um pouco, sorrindo.
– Nós não podemos fugir, Carmine.
Ele suspirou.
– É, eu sei, mas não deixa de ser um
bom sonho, não é?
– Não sei o quanto esse sonho seria
bom – respondeu ela. – Como nos
sentiríamos seguros se tivéssemos de
olhar sempre por cima dos ombros? Eu
não quero mais fugir. Não quero fugir de
mais nada. Estou cansada disso. Quero
poder deixar os problemas para lá. Quero
apenas poder passear em algum lugar
com você, de mãos dadas. Nada mais
importa para mim. Quero chegar às
encruzilhadas e poder escolher o caminho
a seguir, sem ter que me preocupar com o
que irá acontecer se ele nos levar a algum
lugar onde alguém não queira que
estejamos. Esse é um sonho bom.
– Sim, você está certa – disse ele,
ainda olhando para ela. – Além de bonita,
é inteligente.
Ela abaixou a cabeça de um jeito
tímido, olhando para o chão enquanto a
vermelhidão só aumentava. Começou a
chutar um pequeno monte que se formara
pela neve, tentando cavar a terra
congelada com a ponta do pé.
– Será que neva muito em Chicago?
Carmine ficou em silêncio por um
momento. Ela se voltou à sua direção e
percebeu que ele já não a observava;
olhava para longe, parecendo confuso.
– Muito – disse ele, enfim. – Gosto de
neve e tudo mais, mas lá tem fortes
nevascas. Não estou muito ansioso para
enfrentar isso.
– Ah, mas pense em todos os bonecos
de neve que poderemos construir, nas
guerras que faremos no jardim.
Seus lábios se curvaram em um
sorriso, mas ela podia ver a tristeza de
volta nos olhos dele. Ela se sentia
culpada por ter mencionado Chicago,
afinal, não queria estragar o humor do
namorado. Já não restavam a eles muitos
momentos tranquilos.
– Também neva em Nova York – disse
ele. – Tanto quanto em Chicago.
– Aposto que o Central Park é bonito
quando está todo branco – disse ela. – Na
verdade, aposto que é bonito o ano todo.
Eu adoraria vê-lo um dia.
– E você vai – disse ele, voltando-se
para ela. Logo seu sorriso desapareceu. –
Você parece estar congelando.
Seus dedos já estavam dormentes, as
pontas das orelhas ardiam, mas ela
apenas deu de ombros, não querendo que
aquele momento acabasse ainda.
Carmine puxou-a em seus braços,
aquecendo-a de imediato com o calor de
seu corpo. Aconchegada em seu peito, ela
colocou os braços ao redor dele enquanto
abraçava-o com força. Ele inclinou a
cabeça sobre a dela e começou a
cantarolar enquanto a neve caía sobre os
dois.
A melodia era doce e um tanto familiar.
Levou um minuto para que Haven se
lembrasse dela.
– “Blue October” – ela sussurrou,
recordando-se da música que tocara
quando fizeram amor no dia dos
namorados.
– Você se lembra – ele disse.
– Como não me lembraria? – ela
sussurrou enquanto ele continuava a
cantarolar. Então a melodia se
transformou lentamente em palavras, e ele
começou a cantar a música. Um arrepio
percorreu a espinha do rapaz; seu
coração doía à medida que pronunciava
as palavras.
Uma sensação estranha surgiu na boca
do estômago de Haven. Era uma mistura
de saudade, desespero e medo. O medo é
saudável, ela tentou se lembrar, mas
aquilo não parecia fazer sentido naquele
momento. Era paralisante, como se as
muralhas da fortaleza que ela havia
construído e que a mantinham segura
estivessem prestes a ruir.
– Você está bem? – ele perguntou,
afastando-se e sentindo o corpo dela
estremecer. Haven acenou com a cabeça.
No entanto, seus olhos encheram-se de
lágrimas e ela logo tentou evitar o olhar
do jovem. Mais uma vez estava
apavorada pela possibilidade de algum
dia ver aquela expressão nos olhos dele:
arrependimento.
– Você quer entrar? – ele perguntou
quando percebeu que ela não dizia nada.
Ela acenou de novo e, em vez de se
arriscar na árvore, agarrou a mão dela e a
direcionou para a porta dos fundos.
Digitou o código de segurança, destravou
a porta e a levou para dentro.
Haven despiu o casaco assim que
conseguiu subir a escada e chegar ao
quarto, então tirou os sapatos ainda do
lado de fora. Suas calças e sua camisa
estavam úmidas e ela as atirou numa
pilha no chão. Então, voltou-se para
Carmine, observando-o enquanto ele
tirava o casaco e o pendurava com
cuidado no encosto da cadeira.
– Carmine – ela disse, com a voz
trêmula. Ele virou a cabeça e ficou
paralisado ao vê-la ali de pé apenas com
as roupas de baixo. Quase por instinto,
seus olhos esquadrinharam o corpo da
jovem. Em seguida ele ergueu a cabeça e
os olhos de ambos se cruzaram. Uma
onda de arrepios percorreu a pele de
Haven, com a mesma intensidade dos
olhos verdes e brilhantes que a
encaravam. Carmine a fitou com
curiosidade; ela sabia que a tristeza ainda
estava lá, mas, acima de qualquer coisa,
ela podia enxergar o amor que ele sentia
por ela.
Graças a Deus, disse em silêncio,
aliviada.
– Faça amor comigo, Carmine.
Sua voz era um sussurro abafado; as
palavras estavam presas na garganta. Ela
precisava dele naquele momento. Não
tinha certeza do motivo, mas podia sentir
do fundo de seu coração até o interior de
seus ossos. Ela não queria apenas ver seu
amor; queria senti-lo. Fazia meses desde
que ambos haviam compartilhado
momentos de intimidade; desde antes de
toda aquela devastação se apossar de
suas vidas. Agora ela precisava
desesperadamente ser mais uma vez
consumida por Carmine DeMarco.
Ele parecia atordoado enquanto a
olhava, mas a expressão agonizante em
seu rosto logo se dissipou. Deu alguns
passos lentos em direção a ela, sem dizer
nada. Nenhuma palavra era necessária.
Ambos sabiam que iriam ceder àquela
necessidade, que eram incapazes de
resistir à atração que surgira desde a
primeira vez que se tocaram.
Ele parou de frente para ela. Suas
mãos acariciavam os braços da jovem
enquanto ele se inclinava com delicadeza
para beijá-la. Logo alcançou o fecho do
sutiã e o abriu, puxando-o devagar e
deixando-o cair no chão. Um gemido
escapou da garganta de Haven no
momento em que ele passou a acariciar
suavemente seus seios, seus mamilos, que
enrijeciam sob o toque sutil.
Em seguida, as mãos dele pousaram
nos quadris de Haven e ele a fez recuar
até a cama de maneira vagarosa. Com
cuidado, ele foi se deitando sobre ela,
sem interromper o beijo.
Haven fechou os olhos quando sentiu a
boca de Carmine em seu pescoço; a
respiração instável do rapaz atingia os
pontos ainda molhados pela neve.
Calafrios percorriam a espinha da moça
enquanto ele a beijava e escorregava a
boca em direção à barriga. Haven
respirou fundo quando a língua dele
mergulhou em seu umbigo. Isso a fazia
sentir cócegas, e seu corpo formigava da
cabeça aos pés.
Carmine não parecia ter pressa. Ele
continuou beijando e acariciando cada
centímetro da pele exposta da namorada,
antes de puxar sua calcinha lentamente.
Ela agarrou os lençóis com força no
momento em que ele começou a beijar
suas coxas e a segurá-la firme pelos
quadris, acariciando com doçura sua
carne.
O murmúrio de Haven se tornou mais
alto; suas pernas tremiam e a pressão
dentro dela crescia. Contorcendo-se de
prazer, ela soltou os lençóis e estendeu as
mãos em direção aos cabelos dele,
sussurrando seu nome; um suspiro
escapou do peito dele quando ouviu
aquilo. Então se afastou dela e, enquanto
a jovem abria os olhos e o observava, ele
agarrou a parte de baixo de sua camisa e
a retirou.
Estendendo mais uma vez a mão,
Haven deslizou os dedos sobre os sulcos
no estômago do jovem, traçando as linhas
da tatuagem em seu peito enquanto ele
desabotoava as calças e se livrava delas.
Haven quase parou de respirar ao vê-lo
nu e ereto diante dela, que escorregou os
dedos por sobre a trilha suave de pelos
que descia logo abaixo do umbigo,
agarrando-o e acariciando-o algumas
vezes.
– Você tem certeza? – ele perguntou,
colocando sua mão sobre a dela.
– Ora, ora, ora… Quem é que está com
dúvidas agora? – perguntou ela. – Você
não confia em mim?
Ele sorriu, divertindo-se com a
maneira como ela repetia as palavras
dele. Em seguida, ele colocou a mão dela
de lado e, no momento em que Haven
prendeu a respiração, ele a penetrou,
preenchendo-a por completo, de uma só
vez.
– É claro que eu confio em você – ele
sussurrou. – Só estou lhe dando uma
chance de mudar de ideia.
– Eu nunca vou mudar de ideia – disse
ela. – Não no que diz respeito a você.
Seus impulsos eram lentos e sutis no
início, enquanto ele a beijava com
ternura.
O silêncio foi preenchido por
murmúrios e gemidos. Ela colocou os
braços ao redor dele, agarrando-se ao
corpo de Carmine e deslizando suas mãos
pelos músculos esculpidos de suas
costas.
O prazer foi intenso quando ele a
penetrou com força pela segunda vez.
Não demorou muito para que a pressão
crescesse de novo no corpo trêmulo de
Haven. Então, depois de um tempo, os
movimentos de Carmine tornaram-se mais
frenéticos, suas estocadas mais fortes e
profundas.
Ele ficou ofegante e seu corpo tremia
sob os braços dela enquanto ele deslizava
seu pênis para dentro e para fora, com
extrema paixão. Ela podia sentir o desejo
emanando de seus poros enquanto se
entregava totalmente a ele. O amor, a
necessidade, o desejo… A paixão entre
eles era suficiente para tirar-lhe o fôlego.
Com a pele encharcada de suor, Haven
sentia como se estivesse pegando fogo,
mas seu corpo o desejava mais do que
nunca. Ela podia ouvir a respiração
ofegante, os suspiros; sentia as mãos dele
segurando-a com firmeza enquanto ele
desafiava as leis da física, puxando-a
para cada vez mais perto de seu corpo.
Era como se agora ambos fossem um só;
já não era possível distinguir onde o
corpo dele terminava e o dela começava.
Ela conseguia sentir a pulsação forte e o
sangue correndo com fúria pelas veias de
Carmine.
– Seu coração – ela sussurrou. – Está
disparado.
– Você o sente? – ele perguntou. – Você
o ouve?
– Sim.
– O que ele está dizendo?
Ela sorriu e fechou os olhos:
– Está dizendo que você me ama.
– E eu te amo – disse ele. – Não
importa o que aconteça. Eu te amarei
sempre.
Sempre. Aquela simples palavra fluiu
através do corpo dela.
O corpo de Carmine estremeceu ao
atingir o clímax, mas mesmo assim ele
continuou mais algumas vezes, enquanto
pressionava violentamente seus lábios
contra os dela e a segurava com tanta
força que fazia parecer que sua própria
vida dependia daquilo.
Aos poucos ele aliviou os movimentos
e aninhou-se no pescoço dela, soltando
um suspiro no instante em que um calafrio
percorreu seu corpo. Exausto, ele se
deitou ao lado dela e a beijou com
delicadeza antes de sussurrar em seu
ouvido:
– Boa noite, meu beija-flor. Vou sonhar
com você de novo.
Capítulo 7
Sentado na extremidade inferior da
escada, Carmine mantinha a cabeça
abaixada e passava a mão nos cabelos
rebeldes. Seus olhos estavam fixos na
mochila preta cheia de roupas perto de
seus pés. Seu antigo violão acústico
estava cuidadosamente apoiado contra
ela – metade sobre a mochila, metade no
chão.
De repente ele ouviu o som do relógio
que ficava na sala de estar no andar de
baixo. Parecia que os ponteiros
demoravam uma eternidade para se
mover. Já podia ter se passado um século,
uma hora, um minuto ou um segundo. Ele
não tinha certeza. Tudo o que sabia era
que o tempo era um filho da puta cruel,
que parecia zombar dele enquanto apenas
escapulia.
O peito de Carmine doía. Ele desejava
apenas que aquela porra parasse.
Foi então que escutou os passos na
escada atrás dele, que fizeram com que
ele sentisse como se estivesse
adoecendo. Ele estava com medo de que
Haven acordasse e o surpreendesse
sentado ali sozinho, embora uma parte
dele esperasse, de forma traiçoeira, que
ela o descobrisse e o detivesse, mesmo
sabendo que era tarde demais.
– Estou surpreso que você ainda esteja
aqui – disse Vincent, parando atrás dele.
– Pensei que a essa hora você já tivesse
ido embora.
– Eu também – disse ele com a voz
trêmula enquanto continuava a olhar para
a mochila no chão. – Ela vai me odiar.
Vai se lamentar para sempre por ter me
deixado entrar em sua vida.
– Um dia ela vai entender.
Carmine cerrou os punhos enquanto
seus olhos ardiam com lágrimas não
derramadas.
– Essa porra vai deixá-la arrasada.
– Sim, talvez.
– Ótimo – ele retrucou, olhando para
seu pai. – Obrigado por me fazer sentir
bem melhor.
– Você quer que eu minta para você? –
perguntou Vincent, levantando as
sobrancelhas. – É claro que isso irá
machucá-la, Carmine. Não há como
evitar.
– Isso está errado – disse ele,
balançando negativamente a cabeça. –
Não é assim que deveria ser. Não era
para acabar desse jeito. Nós deveríamos
ficar juntos, longe de toda essa merda, e
apenas viver a vida. Seria a primeira vez
que teríamos a oportunidade de viver de
verdade, de abandonar tudo isso. Nós só
queríamos ser nós mesmos, mas agora,
olhe para toda essa merda.
– Você está em dúvida? – perguntou
ele. – Ainda não é tarde demais.
– É claro que é tarde demais – disse
ele. – No momento em que procurei Sal,
se tornou tarde demais. Ela é melhor do
que a vida que posso oferecer a ela.
– Então o que você quer que eu diga,
filho?
– Quero que você me diga que ela
estará melhor sem mim; que será melhor
que nós fiquemos separados.
– Tudo bem – disse Vincent –, mas
quem é que vai convencer você disso? A
pergunta pegou Carmine desprevenido.
Ele olhou para o pai de maneira incisiva,
aguardando alguma resposta para aliviar
sua preocupação, mas o simples
pensamento de sair pela porta da frente
sem Haven doía muito mais do que
Carmine imaginara ser possível. Mas,
antes que pudesse pensar em alguma
coisa para dizer, a porta da frente foi
aberta e Dominic entrou. Ele congelou ao
avistar Carmine e estreitou os olhos,
fechando a porta atrás de si. Dominic
raramente perdia a paciência, mas,
quando isso acontecia, um lado
imprevisível aflorava nele. Nessas
ocasiões, suas palavras sempre
machucavam tanto quanto seus punhos,
segundo Carmine se lembrava.
– Vejo que você não a abandonou ainda
– disse ele, ferindo com intensidade o
irmão com aquela frase.
– Deixe-o em paz, Dom – disse
Vincent. – Você só está piorando as
coisas.
– Eu estou piorando as coisas? –
perguntou, incrédulo. – Alguém tem que
tentar falar com ele sobre isso antes que
ele cometa o maior erro de sua vida. Ela
é a melhor coisa que já aconteceu para
ele!
– Você acha que não sei disso? –
Carmine interrompeu. – Ela merece ser
livre para fazer o que quiser!
– Então por que você mesmo está
tirando isso dela? – perguntou Dominic. –
Você está fazendo isso para que ela seja
livre para fazer o que quiser, mas é você
quem está escolhendo por ela!
– Eu não posso deixar que a primeira
decisão dela seja optar entre seguir seus
próprios sonhos ou ir atrás de mim. Como
eu poderia pedir isso a ela? Ela sempre
se preocupa com os outros, menos com
ela mesma. E sabe por quê? Porque
sempre foi colocada para baixo por todos
aqueles idiotas. Eu não seria melhor que
nenhum deles se pedisse a ela que me
colocasse em primeiro lugar! Ela merece
descobrir o que está lá fora. Mesmo que
ainda não perceba isso.
– Essa é a coisa mais estúpida que já
ouvi – disse Dominic. – Você percebe o
que está dizendo? O que lhe dá o direito
de decidir no lugar dela? É o fato de
saber mais que ela? Poderia ser mais
condescendente?
– Vai se foder! Eu posso ser o que ela
quer, mas não sou o que ela precisa!
– Isso é o que você acha – replicou
Dominic, aproximando-se e encarando
Carmine. – Mas, como eu disse, você
nem sequer perguntou a ela. Você apenas
supôs. Quem se importa com o que a
Haven quer, não é? Vamos todos apenas
presumir que sabemos o que é melhor
para ela e então tomar todas as decisões
em seu lugar, fingindo que é disso que ela
precisa, quando só ela pode saber a
resposta.
– Ela quer um futuro, Dominic. Ela
quer ser livre.
– Mas ela não é – ele disse. – Não
enquanto pessoas como você tomarem
decisões por ela. Pensei que você fosse
melhor que isso, Carmine, mas talvez eu
estivesse errado. Talvez você não a ame
tanto assim, afinal de contas.
No momento em que aquelas palavras
saíram da boca de Dominic, a raiva
tomou conta de Carmine. Ele se levantou
de súbito e golpeou o rosto do irmão com
toda a força que tinha, fazendo com que
Dominic cambaleasse para trás. Assim
que recobrou o equilíbrio, o irmão mais
velho se lançou contra Carmine, que
tropeçou na mochila e destruiu o violão
com o pé. Dominic então o empurrou
contra a parede mais próxima. Vincent
tentou apartar a briga, mas Dominic era
muito forte. Ele imobilizou Carmine com
a mão esquerda enquanto se preparava
para espancá-lo com a outra. Carmine
tentava desesperadamente revidar e, antes
que Dominic pudesse golpeá-lo, uma voz
firme ecoou no andar de baixo.
– Já chega!
Corrado saiu da cozinha em direção
aos dois. Ele empurrou Dominic para o
lado, interpondo-se entre os irmãos.
– Ele não sabe o que está dizendo –
Carmine vociferou.
– Eu? Você é que está fodendo tudo!
– Eu disse chega! Nenhum de vocês
sabe do que está falando! Vocês são tão
estúpidos que não conseguem entender o
conceito de causa e efeito.
Dominic zombou:
– Então isso é apenas uma droga de
efeito colateral.
– Sim, é exatamente isso – disse
Corrado. – Não importa o que Carmine
faça, Haven nunca poderá escolher por si
só. Eu fiz escolhas por ela! Não tem
jeito! Certas coisas foram determinadas
no momento em que ela foi concebida e
não há nada que se possa fazer para
mudar isso. Você não pode reescrever
essa história!
A confusão chamou a atenção de Celia,
que desceu lentamente a escada até o hall,
carregando sua bagagem. Seus olhos
percorreram a sala e ela franziu a testa ao
ver as coisas de Carmine no chão.
– Todos nós somos forçados a nos
sacrificar – continuou Corrado, voltando-
se para Dominic, encarando-o de maneira
incisiva. – Não é assim que acontece na
maioria das separações? Um vai embora,
enquanto o outro não diz nada. Ou você
está insinuando que Carmine não tenha o
direito de terminar seu relacionamento?
Isso não seria hipócrita, segundo o que
você mesmo está dizendo? O fato é que
Carmine não está decidindo o futuro de
Haven. Carmine está decidindo o futuro
dele.
Ele se virou para Carmine, a raiva em
sua expressão era descomunal.
– E você, garoto, precisa crescer. Você
esteve sentado aqui a manhã toda
sentindo pena de si mesmo, e isso já está
me dando nos nervos. Você quer tanto
subir a escada quanto sair pela porta da
frente, mas não pode mais haver dúvida
entre as duas coisas. Você pertence a
Chicago agora, então seja homem e faça o
que é esperado de você. Tanto faz se você
irá levá-la junto ou não, Carmine. Ela vai
perder alguma coisa de qualquer jeito. A
única questão que permanece é o que ela
irá perder.
O hall ficou em silêncio enquanto
todos encaravam Carmine. O estômago
dele dava voltas, tamanho era o nervoso
que sentia.
– Eu não posso levá-la para Chicago.
Aquelas pessoas já foderam a vida dela o
suficiente.
Dominic levantou as mãos exasperado
ao ver o tio assentir com a cabeça.
– Muito bem, então acalme-se e me
encontre no carro em cinco minutos. Se
não estiver lá, voltarei aqui para arrastá-
lo e já lhe asseguro de que não vai querer
que isso aconteça.
Corrado tirou as chaves do bolso e se
dirigiu para a porta, fazendo sinal para
Celia segui-lo. Ela sorriu com tristeza
para o irmão antes de dar um abraço
rápido em Dominic, apenas lançando um
olhar a Carmine e logo saindo atrás do
marido.
Carmine respirou fundo e olhou para
seu pai enquanto enfiava a mão no bolso
para pegar as chaves. Ele separou a
chave da casa em Chicago antes de
entregar as restantes.
– Dê o meu carro para Haven. Ela vai
precisar de um. Se ela não quiser ficar
com ele, poderá vendê-lo, trocá-lo,
queimá-lo, enfim, fazer o que quiser dele.
Não importa mais.
Carmine agarrou sua bolsa, deixando o
violão despedaçado no chão e virou-se
para a porta da frente. Ele ficou cara a
cara com o irmão, que bloqueava seu
caminho.
– Não espere que eu esteja lá para
ajudá-lo quando você desmoronar – disse
Dominic, com as narinas dilatadas. – E a
única coisa que você irá ouvir de mim é
eu te avisei.

Haven abriu os olhos e deu uma


espiada no relógio, surpresa ao perceber
que já era meio-dia. Sua garganta doía e
ela tentava engolir a saliva. De repente
um arrepio percorreu seu corpo e uma
sensação desconfortável surgiu no fundo
de seu peito. Ela agarrou-se ao cobertor
para cobrir o corpo nu e se aquecer. Foi
então que olhou ao seu redor. Não havia
nenhum sinal de Carmine.
Mesmo a contragosto, Haven se
levantou, tomou um banho quente e vestiu
roupas confortáveis. Ainda assim, com o
passar do tempo ela começou a se sentir
cada vez pior. Sua cabeça começou a
doer, seus olhos queimavam e o corpo
todo doía. Embora ela tremesse e não
conseguisse se aquecer, sua pele parecia
quente ao toque. Era como se, no lugar do
sangue, corresse pura lava em suas veias.
Então ela viu um pedaço de papel
sobre o travesseiro de Carmine e olhou
desconfiada ao perceber seu nome escrito
na frente. Aquele sentimento do qual
Haven tanto lutara para se livrar na noite
anterior a atingia mais uma vez. Suas
mãos tremiam quando pegou o papel e o
abriu, identificando de imediato os
garranchos confusos de Carmine.

Haven,
Franklin Delano Roosevelt disse certa
vez que a liberdade não podia ser
concedida, ela teria de ser alcançada.
Acho que eu estava na quinta série
quando ouvi sobre ele, e lembro de ter
ficado irritado porque, no final, não
entendi porra nenhuma do que ele
queria dizer. Na época eu era um
merdinha ignorante, mas acho que essa
é justamente a questão aqui. Nunca me
preocupei muito com a vida e sempre
deixei de valorizar as pequenas coisas.
Na verdade, apenas depois de conhecê-
la foi que entendi isso. Você é uma
pessoa especial, e gostaria que mais
pessoas pudessem descobrir isso. Mais
pessoas precisam conhecer você. Então,
talvez o mundo se torne um lugar menos
fodido.
Eu deveria saber que apenas te dizer
que você é uma mulher livre não
adiantaria. A liberdade tem que ser
alcançada, e isso é exatamente o que
você tem que fazer, tesoro. Você tem que
ir lá e conseguir essa merda sozinha.
Você tem o mundo na ponta dos dedos,
uma vida esperando por você, cheia de
oportunidades que você não poderá ter
se ficar comigo. E sei que você sempre
teve sonhos; sonhos que você não pode e
não deve sacrificar por mim. Você já
sacrificou o suficiente de sua vida por
causa de alguns filhos da puta egoístas.
Eu não sou esse egoísta… não mais.
Pode ter certeza disso.
No momento em que você estiver
lendo isso eu já terei ido embora. Não
posso ficar aqui. Não é justo pra você, e
eu nunca me perdoaria por negar-lhe
uma vida real. Uma vida longe de toda
essa merda, onde você possa ser apenas
você mesma, a Haven. Vá e seja você
mesma, e não o que aquelas pessoas
tentaram fazer de você. Você tem que
mostrar a esses filhos da puta o que eles
estão perdendo por não conhecê-la.
Mostre pra eles que ninguém pode
manter o meu beija-flor preso numa
gaiola.
E não tenha medo. Você está pronta
para o mundo, Haven. Aliás, faz dezoito
anos que ele está esperando por você.
Não o faça esperar mais.
Carmine

Haven levantou-se de repente, a carta


caindo no chão do quarto enquanto ela
descia os dois lances de escada,
tropeçando nos próprios pés ao longo do
caminho. As lágrimas corriam por seu
rosto quando ela parou no hall da escada,
hesitando por um instante ao chutar
acidentalmente o violão quebrado de
Carmine.
Depois de se atrapalhar com o teclado
do alarme, pressionando com fúria os
números até que conseguisse digitar o
código correto, ela abriu a porta da
frente. O vento frio a atingiu e sugou o ar
de seus pulmões. Com os pés descalços,
ela correu pela varanda cujo piso de
madeira estava congelado.
O Mazda ainda estava estacionado em
frente, as janelas cobertas por uma fina
camada de gelo. A neve da noite anterior
já havia começado a derreter, mas
algumas manchas brancas permaneciam
no carro. Ele estava no mesmo lugar em
que fora deixado no dia anterior, o que
fez renascer sua esperança.
– Carmine? – ela chamou trêmula,
exalando uma nuvem de ar quente pela
boca. – Onde você está?
– Ele se foi, Haven.
Ela se virou ao ouvir a voz de doutor
DeMarco. Seu coração batia num ritmo
descontrolado. Vincent estava na porta e
os olhos dele brilhavam em compaixão.
Haven sentiu o estômago embrulhar ao
olhar para ele. Não. Não pode ser. De
jeito nenhum.
– Você está errado – ela disse. – Ele
não foi embora.
– Ele se foi.
– Não! – ela gritou. – Ele ainda está
aqui!
– Não, ele não está.
– Eu preciso fazê-lo mudar de ideia!
– Você não pode.
Naquele momento a voz dele carecia
de qualquer emoção; as palavras saíam
como se apenas não houvesse espaço
para discussão. Porém, ela simplesmente
não podia aceitá-las. Não podia ser tarde
demais.
Ela acenou com fervor para o Mazda.
– O carro dele ainda está aqui!
– Ele não foi dirigindo.
– Ele não o deixaria!
– Ele o deixou para você.
– De jeito nenhum! Ele ama esse carro!
– Mas ele ama você ainda mais.
Haven perdeu a compostura ao ouvir
aquelas palavras. Lágrimas escorriam
pelo seu rosto enquanto um gemido alto
jorrava de seu peito, ecoando pelo pátio
silencioso. Seus joelhos se dobraram e
ela caiu na varanda, balançando
freneticamente a cabeça.
– Isso não está certo – ela gritou. –
Isso não pode estar certo. Ele não iria
embora sem mais nem menos!
DeMarco continuava parado na porta
de entrada, sem se mover.
– Eu sinto muito.
– Sente muito? – perguntou ela com
descrença. – Você sente muito?
Antes que pudesse responder, ele foi
empurrado para fora do caminho quando
Dominic passou pela porta. Ele agachou-
se na varanda e pegou Haven nos braços,
silenciando-a com delicadeza enquanto
olhava para o pai.
– Dominic – disse Haven. – Faça-o
voltar!
– Não posso – disse Dominic. – Eu
tentei, Pé de Valsa, eu tentei mesmo, mas
ele não quis me escutar.
Haven começou a chorar ainda mais,
soluçando enquanto tentava recuperar o
fôlego. Ela estava sucumbindo; seu
coração se desfazia no peito, partindo-se
em milhões de pedaços.
– Você precisa se acalmar – disse
Dominic, acariciando seus cabelos com
ternura. – Respire fundo, sim? Vai ficar
tudo bem.
– Como você pode dizer isso? – ela
perguntou desesperada. – Eu preciso
dele!
Dominic abraçou-a com mais força.
– Não, você não precisa. Sei que você
acha isso, mas não precisa. Você é forte.
Você vai ficar bem por conta própria.
As palavras não tiveram o impacto que
Dominic achava que teriam. Em vez de
confortá-la, de consolá-la, ela sentiu toda
a felicidade que ainda lhe restava
desaparecer, como a última porção de
água de uma torneira que escorria por um
ralo estreito.
Por conta própria. As palavras
penetraram em sua pele, incitando os
mesmos sentimentos aterrorizantes que
ela tivera certa vez em Blackburn, quando
atravessou o deserto, desesperada para
salvar sua vida. Tudo o que ela conhecia
desaparecera durante a noite, deixando-a
sozinha com um futuro nebuloso.
Sozinha.
– Como ele pode ter ido embora? – ela
sussurrou. – Ele nem sequer me deu a
chance de dizer adeus.
Capítulo 8
Carmine permanecia parado sobre um
pequeno monte de neve, como tantos
outros que cobriam a rua. Seus pés
estavam desconfortáveis dentro das meias
molhadas pela umidade que infiltrava
pelas solas de seus velhos tênis Nike.
Ele, entretanto, não conseguia sair do
lugar; parecia tão petrificado quanto o
gelo que cobria a calçada.
A casa ficava a apenas alguns metros
de distância do meio-fio. A porta azul
encontrava-se iluminada pelo brilho da
luz de um poste próximo. O sol havia
baixado há pouco tempo, mas o céu de
Chicago, coberto de nuvens pesadas,
fazia parecer bem mais tarde.
Eles haviam viajado durante todo o dia
desde que deixaram Durante. Foram duas
horas de carro e mais algumas em um
avião. Ao longo do trajeto não houve
qualquer discussão, julgamento ou
demonstração de compaixão. Na verdade,
ninguém disse muita coisa sobre qualquer
assunto. Então ele foi deixado ali,
sozinho com seus pensamentos e, embora
às vezes apreciasse tal condição, naquele
dia o caso era bem diferente.
Quando desembarcaram, Corrado lhe
perguntou para onde queria ir. Sem
pensar, Carmine apenas murmurou as
palavras para casa. Na verdade, ele se
referia a Durante, ou seja, queria retornar
para onde realmente desejava estar. Seu
tio, entretanto, interpretou a resposta de
modo literal.
Uma hora depois, ele estava na frente
da casa onde crescera, recusando-se a
sair do lugar, a despeito dos pés
encharcados. Um arrepio percorreu seu
corpo quando um carro passou em alta
velocidade atrás dele, atingindo uma
pequena poça e atirando água gelada e
imunda em suas costas, fazendo-o dar um
grande passo para a frente para sair do
caminho. Ele então balançou
negativamente a cabeça e se dirigiu para
a calçada.
– Deixe de ser tão maricas – murmurou
consigo mesmo, enfiando a mão no bolso
para pegar a chave que seu pai lhe dera. –
É só uma porra de uma casa vazia.
Agarrando sua mochila com força, ele
caminhou em direção à varanda e abriu a
porta da frente. O ar no interior da
residência estava tão frio quanto no lado
de fora, e ele batia os dentes por conta da
forte umidade. Ele instintivamente levou
a mão ao interruptor e suspirou ao
perceber que nada aconteceu. Sem
eletricidade.
Ele perambulou pelo andar de baixo
em meio à escuridão, encontrando uma
sala vazia após a outra. Não havia
nenhuma mobília.
– Merda – ele atirou sua mochila no
meio da sala de estar e ficou ali por um
momento, olhando em volta para as
paredes nuas, antes de fechar os olhos.
Não havia mais nada ali.
Ele ainda conseguia se lembrar da
última vez em que estivera naquele lugar.
A sala era confortável e adorada pela
família, mas, ao mesmo tempo, bastante
bagunçada; não havia espaços livres,
exceto pelo canto que fora reservado para
abrigar o objeto que Carmine mais
desejava. Por meses a fio ele pedira por
aquele presente e, enfim… aquele dia
especial havia chegado.
– Como irão trazê-lo para dentro de
casa, mamãe? – ele perguntou. – É
grande demais para passar pela porta!
– Não se preocupe, eles darão um
jeito – Maura respondeu, entrando na sala
enquanto vestia seu casaco. – Mesmo que
tiverem de desmontá-lo, eles com
certeza colocarão o piano aqui – ela
então bagunçou os cabelos dele, sorrindo.
– Agora vamos, sole. Temos muitas
coisas a fazer e não queremos nos
atrasar para o seu recital! O novo piano
já estará aqui quando chegarmos em
casa esta noite.
Carmine sorriu com carinho ao
lembrar-se da voz doce e suave de sua
mãe, mas sua expressão nostálgica se
alterou assim que reabriu os olhos e se
voltou para o canto de trás da sala de
estar. Foram eles que nunca chegaram em
casa naquela noite.
Pela segunda vez naquele dia, as
lágrimas queimaram seus olhos cansados,
mas dessa vez ele não tentou contê-las.
Não havia ninguém para impedi-las,
nenhuma razão para retê-las. Nenhuma
razão para ser forte. Amanhã ele se
levantaria e seguiria em frente, sairia
pela porta com a cabeça erguida, mas não
hoje… não esta noite. Hoje ele estava
sozinho naquela casa fria e escura,
cercado por nada além de lembranças
confusas e dolorosas.

Vincent DeMarco estava sentado


sozinho em seu escritório, tamborilando
os dedos sobre a mesa de madeira. O sol
se pusera horas antes e o cômodo estava
envolto na total escuridão. Devagar, seus
olhos foram se ajustando para que
pudesse enxergar seu entorno, contudo,
ele não estava tentando olhar para alguma
coisa. Já tinha visto tudo o que precisava
ver.
O caderno de Haven estava aberto na
frente dele, bem na página que Carmine
lhe mostrara dias antes. Ele estudara com
atenção o desenho de Carlo, absorvendo
cada uma das linhas de seu rosto, cada
ruga de sua grotesca cicatriz. Sua pele
ficara arrepiada ao perceber o quanto
aquele desenho era assustadoramente
preciso: cada fissura e ondulação, até
mesmo a pequena verruga abaixo de seu
olho esquerdo.
Entretanto, Vincent sabia que aquela
verruga só havia surgido no ano anterior.
Por causa disso, logo que percebeu
aquele ponto específico da página, ele
passou o dedo sobre a marca,
perguntando-se se não seria apenas uma
mancha de tinta e, ao mesmo tempo,
tentando se convencer de que fora apenas
uma coincidência maluca. Não havia
nenhuma maneira de ela saber que o sinal
estava lá, portanto Haven não poderia tê-
lo reconhecido de antes.
A não ser… A não ser que ela de fato o
tivesse visto.
DeMarco sentiu um aperto no estômago
ao considerar tal possibilidade.
Não ajudava em nada o fato de a casa
estar em total silêncio: não havia risos,
nenhuma conversa, nenhum barulho no
andar de cima; não havia nenhuma
gritaria ou briga; não havia absolutamente
nada. Dominic saíra depois de Carmine,
logo seus dois meninos estariam a
centenas de quilômetros de distância.
Vincent sentia como se estivesse sozinho,
embora, tecnicamente, Haven ainda
estivesse ali. Ela estava bem acima dele,
no terceiro andar. Passava suas horas
como um fantasma, como se estivesse em
transe.
Ele queria conversar com ela, mas não
encontrava as palavras certas a dizer.
Em breve, ela também iria embora. Em
questão de dias, a jovem sairia pela porta
da frente e, talvez, jamais olharia para
trás. Vincent sentia uma sensação de
realização no fundo do peito, mas,
pressionando com ainda mais força, havia
algo mais sombrio: o reconhecimento de
que seu trabalho ainda não estava
completo. E ele já começava a se
perguntar se um dia estaria.
Pegando seu celular, ele estreitou os
olhos diante da luz brilhante e
desagradável do aparelho ao discar o
número de telefone de Chicago. Foram
apenas dois toques antes de ser atendido.
A voz familiar na linha apenas respondeu:
– Estou ouvindo.
Vincent respirou fundo ao se voltar
mais uma vez para o caderno e enxergar
nele os ameaçadores olhos de Carlo,
encarando-o.
– Precisamos conversar.

Ninguém incomodou Haven durante o


tempo em que ela se trancou no quarto no
terceiro andar. O tempo passou ligeiro; as
noites, uma após a outra, se
transformavam nos dias seguintes. As
nuvens de inverno aos poucos se
afastavam, dando espaço para que o sol
brilhasse de novo.
Foram inúmeras as vezes que ela lera a
carta de Carmine. No entanto, mesmo na
vigésima vez, a dor causada por aquelas
palavras não diferia em nada daquela que
sentira ao lê-las pela primeira vez. À
espera de que ele voltasse, e confinada
pela ilusão de que algum pequeno detalhe
escondesse que tudo aquilo não passava
de um simples mal-entendido, ela
buscava por algum significado oculto
naquelas linhas. O fato é que ela
continuava a esperar… A esperar que ele
voltasse.
Mas ele não voltou.
Ela ouvia pessoas se deslocando ao
redor da casa e conseguia ouvir vozes no
andar de baixo, mas apenas no final da
semana alguém por fim chegou ao andar
em que se encontrava. Dia não se deu ao
trabalho de bater, apenas entrou e se
sentou na beirada da cama. Haven
permaneceu em sua cadeira perto da
janela, encarando o jardim estéril.
– Quando foi que ele te disse? –
perguntou Haven com a voz rouca por não
falar há vários dias, sem sequer olhar
para a visitante. – Quando foi que ele te
disse que estava indo embora?
– Na véspera de Natal – respondeu
Dia. – Ele me ligou e perguntou se eu
poderia cuidar de você.
Haven piscou. Na véspera de Natal?
– E por que ele não me contou?
– Você sabe o porquê – respondeu Dia.
– Ele não teria conseguido ir embora se
tivesse feito isso. Sair pela porta da
frente foi talvez a coisa mais difícil que
ele já fez na vida.
– E todos vocês sabiam que isso iria
acontecer? – Haven perguntou enfim,
voltando-se para ela. A excêntrica Dia
parecia estranhamente discreta, vestindo
uma calça jeans e um suéter muito grande.
Seus cabelos estavam quase loiros, em
tom natural, exceto as pontas tingidas de
um tom rosa-claro. – Todos sabiam que
Carmine estava indo embora e ninguém
me disse?
Dia suspirou.
– Ele só disse para mim. Não queria
que ninguém soubesse, não queria
estragar o Natal, mas eu deixei escapar
para a minha irmã, que contou ao
Dominic. Não acho que alguém mais
soubesse de seus planos. Eles só
montaram o quebra-cabeças. A tia Celia
foi a última a saber.
– Além de mim – disse Haven de um
jeito amargo, voltando-se para longe. – O
que vou fazer agora?
– Você vai seguir em frente – disse
Dia. – Pode vir para Charlotte comigo, se
quiser, ou podemos encontrar um lugar
para você ficar por aqui, se preferir.
Qualquer coisa que lhe faça feliz.
– Ele me faz feliz – ela sussurrou.
– Eu sei – disse Dia –, mas, acredite,
as coisas ficarão mais fáceis. Com o
tempo não irá doer tanto e, no fim,
chegará o dia em que você estará pronta
para seguir em frente.
Haven balançou a cabeça, enxugando
algumas lágrimas que insistiam em
escorrer de seus olhos.
– A dor pode até diminuir, mas nunca
seguirei em frente.
Ela então ergueu a cabeça e olhou ao
redor do cômodo, observando todas as
coisas de Carmine. Tudo parecia estar
exatamente onde estivera durante
semanas, ou até meses antes, quando ele
ainda estava lá.
– Será que ele levou alguma coisa?
– Roupas – replicou Dia. – Ah,
dinheiro, ele lhe deixou um envelope com
dinheiro, sabia? É para você se manter.
Tudo que pertence a ele será enviado
para Chicago, depois que…
As palavras de Dia se perderam no ar
no momento em que Haven se levantou,
caminhou até a mesa e começou a fazer
uma triagem das coisas, separando seus
pertences dos de Carmine.
– Depois que eu sair daqui – disse ela,
completando o pensamento da amiga.
– Você não tem que fazer isso agora –
afirmou Dia. – Leve o tempo que for
necessário. Eles disseram que você é
bem-vinda para ficar aqui como
convidada pelo tempo que quiser.
– Convidada – a palavra soou estranha
ao ser pronunciada por Haven. Houve um
tempo em que ela fora uma escrava
dentro daquelas mesmas paredes;
aprisionada atrás de janelas à prova de
balas e portas trancadas. Depois disso,
ela quase se sentiu em casa, como se
tivesse finalmente encontrado um lugar ao
qual pertencia, um lugar no qual se sentia
querida. Mas agora ela era apenas uma
convidada, uma visitante de passagem em
seu caminho sabe-se lá para onde.
É estranho como as coisas funcionam.
Num minuto você é uma serva; no
seguinte você se torna a Cinderela, e, de
repente… de repente a história se acaba
e você é forçada a fechar o livro.
– Como será possível fazer isso? –
perguntou ela. – Nem sei o que estou
fazendo agora.
– Nenhum de nós sabe de fato o que
está fazendo – Dia respondeu. – Apenas
seguimos em frente e fazemos o que tem
que ser feito, tendo fé e acreditando que
tudo terminará bem.
Haven pensava nessas palavras
enquanto continuava a separar seus
pertences, sem saber o que dizer. Então,
percebendo que Haven não tinha nenhuma
intenção de parar, Dia se levantou e saiu
do quarto, retornando em seguida com
algumas caixas vazias. Ela trabalhou em
silêncio ao lado de Haven, ajudando-a a
arrumar suas coisas.
Só naquele instante, depois de
encherem várias caixas com os pertences
da jovem, Haven percebeu o quanto havia
adquirido durante o tempo em que vivera
ali. Há pouco mais de um ano, ela havia
entrado pela porta da frente pela primeira
vez, com os pés descalços e de mãos
vazias, sem nada que pudesse chamar de
seu, exceto um nome. Aquilo fora a única
coisa que sua mãe lhe dera e o único
pertence que ninguém poderia tirar dela.
Mas agora ela estava se preparando para
sair por aquela mesma porta pela última
vez, com meia dúzia de caixas já
empacotadas e repletas de coisas
materiais.
Ela ficou perturbada só de pensar
naquilo. De repente, ela queria deixar
tudo para trás.
Demorou quase dois dias para que
conseguisse separar tudo – dois dias
hesitando, dois dias embalando e
desembalando e empacotando de novo os
objetos. Ela pegou algumas roupas
necessárias, mas deixou a maior parte
pendurada no armário, esperando que o
doutor DeMarco as doasse para caridade,
para alguém que nada tivesse para vestir.
Ela empacotou alguns livros e cadernos e
todos os desenhos que havia feito durante
o ano anterior. Também pegou a cesta
usada em seu piquenique no dia dos
namorados, mas deixou todas as coisas
de Carmine intocadas.
Dominic e Tess apareceram na casa,
mas só ficaram o suficiente para dizer
adeus antes de seguirem de volta para a
faculdade. Nenhum dos dois mencionou
Carmine, ambos se fingindo alegres pelo
futuro brilhante que a aguardava, mas ela
já não era tão ingênua – era óbvio que os
dois estavam preocupados.
Então, à medida que o tempo passava,
a tristeza de Haven foi dando lugar à
raiva, e então o sentimento de culpa se
manifestou mais uma vez. Fora por causa
dela que Carmine havia se entregado
àquela organização; fora por causa dela
que ele se viu obrigado a ir para Chicago.
Ela se tornou obcecada pelos detalhes e
perguntava a si mesma como podia ter
deixado escapar os sinais. Olhando para
trás, agora lhe parecia tão óbvio que ele
estava lhe dizendo adeus…
Dia apareceu por volta do amanhecer
na véspera do Ano-Novo. Haven já
estava acordada e esperando pela amiga.
Sentada na biblioteca, com os joelhos
encolhidos junto ao peito e os braços
segurando as pernas, olhando para fora
da janela, a jovem se perguntava se fora
de fato aquilo que Carmine fizera naquela
noite: contemplar sua partida iminente.
Será que ele estava com medo? Ela
não tinha certeza. Ele fez com que a
partida parecesse tão fácil.
– Você já está pronta? – perguntou Dia.
Todos os pertences de Haven já haviam
sido colocados no carro de Carmine no
dia anterior.
Haven apenas assentiu, incapaz de
dizer alguma coisa. A verdade era que ela
se sentia como se nunca pudesse estar
pronta, mas mesmo assim ela se levantou
e vestiu o casaco. Dia lhe entregou a
chave do carro de Carmine antes de
seguir rumo à escada, mas Haven hesitou
na biblioteca.
– Encontro com você lá embaixo.
Preciso de um minuto.
Parando na porta do quarto de
Carmine, seus olhos o fitaram com
cuidado; seu peito doía. Uma lágrima
escorreu por seu rosto quando, em voz
baixa, ela pronunciou uma única palavra:
– Adeus.
Capítulo 9
Haven caminhou pelo longo corredor
com a visão prejudicada pelas caixas que
trazia nos braços. Com certa dificuldade,
as deslocou para o lado numa tentativa de
visualizar o caminho; foi quando trombou
nas costas de Dia.
Haven sorriu, como que se
desculpando, mas Dia só deu de ombros,
pegou o molho de chaves e abriu a porta.
Mais uma vez, Haven equilibrou as
caixas, tomando cuidado para não
esbarrar em mais nada, e entrou no
apartamento pequeno e tranquilo. Seus
passos vacilaram no momento em que Dia
acendeu a luz e o ambiente se iluminou.
Como papel de parede, uma grande
quantidade de fotos cobria toda a
superfície, quase bloqueando a pintura
original.
Haven já havia estado ali antes, em seu
aniversário de dezoito anos, mas
esquecera-se completamente de que a
amiga queria ser fotógrafa.
Seus olhos logo percorreram as
imagens, reconhecendo alguns dos rostos.
A maioria deles não lhe chamava a
atenção, exceto um. Em linha reta, bem
diante de seus olhos na parede acima do
sofá, havia uma foto antiga dela mesma e
Carmine. Aliás, o rosto do rapaz estava
por toda a parte, infiltrado no mar de
memórias coloridas. Aquela foto,
entretanto, era diferente e a atraiu. Mais
que qualquer outra, era como se a imagem
gritasse em silêncio seu nome. Na
ocasião ela sequer tinha noção de que a
foto estivesse sendo tirada. Era do
primeiro Natal que haviam passado
juntos, e os dois olhavam um para o
outro. O amor deles era novo, puro e
ingênuo. Uma ignorância feliz brilhava
em seus olhos; eram duas almas
completamente inconscientes da angústia
que pairava no horizonte.
Dia chutou a porta para fechá-la e a
batida ecoou pela sala, fazendo com que
Haven se encolhesse. De repente, parecia
que as paredes cobertas de memórias
estivessem se fechando sobre ela. As
caixas escorregaram de seus braços,
caindo com força sobre o chão.
Desviando-se delas, Haven caminhou
até o sofá e pegou a foto, arrancando-a da
parede sem dizer nada.
– Desculpe – disse Dia, colocando as
outras caixas no chão. – Eu devia ter te
lembrado… e te avisado.
Haven fechou os olhos. Alertá-la do
fato de que as fotos estariam ali não teria
feito nada para aliviar a dor, que já
residia intrínseca dentro dela, infectando
seus tecidos e penetrando em seus ossos,
que espremiam seu coração e o fazia
querer pular para fora do peito. Seus
pulmões pareciam endurecidos, como se
fossem feitos de couro novo, e se
recusavam teimosamente a expandir-se
quando ela respirava fundo. Haven estava
sufocando com a pressão do que poderia
ter sido…
– Está tudo bem – ela sussurrou,
forçando as palavras para fora. – Estou
bem.
Dia disse mais alguma coisa, mas
Haven não esperou para ouvir, apenas
afastou-se e seguiu em direção ao quarto
de hóspedes. Em seguida, fechou a porta,
pressionou as costas nela, segurando
firme a foto contra o peito.

Mesmo deitada na cama, o sono


parecia tê-la abandonado. Um ano novo
estava começando e, apesar de a janela
estar embaçada, era possível ver os fogos
de artifício que estouravam a distância; o
ruído da comemoração das pessoas do
lado de fora invadia o ar, mas a jovem
permaneceu ali, imóvel.
Quando o sol da manhã começou a
espreitar, ela desistiu de tentar encontrar
o sono e caminhou em silêncio até a sala
de estar. As fotos não estavam mais lá, as
paredes de cor creme estavam vazias,
exceto pelo sutil brilho laranja que
envolvia o apartamento ao nascer do sol.
Dia as retirara em algum momento
durante a noite, restando apenas alguns
pedaços soltos de fita adesiva. Haven os
retirou, enrolando-os juntos em uma
bolinha na palma da mão.
– Bom dia.
Haven se virou, observando enquanto
sua amiga saía do quarto atrás dela. Dia
usava um pijama laranja de bolinhas e
seus cabelos estavam amarrados no topo
da cabeça. Ela esfregou os olhos e
bocejou, percorrendo o breve trajeto até
a pequena cozinha.
– Bom dia – Haven respondeu
baixinho, olhando para as paredes vazias.
– Suas fotos se foram.
– Sim, achei que seria mais fácil se
você não tivesse que vê-las todos os dias
– murmurou a amiga, sonolenta, enquanto
abria a geladeira e retirava de lá uma
caixa de leite. Ela se serviu de um copo e
então despejou uma montanha de
achocolatado. Em seguida ela se voltou
de novo para Haven e perguntou: – Está
com fome? Acho que tenho um pouco de
cereal por aqui em algum lugar.
Haven negou com a cabeça.
– Não, obrigada.
– Bem, se você ficar com fome, sirva-
se de qualquer coisa na cozinha – disse. –
Não tenho muito agora, mas vou comprar
algumas coisas no caminho de volta para
casa.
Haven olhou-a com curiosidade.
– No caminho de onde para a casa?
– Da escola – ela respondeu, tomando
seu leite. – Tenho que me matricular
ainda hoje e comprar meus livros.
– Ah.
– Eu ficaria com você, mas preciso me
registrar. É a minha última chance – ela
continuou. – Mas se você não quiser ficar
sozinha, eu posso…
– Está tudo bem – disse Haven,
interrompendo-a. Ela não queria ser um
fardo. – Eu tenho coisas para fazer hoje,
de qualquer maneira. Você sabe,
desembalar tudo… Essas coisas.
Haven forçou um sorriso, mas Dia não
parecia convencida.
– Nós podemos fazer algo juntas
quando eu chegar em casa. Talvez pedir
uma pizza e assistir a um filme? Vai ser
divertido. Podemos ter uma conversa de
meninas.
– Sim, claro – disse Haven. – Parece
ótimo.
Dia sorriu com afeto, dando-lhe um
abraço antes de empreender seu ritual
matinal. Haven permaneceu na sala de
estar, rolando distraidamente a pequena
bola de fita adesiva entre os dedos.
Depois que Dia saiu, ela voltou para o
quarto e fechou a porta, deixando as
caixas com suas coisas na sala de estar.

Não houve pizza naquela noite,


tampouco filme. Também não houve
nenhuma conversa de meninas. O sono
também se recusou a aparecer.
Os dias se passavam mesclando a
insônia e o cansaço, e empurrando Haven
cada vez mais para dentro de uma
depressão. As noites eram difíceis e os
dias não eram muito melhores. A garota
caminhava de um lado para outro em
estado de torpor, quase automaticamente.
Ela se sentia como se estivesse se
afogando; era como se a vida se esvaísse
aos poucos de seu corpo. Mesmo assim,
se agarrava com desespero à superfície,
na expectativa de que algo a puxasse de
volta.
A dor era algo que Haven conhecia
muito bem e, por isso, sempre fora
bastante resistente, mantendo a cabeça
erguida enquanto enfrentava torturas
inimagináveis. No entanto, o sentimento
que agora fermentava dentro dela era
diferente. O aperto no coração e o temor
sufocante eram mais que suficientes para
fazê-la perder o chão. Ela já havia se
sentido assustada antes, com certeza, mas
esta era a primeira vez que ela realmente
se sentiu perdida. Até então, sua vida
tinha sido um ciclo interminável de faça-
isso-e-faça-aquilo; havia sempre uma
tarefa, sempre um propósito, sempre uma
intenção. Mas tudo isso ficara para trás.
Seu futuro estava vazio. Era uma tela em
branco. Não havia nenhum lugar para o
qual ela pudesse escapar. Não havia
ninguém olhando para ela.
Ela percebeu que estava livre, afinal,
mas aquela liberdade a aterrorizava.

Luna Rossa localizava-se ao lado da


rodovia, e ficava parcialmente protegido
por fileiras de árvores. O enorme prédio
de tijolos ostentava um estilo sutil,
misturando-se bem às demais construções
nos arredores de um bairro tranquilo no
sul de Chicago. O letreiro rústico em
bronze, bem acima da porta, exibia o
nome do lugar em letras cursivas na cor
vermelha. Logo abaixo aparecia o único
indicador da verdadeira natureza do
estabelecimento: as palavras “bar club”,
em dourado. Não havia nenhuma luz ou
neon piscando para atrair clientes em
potencial que passassem por ali.
Embora à primeira vista parecesse
acolhedor, quase pitoresco, o Luna Rossa
atendia a um público bastante específico.
Os sedãs escuros espalhados por todo o
estacionamento insinuavam que era o tipo
de lugar que uma pessoa não visitaria por
conta própria, a menos que alguém a
convidasse.
Carmine sempre achara estranho o fato
de seu tio ser o dono de um bar club, mas
estando de pé em frente ao local pela
primeira vez, tudo começava a fazer
sentido. O lugar era discreto, muito
parecido com o próprio dono.
Respirando fundo para se sentir mais
seguro, o garoto abriu a porta e entrou no
prédio. O segurança olhou para ele de
modo peculiar, observando as calças
jeans desbotadas e os tênis Nike, mas não
se moveu nem disse uma única palavra
quando Carmine deslizou por entre a
multidão. Era uma quinta-feira, e os
homens de terno permaneciam ao redor
com algumas mulheres mais jovens
agarradas a eles. Goomahs, ele notou. As
amantes da Máfia. Luna Rossa era o
refúgio de La Cosa Nostra, sua casa
longe de casa. Não era o tipo de lugar ao
qual um homem levaria sua esposa – era
para onde ele iria se estivesse tentando
esconder algo.
E era bem fácil se esconder ali. A
madeira escura com acabamento em
vermelho e a iluminação fraca escondiam
segredos e mascaravam pecados. Fumaça
de charuto infundia-se no ar enquanto se
ouvia Frank Sinatra pelos alto-falantes
posicionados nas laterais; a voz do cantor
se misturava ao som de conversas
amigáveis e risos dos frequentadores.
Carmine se sentiu muito deslocado ao
se dirigir até uma grande mesa de canto
na parte de trás. O barulho que vinha dali
abafava todo o resto; a mesa estava
coberta com uma grande variedade de
garrafas de bebida alcoólica. Sal estava
sentado no meio do grupo, com uma
jovem morena aconchegada à direita e, à
esquerda, uma menina loira, que não
devia ter mais de vinte anos. Havia ainda
meia dúzia de homens que os cercavam
de ambos os lados.
Nervoso, Carmine pigarreou ao se
aproximar.
– Salvatore.
Ao ouvir seu nome, Sal olhou para
cima e seu rosto se iluminou.
– Principe!
– Oi, é bom ver você.
– Digo o mesmo, meu caro – replicou
Sal, com um largo sorriso, gesticulando
com a mão. – Junte-se a nós. Tome uma
bebida.
Em vez de se apertar com os demais
convidados, Carmine pegou uma cadeira
livre e puxou-a para o outro lado da
mesa.
– Você sabe que não tenho idade
para…
O riso zombeteiro de Sal não permitiu
sequer que ele terminasse a frase.
– Bobagem! – ele fez um gesto para a
garçonete. – Traga para o meu afilhado o
que ele quiser. Coloque na minha conta.
A garçonete parou ao seu lado,
sorrindo educadamente.
– Em que posso servi-lo?
– Ah, vodca – disse ele. – Pura.
– Traga a garrafa toda – Sal entrou na
conversa. – Alguma coisa da prateleira
de cima, querida. Nada além do melhor
para o jovem DeMarco.
Carmine forçou um sorriso, mas não
ficou satisfeito com as palavras de Sal. A
garçonete voltou depois de um momento
com uma garrafa de Grey Goose e um
copo de vidro grosso, deixando-os na
frente de Carmine antes de se afastar. Ele
se serviu de uma dose em silêncio,
sentindo os olhos de Sal sobre ele
enquanto engolia o líquido para tentar
aliviar seus nervos em frangalhos.
A queimação lhe pareceu familiar:
quente e estonteante. Ele saboreou a
sensação.
A atenção de Sal voltou-se para os
outros; a conversa na mesa fluía
livremente entre os homens. Nada fazia
sentido para Carmine, então, ele
permaneceu em silêncio, tomando sua
bebida enquanto tentava passar
despercebido. Seus pensamentos
vagavam sem rumo; seus olhos, à deriva,
se concentraram nas duas garotas. Elas
riam, prestando atenção em cada palavra
de Sal, como se toda a merda que saísse
de sua boca fosse feita de ouro. Carmine
se perguntava o que viam nele, por que
permaneciam ao redor daquele homem.
Dinheiro? Presentes? Estariam elas
fascinadas pelo seu poder? Seria apenas
por diversão? Uma coisa era certa:
jamais seria por atração.
– Então, principe, já se acomodou? –
perguntou Sal, capturando de novo a
atenção de Carmine. O jovem tirou os
olhos das meninas e fitou seu padrinho,
que ergueu as sobrancelhas.
– Sim. – Ele se serviu de outra dose. –
Estou me mudando para a antiga casa dos
meus pais.
– E você já está com todas as suas
coisas?
– Elas chegaram hoje.
– E a garota? – perguntou Sal. – Ela já
chegou?
Carmine ficou tenso, e parou com o
copo nos lábios. Em seguida o jovem o
colocou sobre a mesa e, depois de um
momento sem tomar a bebida, com medo
de que o líquido não passasse pelo nó em
sua garganta, ele enfim respondeu:
– Ah… não. Ela não veio.
A expressão de Sal mudou e seu rosto
foi tomado por preocupação.
Desvencilhando-se da garota morena, ele
se inclinou para a mesa e disse com a voz
estridente, atipicamente baixa:
– O que quer dizer com “ela não
veio”?
– Ela não virá – esclareceu Carmine.
– Nunca?
– Não. Ela, uh… não está mais comigo.
A tensão tomou conta da mesa. Sal
permaneceu imóvel e encarou Carmine de
um jeito estranho. Uma expressão de
raiva surgiu em seus olhos escuros. Os
outros sentiram de imediato a mudança no
clima e ficaram em silêncio, olhando para
os dois com cautela.
– Você terminou a relação?
Carmine fez que sim com a cabeça.
– Depois de todos se arriscarem por
essa menina, vocês não estão mais
juntos?
Ele acenou mais uma vez.
– Ela está por conta própria? Livre
para fazer o que quiser?
Outro aceno.
– E você não está.
Não foi uma pergunta dessa vez, mas
Carmine assentiu de qualquer maneira.
Depois de um momento de silêncio,
Sal quebrou a tensão rindo mais uma vez,
alto e de maneira abrupta, como se
estivesse se divertindo muito.
– Bem, eu acredito que haja uma boa
lição a ser aprendida em tudo.
– Do que se trata? – alguém perguntou.
– Não importa o quanto você ache uma
mulher bonita – disse Sal –, ela nunca
valerá a pena.
Os homens irromperam em aclamação,
brindando às palavras de Sal, enquanto
Carmine permanecia em silêncio. Ele
voltou a pegar o copo e bebeu o líquido
quente, transportando toda sua amargura
para a corrente sanguínea. O jovem
percebeu quando Sal voltou-se para a
jovem morena, recolocando o braço em
volta dela, puxando-a para si e
sussurrando:
– Não você, baby.
Ela corou e riu, enquanto Carmine fez
uma careta. Que porra é essa?
– No entanto, há um lado positivo – Sal
declarou, olhando de volta para Carmine.
– Você agora pode se divertir por aqui.
Digo, não há nenhuma razão para você ir
sozinho para casa esta noite. Tenho
certeza de que a amiga de Ashley, Gabby,
ficaria feliz em acompanhá-lo.
Carmine olhou para a loira quando Sal
apontou para ela. A moça esboçou um
sorriso diabólico; seus olhos azuis
perscrutaram-no lentamente, avaliando-o
e julgando-o.
– Com certeza.
Balançando a cabeça, Carmine desviou
os olhos dela.
– Não, obrigado.
– Ela não faz seu tipo? – perguntou Sal.
– Há muito mais por aqui; ruivas, loiras,
morenas, garotas de todas as formas e
tamanhos. Basta escolher seu veneno.
– Apenas não estou… interessado.
– Meu afilhado não está interessado em
mulheres? Inédito! Escolha uma. Será
meu presente para você.
Carmine tentou pensar em uma maneira
de explicar a situação que não o fizesse
parecer suscetível. A última coisa que ele
queria era expor sua maior fraqueza na
frente de tantas pessoas.
– Eu só não estou com vontade agora.
– Você não tem que estar com vontade
– disse Sal. – Estas senhoritas sabem o
que estão fazendo. Dez minutos a sós com
uma delas e você estará implorando por
mais.
– Eu não imploro.
– Eu me lembro de você me implorar
uma vez, principe. E, me corrija se eu
estiver errado, mas acho que foi
justamente por causa de uma garota, não
foi? A garota com quem, aliás, você já
não está mais. Talvez você devesse
apenas tê-la deixado onde estava. É bem
possível que todos nós estivéssemos em
uma melhor situação.
O ódio se apoderou de Carmine. Ele
cerrou os punhos sob a mesa, mas lutou
para não demonstrar sua fúria em seu
olhar. Sal olhava fixo para ele, como que
desafiando-o para que reagisse.
– Ora, Chefe – a voz de Corrado soou
logo atrás de Carmine, pegando-o de
surpresa. As mãos pesadas dele
seguraram seus ombros, mantendo-o
preso no lugar para que não pudesse se
virar. – Dê uma folga ao garoto. Até
mesmo você sabe como é cometer erros.
Ele está apenas sendo cauteloso para não
fazer outra bobagem.
– Suponho que sua atitude seja
admirável – Sal relaxou de novo
enquanto tomava um gole de sua bebida.
– A última coisa que quero é outro
homem descuidado na minha equipe.
– Ainda mais um que seja descuidado
com uma mulher – disse Corrado.
Sal riu de um jeito amargo.
– É, e falando em homens que
cometeram erros com mulheres, seu pai é
um ótimo exemplo. A única falha de
Vincent foi na escolha de suas mulheres.
A calma simulada de Carmine falhou,
seus olhos se estreitaram. Ele se moveu
para frente uma fração de centímetro
diante daquela insinuação sobre sua mãe,
preparando-se para atacar sem pensar
duas vezes, mas as mãos de Corrado o
pressionaram ainda mais.
– Você vive e aprende – disse Corrado.
– Carmine fará as duas coisas aqui, eu
espero… Contanto que ele se lembre de
seu lugar. E acho que, nesse momento, o
lugar dele é em casa. Ele nem sequer
desfez as malas e já está celebrando.
– É verdade, é verdade – Sal acenou a
mão com desdém para Carmine. – Saia já
daqui.
Corrado soltou Carmine, dando um
passo para o lado para que ele pudesse se
levantar. Ele olhou ao redor da mesa uma
última vez antes de assentir com a
cabeça.
– Boa noite, senhor.
Afastou-se depressa e sentiu seus
nervos se acalmarem à medida que
caminhava para a saída. Quando se
aproximou do segurança, o homem se
levantou de repente e se manteve atento.
A testa de Carmine franziu diante daquela
reação, mas ele logo ouviu Corrado dizer
ao sujeito para relaxar. Seu tio vinha em
seu encalço logo atrás.
– Obrigado – disse Carmine, com
calma, respirando o ar frio da noite de
maneira profunda depois que ambos já
estavam do lado de fora do bar. Ele se
viu cercado por uma nuvem no momento
em que exalou o ar.
– Você será sempre bem-vindo aqui,
mas lembre-se de que nem sempre estarei
por perto – Corrado respondeu. – Você
tem que aprender a se controlar, não
importa o que ele diga.
– Eu sei, mas eu não esperava por isso.
Quero dizer, porra, ele não demorou para
me provocar, e me pegou desprevenido.
– Ele o está testando – disse Corrado
–, e com base no pouco que vi, tenho que
alertá-lo de que você irá falhar.
Capítulo 10
Após duas semanas sem vontade de
comer e convivendo com crises de
insônia, Haven começou a perder o
controle. Toda vez que alguém batia à
porta do apartamento de Dia, uma onda
de esperança invadia seu peito: a
esperança de que fosse Carmine. No
entanto, toda vez a expectativa se
transformava em frustração. A cada dia
ela se tornava mais ansiosa, criando
cenários fantásticos sobre onde ele
poderia estar e o que estaria fazendo. Ela
não conseguia compreender como ele
conseguia tolerar aquela distância. Se ele
a amava tanto quanto dizia, deveria estar
sentindo a mesma dor que ela. Não
deveria?
Ela começou a imaginar coisas que não
estavam lá: vozes que sussurravam
durante a noite, chamando seu nome
enquanto ela lutava para encontrar
consolo no sono. Ouvia barulhos pelo
apartamento, passos do lado de fora da
porta, estrondos que faziam seu coração
disparar de maneira descontrolada.
Chegou a um ponto em que parecia de
fato haver alguém sempre ali, num canto,
à espreita, observando e esperando.
Embora não pudesse vê-lo ou tocá-lo, ela
podia ouvi-lo se mover. Ele a estava
assombrando. As lembranças dele se
faziam presentes em todos os lugares; sua
ausência a provocava de modo cruel.
Até que, de repente, em um dia, ela o
viu.
Haven ficou imóvel enquanto encarava
sua visão: Carmine estava sentado em um
quarto escuro, vestindo apenas uma calça
de moletom cinza. Como um fantasma, o
jovem estava debruçado sobre o piano e
seus dedos repousavam sobre as teclas de
ébano e marfim. Ele não as pressionava,
entretanto. Não havia música, nenhum
som. Não havia nada, a não ser um
silêncio sufocante. Não havia mais nada,
exceto ele.
Ela se alegrou com aquela visão: os
contornos de seus músculos; o movimento
de seu peito quando ele respirava fundo.
Seus cabelos estavam longos e
despenteados, e caíam pelo seu pescoço,
pelas laterais do rosto e escondiam seus
olhos. Ela conseguia até mesmo distinguir
a cicatriz em seu corpo, ressaltada num
tom mais claro que sua pele naturalmente
bronzeada. Ela queria tocá-lo e deslizar
os dedos sobre a velha ferida.
– Tesoro – ele sussurrou a palavra em
voz trêmula, como se fosse doer muito se
dissesse um pouco mais alto –, ti amo.
Ela abriu a boca para responder, mas
as palavras não saíam. Assustada, ela
levou a mão à garganta, incapaz de
encontrar sua voz. Ele se fora.
Eu também te amo, ela pensou. Eu
sempre te amarei.
– Só você – ele sussurrou.
Sempre.
– Você é minha vida – ele disse. – Eu
morreria sem você.
– Sou sua. Sempre serei.
Os ombros dele se curvaram.
– Por favor, me perdoe.
Pelo o quê?
– Eu destruo tudo em que toco.
Ela sacudiu a cabeça.
Não, você não me destruiu.
– Talvez eu ainda não o tenha feito –
ele disse. – Mas eu irei… Se você
permitir que isso aconteça.
Você não o fará. Ela deu um passo
adiante. Você jamais me machucaria.
– Eu a feri quando a deixei – ele
sussurrou. – Mas eu tive que fazê-lo. Foi
necessário.
Ele se virou lentamente na direção da
jovem e ergueu a cabeça. O coração dela
disparou no instante em que ele a fitou.
Porém, no lugar do verde vibrante e
brilhante que ela esperava ver, não havia
nada além de escuridão. Não havia vida,
nem luz, tampouco a chama com a qual se
acostumara. As palavras dele eram tão
frias quanto seu olhar.
– Eu teria destruído você se tivesse
ficado.
Um tremor violento percorreu a
espinha de Haven enquanto ela acenava a
cabeça com desespero.
Bem acima do coração, onde as
palavras Il tempo guarisce tutti i mali
estavam tatuadas, surgiu um pequeno
círculo negro. Horrorizada, ela observou
quando a mancha se expandiu com
velocidade e tomou conta do corpo do
rapaz, enquanto o rosto dele se contorcia
de dor e angústia.
Um forte estalo sacudiu as paredes no
momento em que ele desapareceu na
escuridão.
Haven sentou-se na cama e sentiu o
coração bater de modo irregular. Estava
escuro, a iluminação da rua não entrava
pela janela, nem mesmo o brilho do
despertador próximo podia ser visto.
Desorientada, ela esfregou os olhos
ardentes e viu manchas coloridas
surgirem em sua linha de visão, como
respingos da tinta translúcida de uma
aquarela.
Uma tormenta caía lá fora; a chuva se
chocava contra o edifício e o vento
assobiava. Os ruídos ecoavam pelo
quarto e a garota sentia como se a pele
febril de seu corpo estivesse recebendo
alfinetadas. Era como se o ar estivesse
repleto de eletricidade.
Olhando na direção da porta do quarto,
seu pânico aumentou quando ouviu um
baque na sala de estar.
– Dia? – ela gritou com a voz rouca e
então engoliu em seco, tentando criar
coragem para colocar o edredom de lado
e sair da cama. Suas pernas tremiam
quando ela se levantou e caminhou na
ponta dos pés em direção à porta,
pressionando seu ouvido contra o
pequeno espaço que havia entre a porta e
o batente.
Uma rajada mais forte de vento
chacoalhou violentamente a janela e
Haven se virou para olhar. A confusão a
dominou quando seus olhos se fixaram no
vidro e, pelo reflexo embaçado, ela
vislumbrou um par de olhos. Mas não
eram quaisquer olhos… Eram olhos bem
familiares. Os mesmos que a cativaram
desde a primeira vez que os viu.
– Carmine – ela sussurrou, no momento
em que a dor em seu peito se intensificou
ao deixar escapar aquele nome. Lágrimas
se formaram e ela começou a piscar,
tentando represá-las. Contudo, quando
enfim conseguiu reabrir os olhos, a
imagem tinha desaparecido. – Carmine!
Foi então que outra forte rajada de
vento sacudiu a janela. Ela começou a
chorar e a tremer e correu em direção ao
interruptor, pressionando-o
desesperadamente para cima e para
baixo, sem que nada acontecesse. Não
havia eletricidade.
Ofegante, ela escancarou a porta do
quarto e percebeu as sombras na sala de
estar. Ouviu o clique da porta da frente e
entrou em pânico ao perceber a corrente
da fechadura balançando, demonstrando
que alguém mexera na porta.
– Dia – Haven gritou, correndo para o
quarto da amiga. Ela abriu a porta sem
bater e piscou para clarear a visão. O
medo tomou conta dela ao perceber que a
cama estava vazia. Logo vasculhou a casa
em meio à escuridão, sem encontrar Dia
em lugar nenhum.
– Não posso mais aguentar isso – disse
Haven, em pânico, correndo de volta para
o quarto. Então, calçou os sapatos e
reuniu suas coisas, antes de sair do
apartamento. Com muita pressa para
esperar o elevador, ela desceu os seis
lances de escada tão rápido quanto pôde,
e quase tropeçou quando chegou ao
segundo andar e ouviu passos a uma curta
distância à sua frente. Pouco depois eles
pararam e a porta de entrada se abriu. Um
forte trovão ecoou pelo edifício no
momento em que a pessoa, quem quer que
fosse, desaparecia em meio à tempestade.
A água fria da chuva atingiu Haven no
instante em que ela pisou fora do prédio.
Pisando no meio-fio, ela estava prestes a
atravessar a rua em direção ao Mazda
quando um táxi amarelo parou à sua
frente. Um homem saiu do banco de trás e
já se preparava para fechar a porta
quando a avistou.
– Precisa do táxi, senhorita? –
perguntou. Ela olhou para ele,
ponderando sua pergunta. Ela não tinha
ideia do que estava fazendo, sua confusão
aumentando quando percebeu a
preocupação no rosto do homem. – Olá?
Você está bem?
– Hum, sim – disse ela, sem ter certeza
de que aquilo era mesmo verdade. Passou
por ele e murmurou um agradecimento
enquanto deslizava para o banco traseiro.
Seu coração batia rápido e ela lutava
contra o mal-estar em seu estômago
enquanto o sujeito fechava a porta do
carro.
– Para onde você gostaria de ir? –
perguntou o motorista, olhando no
espelho retrovisor.
– Chicago – a palavra saiu de seus
lábios antes que ela percebesse o que
estava dizendo.
O motorista riu.
– Não é possível ir tão longe, mas
posso deixá-la na rodoviária.
Ela assentiu, atordoada.
– Ok.
Ele seguiu em direção à estrada. A
chuva bombardeava o carro por todos os
lados. O vento soprava forte e os trovões
retumbavam no céu, deixando a jovem
bastante inquieta. Ela tentava se
concentrar, mas era impossível. Cada vez
mais entrava num estado de transe. Estava
exausta demais para parar e pensar e,
diante do desespero, agia apenas por
impulso.
Quando o táxi parou, ela entregou
algum dinheiro para o motorista sem
contar e saiu do carro, permanecendo de
pé na calçada em meio à tormenta
enquanto o veículo se afastava. O prédio
de tijolos à sua frente estava desgastado;
a placa com o dizer GREYHOUND em
azul era quase invisível no meio da
tempestade. Ônibus vazios estavam
estacionados por toda parte e algumas
pessoas aguardavam a hora do embarque
no saguão iluminado.
Haven não tinha a menor ideia de por
onde começar. Seu corpo tremia enquanto
ela se aproximava da espessa janela de
vidro do edifício, pingando água por todo
o piso de ladrilhos encardidos.
A senhora sentada atrás de um
computador olhou-a de maneira peculiar.
– Posso ajudá-la?
– Eu, hum… preciso ir para Chicago.
Levando a mão ao bolso, Haven tirou
um maço de dinheiro: vinte, quarenta,
sessenta, oitenta, um bolo de cincos e uns,
e um punhado de moedas. Ela colocou
tudo sobre o balcão, tudo o que tinha em
seu bolso.
A senhora as contou, desdobrando com
cuidado as notas úmidas.
– Há um ônibus que sai em cerca de
quatro horas para Chicago.
– Esse dinheiro é suficiente?
A senhora sorriu ao digitar em seu
computador e imprimir um bilhete.
– Ainda sobram dez centavos.
Haven pegou o bilhete e depositou a
moeda de dez centavos em uma lata vazia
que um mendigo sentado nas
proximidades lhe estendera. Em silêncio,
ela caminhou até um banco de metal
vazio, deitando-se sobre ele enquanto
esperava. Quatro horas, ela recitou
mentalmente enquanto fechava os olhos
cansados. Apenas mais quatro horas.

Mais uma vez, o sono não foi tranquilo


e, de modo cruel, a conduziu aos
espasmos de outro sonho surreal. Os
raios que caíam do lado de fora da
rodoviária traduziam-se em disparos de
armas de fogo, transportando-a mais uma
vez para o meio do tiroteio no armazém.
Aquilo não parava; era um ciclo de
violência do qual não conseguia escapar.
Ela se debatia no banco duro,
choramingando em seu sono, até que
alguém a balançou para acordá-la.
Ela se sentou de repente e seus olhos
se fixaram no rosto familiar de um homem
sentado ao seu lado. Examinou-o em
silêncio por um momento, piscando
algumas vezes e imaginando que, se
esperasse um pouco, ele logo
desapareceria com o sonho.
– Doutor DeMarco?
Ele se recostou no banco duro com um
suspiro exasperado. Ele também estava
encharcado por conta da tempestade, com
os cabelos molhados e penteados para
trás. Seus olhos, escuros e expressivos,
evitaram-na por um longo momento.
Sua proximidade a levou ao limite; sua
presença era alarmante. O coração dela
batia com fúria enquanto a confusão se
instalava por completo.
– Como o senhor sabia…?
– Maura e eu tentamos fugir uma vez –
disse ele baixinho, sacudindo a cabeça. –
E o mais longe que chegamos foi até a
rodoviária.
Haven olhou para ele com cautela.
– Eu não estou fugindo.
Ele ignorou sua declaração.
– O que você está fazendo é perigoso.
Muitas coisas podem dar errado… Ainda
podem dar errado. Você tem o direito de
ir para onde quiser, mas isso apenas não
é inteligente de sua parte.
Haven moveu-se um pouco, sentando-
se a poucos centímetros dele. Seus olhos
percorreram o prédio à procura de um
relógio, encontrando um acima do guichê.
Três horas e meia tinham se passado. Seu
ônibus estava programado para sair em
trinta minutos.
– Você se lembra do dia em que a levei
até o hospital? – ele perguntou. – Nós nos
sentamos em meu escritório. Eu lhe disse
que Carmine era ingênuo e impulsivo.
– Irracional e volátil – ela sussurrou.
– Carmine sempre fez as coisas sem
pensar, e eu estava preocupado que ele
fizesse o mesmo com você.
Honestamente, pensei que ele iria tentar
pegá-la e fugir, porque ele é meu filho e é
muito parecido comigo. Mas ele não fez
isso. É provável que pela primeira vez
em sua vida ele tenha considerado as
consequências – ponderou, continuando
em seguida. – Eu perdi muito em minha
vida, sabe? Perdi minha esposa, mas
antes disso já havia perdido minha vida.
Eu a entreguei em minha iniciação. Esse é
o mundo ao qual Carmine pertence agora.
Eles lhe dizem para onde ir e o que fazer,
e se ele não o fizer… bem, você sabe o
que acontece quando as pessoas ignoram
as ordens. Ele não quer que você se
sujeite a isso, e eu concordo com ele.
Acredito que Chicago é o último lugar
para onde você deve ir, mas se você
decidir que é mesmo o que quer, farei o
que puder para ajudá-la.
Haven olhou para ele, surpresa.
– Você vai me ajudar?
– Sim, mas não hoje – disse ele, com a
expressão séria. – Carmine precisa de
tempo para entender melhor as coisas e,
sendo franco, você também precisa. Não
concorda?
Ela o olhou, sem saber o que
responder.
– Acho que sim.
– Depois que der uma chance à sua
vida, se ainda quiser ir para Chicago, eu
me certificarei de que você chegue lá,
mesmo que seja a última coisa que eu
faça na vida. Mas antes que você possa
optar por ficar com Carmine, precisa
entender do que estará desistindo.
– Mas…
DeMarco ergueu a mão para silenciá-
la.
– Se você não pode fazê-lo por si
mesma, pelo menos faça-o por Carmine.
Mostre a todos que ele estava certo sobre
você, que você é de fato a pessoa que ele
sempre acreditou que fosse. Prove que
todos que a negligenciaram estavam
errados; prove que Carmine estava certo,
porque ele precisa disso.
Lágrimas brotaram em seus olhos.
– Ok.
– Bom – disse ele, levantando-se. –
Agora vamos levá-la de volta para a casa
de Dia. Ela estava desesperada quando
me ligou, pensando que você tivesse sido
sequestrada de novo.
Tremendo, Haven cruzou os braços em
torno de si mesma, sentindo-se culpada.
Ela estava perseguindo um fantasma pela
cidade, arriscando tudo por puro
desespero e, ainda, assustando as poucas
pessoas que se importavam com ela de
verdade.
Ela seguiu DeMarco até o lado de fora
e sentou-se no banco do passageiro da
Mercedes, que estava mal estacionada e
desalinhada ao meio-fio. Ele ligou o
carro, acionando rapidamente o
aquecedor para fazê-la sentir-se melhor.
Haven encostou a cabeça na janela
embaçada, franzindo a testa quando os
alto-falantes da rodoviária anunciaram o
embarque para o ônibus que seguiria
rumo a Chicago.
Capítulo 11
As coisas mudam.
Às vezes de maneira abrupta, fazendo
com que fiquemos sem chão no momento
em que a vida nos surpreende com um
acontecimento repentino, virando nosso
mundo de cabeça para baixo,
despedaçando-o e fazendo com que
aqueles que ficaram para trás tenham de
recolher os pedaços. Outras vezes, a
mudança acontece devagar: uma hora, um
minuto ou um segundo de cada vez, de um
jeito tão vagaroso que ninguém poderia
dizer com certeza quando a transformação
aconteceu. Você se encontra em algum
lugar onde nunca esteve, fazendo coisas
que nunca fez, sendo uma pessoa que
nunca imaginou que seria.
Pelo fato de Dia estar ocupada e de
todas as pessoas que Haven conhecia
viverem a centenas de quilômetros de
distância, a jovem costumava ficar
sozinha a maior parte do tempo no
pequeno apartamento em Charlotte. Às
vezes ela se aventurava para fora de sua
zona de conforto. O ar fresco e a mudança
de ambiente a ajudavam a clarear os
pensamentos. Ela atravessava a rua em
direção a um pequeno parque e sentava-
se em um dos balanços. Em geral, o lugar
ficava vazio no período da manhã, por
causa do clima ainda frio. Haven gostava
do frio; o ar gelado aguilhoava seu rosto
e a fazia lembrar-se de que ainda estava
viva. Não importava o quanto isso a
machucasse, ou o quanto ela sentisse
como se estivesse morrendo por dentro.
Não estava. Ela ainda respirava, e a cada
vez que soltava o ar dos pulmões
reafirmava essa realidade com uma
nuvem de ar quente que se formava à sua
frente. E enquanto ela ainda estivesse
respirando, tudo estaria bem.
Sempre que tinha tempo, Dia ajudava
Haven a entender como fazer coisas
simples que Carmine nunca tivera a
oportunidade de lhe mostrar. Coisas do
dia a dia, como enviar cartas pelo
correio. Haven então comprou alguns
cartões postais e os enviou para Tess e
Dominic, que estudavam do outro lado do
país. Ela também aprendeu com a amiga a
usar o computador, e logo configurou uma
conta de e-mail para manter contato com
os dois.
A sensação de ver uma mensagem
endereçada a ela na caixa de correio era
indescritível. A maioria das pessoas está
acostumada a se comunicar livremente e
aceita isso como um fato corriqueiro, mas
para Haven era algo importante, pois
provava que ela tinha uma identidade;
que ela era real.
A primeira vez que recebeu lixo
eletrônico, um panfleto de uma empresa
local anunciando produtos, Haven ficou
entusiasmada. Ela não tinha certeza de
como eles haviam conseguido seu nome e
endereço. Ao ver aquilo, Dia deu de
ombros e sugeriu que a jovem excluísse o
spam, mas ela se recusou a fazê-lo.
Afinal, Haven havia sido reconhecida
como alguém que estava viva e era igual
a qualquer outra pessoa do mundo. Ela já
não era Haven Antonelli, uma ex-escrava,
mas Haven Antonelli, uma cliente em
potencial. E, para ela, isso era tudo.
As coisas ficaram mais leves depois
que ela decidiu por si mesma dar uma
chance à vida, embora ainda tivesse
algumas recaídas. Haven sentia uma
imensa falta de Carmine; seu amor nunca
vacilou, nem uma vez sequer. Com
frequência ela escrevia cartas para ele
também, mas nunca as enviava. Não
sabia, nem se importava em saber, se era
por orgulho, se estava com raiva ou se
tinha medo; algo a impedia de chegar até
ele de novo.

Certa manhã, Haven acordou com o sol


invadindo as janelas do apartamento em
Charlotte. O inverno desaparecera;
janeiro se transformara em fevereiro, e
março havia florescido diante de seus
olhos. Ela saiu da cama e abriu a janela,
respirando o ar fresco da manhã e
olhando para a rua abaixo. As árvores
estavam cheias de folhas em vários tons
de verde; pequenas flores começavam a
se abrir e a tingir a paisagem com cores
que não estavam lá no dia anterior.
Depois de se arrumar, deu uma volta
pela sala de estar. Dia já havia saído,
então o local estava silencioso e
tranquilo. No entanto, havia um bilhete e
um folheto sobre os livros que deixara na
mesa na noite anterior. Haven o pegou
com curiosidade antes de caminhar até a
pequena cozinha.
No bilhete estava escrito:
Achei que você pudesse se interessar
por isso,
Dia.
Entornando o suco num copo, Haven
tomou alguns goles enquanto examinava o
panfleto. Na capa estava escrito
“Programação de Primavera da
Academia de Artes de Charlotte” e, logo
abaixo, havia uma lista dos próximos
workshops. Ela leu com atenção e parou
num dos programas no meio da página:
“Pintura – Curso Básico”.
A descrição dizia:
Pintura 101
Este workshop gratuito irá ajudar os
alunos a se soltarem e a verem o mundo
sob um prisma diferente. Os participantes
irão experimentar a alegria da arte da
pintura e aprender a expressar-se de
maneira nova e criativa. Nenhuma
experiência é necessária. Todos os
materiais estão incluídos. Data: 12 a 23
de março (segunda a sexta). Horário: das
12h às 15h .
Doze de março. Haven olhou para o
calendário, percebendo que o curso
começava naquele mesmo dia.
Ela leu o panfleto três vezes antes de
colocar o copo na pia. Ponderou por um
momento, perguntando a si mesma se
realmente seria capaz de fazê-lo. Então
ela deu de ombros, pegou suas coisas e
saiu do apartamento, deparando-se com o
Mazda estacionado do outro lado da rua.
A jovem caminhou até o carro e,
hesitante, passou a mão sobre o capô
reluzente antes de sentar-se no banco do
motorista e ligar o carro.
Ela estava nervosa enquanto dirigia
pela cidade e, o tempo todo, recitava
para si mesma: Se não for por você,
faça-o por Carmine.

Demorou um pouco para que Haven


encontrasse o lugar e mais alguns minutos
até que descobrisse onde estacionar.
Quando enfim entrou na Academia de
Artes de Charlotte, já tinham se passado
quinze minutos do meio-dia. Um pouco
desanimada, mas segurando firme o
panfleto na mão, caminhou até uma
senhora que estava sentada atrás de uma
mesa no saguão.
– Eu sei que talvez seja tarde demais…
Mas eu queria saber sobre o curso básico
de pintura que começou hoje.
– Pintura? – perguntou a senhora.
Haven acenou com a cabeça.
– Sim, senhora.
– Você está com sorte – disse ela. – Há
uma vaga em aberto.
Haven preencheu a papelada, tentando
manter a mão firme enquanto escrevia seu
nome. Assim que ela se registrou, a
mulher a levou até a sala de aula. A
iluminação era agradável; música
clássica suave preenchia o ambiente
vinda dos alto-falantes instalados no teto.
As estações de trabalho individuais eram
dispostas em fileiras e havia um homem
na parte da frente, sentado em cima de
uma mesa com os braços cruzados sobre
o peito enquanto olhava para a turma. Os
olhos dele logo se fixaram nela, então ele
sorriu e caminhou até a porta.
– Temos mais uma aluna – disse a
senhora, entregando-lhe a papelada. –
Haven Antonelli.
– Prazer em conhecê-la – disse ele,
apertando sua mão. – Deixe-me mostrar-
lhe sua estação de trabalho.
Ele a instalou na última estação de
trabalho disponível e a instruiu para que,
naquele dia, apenas explorasse o
material. Ela sentou-se ali por um
momento, olhando para a tela em branco
enquanto ele se afastava. Um sorriso
formou-se em seus lábios quando ela
pegou um pincel, mergulhou-o em um
recipiente com tinta vermelha e desenhou
um coração simples no centro.

Pela primeira vez Haven chegou em


casa depois de Dia aquela noite. Já
estava escurecendo quando ela subiu as
escadas até o apartamento no sexto andar,
trazendo debaixo do braço seu primeiro
quadro. Dia estava sentada no chão da
sala de estar, em meio a pilhas de fotos
recém-trabalhadas e esparramadas por
todos os lados. Ela ergueu a cabeça
quando Haven entrou e seus olhos logo se
fixaram na tela embrulhada.
– Como foi? – ela perguntou,
cautelosa.
– Foi muito bom – disse Haven. – Eu
gostei muito.
Dia pegou o quadro, desembrulhou-o e
segurou-o, examinando as características
do trabalho: as cores e a forma
destorcida dos corações.
– É incrível! Vamos pendurá-lo!
Haven deu risada.
– Isso foi só um exercício.
– E daí? – Dia pulou por cima das
pilhas de fotografias e seguiu em direção
ao armário em busca de um martelo e
pregos. Em seguida, saltou no sofá e
pendurou a tela de maneira um tanto torta
no centro da parede. Depois de fixar o
quadro, ela pulou de volta no chão e
examinou o trabalho com mais atenção.
– É sua primeira pintura! Você deveria
estar orgulhosa.
Haven olhou para a tela por um
momento, ostentando um leve sorriso nos
lábios.
– Eu estou. Estou muito orgulhosa.
Ao longo de todas as noites daquela
semana o ritual se repetia, e outra pintura
era pregada na parede logo que Haven
chegava da aula. Em pouco tempo, os
quadros estavam cercados de fotografias
novas que Dia havia revelado durante os
meses que Haven passara ali. O
ambiente, que no passado recente fora
despido de imagens para evitar a dor,
estava vivo de novo e repleto de cores
vibrantes e memórias felizes.

La Cosa Nostra de Chicago é


administrada de maneira diferente do que
acontece nas facções no Leste. Em Nova
York, por exemplo, as cinco famílias
mantêm entidades separadas dentro da
cidade, embora todas ainda pertençam a
uma organização maior. Os chefes e suas
equipes se reúnem com frequência para
discutir os negócios e encontrar soluções,
cuidando para maximizar os lucros
enquanto reduzem as disputas internas. É
uma comissão, um congresso de
dirigentes da Máfia que se encontram,
votam, são eleitos, elaboram planos e
governam a instituição segundo
orientações preestabelecidas. Em outras
palavras, trata-se de uma democracia
que, apesar de bastante sangrenta,
violenta e totalmente ilegal, funciona
como tal.
O mesmo, entretanto, não ocorre em
Chicago. Durante décadas, a organização
na cidade tem funcionado como uma
ditadura. Os membros muitas vezes
tentam dar a ilusão de que existe alguma
justiça dentro das fileiras; os homens
fingem que concordam para se sentirem
importantes, mas ninguém se engana. Um
único indivíduo governa tudo. Ele
estabelece todas as regras e decide se
você irá viver ou morrer.
Por causa disso, Nova York e Chicago
têm mantido uma relação complicada
desde o início. Às vezes se amam, outras,
se odeiam. O fato é que sempre existe um
pouco de ciúme, tanto por parte dos
mandachuvas do Leste, que almejam a
independência do Chefão em Chicago,
quanto dos membros da equipe na Cidade
dos Ventos, que anseiam pelo maior
controle.
Sob o reinado de Antonio DeMarco, as
cidades sempre mantiveram uma
comunicação aberta, mas desde sua morte
troca e colaboração deixaram de existir.
Eles até haviam combinado contar uns
com os outros em pequenos favores
sempre que um dos lados precisasse. Era
uma aliança de conveniência dentro de
uma guerra maior. Todavia, na última vez
que alguém em Nova York ligou pedindo
ajuda, Salvatore ignorou os apelos.
E, se as facções não são amigas, elas
podem muito bem se transformar em
inimigas. O fato é que os ânimos estavam
exaltados e vários acordos eram feitos
por fora; o dinheiro transitava entre as
cidades debaixo do nariz dos chefes.
Ninguém sabia dizer se estava por dentro
do que acontecia de fato, ninguém tinha
ciência de tudo o que era dito e feito por
cada grupo, mas uma coisa era inegável:
o respeito entre os lados havia acabado.
Portanto, todo mundo se tornara um
alvo em potencial, e ninguém hesitaria em
voltar-se contra o outro para salvar a
própria pele. Eram tempos tumultuados…
Outra fonte de preocupação para
Corrado, que não queria ter de lidar com
isso.
– Como anda esse negócio do cassino?
– perguntou Sal, balançando o uísque em
seu copo enquanto se reclinava de
maneira despreocupada em sua cadeira
no escritório. Os homens estavam
sentados ao redor dele, em silêncio.
Alguns bebiam sem parar enquanto
outros, como Corrado, apenas deixavam
o tempo passar até serem liberados.
O silêncio na sala era sufocante e
ninguém respondeu à pergunta do Chefe.
– É assim? – perguntou Sal, com a voz
irritada. – Nenhum de vocês tem algo a
dizer? Vocês deveriam ser os melhores no
que fazem, mas nenhum é capaz de abrir a
boca? Nenhum de vocês é capaz de dar
um jeito nessa situação?
– É impossível – murmurou um Capo
do outro lado da sala. – Isso não pode ser
feito, Chefe.
– Bobagem – disse Sal. – Nada é
impossível.
Com tanta pressão sobre a
organização, e por conta da atenção da
Receita Federal em cima de seus
negócios, Sal estava variando sua fonte
de receita. Mas enquanto eles estavam
ocupados mantendo o controle sobre uma
Chicago caótica, enfrentando os russos e
encarando uma disputa de longa data com
os irlandeses, seus pares nova-iorquinos
haviam se espalhado por todo o país. O
problema, entretanto, era que as facções
guardavam rancor umas das outras,
portanto, o que Sal encontrava pela frente
ao tentar expandir sua área de atuação
eram barreiras e recusas.
Ninguém queria fazer negócios com o
Salamandra.
– O cara que é dono do cassino
cresceu em Manhattan – explicou o Capo.
– Ele está sob proteção. Não podemos
escoar dinheiro por lá sem a aprovação
deles e isso é justamente o que ninguém
de lá está disposto a fazer. Não para
você.
– Faça com que aprovem – disse Sal. –
Não permita que digam “não”.
– E iniciar uma nova guerra? Por causa
de um cassino?
Sal balançou a cabeça, tomando um
pequeno gole do líquido em seu copo.
– É uma questão de princípio.
– É suicídio.
Uma risada seca e inconfundível ecoou
do outro lado da sala. Corrado virou a
cabeça na direção de Carlo, que estava
de pé, encostado na parede.
– E desde quando somos covardes?
Nós não recuamos nem pedimos
permissão. Tomamos o que queremos.
Sal assentiu.
– Estou feliz que alguém aqui tenha
compreendido o que eu disse.
– É claro – disse Carlo. – E não se
preocupe com isso, Chefe. Você precisa
da colaboração deles? Eu vou dar um
jeito. Tenho meios para isso. Aliás, você
sabe que este tipo de negócio é minha
especialidade.
Um sorriso sinistro se abriu no rosto
de Sal.
– Sei que posso contar com você.
Murmúrios se espalharam pela sala,
mas Corrado permaneceu em silêncio,
esperando até que Sal os liberasse num
movimento petulante com a mão. Então
ele se levantou e acenou de volta para o
Chefe, antes de sair da mansão.
Corrado seguiu direto para sua casa,
encontrando-a escura e silenciosa. Não
havia sinal de Celia em lugar algum e,
pela primeira vez, Corrado se sentiu
grato por voltar para uma casa vazia. Ele
arrumou sua mala, nem mesmo se
preocupando em acender uma luz, e
escreveu um bilhete curto para a esposa.

NÃO ESPERE POR MIM.

Celia não o faria. De fato, ela já não o


fazia há muito tempo. Ela sabia que se ele
não tivesse chegado até uma certa hora,
provavelmente ele não viria para casa
naquela noite, então ela iria para a cama
com nada além de esperança em seu
coração de que iria revê-lo no dia
seguinte – vivo e tão inteiro quanto
possível para um homem como ele.
Corrado se dirigiu ao aeroporto
naquela noite e comprou uma passagem
para um voo noturno para Washington,
D.C. Seu avião pousou perto do
amanhecer e ele alugou um carro. Em
seguida, viajou até um pequeno
restaurante do outro lado de Arlington, na
Virgínia. Ele já havia estado ali duas
vezes no passado, há vários anos, na
companhia do homem que procurava
naquela manhã.
O pitoresco restaurante estava quase
vazio àquela hora. Todas as mesas
estavam vagas e os poucos clientes
estavam sentados nos bancos próximos ao
bar. Um pequeno sino acima da porta
soou quando Corrado entrou, e todos se
viraram para olhá-lo, exceto o homem
que ele procurava. Corrado sentou-se no
banco bem ao lado dele, seus cotovelos
tocando-se um pouco. O homem ficou
tenso e parou com a xícara de café a meio
caminho de seus lábios, enquanto seus
olhos deslizaram na direção do vizinho.
Corrado inclinou a cabeça
ligeiramente, fazendo uma sutil saudação.
– Senador Brolin.
– Ah, senhor Moretti – ele disse,
colocando a xícara no balcão antes de
olhar para trás e observar com cautela os
arredores. – O que está fazendo aqui?
– Vim para falar com você – disse
Corrado.
– Como sabia onde me encontrar?
Corrado balançou a cabeça enquanto
encarava o homem.
– Você vem aqui todas as manhãs antes
de ir para a cidade trabalhar, pede um
café com duas colheres de creme, sem
açúcar, e uma rosquinha integral com
cream cheese e morango.
O homem ficou perplexo.
– Como…?
– Mereço algum crédito, senador. Acha
que não faço meu dever de casa?
O senador Cain Brolin é de Nova
York, nasceu e foi criado próximo a
Hell’s Kitchen, uma região tumultuada de
Manhattan. Na juventude se juntara à
turma errada, ajudando alguns homens
que não deveria, antes de se candidatar. E
foi por causa desses homens que seu
caminho se cruzou ao de Corrado. Anos
antes, junto a outro senador de Illinois,
ele se envolvera em um esquema com as
famílias de Nova York e Chicago,
manipulando a licitação em canteiros de
obras do governo para que as empresas
controladas pela Máfia ganhassem os
contratos e obtivessem lucros
substanciais.
Pelo que Corrado sabia, ambos ainda
mexiam com isso, mas Salvatore tinha
sido cortado do esquema há muito tempo,
por ser considerado um risco grande
demais.
Uma garçonete aproximou-se antes que
o senador Brolin tivesse a chance de
responder, interrompendo a conversa.
– O que posso lhe oferecer, querido?
Café?
Corrado balançou a cabeça.
– Apenas água. Eu…
– Ele não bebe café – disse o senador
Brolin. – Faz mal para seu estômago.
Corrado olhou para o homem quando a
garçonete se afastou.
– Vejo que não sou o único que presta
atenção.
– Claro que não, senhor Moretti.
Os dois permaneceram em silêncio até
que a garçonete voltou com a água, então
se sentaram a uma mesa nos fundos, longe
de ouvidos curiosos e bisbilhoteiros.
– Então, o que você quer? – perguntou
o senador Brolin, pegando sua rosquinha,
sem comê-la. – Você não é o tipo de
homem que faz visitas sociais.
– É verdade – disse Corrado. – E eu
não quero algo… Eu preciso de algo.
– Veja, se é sobre o seu processo
pendente, vou lhe dizer a mesma coisa
que disse ao doutor DeMarco. Eu
realmente não posso…
– Não é sobre isso – Corrado o
interrompeu, estreitando os olhos. –
DeMarco? Você falou com Vincent sobre
o caso RICO?
– Sim, algumas semanas atrás. Ele
entrou em contato comigo.
– O que ele queria?
– Ah, não sei bem. Nós não chegamos
tão longe. Ele perguntou que tipo de
influência eu tinha dentro do
Departamento de Justiça, se é que tinha.
Eu disse a ele que estava com as mãos
atadas por lá e a conversa terminou.
Aquilo não fazia nenhum sentido para
Corrado, mas ele deixou o assunto para
depois. Não tinha tempo para se
preocupar com o que seu cunhado estava
tramando. Havia coisas mais imediatas
que precisavam ser resolvidas.
– Bem, como eu disse, não é sobre
isso.
– Então é sobre o quê?
– Há um novo lugar em Connecticut
com o qual Salvatore quer fazer
negócios: Graves Resort & Casino. É de
um sujeito chamado Samuel Graves.
– Eu sei disso – disse o senador
Brolin. – Graves cresceu com o segundo
no comando da famiglia Calabrese. Ele é
amigo meu. Ambos são, na verdade.
– Eu imaginei. E essa família, por
acaso, não é nossa maior fã nos dias de
hoje. Ainda tenho conexões com as
famiglia Amaro e Geneva, mas não com
os Calabrese – Corrado acenou
negativamente a cabeça. – Sal os ofendeu
em muitas ocasiões e, agora, sem a
aprovação deles não há acordo.
– O que você espera que eu faça?
– Eu preciso de você para conseguir
que essa parceria seja fechada.
– E por que eu faria isso?
– Por quê? – Corrado zombou,
recostando-se na cadeira. – Porque eles
vão pressionar para que isso aconteça de
uma maneira ou de outra, pouco importa
se de maneira amigável ou não. Eles já
estão fazendo planos para dar andamento
ao assunto. E tenho certeza de que não
preciso lhe dizer, senador, o que poderia
acontecer se uma guerra entre Nova York
e Chicago eclodisse.
Senador Brolin continuava com a
rosquinha na mão; seus olhos estavam
voltados para baixo, enquanto ele se
concentrava em seus pensamentos.
– Por que esse cassino? – perguntou
ele enfim. – Vocês já têm homens em
Vegas. Por que não se concentram lá?
– Muita atenção em Vegas – Corrado
respondeu. – A comissão encarregada de
investigar jogos está em cima de nós.
Metade da nossa equipe não pode sequer
pisar legalmente dentro de um cassino
naquela cidade, inclusive eu. Temos que
procurar outro lugar.
– Tudo bem – ele empurrou o prato de
lado, olhando para o relógio antes de
encarar Corrado. – Vou falar com alguns
amigos e ver o que posso fazer.
– Isso é bom.
– Você me deve uma – disse o senador
Brolin, jogando algum dinheiro na mesa
antes de se levantar. – Você sabe como
essas coisas funcionam.
– Com certeza – disse Corrado. Ele
não esperava nada menos que isso. – Um
favor em troca de outro favor.
– Exatamente – o senador Brolin
colocou o casaco, balançando a cabeça. –
Se bem que, para ser honesto, manter a
paz é um favor para todos nós… E parece
estar ficando cada vez mais difícil com o
passar dos anos. Não sei o que deu nesse
chefe de vocês.
Com certeza, pensou Corrado consigo
mesmo enquanto o homem se afastava.
– Nem eu.

Corrado já estava de volta em casa ao


anoitecer daquele mesmo dia. Entrou e
encontrou a esposa dormindo em sua
cama, com o telefone celular preso à
mão. Ele o retirou e o colocou na
pequena mesa de cabeceira, deu um beijo
em sua testa quente antes de sair para o
clube para cuidar de alguns assuntos. Era
uma quinta-feira – a noite mais
movimentada da semana para o seu
negócio. Os fins de semana eram
geralmente reservados para as relações
familiares dos mafiosi, celebrações e
encontros obrigatórios com as esposas,
enquanto a noite de quinta era quando os
homens se soltavam.
Ele entrou no Luna Rossa, dispensou
os seguranças logo na entrada e seguiu na
direção de seu escritório na parte de trás.
Seus passos vacilaram na metade do
caminho quando ouviu seu nome sendo
chamado pela voz estridente do Chefe.
– Corrado! – Sal fez um gesto para que
ele se juntasse ao grupo numa das mesas.
– Venha, tome uma bebida. Comemore
com a gente!
– O que estamos comemorando? –
perguntou Corrado, puxando uma cadeira
enquanto fazia sinal para sua garçonete
favorita. – Traga-me o de sempre.
– Estamos comemorando o negócio do
cassino – disse Sal. – Finalmente
entramos em acordo.
Corrado ergueu as sobrancelhas.
– Sério?
A garçonete se aproximou, trazendo um
pequeno copo cheio de líquido claro para
Corrado.
– Aqui está, senhor. Da prateleira de
cima. Resfriado, como o senhor gosta.
– Obrigado, querida – Corrado enfiou
a mão no bolso e tirou algum dinheiro,
oferecendo à jovem como gorjeta. Ela
pegou e se afastou enquanto Corrado
tomava um gole da bebida. O líquido frio
aliviou sua garganta, descendo de
maneira suave.
Água artesiana natural de Fiji.
Ninguém nunca perguntou o que ele
costumava tomar. Todos eles preferiam
bebidas escuras – uísque, conhaque, às
vezes burbom –, assim não se
incomodavam em indagar o que havia no
copo de Corrado.
– Carlo nem sequer teve de fazer, ah…
o que quer que ele esteja acostumado a
fazer. – Sal apontou para Carlo, que
estava sentado ao lado com o braço em
torno de uma jovem loira. – Parece que
tomaram juízo por conta própria. Ligaram
há cerca de uma hora e disseram que o
acordo estava fechado.
– Isso é ótimo – disse Corrado,
tomando outro gole. – É bom saber com
quem podemos contar nesses dias.
Capítulo 12
Os sapatos pretos, um número abaixo
do seu tamanho normal, faziam com que
fosse difícil para Carmine mexer os
dedos dos pés. O terno novo também era
sufocante, e o material fazia sua pele
coçar enquanto ocupava o banco do
passageiro da Mercedes de Corrado.
Desconfortável, ele puxou sua gravata
de seda azul. Ela o apertava, como uma
corda amarrada no pescoço. Tudo o que
ele queria era afrouxar o colarinho e tirar
o casaco, talvez até mesmo tirar os
malditos sapatos, mas tinha certeza de
que isso só irritaria seu tio.
– O que há de errado com você? –
Corrado perguntou como se fosse uma
indireta, olhando de esguelha para o
sobrinho. – Pare de ficar se remexendo.
– Estou tentando – Carmine se
deslocou no banco e apertou o pequeno
botão na porta para baixar a janela
automática, mas nada aconteceu. Corrado
bloqueara os comandos. – O carro está
um forno. Estou suando como se estivesse
na porra de uma sauna.
– Você leva jeito com as palavras –
ironizou Corrado. – Eu o aconselho a
manter seu trabalho durante o dia.
Carmine revirou os olhos. Como se ele
tivesse escolha.
– O aquecedor do carro está ligado ou
algo assim?
Corrado deu de ombros.
– Você está apenas nervoso.
Ele quis argumentar, mas não podia.
Eles estavam indo a uma festa na casa de
Sal e, de fato, Carmine estava no limite.
Ele não queria ir e desde o início tentou
arrumar desculpas para sair daquela
enrascada, mas até mesmo os encontros
sociais eram obrigatórios.
– Fique longe do álcool esta noite –
avisou Corrado.
Carmine olhou para ele incrédulo. Sem
bebida?
– Você vai estar em uma sala com
alguns dos homens mais perigosos do
país – disse Corrado, percebendo a
dúvida em sua expressão. – Acredite,
você vai querer se manter sóbrio.
– Por quê? – perguntou Carmine de um
jeito azedo. – Eu pensava que nós todos
fôssemos uma família.
– Nós somos uma família – respondeu
Corrado. – Mas você viu o que eu fiz com
a minha única irmã.
O estômago de Carmine se revirou com
a lembrança.

No momento em que chegaram à


mansão de Sal, Carmine estava
completamente ensopado. Ele respirou
fundo, tentando relaxar enquanto
acompanhava seu tio à porta. Uma garota
logo abriu-a para eles. Ela não disse
nada, sequer tirou os olhos do chão.
Depois que os dois entraram, ela
fechou a porta e se posicionou contra a
parede, saindo do caminho. Ela não devia
ter mais do que dezessete anos; era uma
garota magra de cabelos loiros e pele
pálida.
Carmine olhou-a com cautela, sabendo
desde o primeiro instante o que ela era.
Sua linguagem corporal, a maneira como
se fundia ao cenário, como um camaleão
que se mesclava às cores ao seu redor;
tudo aquilo contava uma história que as
palavras jamais conseguiriam contar.
A pressão em seu peito quase fez
dobrar seus joelhos ao lembrar-se de
Haven.
– Carmine! Corrado!
A voz de Sal desviou a atenção de
Carmine da garota. Seu padrinho se
aproximou com o braço em volta da
cintura de sua esposa. Ela olhou com cara
feia enquanto bebia uma taça de
champanhe, recusando-se a se rebaixar e
falar com qualquer um deles.
– Estou contente pelos senhores terem
vindo – disse Sal, afastando-se da esposa
para estender o braço em direção ao
rapaz. Carmine lutou para não fazer uma
careta no momento em que pressionou os
lábios contra a parte de trás da mão do
padrinho, bem próximo ao anel de ouro
maciço que ele trazia no dedo.
– É claro – disse Corrado. – Não
perderia isso por nada no mundo.
Sal ergueu as sobrancelhas, olhando de
maneira dramática sobre o ombro de
Corrado.
– E sua esposa? Onde está Celia,
afinal?
– Ela está se sentindo indisposta esta
noite – respondeu Corrado.
– Ah, é uma pena. Transmita-lhe meus
sinceros votos de melhoras, sim?
Corrado assentiu e Carmine fez de tudo
para não revirar os olhos. Não havia nada
de errado com Celia. Ela apenas havia se
recusado a passar a noite com aqueles
sujeitos.
Eles então mergulharam em uma
animada conversa, enquanto Carmine
permanecia ali, parado, sabendo
exatamente o que era esperado dele.
Todos que chegavam à festa logo
procuravam Sal; isso se repetiu a noite
toda, e o Chefe fazia questão de
apresentá-los a Carmine. O jovem, por
sua vez, estampava um sorriso falso nos
lábios e fingia que concordava com o
jogo – fingia que gostava daquelas
pessoas, fingia que se divertia, fingia que
não havia nenhum outro lugar no mundo
em que preferisse estar. Na verdade, o
que ele mais fingia era não ter vontade de
socar a porra da cara de ninguém.
Cada minuto parecia uma eternidade.
As duas horas que ele se viu obrigado a
ficar ali foram como se toda a sua
existência estivesse sendo desperdiçada.
Sal tagarelava sem parar, vangloriando-
se e gabando-se enquanto se mostrava
para Carmine. Ele sabia que estava sendo
preparado pelo padrinho. Sal já estava
tentando moldá-lo como um fantoche, um
soldado, envenenando seus pensamentos
com a ideia de ganhar dinheiro, poder e
respeito.
De um jeito um tanto impaciente, ele
esperou até que Sal estivesse bêbado
para escapar para longe do grupo, na
esperança de que fosse esquecido. O
sorriso se desfez de seu rosto enquanto
passeava pela casa e caminhava para a
mesa de bebidas. Ele pegou um copo
pequeno e o encheu com o conteúdo de
uma garrafa que já estava aberta,
ignorando o aviso de Corrado. A
queimação diminuiu a pressão em seu
peito, desfazendo os nós na garganta e
aliviando os músculos tensos.
O jovem encostou-se à mesa enquanto
bebia e sua atenção se voltou para a porta
da frente. Horas haviam se passado, mas
a menina ainda estava ali, em silêncio e
imóvel como no momento em que
chegaram. Ele a encarou enquanto se
perguntava de onde ela teria vindo e por
quanto tempo estaria sendo mantida presa
na casa de Sal. Ele não conseguia se
lembrar dela da última vez que estivera
ali.
Um momento depois ela espiou
furtivamente, inclinando um pouco a
cabeça para cima e fazendo com que seus
olhos azuis encontrassem os dele. Ela
franziu a testa ao perceber que ele a
observava, e logo baixou o olhar.
– Qual é o seu nome? – perguntou
Carmine com curiosidade.
Ela ergueu a cabeça mais uma vez, mas
não conseguiu responder antes que uma
gargalhada soasse atrás dele. Virou-se ao
ouvir o barulho de garrafas se chocando e
congelou, quase deixando cair o copo que
trazia na mão ao ver o rosto repleto de
cicatrizes. A familiaridade lhe tirou o
fôlego.
– O nome dela é Annie, eu acho – disse
Carlo, se servindo de um copo de uísque.
– Abby – a menina sussurrou, com a
voz trêmula enquanto o corrigia.
– Não que isso importe – continuou
Carlo, encolhendo os ombros. – Você
pode chamá-la do que quiser.
Carmine não conseguia tirar os olhos
dele. Tudo naquele sujeito era
desprezível, desde suas palavras
insensíveis até sua face horrenda.
– Eu prefiro chamá-la pelo nome.
Carlo olhou para ele, estudando-o com
cuidado.
– É o garoto do DeMarco.
– Sim.
– Faz sentido – Carlo levou o copo
outra vez aos lábios. – Ela faz seu tipo.
Carmine se enfureceu. Ele lutou para
controlar-se, forçando os pés a
permanecer onde estavam. Ele não se
deixaria provocar. Não ali, não naquele
momento.
– O que foi que disse?
– Ah, não há razão para se envergonhar
– disse Carlo. – Se serve de consolo,
sempre gostei de dar uma provadinha nas
garotas que trabalham para nós. A
pequena Annie ali é um docinho.
Submissa. Nem sequer ofereceu
resistência. Não que alguma delas o faça.
Bem… Exceto a sua. Agressiva aquela
menina, não é mesmo? Sem dúvidas não
puxou isso da mãe.
A raiva de Carmine veio à tona.
– Seu filho da…!
Mas antes que ele pudesse pular sobre
a mesa de bebidas e socar o rosto
grotesco do homem, um grande número de
convidados adentrou o local, fazendo
barulho e em seguida se dispersando em
diferentes direções. Carlo deu um passo
para trás, erguendo seu copo na direção
de Carmine com um sorriso ameaçador.
– Prazer em conhecê-lo oficialmente,
garoto. Nós nos vemos por aí.
Ele se afastou quando Corrado se
aproximou, pegou o copo da mão de
Carmine e colocou-o com firmeza sobre a
mesa.
– Sua capacidade de ouvir e prestar
atenção é surpreendente.
– Você sabe o que esse filho da puta
acabou de me dizer ? – perguntou
Carmine, cerrando os punhos. – Ele
simplesmente…
Corrado o interrompeu.
– Eu não me importo. Ele já galgou a
posição que ocupa, Carmine. Você não
desrespeita um homem que ganhou seu
posto de confiança na organização.
Aquelas palavras não surtiram efeito
no sentido de diminuir o mau humor do
rapaz.
– Está na hora de você ir embora –
disse Corrado. – Para você, a festa já
acabou.
Carmine permaneceu imóvel, olhando
para o tio enquanto este se virava para
retornar ao salão. Era óbvio que Corrado
planejava ficar.
– E como é que eu vou voltar para
casa?
Sem olhar para trás, Corrado agarrou a
gola de um sujeito que passava pelo
lugar, fazendo-o parar.
– Você, leve o jovem DeMarco para
casa, ok?
O cara assentiu com rapidez. Corrado
colocou a frase como uma pergunta, mas
todos sabiam que o que ele dizia não
estava aberto a negociação.
– Sim, senhor.
– É assim que você volta para casa –
disse Corrado, antes de desaparecer
dentro do salão.
Carmine seguiu o rapaz até o lado de
fora, finalmente afrouxando a gravata e
dobrando as mangas da camisa. O moço
era bastante jovem, tinha vinte e poucos
anos, no máximo. Suas sobrancelhas eram
espessas, os cabelos castanhos eram
curtos. Vestia calças jeans e uma camiseta
branca lisa, o que, aliás, deixou Carmine
irritado. Afinal, por que ele fora obrigado
a vestir aquele terno desconfortável?
Já esperando ser levado para casa em
outro Mercedes, Carmine ficou surpreso
quando o cara parou ao lado de um velho
Impala cinza, que o fez lançar um olhar
peculiar.
– Este é o seu carro?
– Sim – disse o rapaz, destravando as
portas para que eles pudessem entrar. –
Algo errado com ele?
– Não, eu apenas pensei…
– Você pensou que eu dirigia um
daqueles? – perguntou ele, rindo e
apontando para a fileira de luxuosos
sedãs pretos. – Gostaria de poder bancar
um. Talvez um dia. Mas, por enquanto,
este bebê dá para o gasto.
– É legal – disse Carmine, ocupando o
assento do passageiro, cujo couro estava
rachado. O interior estava manchado e
cheirava a uma combinação de óleo e
suor, contudo, ele se sentia mais à
vontade dentro dele que no carro de
Corrado.
Risos cortaram o ar, mas foram quase
abafados pelo ronco do motor velho e
barulhento, que ameaçava falhar e fazia
com que o carro sacudisse sem parar.
– Isso aqui é uma merda, cara, mas
pelo menos é uma merda que está paga.
Carmine não disse muita coisa durante
o trajeto, o que não impediu que o sujeito
falasse sem parar em sua orelha. Embora
fosse perturbador e desgastante, era
exatamente daquilo que ele precisava.
Afinal, enquanto estava ocupado
escutando a tagarelice do rapaz, Carmine
tinha pouco tempo para pensar; pouco
tempo para se debruçar sobre os assuntos
que o mantinham acordado durante a
noite.
Apenas quando o carro diminuiu ao
entrar na rua e estacionou na frente de sua
casa, Carmine se deu conta de que não
dera instruções ao cara.
– Como você sabia onde eu moro?
– Você está de sacanagem, não é? – ele
perguntou. – Você é um DeMarco. Sua
família faz parte da realeza, e até mesmo
um mendigo inglês todo fodido sabe onde
é o Palácio de Buckingham.
Carmine balançou a cabeça.
É, ele deveria saber disso.
– Obrigado pela carona.
– Quando quiser. A propósito, meu
nome é Remy. Remy Tarullo.
Carmine abriu a porta do carro e
congelou ao ouvir aquele nome.
– Tarullo?
– Sim, como a pizzaria da Quinta
Avenida.
– Alguma relação? – perguntou
Carmine.
Remy assentiu.
– Meu pai é o dono do lugar.
A boca de Carmine ficou seca. De
repente, ele sentiu que não conseguia
engolir a própria saliva. Fazia tempo que
não ia lá, mas ele conhecia bem o local.
– De qualquer modo, eu não apareço
muito por lá – continuou Remy. – Meu pai
não concorda com meu estilo de vida,
você sabe o que quero dizer. Bem, foda-
se, não importa. Aliás, acho que você não
faz ideia, não é? Afinal, você também faz
parte de tudo isso, então não tem que
lidar com esse tipo de situação, digo, seu
pai olhando para você como se você
fosse uma decepção, como se você
estivesse fodendo a vida de todo mundo
ao se enfiar nisso.
Carmine não disse nada, mas Remy não
fazia ideia do quanto estava errado. Ele
conhecia muito bem aquele sentimento.
– Seja como for, acho que já falei
demais – disse Remy, mexendo num velho
relógio de ouro no pulso. – Desculpe,
cara. Estava só desabafando,
especialmente depois do que aconteceu
com meu irmão mais novo.
Aquelas palavras fizeram disparar o
coração de Carmine. Dean Tarullo.
Carmine quase se esquecera do garoto no
armazém.
– O que aconteceu com ele?
– Ele se envolveu com as pessoas
erradas, acho. Desapareceu meses atrás.
– Ele está desaparecido?
A voz de Remy estava tranquila.
– Sim, mas não é um desaparecimento
do tipo que a pessoa um dia é encontrada,
se é que você me entende.
O barulho ensurdecedor dos tiros soou
mais uma vez na mente de Carmine; a
lembrança de Corrado silenciando o
menino se infiltrara para sempre em sua
cabeça.
– Sim – murmurou Carmine –, eu
entendo muito bem.

Haven estava sentada no banco verde-


metálico do parque observando toda a
atividade ao seu redor. Ela havia acabado
de sair de sua última aula de arte e seu
projeto final repousava ao lado dela,
cuidadosamente embalado e protegido
com papel pardo.
Surpreendera-se com o efeito
terapêutico da pintura; duas semanas de
arte haviam lhe proporcionado a calma
que três meses de choro e espera não
tinham sido capazes de gerar. Aquele
curso escancarou para o mundo sua
coragem e determinação. O desenho era
técnico, as linhas e os detalhes tinham de
ser precisos, mas, quando pintava, ela
podia relaxar e derramar suas emoções
sobre a tela. Cada obra de arte realizada
possuía um significado especial, embora
a jovem estivesse consciente de que os
outros olhariam para os quadros e veriam
algo diferente.
Ela apreciava aquela característica da
pintura; era como se a imagem possuísse
um código oculto e apenas ela soubesse o
segredo. Ela estava contando sua história,
mostrando todos os detalhes mais ásperos
da sua vida sofrida, porém as pessoas
não tinham como saber. Ela nunca
poderia dizer ao mundo, mas não havia
nada que lhe impedisse de mostrar a ele o
que enfrentara, contanto que ninguém
soubesse o que de fato estava vendo.
Haven ficou ali por um tempo,
apreciando a tranquila tarde de
primavera, antes de reunir suas coisas e
atravessar a rua em direção ao
apartamento. O anoitecer estava se
aproximando e Dia já devia ter retornado
da faculdade. Elas haviam feito planos
para sair e comemorar o fim do seu
workshop, mas Haven não sentia muita
vontade de comemorar. Agora que tudo
acabara, outro vazio se apossava de seu
peito.
Ela chegou ao edifício e caminhou pelo
saguão enquanto a porta do elevador já se
abria. Um homem vestindo um boné de
beisebol preto saiu de dentro dele e
segurou a porta ao vê-la se aproximar.
– Obrigada – disse ela, sorrindo com
educação.
Ele assentiu.
– Não há de quê.
Ela entrou no elevador e pressionou o
número seis, cantarolando para si mesma
enquanto o elevador apitava a cada andar
que passava. Ao chegar no andar certo,
ela caminhou pelo corredor até o
apartamento e encontrou a porta aberta.
Dia estava na sala de estar, segurando
uma pequena caixa marrom e agitando-a
com entusiasmo próxima da orelha. Ela
havia tingido os cabelos e feito um coque
desajeitado, com fios cheios de tinta
caindo por todos os lados. O forte cheiro
da tintura impregnava o ar.
Haven fechou a porta ao entrar e
apoiou sua tela na parede, ao lado da
porta.
– Que diabos você está fazendo?
Dia virou-se de repente e sorriu ao ser
pega em flagrante.
– Só estava tentando descobrir o que
tem aqui dentro.
– E por que você não a abre?
– Porque não é para mim – disse Dia,
estendendo a caixa. – É para você.
Haven ficou surpresa ao ver o pacote.
– De onde veio isso?
– Um cara acabou de entregá-la.
Ela piscou algumas vezes.
– O carteiro? – Quem iria enviar-lhe
um pacote? Dominic? Tess? Celia,
talvez?
– Na verdade, acho que ele era um
policial.
Haven olhou para ela enquanto tentava
absorver suas palavras.
– Ele disse que era um policial?
– Não, na verdade ele não disse muito,
apenas perguntou se você morava aqui e
deixou a caixa. Eu devia ter perguntado,
mas não me ocorreu. Ele teria me dito,
você sabe. Eles não podem mentir quando
você faz uma pergunta a eles – Dia
empurrou a caixa na direção de Haven e
disse: – Pegue, preciso lavar meus
cabelos. Eu já volto.
Haven olhou a caixa de papelão, mas
não conseguiu localizar nenhuma etiqueta;
havia apenas um pedaço de fita adesiva
mantendo o pacote fechado. Ela cortou a
fita com uma faca e abriu as abas,
franzindo a testa.
Dentro havia um saco plástico
transparente com um rótulo no qual estava
escrita a palavra EVIDÊNCIA; no interior,
havia um caderno que parecia bastante
comum. Haven o tirou do plástico e se
deparou com um pedaço de papel
endereçado a ela, emitido pelo
Departamento de Justiça de Chicago.

Senhorita Antonelli,

Gostaríamos de nos desculpar


pela apreensão indevida do seu
diário. Ele foi confiscado por
engano e está sendo devolvido
à senhorita nas mesmas
condições em que foi
apreendido. Mais uma vez,
pedimos que aceite nosso
sincero pedido de desculpas.
Agradecemos desde já sua
compreensão.
Agente Especial Donald Cerone
DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA DOS ESTADOS
UNIDOS

Em choque, ela começou a piscar


enquanto retirava o diário do saco. Haven
mal conseguia respirar ao examinar as
páginas em que detalhava de maneira
desordenada seus mais profundos e
obscuros segredos. Eles haviam visto.
Eles haviam lido. Eles sabiam de onde
ela tinha vindo. Eles sabiam quem ela
era.
– O que é isso? – perguntou Dia,
retornando do seu quarto depois de
alguns minutos. Ela esfregou os cabelos
molhados com uma toalha branca, que
agora estava manchada de várias cores.
– É, ah…É um diário – Haven
respondeu. – Eles o levaram quando o
doutor DeMarco foi preso.
– Ah, droga. Pensei que fosse algo
legal – Dia ficou um pouco frustrada, mas
logo se animou de novo. – Então, vamos
sair esta noite?
– Eu preferia ficar em casa – disse
Haven, ainda olhando para o diário. – Foi
um longo dia. Talvez amanhã?
– Amanhã estarei em Durante para a
semana de primavera, lembra? Você pode
vir comigo se quiser. Poderíamos passear
no Lago Aurora.
O pensamento de retornar a Durante fez
sua cabeça quase explodir. Ela não estava
pronta para ver aquele lugar novamente.
– Talvez da próxima vez.
– Então está combinado – disse Dia. –
Depois que eu voltar de lá nós vamos
comemorar.

Uma brisa forte soprou pela casa da


fazenda abandonada em Blackburn. Ela
vinha de uma janela aberta no primeiro
andar. A areia do deserto se acumulava
ao longo das passagens e rodopiava,
formando miniciclones que sujavam os
sapatos de Corrado. O pó mesclado ao
cheiro de mofo fazia seu nariz coçar e,
como um escudo fosco, recobria tudo o
que estava no local: móveis, objetos, e
até mesmo a velha mancha de sangue no
hall e os arranhões na madeira do
corrimão, onde certamente alguém já
havia sido acorrentado como um cão.
A casa parecia como qualquer outra
casa abandonada, esquecida ao longo da
estrada desolada. Não havia nada de
especial, exceto pelos segredos ocultos
sob a grossa camada de sujeira. Mas
Corrado sabia a verdade. Ele já tinha
ouvido histórias suficientes e
testemunhado cenas tenebrosas o bastante
para saber que aquela casa de aparência
inocente era quase um portal para o
inferno.
E a guardiã daquela passagem fora sua
própria irmã.
Meses haviam se passado desde a
última vez em que alguém estivera ali;
desde o dia em que três pessoas
morreram dentro do estábulo que ficava
bem perto. Na ocasião ele fizera uma
limpeza rápida, livrando-se de tudo que
fosse incriminador, mas o resto deveria
ser deixado para Haven, a parente mais
próxima.
O espólio estava quase resolvido, cada
centavo do dinheiro dos Antonelli fora
transferido para uma conta em nome da
garota. O que ainda precisava ser
resolvido era o que fazer com as
propriedades; o amor de Katrina pelas
coisas materiais era evidente pelo grande
acúmulo de objetos.
Corrado não era um homem
supersticioso. Muitas vezes precisara se
conter para não rir de Gia DeMarco
durante uma de suas alucinações malucas.
Porém, estando naquele lugar e
perambulando pela casa abandonada, ele
ainda podia sentir o mal que residia
dentro dela. O ar carregado com ódio e
más intenções o sufocava, impregnando
tudo que via pela frente e tentando
desesperadamente encontrar um caminho
para adentrar seu corpo e conseguir
sobreviver.
Mas Corrado era forte e seguro demais
para permitir que aquilo se infiltrasse em
seus pulmões. Em vez disso, aquela coisa
rancorosa e opressiva apenas se
arrastava pela superfície de sua pele,
eriçando os pelos em sua nuca. Ele havia
matado sua irmã e descartado o corpo
dela, porém, os demônios que a
possuíam, sua inveja, sua sede de
vingança, sua crueldade e seu orgulho,
permaneciam ali, intocados. E ele podia
sentir tudo aquilo ao seu redor,
oprimindo-o e tentando forçá-lo para fora
a cada passo que dava no interior.
Fazendo o possível para ignorar a
terrível sensação, ele passou a hora
seguinte andando pelo lugar, verificando
salas, armários e gavetas à procura de
qualquer coisa que Haven pudesse
querer. Vasculhou o lugar inteiro, virando
móveis de cabeça para baixo e destruindo
coisas que não interessavam. Quanto a
objetos de uso pessoal, ele saiu de mãos
vazias, mas encontrou um pouco de
dinheiro escondido, além de algumas
joias que poderiam ser vendidas e render
algum dinheiro para a jovem. O resto
parecia irrecuperável aos seus olhos;
nada valia a pena salvar.
Não havia fotografias nem lembranças.
Nada que admitisse de alguma maneira
que Haven fosse parte da família ou que
qualquer pessoa que já tivesse vivido
naquela casa tivesse se importado com
sua existência.
Ele estava se livrando de algumas
coisas dentro de um closet, já no andar de
baixo, quando atingiu um painel solto na
parede. Sem perder tempo, Corrado o
chutou para o lado, encarando o buraco
que surgiu à sua frente. Então viu algo
prateado escondido no local. Enfiou a
mão ali e tocou no que parecia ser uma
alça. Ele teve de empregar um pouco de
força para arrancar o objeto, o que
levantou uma pesada nuvem de poeira
que fez arder seus olhos e pulmões.
Depois de deixar o closet, Corrado
examinou o objeto com surpresa. Era uma
antiga valise de alumínio, pesada e
aparentemente cara. O tempo havia tirado
seu brilho, mas ela se mantinha intacta.
Tentou abri-la forçando a fechadura,
mas, sem sucesso, atirou-a no chão.
Frustrado, considerou por um momento
deixá-la ali mesmo, mas algo lhe dizia
para que não o fizesse. O objeto sem
dúvidas fora escondido por anos, talvez
décadas. Ele não conseguia entender o
que aquela valise poderia conter para
exigir tamanha proteção. Era um enigma,
um quebra-cabeça… Um mistério que ele
precisaria decifrar.
Por fim, ele a apanhou do chão e se
dirigiu para fora, jogando-a no banco de
trás do carro alugado. Olhou para a casa,
ainda tendo uma sensação estranha, como
se algo se esgueirasse por sua pele. A
noite se aproximava e o sol mergulhava
com rapidez por trás das montanhas e dos
penhascos do deserto. Após hesitar por
algum tempo, retornou à casa, reuniu
alguns livros e algumas roupas que
estavam na sala, formando uma pilha. Em
seguida, foi ao porão, onde encontrou um
recipiente com solvente de tinta. Corrado
espirrou o conteúdo sobre os objetos
antes de pegar no bolso uma caixa de
fósforos do Luna Rossa. Em seguida,
acendeu um palito e olhou brevemente
para a chama antes de atirá-lo sobre a
pilha.
O fogo logo se espalhou enquanto
Corrado caminhava de volta ao carro,
deixando a porta da frente aberta. Ele se
afastou da propriedade e seguiu em
direção à estrada, rumo a Blackburn. O
vento soprava forte e a sujeira do ar seco
seria suficiente para encobrir os rastros
dos pneus. Na casa havia oxigênio
suficiente para que tudo fosse destruído
pelas chamas. Dada a localização isolada
do imóvel e o céu escuro, levaria horas
até que alguém avistasse a fumaça, tempo
suficiente para que o lugar queimasse por
completo.
Um brilho laranja já iluminava o piso
inferior da casa quando olhou no espelho
retrovisor pela última vez. Os tons
amarelo e vermelho se misturavam aos do
pôr do sol, que banhava o solo no entorno
da propriedade. A tensão em seus
músculos e a sensação ruim em sua pele
começaram a se dissipar à medida que
ele se afastava do lugar.
Um pequeno sorriso surgiu no canto
dos seus lábios. Que melhor maneira de
mandar o mal de volta ao inferno que
por meio do fogo?
Capítulo 13
Enquanto Dia estava a caminho de
Durante para visitar seus pais, Haven
aguardava um visitante em particular. Ela
sentou-se na sala de estar do silencioso
apartamento, mantendo no colo o diário
que lhe fora entregue pelo agente federal.
Folheou-o inúmeras vezes, relendo
trechos como se esperasse que, de alguma
maneira, as palavras pudessem mudar.
Mas elas não mudariam. De fato, todas
as vezes que olhava para elas, só
pareciam piorar. Estava tudo ali, preto no
branco. Tudo o que ela prometera jamais
contar a alguém estava explicado de
maneira clara e com a mais absoluta
simplicidade. Ela sentia seu estômago
revirar.
Depois de algum tempo de espera, ela
finalmente ouviu uma batida na porta,
firme e determinada. Haven largou o
diário e foi até a porta, com o coração
disparado. O doutor DeMarco entrou sem
dizer uma palavra e então ela fechou a
porta atrás dele.
– Sinto muito incomodá-lo… senhor.
– Você não está me incomodando –
disse ele, fazendo uma pausa na sala de
estar. Seus olhos pousaram por um
instante na parede abarrotada de quadros
e fotos, antes que ele se voltasse para ela.
– Estou feliz que tenha ligado. Onde ele
está?
Ela apontou para a mesa onde o diário
repousava.
– Eu não fazia ideia de que eles tinham
isso em mãos.
Doutor DeMarco o pegou e respirou
fundo.
– Eu já sabia.
Ela ficou boquiaberta.
– Você sabia?
– O agente Cerone mostrou-o para
mim. Ele pensou que me forçaria a falar
se eu soubesse o que você havia escrito.
Ela sentiu como se tivesse levado um
soco no estômago. De repente foi como
se ela despencasse do décimo andar de
um prédio e caísse no concreto. Sentiu-se
um pouco zonza e procurou um lugar para
se sentar.
– Então você o leu?
– Na verdade foi ele quem leu algumas
passagens para mim, não pude evitar
ouvir o que continha.
A cabeça da jovem girava enquanto
tentava imaginar o que ele poderia ter
escutado.
– Sinto muito. De verdade. Eu estava
chateada quando escrevi algumas
daquelas coisas e…
– Não se desculpe – disse ele,
meneando a cabeça. – Você tem todo o
direito de se sentir como quiser.
– Mas agora eles sabem a verdade –
disse ela. – Agora o governo sabe sobre
mim.
– Sim, mas não há nada que eles
possam fazer em relação a isso. Você tem
direito à privacidade com o seu diário.
Eles não poderão usar nada disso sem a
sua autorização.
Aquela resposta a fez sentir-se mais
aliviada.
– Então eles não podem fazer nada?
– Não, o que não significa, entretanto,
que irão esquecê-lo. Em termos jurídicos,
esse diário pode ser inadmissível no
tribunal, mas existem outras maneiras de
eles o utilizarem. E confie em mim
quando eu digo que eles o farão. Aliás, já
estão fazendo.
– Como assim? – perguntou ela. – O
que eles podem fazer?
– Exatamente o que fizeram. – Ele
ergueu o diário. – Veja, isso não lhe foi
devolvido por conta da bondade que
inunda o coração de Cerone. Ele o fez
para tentar me atingir… Para provar algo.
– E o que seria?
– Não importa – ele disse. – Isso é
entre mim e ele.
Sua voz era calma, mas o tom, firme.
Ela não fez mais perguntas; sabia que não
iria conseguir mais nenhuma informação
dele.
– Você tem mais desses? – ele
perguntou. – Mais algum diário?
Hesitante, ela assentiu com a cabeça.
– Alguns.
– Pegue-os para mim, por favor.
Esse “alguns” acabaria se revelando
quase uma dúzia. Ela os trouxe do quarto
e os colocou sobre a mesinha, bem na
frente de DeMarco. Ele os olhou
pensativo e examinou as capas, mas não
abriu nenhum deles.
– Eles precisam ser destruídos. São
perigosos demais para que você os
mantenha aqui.
– Mas você disse que eles não podem
usá-los – disse ela.
– Você está certa, mas não é só com a
polícia que você tem de se preocupar. Se
algumas dessas informações caírem nas
mãos erradas, seria uma verdadeira
bomba atômica – ele fez uma pausa,
sacudindo a cabeça. – Com certeza,
catastrófico.
Ela não discutiu. Haven não faria isso;
não podia.
DeMarco se afastou do diário depois
de um momento, caminhou em direção à
janela e olhou para a rua abaixo. A luz do
pôr do sol brilhou em seu rosto.
– Agora eles sabem onde você está
morando, portanto suspeito que isso será
apenas o começo.
– Eu não sei como eles descobriram
meu endereço – disse ela. – Tentei me
manter discreta, exatamente como
Corrado me disse para fazer.
– Você não fez nada de errado –
assegurou Vincent. – Foi tudo minha
culpa.
– Sua culpa?
Vincent apontou para o próprio pé.
– Esqueci que estavam me
monitorando.
O olhar de Haven se desviou para o
monitor GPS no tornozelo dele.
Estranhamente, ela sentiu algo nas costas,
onde havia a pequena cicatriz, e logo se
lembrou do chip que costumava ter sob a
pele.
– Eles o seguiram.
– Sim.
– Então eles sabem que está aqui
agora.
– Correto – ele respondeu. – É certo
que irão vigiar esse lugar, agora que
sabem que vive aqui. E Dia confirmou
isso quando recebeu a caixa.
– Mas… Por quê? Por que eles não me
deixam em paz? Eu não fiz nada.
– É verdade, Haven, mas eu fiz.
Sua explicação fazia pouco sentido
para ela.
– Devemos pensar em transferi-la para
outro lugar – ele continuou. – É óbvio que
a escolha é sua, mas acredito que
Corrado irá concordar comigo. Você
ficará bem melhor e mais segura se sair
do alcance do radar desses homens, pelo
menos até que a poeira baixe.
– E se eu não me mudar? – ela
perguntou. – O que pode acontecer?
Ele acenou para que a garota se
aproximasse da janela e ela deu um passo
em sua direção, hesitando um pouco antes
de se colocar ao lado dele. Ele apontou
para um homem que estava parado
próximo a uma árvore do outro lado da
rua, com um telefone celular no ouvido
enquanto chutava casualmente alguns
frutos de carvalho que estavam na
calçada. Para Haven aquilo não parecia
anormal. O sujeito lhe era vagamente
familiar; talvez um vizinho, ela presumiu,
o mesmo com o boné que segurara o
elevador para ela no outro dia.
– Apresento-lhe o agente Cerone –
disse DeMarco em voz baixa. – E se você
não se mudar, esteja preparada para
encontrá-lo muitas outras vezes.

O vasto processo que fora aberto com


base na Lei de Combate a Organizações
Corruptas e Influenciadas pelo Crime
Organizado estava muito bem arrumado
sobre a mesa. Na capa, era possível
visualizar uma lista, em letras pequenas,
que incluía o equivalente a mais de vinte
anos de conspiração criminal. No total
havia trinta e duas alegações, que
sugeriam o envolvimento de Corrado em
dezenas de crimes: assassinato, assalto,
sequestro, extorsão, jogo, agiotagem,
roubo… Como uma lista de compras de
supermercado, a relação detalhava
formalmente e de maneira explícita a
violência e o caos que há décadas
reinavam nas ruas de Chicago.
POR VOLTA DE 20 1988, EM
DE MARÇO DE
CHICAGO, O RÉU CORRADO A. MORETTI, COM A
AJUDA DE CÚMPLICES, CAUSOU
INTENCIONALMENTE A MORTE DE MARLON J .
GRASSO; POR VOLTA DE 13 DE ABRIL DE 1991,
EM CHICAGO, O RÉU CORRADO A. MORETTI,
COM A AJUDA DE CÚMPLICES, CAUSOU
INTENCIONALMENTE A MORTE DE…
No total eram quarenta e oito páginas,
sem interrupção.
Corrado passara boa parte da última
hora em silêncio, lendo as acusações,
revivendo os momentos dos quais ele se
lembrava e, inclusive, alguns que
desejava poder esquecer. Ele assimilou
tudo, absorvendo o resumo do processo,
sem demonstrar qualquer remorso. Só
havia uma frase simples na primeira
página que o perturbava:
TRÁFICO DE PESSOAS PARA ESCRAVIDÃO…

– Isso aqui está errado – disse ele,


olhando para aquela acusação específica.
– Eu nunca fiz isso.
– A que parte você se refere?
Olhando por cima da pilha de papéis,
Corrado observou seu advogado do outro
lado da sala. Rocco Borza estava sentado
a uma pequena mesa redonda, estudando
centenas de documentos e fotografias
espalhadas à sua frente. Três outros
trabalhavam ao seu lado, organizando
todo o amontoado de maneira silenciosa e
com bastante cuidado. Como paredes
grossas de uma fortaleza, montanhas de
evidências os cercavam, ameaçadoras e
zombeteiras. Elas eram o único obstáculo
entre Corrado e seu futuro.
Em algum lugar no meio de tudo
aquilo, enfiado nas caixas ou escondido
nas fitas de áudio, estaria o último prego
a ser martelado em seu caixão, colocando
um ponto final em sua vida. O trabalho
daqueles profissionais era encontrá-lo e
fazê-lo desaparecer.
Exasperado, Corrado se levantou e
caminhou até a janela, olhando para a rua
abaixo. O escritório estava localizado no
décimo quinto andar de um arranha-céu
recentemente reformado no coração de
Chicago. Àquela distância, as pessoas
pareciam pequenas manchas coloridas;
formigas minúsculas lutando para não
serem esmagadas enquanto prosseguiam
com suas vidas.
– Tudo isso – murmurou Corrado. –
Todas as partes dessa coisa estão
erradas.
Uma risada repentina e penetrante
ecoou pela sala, mas o silêncio voltou a
reinar tão rápido quanto foi interrompido.
Corrado não se virou para tentar
descobrir de quem havia partido. Não
valia a pena, afinal ele desejaria matar
quem quer que tivesse ousado zombar
dele, e a última coisa de que precisava
naquele momento era de mais uma morte
em suas costas.
Além disso, se sua vida não estivesse
por um fio, talvez teria rido também. O
fato é que Corrado tinha pouca esperança
de encontrar alguma ajuda naquela sala.
A acusação, embora incômoda, soava
verdadeira na maioria dos casos. O
governo havia feito a lição de casa. Sua
única saída seria sabotar o processo.
– Você gostaria de levar essas
gravações de áudio para ouvi-las em
casa? – perguntou Borza depois de um
momento.
– Depende – disse Corrado. – Quantas
são?
Sua pergunta foi recebida com
silêncio. Corrado se virou, olhando para
seu advogado, e viu o homem encarar
uma caixa enorme.
– Acredito que sejam uns duzentos e
vinte CDs, mais ou menos.
Corrado piscou rapidamente enquanto
calculava. Duzentos e vinte, cada um com
oitenta minutos de duração.
– São quase trezentas horas de
gravações.
– É isso – disse Borza. – Mas se os de
Vincent estivessem incluídos, decerto
teríamos o dobro.
O pedido da acusação para que os
processos de Vincent e Corrado fossem
julgados separadamente fora aceito pela
justiça, sob a alegação de que assim
haveria uma chance maior de
condenação. Borza optou por defender
Corrado, talvez porque estivesse com
medo de rejeitar o homem. E por mais
que Corrado simpatizasse com seu
cunhado, a ideia de tentar recorrer dessa
decisão enquanto sua vida estava em
risco com certeza o desencorajava.
Afinal, na opinião de Corrado, Vincent já
havia perdido a esperança em relação ao
seu processo.
Corrado soltou um profundo suspiro
quando seu celular começou a tocar. Ele
o retirou do bolso, acenando a cabeça ao
ver que era o cunhado. E falando no
diabo…
– Sim?
– Temos uma situação um pouco
complicada envolvendo a jovem – disse
Vincent, fazendo uma pausa antes de
acrescentar –, mais uma vez.
Frustrado, Corrado deslizou a mão
pelo rosto. Haven se tornou um problema
maior do que ele imaginara.
– Estarei aí o mais rápido possível.
Amanhã, talvez depois de amanhã. Tente
mantê-la longe de encrencas até eu
chegar.
Ele desligou, voltando-se para seu
advogado.
– Diga a ele que se livre de todas as
gravações. Não darei conta de olhar tudo.
Borza assentiu.
– Não vai ser fácil.
– Eu não disse que seria fácil –
respondeu Corrado. – Apenas faça o que
digo.

Gotas de chuva pingavam do céu


nublado, o que já era umidade suficiente
para irritar Vincent. Ele se sentou ao
volante de seu carro e se concentrou no
barulho da borracha dos limpadores
contra o para-brisa ainda seco,
acionando-os quando necessário. O ato se
repetiu várias vezes, até que enfim ele
cansou e desligou o equipamento.
Seu carro estava estacionado numa
parte vazia de um parque na cidade de
Charlotte, ao lado de uma fileira de
árvores que levavam a uma pista de
jogging. Mesmo com os faróis apagados,
Vincent conseguia enxergar a trilha de
terra acidentada que serpenteava e
desaparecia numa parte escura da
floresta.
Um lugar perfeito para esconder um
corpo, ele pensou.
Depois de alguns minutos, um brilho
intenso surgiu nas imediações de onde
estava. Um carro se aproximou devagar e
Vincent estreitou os olhos quando o
brilho dos faróis atravessou seu para-
brisa, cegando-o temporariamente até se
apagar. Vincent piscou algumas vezes,
tentando se livrar das manchas coloridas
que surgiram nos olhos enquanto o carro
parava alguns metros à frente dele.
Vincent não hesitou. Raiva e frustração
alimentavam a adrenalina que corria em
suas veias. Saiu do carro, carregando
com firmeza o saco contendo o diário de
Haven e logo chegou até o outro veículo.
A porta se abriu e um homem saiu de
dentro dele, tentando dizer alguma coisa.
Mas, antes que dissesse uma única sílaba,
Vincent já estava sobre ele,
pressionando-o contra o carro e
empurrando o diário contra o peito dele
com tanta força que o sujeito quase
perdeu o fôlego.
– Você tem muita coragem, agente
Cerone.
– Ah, Vincent, eu não acho que…
– Doutor DeMarco – ele replicou,
interrompendo-o imediatamente. – Eu já
lhe disse isso antes, é doutor DeMarco.
– Vincent – insistiu Cerone, sem
qualquer submissão em seus olhos ou
complacência em sua expressão. – Não
acho que agredir um oficial do governo
seja do seu interesse.
– Oh, agora você quer jogar pelas
regras? – perguntou Vincent. – Você não
me pareceu muito preocupado com isso
antes.
– Bobagem – respondeu o agente
Cerone, desvencilhando-se das mãos de
Vincent, e empurrando o diário de volta
contra o peito dele. – Vamos agir como
homens de verdade, sim? E usar nossas
palavras, não nossas mãos? Ou isso não
faz seu tipo?
Vincent olhou furioso para ele na
escuridão enquanto dava um passo para
trás, colocando o espaço necessário entre
eles.
– Deixe minha família em paz.
– Família? – perguntou o agente
Cerone, soltando um riso amargo. –
Estranha escolha de palavra, dadas as
circunstâncias, não acha?
– Ela é parte da minha família, sempre
foi e sempre será – retrucou Vincent. – Só
porque você não consegue compreender
isso, porque não é capaz de meter na sua
cabeça dura que realmente nos
importamos com ela, não quer dizer que
não seja verdade.
O agente Cerone replicou em tom de
zombaria:
– O que me surpreende é o fato de
você realmente achar que está certo, de
acreditar mesmo que esta situação seja
normal.
– Não fale de coisas sobre as quais
você não sabe nada.
– Oh, eu sei muito. Eu li o diário,
lembra?
– Você invadiu a privacidade dela!
Roubou seus pensamentos!
– E daí? – ele replicou. – Isso não
torna os fatos menos verdadeiros.
– Talvez – reagiu Vincent –, mas me
diga uma coisa, agente Cerone. Você tem
algum segredo profundo e obscuro que
faria qualquer coisa para manter
escondido do mundo? Até mesmo matar
alguém?
– Você está me ameaçando?
– Não – disse Vincent. – Só estou
tentando fazê-lo entender.
– Entender o quê?
– Que você precisa deixá-la em paz –
disse Vincent, dando um passo à frente de
novo, encarando o agente especial. –
Você não irá pegá-la. Não pode.
– E por que não?
– Porque… – os olhos de Vincent
desviaram por instinto na direção do
caminho de terra. – Porque se fizer isso
ela irá morrer.
O agente Cerone o fitou:
– Agora, isso é uma ameaça.
– Não, não é – Vincent acenou
negativamente a cabeça enquanto se
afastava do homem, limpando as gotas de
chuva do rosto. – É apenas uma certeza.
– Você realmente quer fazer isso?
Haven estava de pé ao lado do Mazda,
olhando para as linhas desbotadas do
estacionamento. Ela podia sentir os olhos
penetrantes de Corrado do outro lado do
carro, apunhalando-a com suas dúvidas.
Ele parecia exausto, mas sua opinião era
clara pelo tom de sua voz. Ele não
acreditava que ela seria capaz de fazê-lo.
– Sim – respondeu ela –, eu quero.
Ele continuou como se ela não tivesse
dito nada.
– Existem alternativas, se você não
tiver certeza sobre isso. Tenho recursos
para mantê-la escondida.
– Não, eu tenho certeza – ela fez que
sim com a cabeça. A última coisa que ela
queria era abandonar a civilização outra
vez. Não havia nenhum motivo para
seguir adiante se ela não pudesse viver. –
Eu quero ir. A escolha é minha, certo?
– Certo – disse ele, ainda olhando de
maneira cética para a jovem. – Então
acho que já podemos ir.
Haven evitou seu olhar enquanto
sentava-se no banco do passageiro. Todos
os seus pertences estavam em caixas
empilhadas no banco traseiro; toda sua
vida empacotada mais uma vez dentro de
um carro. Ela havia deixado um bilhete
de despedida para Dia sobre a mesa da
cozinha. Nele não havia qualquer
informação a respeito de seu destino;
nenhuma explicação, exceto que achava
que já era hora de se estabelecer por
conta própria. Ela prometeu manter
contato, mas enquanto Corrado seguia
para a rodovia e se afastava de Charlotte,
Haven se perguntava se a amizade entre
elas poderia sobreviver.
– Procure ficar confortável – disse
Corrado. – Será uma longa viagem.
– Quanto tempo?
– Umas doze horas, talvez.
Ela se acomodou o melhor que pode no
assento e se voltou para a janela. A
viagem para a Califórnia no ano anterior
levara três dias.
Capítulo 14
Carmine estava parado num corredor
úmido, encostado na parede ao lado de
uma porta rachada, a madeira frágil mal
se aguentava nas dobradiças enferrujadas.
Gritos abafados de agonia vinham do
apartamento, mantendo Carmine estático.
O que quer que estivesse acontecendo lá
dentro, ele não queria ver.
Pela segunda vez, naquele dia, o
celular pré-pago que levava em seu bolso
vibrava ao receber uma mensagem. Sem
ter de olhar para saber quem era, o rapaz
lentamente o pegou. Sal o havia
presenteado com o aparelho, para que la
famiglia estivesse sempre em contato. O
nome não podia ser rastreado e as
mensagens estavam a salvo de escutas
telefônicas. O celular vibrara pela
primeira vez menos de uma hora antes,
com nada além de um endereço. Carmine
se vestiu, saiu de casa no meio da noite e
percorreu as poucas quadras até onde
precisavam dele.
No entanto, entre chegar até lá e entrar
por aquela porta havia uma grande
diferença.
Ele olhou para a nova mensagem no
telefone.
ONDE VOCÊ ESTÁ?
Ele começava a digitar uma resposta
quando a porta do apartamento se abriu
de súbito, chocando-se contra a parede.
Carmine deu um pulo quando viu um
homem sair do apartamento. Ele era
baixo e robusto; seu rosto redondo
esboçava uma expressão séria, e ele
trazia pendurado nos ombros um cortador
de cadeados. O sujeito não disse nada e
afastou-se quando Salvatore saiu logo
atrás dele.
– Aí está você – disse Sal, deparando-
se com Carmine.
– Sim, eu, ah… acabei de chegar.
– Ah, que pena, você perdeu toda a
diversão! – disse Sal. – Agora já está
tudo acabado.
– Que droga – disse Carmine
recolocando o telefone no bolso, com
uma sensação de alívio percorrendo seu
corpo –, cheguei aqui o mais rápido que
pude, senhor.
– Está tudo bem, meu jovem – ele
respondeu, colocando o braço sobre o
ombro de Carmine. – Você perdeu o
show, mas ainda poderá aprender
algumas coisas.
Ele puxou o rapaz para dentro do
apartamento antes que ele pudesse
protestar.
O lugar não tinha móveis; o antigo piso
de madeira estava coberto de sujeira. Sal
o conduziu até o banheiro. Ainda na
porta, Carmine ficou petrificado no
momento em que avistou o corpo na
banheira. O braço do homem estava
pendurado para o lado, sua mão presa à
pia com um par de algemas de metal. Ele
estava nu e coberto de sangue; os olhos
castanhos bem abertos, esboçando puro
terror, se destacavam no rosto pálido.
Uma fita adesiva fora envolvida em torno
da cabeça, cobrindo-lhe a boca.
Uma lona azul estava estendida no
chão, para protegê-lo das manchas.
Entretanto, a maior parte da banheira, da
pia e das peças de porcelana branca
estava encharcada de sangue. O cheiro
ferroso causava enjoo no jovem, e o
fundo de sua garganta formigava.
Carmine desviou o olhar, tentando
evitar a visão do homem morto, mas Sal
apenas riu de sua reação.
– Primeiro cadáver?
– Não – ele disse. – Você sabe que não
é.
– Ah, sim, Maura. Como pude me
esquecer?
Carmine hesitou. De fato, ele não havia
se referido à mãe. Estava se lembrando
do incidente no armazém. Todavia, diante
do comentário do padrinho, a imagem de
sua mãe surgiu repentinamente em sua
cabeça.
Sal puxou-o para fora do banheiro
quando o primeiro sujeito retornou ao
lugar acompanhado de um outro. Em
silêncio, o homem retirou as algemas e
puxou o corpo da banheira, envolvendo-o
na lona. Então os dois o pegaram e o
levaram dali. Foi muito rápido; tudo
aconteceu em questão de minutos, com a
precisão de um especialista, de um
artesão.
– Ajuda se você se lembrar de que não
são pessoas – disse Sal. – São apenas
vermes. Pragas. Estamos apenas
exterminando as baratas, principe.
Ninguém gosta de viver na sujeira, não é
mesmo?
– É, e é muita sujeira – disse Carmine
com a voz embargada.
– É verdade, meu caro – respondeu
Sal. – Não é sempre que isso acontece,
mas há alguns que preferem que seja do
jeito mais difícil. Quem sou eu para negar
a um homem sua própria indulgência?
– Você é o Chefe – disse uma voz
severa atrás deles. – Se preferir mais
limpo, mais limpo será.
Carmine se virou, olhando para o
homem que vira anteriormente. Seus
olhos eram amarelados, sua pele cinza.
Não restava quase nenhuma vida nele.
– Ah, não se importe com isso – disse
Sal, olhando de volta para o banheiro. –
Isso dará ao DeMarco algo para fazer.
A cor sumiu do rosto de Carmine.
– O quê?
– Limpe essa bagunça – ordenou Sal,
soltando seu ombro. – Certifique-se de
que tudo esteja perfeito antes de sair.
Estaremos no meu iate. Sinta-se à vontade
para se juntar a nós quando terminar.
Sal foi embora, deixando-o sozinho no
apartamento. Depois de um tempo,
Carmine dirigiu-se à loja da esquina para
comprar o material adequado. Ele se
abasteceu com panos de limpeza, luvas e
água sanitária, e passou a hora seguinte
limpando o banheiro do apartamento
abandonado.
Quando terminou, Carmine descartou
tudo em um contêiner de lixo nas
proximidades antes de retornar para casa.
A cada passo que dava, o jovem se sentia
mais aborrecido consigo mesmo.

Carmine removeu suas roupas imundas


no instante em que entrou em casa,
descartando-as sem pensar duas vezes.
Ele caminhou até o andar de cima e ligou
o chuveiro, esperando a água esquentar
antes de entrar debaixo da ducha. O
vapor logo dominou o banheiro. Sua pele
ganhou uma coloração rosa quando a água
escaldante despencou sobre ela. Ele
esfregou com cuidado cada centímetro de
seu corpo; seu peito doía enquanto ele
lutava com todas as suas forças para
conter as emoções, engolindo todos seus
sentimentos enquanto friccionava a pele,
tentando se livrar da sujeira que se
escondia sob a superfície.
Em seguida, Carmine vestiu roupas
limpas e desceu a escada. O local agora
estava mobiliado; o piano fora entregue
apenas na manhã anterior e já ocupava
seu lugar, no canto da sala principal,
protegido por uma capa preta de vinil.
Caixas estavam dispersas pelos quartos,
pertences espalhados por toda parte. O
lugar estava um caos. Havia várias
embalagens de comida delivery
espalhadas sobre os balcões da cozinha.
O lixo estava empilhado no chão.
Ignorando o ronco de seu estômago
vazio, ele abriu a porta do congelador e
pegou a garrafa de vodca Grey Goose que
escondera ali. Em seguida abriu a tampa,
levou a garrafa aos lábios e tomou um
gole, saboreando a queimação enquanto o
líquido descia por sua garganta. Ele
precisava daquilo; esperava que o álcool
entorpecesse seu corpo e fizesse
desaparecer de seus pensamentos o que
vira naquela noite. Ele desejava que
aquele líquido poderoso acabasse com a
dor incessante que residia dentro dele,
mas sabia que, no fundo, nada a faria ir
embora. Uma parte dele estava faltando;
havia um buraco aberto no lugar onde seu
coração existira uma vez. Era a parte que
ele havia deixado para trás, com ela; a
parte que ela carregaria consigo aonde
quer que fosse.
Charlotte?, ele se perguntou. Estaria
ela dividindo o apartamento com Dia? O
que ela estaria fazendo com o tempo
livre? Aquelas perguntas o perturbavam
noite após noite, mas ele nunca as
colocava em palavras. O que quer que ela
estivesse fazendo de sua vida, em
qualquer que fosse o lugar, era problema
dela. Ele já não tinha mais o direito de
sequer perguntar. Afinal, ele abrira mão
de tudo no momento em que se afastara da
jovem.
O desenho da flor vermelha se
destacava de maneira impressionante
contra o fundo dourado do enorme
banner. Haven estava na calçada abaixo,
olhando para ele, fascinada pela forma
como balançava na brisa suave.
SVA, dizia o logotipo. School of Visual
Arts. Segundo Corrado, aquela era uma
das melhores escolas de arte do país,
embora Haven jamais tivesse ouvido
falar nela. Mas isso não a surpreendia.
Ela pouco sabia a respeito de Nova York.
É a maior cidade dos Estados Unidos,
lembrou-se silenciosamente. É a cidade
que nunca dorme. Foi o primeiro lugar em
que ela pensou no momento em que
contemplou a ideia de deixar Charlotte.
Se tivesse mesmo de ir para outro lugar,
achava que ali seria o ideal. Afinal,
Carmine havia lhe dito que ali era onde
as pessoas perseguiam seus sonhos.
E, naquele momento, sonhos eram tudo
o que restava para ela.
A multidão se movia ao redor da
jovem enquanto ela se mantinha parada,
sem conseguir tirar os olhos do banner.
Em parte, por admiração, em parte por
puro terror. Desviar os olhos dele
significava ter que olhar para outros
lugares.
Com o passar do tempo, Haven se
acostumara a estar perto de outras
pessoas, adaptando-se pouco a pouco à
vida em sociedade, mas a atmosfera
daquela cidade a intimidava. Ela havia
encontrado mais pessoas nas últimas
vinte e quatro horas do que em toda a sua
vida. Havia gente em todos os lugares –
caminhando, correndo, andando,
dirigindo –, um fluxo contínuo de corpos
passava por ela, como um rio cujas águas
correm com violência. E ela não podia
fazer nada, apenas ficar parada ali,
torcendo para não ser varrida para longe.
Ela lembrava de dizer a si mesma que
poderia fazê-lo, que tinha certeza, mas
uma dúvida pairou sobre a jovem durante
o tempo em que ficou imóvel na calçada.
O barulho, as luzes, os cheiros… Ela
tentava absorver tudo, mas seus sentidos
estavam sobrecarregados.
Foi então que Corrado saiu do prédio
com uma pasta de papéis debaixo do
braço. Ele forçou caminho pela multidão
e parou diante dela, sua presença
chamando sua atenção.
– Você está inscrita para o curso que
começará no outono.
Seus olhos se arregalaram.
– Estou?
– Sim – disse ele. – Isso lhe dará cerca
de quatro meses para se instalar.
Quatro meses… Parecia muito tempo,
mas na verdade, não era. Ela já havia
sobrevivido a um período igual desde
que Carmine a deixara.
Uma dor surgiu em seu peito ao pensar
nele. Ela olhou de volta para o banner,
franzindo o cenho e desejando poder
ouvir a voz do rapaz. Ela se perguntou o
que ele pensaria daquilo, o que diria se
estivesse ali ao seu lado.
Cacete, você não pode ter medo,
tesoro. Aquelas provavelmente teriam
sido as palavras dele.
Por um momento, ela se perdeu
naqueles pensamentos, mas as palavras
seguintes de Corrado a trouxeram de
volta para a superfície.
– Eu a matriculei com o nome Hayden
Antoinette.
Haven pestanejou.
– O quê? Por que fez isso?
– Porque é parecido o suficiente com o
seu nome verdadeiro para que você o
reconheça quando for chamada, mas
diferente o bastante para que ninguém
mais o faça. Pelo menos é o que
esperamos.
Ela tentou argumentar, mas Corrado a
silenciou com um olhar incisivo. De
repente, a dor em seu peito cresceu. Ele a
despira de sua identidade.

Os dias se passaram com velocidade,


como se fossem todos iguais. Corrado
alugara um lugar para ela na Oitava
Avenida, em Chelsea, uma região de
Manhattan. Era um apartamento de um
dormitório no primeiro andar de um
prédio recém-reformado. A outra
residência do edifício, um apartamento
idêntico no segundo andar, estava vazia.
– Isto é para você – disse Corrado
numa tarde, cerca de uma semana depois
de chegarem em Nova York, entregando-
lhe um pequeno pacote. Haven o abriu,
esvaziando-o sobre a nova mesa de
jantar. Ele havia mobiliado o lugar com o
que era necessário. Não havia nada de
extravagante, mas parecia muito melhor
do que ela imaginara que teria na vida:
um sofá, a mesa, as cadeiras, uma
luminária. E cada pedacinho daquilo
pertencia a ela, mesmo que Corrado lhe
tivesse alertado para que não se
apegasse.
– Não mantenha coisas das quais você
não esteja disposta a se afastar – ele
havia dito. – Quando pessoas estão
procurando por você, é bem possível que
tenha de fugir.
Fugir. Se havia algo de que Haven
estava cansada, era de fugir.
Ela focou sua atenção no conteúdo do
pacote. Nele havia um cartão de crédito,
documentos de identidade e um pequeno
celular preto.
– Meu número é o único programado
para o telefone – disse Corrado, no
momento em que ela o pegou e o olhou
com cautela. – Se você precisar de
alguma coisa, ligue para mim. Eu cuidarei
das contas, mas você poderá usar esse
cartão para as demais despesas. A fatura
será paga com o dinheiro que recebeu
como herança.
– Herança – ela sussurrou, pegando o
cartão de crédito e a carteira de motorista
e vendo que ambos traziam seu nome
falso.
– Sim, eu enfim liquidei os bens – ele
explicou. – Entretanto, houve um acidente
infeliz com a casa.
Ela olhou para ele com desconfiança.
– Acidente?
– Ela queimou até o chão. Muito triste.
– Eu aposto que foi mesmo – ela
murmurou, sacudindo a cabeça.
Um pequeno sorriso surgiu nos lábios
de Corrado.
– Você não precisaria dela de qualquer
modo. Tem um lugar agradável aqui e
estou certo de que irá se estabelecer bem.
O apartamento se localizava na região
intermediária entre os dois edifícios nos
quais ela iria estudar. Seriam apenas uns
poucos minutos a pé em qualquer direção
que desejasse ir. Ela estava cercada de
tudo o que precisava, portanto não
precisaria se aventurar para muito longe
do apartamento, tampouco ir de carro a
qualquer outro lugar.
Contudo, depois que Corrado partiu de
volta para Chicago, ela decidiu se
aventurar pelo local. A garota passava as
tardes vagando pela área, memorizando
ruas, conhecendo o bairro. Era monótono
e previsível: a mesma rotina se repetia
todos os dias. No entanto, para Haven,
cada saída, de certa maneira, parecia uma
nova aventura. Sempre havia pessoas,
vendedores e atividades diferentes nos
arredores. Com o tempo, ela se infiltrou
no caos da Big Apple, mesclando-se ao
todo e tornando-se invisível aos
holofotes.
Era óbvio que as coisas eram
diferentes do que ela esperava. Afinal,
mesmo estando no caldeirão onde tudo
acontecia, ela ainda se sentia como se
não fizesse parte de tudo aquilo. Era uma
sensação familiar que, de um jeito
estranho, a deixava à vontade,
entorpecendo sua ansiedade à medida que
se mantinha no anonimato. E enquanto ela
permanecesse invisível, pelo menos,
estaria em segurança.
Capítulo 15
DOCAS, TERCEIRA COM A WILSON

Carmine olhou para a mensagem,


sentindo um peso na boca do estômago.
Ele só queria poder excluí-la, fingir que
nunca chegara, mas sabia que Sal nunca
aceitaria tal desculpa.
E, nesse tipo de assunto, Corrado
também não.
– Uma grande remessa chegará de
barco em poucos dias – Sal havia dito
cerca de uma semana antes. – Eles vão
carregá-la em caminhões e, em seguida,
irão embora. Os caminhões ficarão
estacionados lá, apenas aguardando e
implorando para serem roubados. Uma
equipe chega e leva toda a carga embora.
Não existe trabalho mais fácil.
Carmine não tinha dado importância na
ocasião, imaginando que não teria nada a
ver com aquilo. Ele ainda não havia sido
integrado na hierarquia; não fora alocado
em um grupo ou atribuído a um Capo.
Desde o momento em que chegou, Sal o
usara apenas para biscates, levando-o
onde quer que fosse e envolvendo-o em
seus esquemas pessoais, mas aquilo era
diferente. Essa simples mensagem –
Docas, Terceira com a Wilson – mudava
tudo.
Agora Carmine não estaria apenas
sendo arrastado para os problemas de
outras pessoas, ele estaria criando os
problemas. Não era mais cúmplice e
estava prestes a se tornar um maldito
executor.
Puxando uma garrafa gelada de vodca
do seu congelador, que normalmente
estava vazio, Carmine tirou o lacre da
tampa e tomou um longo gole, deixando a
queimação fazer seu caminho através
dele. Coragem líquida, as pessoas
costumavam dizer, mas ele já estava
começando a pensar na bebida como um
Soro Para Fazer Merda. A verdade é que,
desde que chegara a Chicago, sua
companheira Grey Goose o ajudara
bastante a enfrentar algumas noites bem
difíceis, dando-lhe força para fazer
coisas que ele tinha certeza de que apenas
um idiota poderia ter prazer em fazer. E a
noite, ele arriscou-se a adivinhar, seria
um desses momentos.
Pouco antes de sair de casa, o garoto
pegou sua arma de cima do armário da
cozinha, onde ficava guardada, e a
colocou no cinto de sua calça jeans. Seu
Mercedes novinho em folha estava
estacionado na entrada da garagem,
brilhando sob a iluminação da rua. Ele o
havia alugado uma semana antes, na
mesma noite em que tivera a tal conversa
com Sal.
Carmine deslizou para o banco do
motorista, respirando fundo antes de ligar
o carro. O percurso pela cidade foi
rápido – rápido até demais –, e poucos
minutos depois ele já estava estacionando
nas docas. O local estava escuro, pouco
iluminado pelo luar, mas ele conseguia
ver a fileira de caminhões brancos de
entrega estacionados atrás de uma cerca
de arame fino. O portão estava preso com
uma corrente e um cadeado e, fora isso,
não havia sinal de qualquer tipo de
segurança.
Carmine permaneceu no carro,
inspecionando os caminhões, sem saber o
que fazer ou por onde começar. Não
houve nenhum planejamento, nenhuma
instrução lhe fora passada, tampouco uma
explicação lhe fora dada. Mas de uma
coisa ele tinha certeza: havia expectativas
em relação ao seu desempenho naquela
noite. E se não mostrasse resultados,
seria o único a pagar.
Quando saiu do automóvel e começou
a caminhar em direção ao portão, um
carro em alta velocidade surgiu de trás de
um prédio vizinho, levantando cascalho e
vindo em sua direção. Os faróis estavam
apagados e, no escuro, Carmine não
podia ver quem estava dirigindo.
Ele deu um salto para trás e, com o
coração disparado, se viu tomado pelo
medo. Impulsionado pela adrenalina e
aterrorizado, ele pegou sua arma e viu
quando o carro parou de repente e as
portas se abriram. Dois indivíduos
saltaram, um do banco do passageiro e
um da parte de trás. As portas mal tinham
se fechado quando a marcha à ré foi
acionada e o veículo derrapou para trás
antes de acelerar e sumir.
Tudo aconteceu muito rápido. Poucos
segundos se passaram antes de os dois
caras se aproximarem. Carmine estava
com a arma ao seu lado, com o dedo já
pairando no gatilho, quando uma voz
interrompeu o silêncio da noite.
– DeMarco? É você?
Carmine tirou o peso do gatilho e seus
ombros relaxaram um pouco.
– Remy?
Remy Tarullo saiu das sombras e
caminhou até um ponto mais iluminado
pelo luar. Ele estava vestindo preto, com
uma máscara de esqui mal colocada na
cabeça.
– Ei, cara! É bom ver você de novo! O
senhor Moretti me disse que eles o
enviariam, você sabe, para se juntar à
equipe. Ele nos instruiu para que lhe
mostrássemos como funcionam as coisas.
Uma sensação de alívio tomou conta de
Carmine, diminuindo o medo
insuportável. Ele então enfiou a arma de
volta no cinto e perguntou:
– Foi meu tio quem te mandou aqui?
– Sim. Ele é o nosso Capo, você
sabe… Acho que ele também é seu agora
– sorrindo, Remy lhe deu um tapa nas
costas. – Você não está nervoso, está?
– Não, eu só… – ele não sabia o que
dizer. Estava nervoso, mas não podia
admitir isso. – Eu só acho que será
melhor não fazer isso sozinho.
– Entendo – disse Remy, tirando um
par de luvas do bolso traseiro e vestindo-
as. Ele puxou a máscara para baixo e
cobriu o rosto antes de pegar um conjunto
extra em seu casaco e atirá-lo para
Carmine, que rapidamente as colocou,
acompanhando o amigo. – Por acaso você
não tem um cortador de cadeados em seu
carro, tem?
– Ah, não – disse Carmine, deslizando
a máscara de esqui sobre o rosto. De
repente, ele se sentiu sufocado pelo
material grosso do tecido. – Eu não sabia
que precisaria de um.
Remy assentindo.
– Você veio mesmo despreparado, não
é?
O eufemismo do ano, pensou Carmine.
– Não posso dizer que eu já tenha
roubado alguma coisa na minha vida.
– Não é grande coisa – disse Remy. –
Talvez você nunca tenha precisado, sendo
um DeMarco e tudo mais. Você até
mesmo tem permissão para acompanhar o
Chefe o tempo todo… Cara, você não
sabe quantos de nós matariam por essa
oportunidade.
Não havia hostilidade na voz de Remy,
mas as palavras fizeram com que os
cabelos de Carmine ficassem de pé. Ele
não duvidava de que houvesse pessoas
ali que o matariam se achassem que isso
poderia levá-las mais perto do topo.
Remy olhou em seu entorno por um
tempo, como se procurasse alguma coisa,
antes de pegar algumas ferramentas
pequenas no bolso traseiro. Em seguida,
caminhou até a cerca, abriu o cadeado
com grande facilidade e se livrou da
corrente, antes de empurrar o portão e
correr para dentro do pátio junto com o
outro sujeito. Carmine se manteve no
encalço dos dois.
– Vamos nos separar – ordenou Remy,
acenando para ambos. – Verifiquem os
caminhões e me digam o que vocês
encontrarem. Façam isso rápido.
Eles se espalharam por diferentes
partes do estacionamento e logo
começaram a disparar contra as travas
das portas traseiras dos veículos.
Carmine seguiu o exemplo deles, sacando
a arma e apontando-a para o alvo. Seu
corpo estremeceu quando disparou o
primeiro tiro; embora soubesse como
atirar, a mão trêmula fez com que errasse
três vezes antes de conseguir abrir a
porta. Ao mesmo tempo, podia escutar os
tiros ecoarem do estacionamento
enquanto os homens compartilhavam seus
saques.
Carmine abriu a porta de trás do seu
primeiro caminhão, apertando os olhos na
escuridão para ler as caixas.
– Caramba, notebooks.
– Tente o próximo – ordenou Remy. –
Muito arriscado. Muitos deles podem ser
rastreados.
Carmine moveu-se para o segundo
caminhão, abrindo a parte de trás na
primeira tentativa.
– Televisores.
– Faça ligação direta nesse.
Carmine empalideceu. Ele não tinha
ideia de como fazer uma ligação direta.
O terceiro homem encontrou uma carga
de aparelhos de DVD e quebrou uma
janela para subir na frente do caminhão.
Remy o observou enquanto via Carmine
apenas parado no mesmo lugar.
– Vamos – ele disse, agarrando a
camisa de Carmine e puxando-o para a
frente do caminhão. – Quebre a janela e
entre.
Carmine fez o que lhe foi dito, sem
tempo para discutir. Quebrou o vidro e
abriu a porta, entrando em seguida. Remy
puxou uma chave micha do bolso traseiro
e a entregou a ele.
– Vá com cuidado. Coloque na ignição
e veja se ela gira.
O motor do caminhão no outro lado do
estacionamento foi acionado alguns
segundos antes do de Carmine. Remy
soltou uma risada quando o motor rugiu e
Carmine deu um pulo.
– Viu só? Deixe-me dirigi-lo até o
local. Siga-nos no seu carro.
Sem dizer nada, Carmine saltou do
caminhão e correu de volta para o carro.
Ele retirou a máscara, respirando fundo
para se acalmar enquanto os caminhões
arrancavam para fora do estacionamento.
Carmine seguiu-os pelo trânsito,
permanecendo colado no para-choque de
Remy.
Sirenes começaram a soar à distância.
Os caminhões saíram da via principal e
as luzes dos carros de polícia começaram
a se aproximar com rapidez, desviando-
se com facilidade do tráfego. Carmine
estava tenso. Ele tentava ver algo pelo
retrovisor enquanto os seguia e entrava
no beco. Em questão de segundos, três
viaturas passaram reto pelo beco.
Carmine suspirou profundamente. Essa
porra foi por pouco.
Eles avançaram em direção ao extremo
sul, usando algumas vias secundárias, até
que chegaram num grande armazém.
Manobraram os caminhões para dentro,
escondendo-os por completo. Carmine
estacionou seu carro logo atrás.
– Uau! – gritou Remy, pulando para
fora do caminhão. Seu amigo se juntou a
ele, os dois eufóricos, trocando socos no
ar antes de Remy virar-se para Carmine.
– Você sentiu, cara? O barato? A
adrenalina?
Carmine acenou e sorriu, ainda que
fosse mentira. Tudo o que ele sentia era
nervosismo se espalhando por todo o
corpo. Ele estava prestes a vomitar.
Os três passaram a hora seguinte
observando enquanto os caminhões eram
descarregados. Em seguida, cada um
recebeu seu pagamento e foi embora. Os
caminhões roubados seriam descartados
em um desmanche, nada era
desperdiçado. Cada pedaço seria
posteriormente recuperado, vendido,
derretido ou escondido, e então não
restaria nenhum fragmento para servir de
evidência.
– Que loucura – disse Remy,
remexendo-se com animação no banco do
passageiro. – É disso que eu gosto. De
violência eu não sinto falta, mas dos
roubos… Não há nada como isso. De
jeito nenhum vou conseguir dormir essa
noite. Quero dizer, porra! Foi por pouco!
Só mais um minuto e teríamos sido
presos. Essa merda não é demais?
Carmine não achava nada demais.
– Vamos tomar um drinque – ele
continuou, não dando chance para os
outros falarem. – Não sei quanto a vocês,
mas preciso de algo forte depois da noite
que tivemos.
Enfim ele disse algo com o qual
Carmine concordava.

O Luna Rossa estava bem agitado para


uma noite de sexta-feira. Ao contrário da
última vez em que Carmine estivera lá, os
sedãs pretos estavam apenas dispersos
dentro do mar de carros e picapes de
todos os tipos que lotavam o
estacionamento. Parecia quase um lugar
diferente. Música hip-hop soava pelo
edifício.
– Eu nunca estive aqui – disse Remy. –
Morei em Chicago a minha vida toda,
estou metido nessa merda há anos, e até
hoje nunca pus os pés nesse lugar.
Carmine franziu a testa.
– Por que não?
– Não sei – ele disse. – Não me sinto
bem em ir entrando. Caras como nós só
são convidados para vir aqui quando
fazem algo que irrite o senhor Moretti.
– Fui convidado pelo Chefe logo que
me mudei para cá – disse Carmine. –
Parecia um lugar muito diferente naquela
noite. Era a velha guarda.
Remy riu.
– É como diz o ditado: quando o gato
sai, os ratos fazem a festa.
O segurança olhou para eles quando
entraram, estreitando os olhos ao
examinar os três homens, mas não disse
nada, apenas inclinou a cabeça para
saudá-los. Os três atravessaram o clube,
com o som grave da música fazendo seus
pés vibrarem e dissipando a energia
concentrada no corpo de Carmine. Ele
relaxou um pouco, o caos e o barulho mal
permitiam que ele pensasse.
O garoto viu uma mesa vazia nos
fundos e caminhou em sua direção. Ele
mal se sentara quando uma mulher
colocou-se à sua frente. Ele ergueu a
cabeça e seus olhos se conectaram de
imediato. Ela tinha uma expressão séria
no rosto, que se transformou num sorriso.
– DeMarco, certo?
Levou um tempo para ele reconhecer
seu rosto… A mesma garçonete que o
tinha servido da última vez.
– Ah, sim. Olá.
– Você quer o mesmo da outra vez? –
perguntou ela. – Vodca?
Ele ficou surpreso por ela ter se
lembrado.
– Sim, com certeza.
– E seus amigos? – Ela se virou para
eles. – O que vão querer?
Eles fizeram seus pedidos: uísque para
Remy e uma cerveja para o outro cara. A
garçonete se afastou, voltando
rapidamente com suas bebidas. Carmine
matou a sua antes mesmo que a moça
tivesse a chance de ir embora. Ela soltou
uma gargalhada e levantou o dedo para
lhe dizer que esperasse só um pouquinho.
Em seguida, ela retornou do bar com uma
garrafa cheia de Grey Goose.
– Qualquer coisa de que precisarem, é
só chamar. Meu nome é Eva.
– Obrigado, Eva – disse Remy,
piscando. – Você pode me chamar de
Adão. – Carmine revirou os olhos
enquanto a garota ria antes de se afastar.
– Porra, isso foi horrível.
– Ei, as garotas adoram essa merda de
conversa – disse Remy. – Eu sei que a
minha gosta.
– Você tem namorada? – perguntou
Carmine, servindo-se de outra dose.
– Sim, o nome dela é Vanessa. E você?
Carmine engoliu sua segunda dose.
– Não, ninguém.
– Bem, então… – Remy tomou um gole
do uísque. – Sorte sua, a Eva parece
interessada.
Remy apontou com o copo e Carmine
virou a cabeça, espiando a garçonete
encostada no bar. Os olhos dela estavam
fixos nele.
Suspirando, Carmine voltou-se e não
disse nada.
A noite aos poucos se transformou
numa névoa à medida que o álcool fluía
livremente para a mesa deles. Os três
beberam por horas a fio, riram e falaram
alto. Várias garotas passaram pela mesa,
flertando, sorrindo e roubando bebida em
vez de comprar a própria. Carmine não
dava atenção, bêbado demais para sequer
se preocupar com aquilo.
Aliás, bêbado demais para se
preocupar com qualquer coisa.
Depois da meia-noite, a atmosfera
mudou repentinamente. O grave dos alto-
falantes foi cortado de maneira abrupta, e
o caos da multidão se reduziu a um
murmúrio. Carmine olhou ao redor,
retesando-se ao perceber que seu tio
passeava casualmente pelo clube com as
mãos nos bolsos. Ele caminhava em
direção ao seu escritório, mas parou na
entrada do corredor quando Eva chamou
seu nome. Ela lhe disse algo, apontando
diretamente para a mesa deles. Carmine
empalideceu quando o tio se virou para
ele. Fodeu.
Corrado então se desviou, contornando
o corredor para ir direto até a mesa.
– Carmine – ele disse, analisando o
trio. – Cavalheiros.
– Este é Remy – murmurou Carmine,
apontando para ele. – E este é… – Ele
hesitou. Ele não sabia o nome do outro
cara.
– Eu sei quem eles são – disse Corrado
de maneira lacônica.
– Senhor Moretti, senhor – disse Remy.
– Ótimo clube que você tem aqui.
Corrado assentiu, mas não ofereceu
nenhuma resposta ao elogio.
– Nós estávamos apenas tomando um
drinque – gaguejou Carmine. – Você
sabe… Ou dois.
– Eu percebi – disse ele. – Apenas
tomem cuidado para chegar em casa.
– Sim, senhor – disse Remy. –
Obrigado.
Os olhos de Corrado permaneceram
em Carmine por um momento, antes de ir
embora, desaparecendo pelo corredor.
Remy balançou a cabeça, engolindo o
resto de sua bebida.
– Cara, ele é sério pra caralho.
Carmine riu de um jeito amargo.
– Não precisa nem dizer.
Uma pancada forte em meio a outros
barulhos.
– Que droga! – Os olhos de Haven se
abriram imediatamente ao escutar aquilo.
Um pouco desorientada, ela olhou para o
teto acima de sua cama, observando a
tinta branca texturizada como se, de
algum modo, ela pudesse lhe dizer o que
acontecera. A luz do sol entrava pela
pequena janela do outro lado do quarto,
iluminando o chão de madeira desbotada.
Estava quente, mas tudo parecia
tranquilo. O silêncio se prolongou por um
longo tempo. Teria sido apenas sua
imaginação?
Ela começou a fechar os olhos de novo
quando outra pancada ecoou. Em seguida,
ouviu o barulho de saltos altos golpeando
a madeira, e também o que pareciam
resmungos frustrados de uma mulher.
Confusa, Haven sentiu o estômago se
contorcer enquanto se livrava das
cobertas e saía da cama. A garota
caminhou pelo apartamento como se
seguisse a direção dos passos no
apartamento de cima, que iam em direção
à escada.
Mantendo silêncio, Haven destrancou a
porta da frente e deu uma espiada no
corredor. Foi então que ela percebeu que
uma mulher começava a descer a escada.
Ela era alta e curvilínea; seus cabelos
longos tinham um tom vermelho intenso,
pouco natural. Ela trazia consigo duas
caixas de papelão vazias, que depositou
no pequeno hall, de frente para o
apartamento de Haven.
Haven não queria ser pega espionando,
mas a mulher a viu antes que pudesse
escorregar para dentro.
– Olá! – disse ela com entusiasmo. –
Sou Kelsey.
– Hav…ah, den – ela limpou a
garganta e repetiu. – Hayden.
– Você mora aqui, Hayden? –
perguntou Kelsey, fazendo uma pausa
para tomar fôlego, mas não por tempo
suficiente para que Haven pudesse
responder. – Graças a Deus você é ela e
não ele. Eu estava totalmente convencida
de que iria morar bem em cima de um
sujeito careca repugnante e barrigudo,
cheirando a carne seca e cerveja barata.
Eca. Você pode imaginar? Ugh, aposto
que você estava preocupada com a
mesma coisa, quer dizer, com algum
pervertido circulando por aqui dia e
noite. Estou certa?
Haven sorriu com timidez. Ela ainda
não tinha considerado isso. O pensamento
de alguém se mudando para o segundo
andar nunca lhe passara pela cabeça. De
fato, ela presumira que Corrado alugara
todo o edifício.
– Então, o que você faz? – perguntou
Kelsey, erguendo uma sobrancelha. –
Você é estudante ou algo assim?
– Ah, sim – respondeu ela. – Eu estudo
na School of Visual Arts.
Os olhos de Kelsey se arregalaram.
– Não me diga! Eu também!
Haven foi pega de surpresa.
– Sério?
– Sim, é verdade – disse Kelsey. – Vou
estudar design gráfico. E você?
– Pintura.
– Belas-artes? Ugh, eu nunca
conseguiria fazer isso – disse Kelsey com
certo desdém. – Então, você já foi fazer
sua carteirinha estudantil e conhecer a
escola?
– Não – Haven franziu a testa. Ela
estava adiando aquilo, esperando criar
coragem para ir até lá. – Mas acho que
terei de fazer isso uma hora dessas.
– Com certeza – disse Kelsey. – Aliás,
eu estava justamente indo até lá. Nós
podemos ir juntas! Todo mundo precisa
de um companheiro de caminhada, certo?
– Certo – Haven olhou para si mesma e
percebeu que ainda vestia seu pijama
xadrez tamanho grande. Ela ainda não
havia nem escovado os dentes ou
penteado os cabelos. – Preciso me trocar
primeiro.
– Eu também – disse Kelsey, franzindo
o nariz. – Não posso sair desse jeito.
Trabalhei duro para colocar as coisas em
ordem e não me diverti nada fazendo
isso.
Kelsey virou-se imediatamente,
deixando para trás as caixas vazias e
subindo a escada de volta até seu
apartamento.

Vinte minutos depois, já de banho


tomado e vestida com calça jeans e uma
blusa vermelha, Haven sentou-se no
primeiro degrau do hall. Ela se distraía
com suas chaves enquanto esperava pela
vizinha e ouvia o barulho de Kelsey
perambulando pelo apartamento. Seus
passos barulhentos ecoavam pelo prédio
antigo; as frágeis tábuas do assoalho
rangiam sem parar. O edifício, embora
recém-reformado, mostrava os sinais de
sua idade.
Haven esperou, esperou e esperou um
pouco mais. Outros vinte minutos se
passaram, e ela estava prestes a desistir
quando os saltos altos de Kelsey enfim
rumaram em sua direção. Haven
levantou-se e olhou para a escada,
estudando a garota enquanto ela se
aproximava. Suas roupas estavam
impecáveis. Eram vibrantes e joviais,
como se nunca tivessem sido usadas
antes. Sua boca estava coberta de brilho
labial e os olhos tinham uma maquiagem
escura. Ela era bonita, mas Haven achava
que ficaria bem melhor sem tudo aquilo
cobrindo seu rosto.
– Está pronta? – perguntou Kelsey.
Haven assentiu com a cabeça. Ela
estava pronta. Embora usasse saltos
altíssimos, Kelsey caminhava de maneira
confiante, com passos largos, sem ter de
se esforçar para se equilibrar.
Ambas caminhavam lado a lado
enquanto Haven ouvia, de boca fechada, a
garota tagarelar sem parar sobre tudo e
todos. No momento em que chegaram à
escola, que ficava a poucos quarteirões
de distância, Haven já sabia tudo o que
precisava sobre Kelsey: filha única de
um congressista, não conseguiu ingressar
na Universidade de Nova York e decidiu
dar uma chance à escola de artes, depois
que seus pais a forçaram a se mudar para
que aprendesse a ser responsável.
– Então, foi assim… Meu pai me disse
que eu só teria três chances antes de ele
desistir de mim. E a Universidade de
Nova York foi a número dois.
– Qual foi a primeira?
Ela encolheu os ombros.
– Ter nascido?
A expressão de Haven ganhou um ar de
tristeza. Aquelas palavras a atingiram
com força e ela piscou algumas vezes.
Ela logo se identificou com a situação.
– Você realmente se sente assim?
– Às vezes – respondeu Kelsey. –
Sempre tive uma relação tensa com os
meus pais. Meu pai nunca está em Nova
York e minha mãe, bem… Se eu não
estiver no fundo de uma garrafa de vinho,
ela não me vê.
– Isso é… Ah…
– Patético? – Kelsey riu. – Eu sei que
é. Bem, na verdade a primeira chance foi
quando eu quase não consegui terminar o
colegial. Eu era maluca por garotos e
vivia faltando. Mas isso acabou. Agora
tenho compromissos. Não tenho tempo
para namorados.
As duas entraram no prédio na 23ª
Avenida e, seguindo as indicações, foram
em direção à secretaria para fazer suas
carteirinhas estudantis. Quando já estava
pronta, Haven a observou com cuidado,
ignorando o nome errado e se
concentrando no fato de que sua imagem
estava bem visível num crachá que
garantia sua admissão nas aulas.
Pela primeira vez em sua vida, ela se
tornara uma estudante e frequentaria uma
escola.
A tarde foi bastante confusa. Ela
perambulou pelos prédios, reuniu-se com
a administração e conheceu outros alunos.
Surpresa diante de todas aquelas
novidades, Haven sentia as palmas das
mãos suando e o coração disparado. Ela
foi levada para várias galerias, conheceu
vários estúdios e foi matriculada em
várias aulas. Todas as exigências foram
explicadas, inclusive as horas
obrigatórias de trabalho voluntário, os
cursos opcionais de verão, as festas de
gala e as sessões mensais de
orientação… Ela ficou bastante ansiosa,
mas tudo pareceu se dissipar no momento
em que entrou na biblioteca da escola.
Altas pilhas de livros a cercavam por
todos os lados. Eram mais altas que ela e
a acolhiam num abraço familiar. Isso a
fez lembrar de sua vida em Durante, um
tempo e um lugar que ela vinha tentando
deixar para trás desde que se
estabelecera em Nova York. Sua vida
estava começando de novo – novas
pessoas, novos lugares, novas
experiências e novas chances – mas o
passado ainda parecia ter um forte apelo
em seu coração, deixando-o apertado e
forçando-a a se controlar sempre que se
lembrava com saudades do amor que
ficara para trás. Era difícil olhar para
frente.
Ela se perdeu de Kelsey em algum
lugar no meio da agitação e só voltou a
encontrá-la horas depois, quando o sol já
estava se pondo. O longo dia chegara ao
fim. Kelsey estava no saguão do edifício
de belas-artes ao lado de um sujeito com
cabelos loiros espetados, com a mão
pressionada contra o peito e o rosto
iluminado por um intenso fascínio.
Eles se separaram depois de um
momento. O sujeito passou por Haven e
saiu pela porta. Kelsey ficou lá, inquieta
e em silêncio, mordendo o lábio inferior.
A moça soltou um grito quando se
deparou com Haven.
– Meu Deus, você o viu? Ele não era
lindo?
– Ah… Claro – disse Haven, olhando
para o lado de fora pelas enormes janelas
de vidro e observando o garoto de pé na
calçada com um grupo de amigos. –
Quem é ele?
– O nome dele é Peter alguma coisa.
Ele é veterano! E pediu meu telefone,
então é claro que dei. Meu Deus! Você
acha que ele vai ligar? Espero que sim.
Haven olhou para ela, incrédula.
– Eu pensei que você não tivesse
tempo para namorados.
– Não tenho – disse ela, acenando com
uma risada. – Mas nada me impede de
sair. Não há nenhum mal nisso. Além do
mais, uma garota precisa de algum tipo de
diversão, certo?
Foi uma pergunta retórica, mas Haven
respondeu dando de ombros.
– E você? – perguntou Kelsey enquanto
as duas se dirigiam para fora e rumavam
para casa. – Tem namorado?
A pergunta inocente, feita casualmente,
foi como um soco no estômago de Haven.
Era a primeira vez que alguém lhe
perguntava isso.
– Não mais. Eu tinha, mas… não tenho
mais.
O semblante exultante de Kelsey se
apagou.
– Ah, foi um rompimento ruim, né?
– Acho que posso dizer que sim.
Kelsey balançou a cabeça.
– Você está melhor sem ele, seja ele
quem for.
– Carmine – murmurou Haven. Dizer
seu nome em voz alta, reconhecendo que
ele existia… Que outrora tinham estado
juntos… Afrouxou um pouco o nó
apertado em suas entranhas.
– Separações são horríveis – disse
Kelsey. – É por isso que nunca fui o tipo
de mulher de ficar com um homem só.
Meu pai sempre diz: “nunca coloque
todos os ovos na mesma cesta, querida”,
então pensei, por que colocar toda a
minha esperança em um só homem? Eu
gosto de sair e experimentar, conhecer o
que há lá fora.
Nas semanas seguintes, enquanto
conhecia melhor a nova colega, Haven
aprenderia o significado de eufemismo.
A cada semana, Kelsey demonstrava
um novo interesse amoroso; havia sempre
uma cara nova entrando e saindo do
apartamento de cima: Peter, Franco, Josh,
Jason… No fim, Haven parou de tentar se
lembrar dos nomes. Ela os ouvia pisando
nos degraus da escada, sempre atrás de
Kelsey. Os passos pesados ecoavam pelo
apartamento de baixo. Haven sorria com
educação ao se encontrar com eles no
hall, e não se incomodava em dizer olá.
Suas fisionomias se fundiram com o
tempo; era uma mistura de rostos que ela
não tinha nenhum interesse em conhecer.
O curso começou em poucas semanas e
os compromissos tomaram todo o tempo
de Haven. As aulas de pintura, de
desenho e de história da arte ocupavam a
maior parte de seus dias. Depois das
aulas, em vez de ir para casa, ela se
acostumou a visitar a biblioteca e investir
horas dentro daquelas paredes grossas,
imersa em livros, sempre estudando.
Tudo aquilo monopolizou sua atenção e a
jovem floresceu sob o estresse.
Mais uma vez em sua vida, ela tinha
um cronograma rigoroso. Mais uma vez,
ela tinha uma lista de tarefas a cumprir e,
se não o fizesse, sabia que haveria
consequências. Falhar não era uma
opção, pois, no mundo de Haven, falhar
era o mesmo que desistir da vida.
Capítulo 16
A batida na porta do escritório foi tão
tímida que Corrado mal pôde ouvi-la por
causa do volume elevado da música no
clube. Ele ignorou o toque e manteve o
olhar fixo na pasta encardida sobre a
mesa à sua frente.
Depois de mais ou menos um minuto,
outra batida soou, ainda fraca e hesitante.
Mais uma vez, Corrado a ignorou.
Os mafiosi sabem que devem
transmitir confiança, em especial quando
lidam com alguns dos homens mais
perigosos do mundo. Corrado pouco se
importava em saber se seus homens
teriam de encarar Lúcifer em pessoa,
cercado por enxofre e fogo do inferno e
pronto para levá-los direto para a
danação eterna. Eles precisavam manter a
compostura e estar preparados para lutar.
E nunca deixar seu medo transparecer.
As ruas são implacáveis e seus rivais não
hesitariam em agir ao primeiro sinal de
fraqueza. As vulnerabilidades sempre
serão exploradas, e a pior coisa que se
pode fazer diante do inimigo é dar a ele a
impressão de insegurança. Não importa
se estiverem errados; seus homens
precisariam transparecer certeza e
confiança.
E Corrado certamente não estava
convencido.
Demorou um pouco até que soasse a
terceira batida. Era mais alta, mais
determinada.
– Entre – gritou ele, recostando-se em
sua cadeira e olhando para seu Rolex
enquanto Remy Tarullo adentrava o
recinto e, de modo hesitante, fechava a
porta atrás de si.
– O senhor queria me ver?
– Sim – afirmou. – Eu disse para você
estar aqui às nove. São nove e três. Você
está atrasado.
– Mas eu estava aqui – disse ele na
defensiva. – Eu estava no corredor.
Corrado ergueu as sobrancelhas.
– Você tem a audácia de me oferecer
desculpas?
– Não, eu… Ah…
– Não estou interessado no que você
tem a dizer. É insignificante para mim.
Não me importa se estiver caído meio
morto no estacionamento. É melhor você
arrastar seu corpo mutilado até aqui com
tempo suficiente para estar no meu
escritório quando eu disser para você
estar no meu escritório. Nada menos que
a morte é motivo suficiente para se
atrasar. Você me entendeu?
– Sim, senhor.
Corrado podia sentir seu medo. Ele
fedia, enchendo o escritório com o cheiro
doce e enjoativo de suor e pânico. Remy
era alto e magro e tinha o olhar esquivo,
mais por conta de seu medo súbito que
por fingimento. Será que ele estaria
escondendo alguma coisa? Talvez, mas
não deixava transparecer. Ele havia sido
chamado ao escritório de um Capo.
Qualquer cara esperto sabe que essas
situações nunca acabam bem. Mas ele
veio, com os ombros eretos e a cabeça
erguida.
O que lhe faltava em inteligência era
compensado pela coragem.
Remy era um empregado decente e
bom no que fazia; nunca fora pego, e foi
justamente por isso que ele confiara
Carmine à sua equipe.
– Dizem por aí que você é o melhor em
abrir fechaduras – disse Corrado.
– Ah, sim – disse ele. – Não é para me
gabar nem nada, mas ainda não encontrei
uma única fechadura que eu não abrisse
logo de primeira.
Remy sorriu, tentando quebrar a
tensão, mas Corrado não achou
engraçado. Ele só o observava, pensando
se era a pessoa certa para o trabalho.
Um silêncio tenso se seguiu. Remy
permanecia imóvel, não fazendo nenhuma
menção de se sentar.
– Você não vai se sentar? – perguntou
Corrado.
Os olhos de Remy se lançaram para
uma das cadeiras vazias, mas ele
continuou parado.
– Você não me convidou para sentar,
senhor.
Talvez ele fosse mais esperto do que
Corrado pensasse a princípio.
– Você pode abrir isso? – perguntou
ele, virando a valise ao contrário para
que o rapaz pudesse vê-la. Remy deu um
passo à frente, estreitando os olhos
enquanto estudava a pequena fechadura.
– Hum, sim, acho que sim.
– Acha que sim ou sabe como fazer? –
perguntou Corrado. – Se você não tem
certeza, dê meia-volta e saia por aquela
porta. Vou encontrar alguém mais
qualificado para fazer o trabalho para
mim.
Remy limpou a garganta.
– Com todo o respeito, senhor, não há
ninguém mais qualificado. Se eu não
puder abri-la, ninguém pode.
Touché. Corrado assentiu, apontando
para a pasta em silêncio, permitindo-lhe
provar seu valor. Remy observou a
fechadura por um momento antes de levar
a mão ao bolso e retirar um pequeno
alicate de pressão e um perfurador.
Corrado assistiu àquilo e ficou
impressionado pelo fato de o garoto
carregá-las consigo.
– Você tem o hábito de manter
ferramentas em seu bolso?
– Sim – respondeu ele. – Você nunca
sabe quando precisará abrir um cadeado
ou fazer uma ligação direta num carro,
então tento sempre ter as ferramentas
básicas comigo, só por precaução. Pela
mesma razão que você sempre carrega
uma arma, eu suponho.
– Você carrega uma arma também?
– Nem sempre – admitiu ele. – Só
carrego quando acho que minha vida
pode estar em risco.
– Você tem uma com você agora?
Remy hesitou.
– Sim.
Corrado sorriu e relaxou em sua
cadeira, batendo com o pé ao ritmo da
música do clube. Duas músicas do disco
Grandes Sucessos de Sinatra tocaram
antes que Remy fizesse algum progresso,
um sorriso iluminou o rosto do garoto
quando ele finalmente arrombou a
fechadura. A maleta se abriu, não o
suficiente para que o rapaz enxergasse o
interior, mas o bastante para que Corrado
assumisse essa tarefa.
Remy guardou suas ferramentas no
bolso e deu um passo para trás.
– É toda sua.
– Você não vai me perguntar o que é?
– Não.
– Você não é nada curioso?
– Bem, é claro, mas isso não é da
minha conta – respondeu ele. – Se o
senhor quisesse que eu soubesse, teria me
dito, certo?
– Certo – Corrado se levantou fazendo
sinal para o garoto segui-lo enquanto saía
do escritório e encontrava-se com um dos
guardas de segurança no corredor, que
vigiava o lado de fora da porta do
escritório. – Diga ao barman que as
bebidas de Tarullo são por conta da casa.
Tudo o que ele quiser, e sem perguntas.
O guarda assentiu.
– Sim, Chefe.
Corrado voltou para o escritório,
fechando a porta e trancando-a antes de
caminhar até a mesa. Ele verificou a
maleta aberta e piscou algumas vezes à
medida que olhava o conteúdo.
Apenas uma fita VHS.
Ele tinha considerado várias
possibilidades – armas, dinheiro, ouro,
até mesmo partes de um corpo –, mas um
filme antigo nunca lhe passara pela
cabeça.
A embalagem de papelão desgastada
que envolvia a fita se desintegrou assim
que ele a pegou. Ele jogou essa parte de
lado e observou a fita preta, não
encontrando nenhum rótulo.
Aparentemente não havia nada gravado
nela, mas Corrado sabia que isso não era
verdade. Alguém tinha feito um grande
esforço para esconder aquele vídeo.
Abrindo a porta do escritório, ele
olhou para o guarda de segurança mais
uma vez.
– Traga-me um videocassete.
A testa do homem franziu.
– Um videocassete?
– Sim – Corrado acenou para ele,
impaciente. – E faça isso rápido.
Vinte minutos se passaram, então trinta,
e, por fim, quarenta e cinco minutos antes
que o guarda voltasse com um
videocassete usado debaixo do braço.
Ele o entregou a Corrado que, por sua
vez, o levou para o escritório e trancou a
porta. Ele o ligou na tomada e o conectou
a uma pequena televisão no canto da
mesa que exibia a transmissão da
segurança.
Um filme começou a passar, um
desenho animado com uma princesa e
uma melodia pegajosa no fundo. Corrado
fez uma careta e ejetou a fita, atirando-a
para o lado antes de inserir com cuidado
a que estava na pasta.
Nada aconteceu a princípio; a
contagem do tempo de reprodução
aumentava, mas a tela permanecia tão
negra como a noite. Sentindo-se
enganado, Corrado estava prestes a
desistir quando a tela piscou e um rosto
que ele não via há anos apareceu.
Frankie Antonelli.
A filmagem antiga não parava de
falhar. Corrado apertou o botão de
tracking, tentando melhorar a exibição,
mas nada ajudou. Ele desistiu de tentar
enxergar e recostou-se na cadeira para
ouvir o conteúdo. Frankie começou a
falar, mas o som estava truncado e,
quando o volume foi aumentado, surgiu
um zunido no fundo.

– Eu, ah… eu nunca fui um homem


religioso. Venho de uma família
religiosa, meu pai é um católico devoto,
assim como o meu avô, que retornou ao
país de origem, mas eu? Não, eu nunca
acreditei nisso. Não acredito na oração,
na salvação nem no céu. Mas há uma
coisa em que acredito: o inferno. Eu
preciso. Eu vivo nele – Frankie passou as
mãos pelo rosto quando fez uma pausa. –
Não acredito em confissão… Você sabe,
pedir perdão e tudo isso… Mas entendo
por que os caras fazem isso. Nós nunca
seremos perdoados pela merda que
fizemos, mas isso alivia a consciência. É
difícil andar por aí todos os dias
carregando tantos segredos. E eu tenho
segredos. Tenho muitos pecados nos
ombros. E não estou pedindo para ser
perdoado por eles, não estou pedindo
para ser salvo, mas tenho que desabafar.
Não posso carregá-los mais… Não
quando passo todos os dias nesse
inferno, encarando-os.

Corrado sentiu o estômago revirar,


além de um calafrio percorrendo seu
corpo. Seu primeiro impulso foi ejetar a
fita, jogá-la na lata de lixo e atear fogo.
Que tipo de cara esperto, ou melhor, que
tipo de homem de honra quebra seu voto
de silêncio em um vídeo? Ele estava
indignado, decepcionado e absolutamente
furioso.
Mas outra sensação, bem lá no fundo, o
fez permanecer imóvel diante da TV.
Talvez fosse curiosidade, ou talvez
instinto, mas algo o obrigava a continuar
assistindo à fita.
Durante trinta minutos, Corrado olhou
para a tela, aturdido e sem palavras
diante da imagem do homem que no
passado ele considerara um mentor, um
amigo, um irmão, mas que de repente se
transformara num traidor, num covarde, e
revelara um segredo que deixaria até
mesmo o próprio Corrado completamente
aturdido. Ele já havia visto de tudo, já
havia feito de tudo, mas as palavras que
saíram da boca de Frankie, a verdade
terrível que ele cuspira de seus lábios,
era algo que Corrado não conseguia
compreender.
Inimaginável. Aterrador. Ele sentiu-se
mal.
O desgosto de Corrado só crescia a
cada palavra, seu desprezo agora
inabalável. Tudo o que ele sabia e tudo
em que acreditava fora posto à prova
depois de meia hora de uma confissão
covarde e avassaladora.

– Então é isso. Essa é a pura verdade


– Frankie disse baixinho, sacudindo a
cabeça como se desacreditasse em suas
próprias palavras. – Eu tenho que viver
com o que fiz… com o que ajudei a fazer.
Não vou pedir desculpas por isso ou,
como eu disse, pedir perdão. Tive que
fazer o que fiz. Mas carreguei isso
comigo por um longo tempo, e não
poderia carregar mais. Se alguém
estiver assistindo a isso, eu
provavelmente já estarei morto há muito
tempo. Aliás, não ficaria surpreso se me
matassem exatamente por causa disso.
Tenho sentido isso, uma sensação de que
algo está indo para o buraco e, não sei
por que, mas acho que é só uma questão
de tempo até que isso aconteça. E talvez
eu mereça morrer por isso, mas não sou
o único. Não, se é assim que termina, se
é assim que vou escapar desse inferno
para ir para o próximo, espero que o
diabo também vá comigo. É justo, uma
vez que ele controlava tudo.

Frankie se inclinou para frente e


desligou a câmera. Corrado continuou
olhando para a tela escura, imerso em um
silêncio desconfortável.
Absolutamente chocado: essas eram as
únicas palavras capazes de descrever
como Corrado se sentia naquele
momento.
Esforçando-se para retomar o controle
e o senso de orientação, ele ejetou a fita e
trancou-a em uma gaveta da mesa. Em
seguida, recolocou o desenho animado no
lugar onde o encontrara e desconectou o
videocassete. Corrado dirigiu-se à porta
e se deparou com o mesmo segurança no
corredor.
– Onde você conseguiu isso?
– Eu o roubei – disse ele. – Arrombei
algumas casas da quadra até encontrar
um.
Corrado empurrou-o de volta para ele.
– Devolva-o.
O guarda empalideceu.
– O quê?
– Você me ouviu – disse ele. – Que
tipo de idiota rouba de uma garotinha?
Capítulo 17
O tempo cura todas as feridas. Il tempo
guarisce tutti i mali. Esta frase já foi
repetida inúmeras vezes, mas o que
ninguém menciona são as terríveis
cicatrizes que ficam para sempre. O que
eles não falam é que, de tempos em
tempos, essas feridas infeccionam quando
são ignoradas.
O que começou com um arranhão, que
mal podia ser visto, pode se transformar
num corte profundo que, com o tempo, se
alastra e rasga a carne, até que tudo que
lhe reste seja uma massa exposta de
nervos desgastados e órgãos corroídos. A
dor exige ser sentida, mas você não a
percebe até que seja tarde demais. Até
que ela o paralise e o coloque de joelhos.
Carmine passou a beber todas as noites
à medida que a dor em seu peito se
prolongava. Às vezes ele consumia tanta
bebida que apagava completamente. Seus
dias eram marcados por agonia e as
noites não eram melhores, uma vez que
seus sonhos o faziam reviver todo o
sofrimento. O único momento em que
escapava desse inferno era quando se
perdia na escuridão. O fato é que todas as
noites, antes de perder a consciência, ele
rezava para que, caso acordasse, por fim
conseguisse se esquecer de tudo. Ele só
queria esquecer.
Isso, entretanto, jamais aconteceu.
Toda manhã Carmine acordava e se sentia
pior que na noite anterior, e o ciclo
vicioso recomeçava. Ele estava perdendo
o controle, mas não se importava. Já não
importava o que lhe acontecesse… Tudo
o que desejava era encontrar alguma paz,
independentemente do custo que teria de
pagar.
Na maioria das noites, ele ia ao Luna
Rossa com Remy. A música alta e a
multidão o distraíam de seus pensamentos
por tempo suficiente para que o álcool
tomasse conta. Lá ele se encontrava com
outras pessoas, algumas das quais, em
outras circunstâncias, poderiam ser boas
amigas, mas nenhuma delas era capaz de
sobrepujar a muralha que ele construíra.
Ver Remy com a namorada, uma garota
magra de olhos azuis esverdeados e
cabelos ruivos não ajudava Carmine a
superar seu sofrimento. Aquilo apenas o
fazia se lembrar do que perdera, do que
deixara para trás, do que ele tanto
precisava, mas jamais poderia ter de
volta.
Quando em público, Carmine
conseguia manter a máscara e fazer o que
era esperado dele, porém, no momento
em que ficava sozinho, as feridas se
abriam e se tornavam cada vez mais
profundas.
Era início da noite quando ele
cambaleou para fora de seu quarto, com o
peito nu e seus jeans largos e frouxos nos
quadris. Apertou o cinto, buscando o
buraco seguinte no couro. O jovem
desceu a escada e pisou em algumas
roupas que estavam acumuladas no
corredor enquanto caminhava até a
cozinha. O aparelho de ar-condicionado
não estava funcionando; o ambiente na
casa era sufocante, turvo. Respirar fundo
fazia seus pulmões arderem; sua cabeça
explodia enquanto seu corpo pingava
suor.
Seu estômago roncava e ele sentia o
desconforto da fome. Então abriu a
geladeira e pegou o resto de comida
chinesa que havia ali. Olhou desconfiado
para o recipiente, tentando lembrar-se de
quando o havia pedido, antes de dar de
ombros e pegar um garfo.
Pegou uma pilha de correspondência
que estava sobre o balcão e começou a
examinar uma a uma enquanto comia:
contas, avisos, lixo, merdas que sequer
estavam endereçadas a ele. Então pegou
um envelope de cor creme e viu seu nome
escrito em letras cursivas na parte da
frente. Ao abri-lo, ele retirou o cartão e
leu o que estava escrito em dourado.

Dominic DeMarco e Tess Harper


sentem-se honrados em convidá-lo para
a cerimônia de casamento no dia 27 de
Outubro de…

Naquele momento, uma batida forte e


insistente na porta ecoou pela casa
silenciosa, interrompendo-o. Carmine não
se preocupou em investigar. Em vez
disso, encostou-se no balcão e voltou a
olhar para o convite, engolindo o resto de
comida sem sequer sentir o gosto. Um
casamento. Seu irmão ia se casar.
As batidas na porta continuaram,
tornando-se mais fortes e insistentes,
antes que a porta se abrisse. A luz do sol
invadiu o hall, mas logo desapareceu
quando a porta foi fechada com força.
– Carmine? – gritou Celia.
– Estou aqui – ele murmurou, com a
boca cheia de comida. Passos em direção
à cozinha foram ouvidos. Celia apareceu
na porta em questão de segundos.
Ela fez uma pausa e o encarou com os
olhos arregalados.
– O que você está fazendo?
– Comendo – ele respondeu, erguendo
o recipiente. – Quer um pouco?
Celia deixou escapar um suspiro
frustrado no momento em que esticou a
mão e acendeu a luz da cozinha. A luz
clara fez Carmine estreitar os olhos,
tentando protegê-los.
– Caramba, isso é mesmo necessário?
– Necessário? – a voz de Celia era
uma mescla de amargura e descrença. –
Isso se chama eletricidade, Carmine. Faz
parte da civilização. É claro que é
necessário! Mas, honestamente, estou
surpresa de ver que a luz aqui ainda
funciona, já que o telefone parece estar
desligado.
Carmine soltou um suspiro, mas se
manteve calado. Não estava com vontade
de discutir.
– Olhe para esse lugar – ela disse,
enrugando o nariz. – É nojento! E está
fedendo!
Mais uma vez Carmine se manteve em
silêncio. Ele só observou enquanto sua tia
começou a vasculhar a cozinha, jogando
os restos de comida fora e reunindo a
louça suja na pia. Ele permaneceu imóvel
enquanto ela limpava tudo, resmungando
e deixando evidente sua frustração.
Depois que a cozinha estava com uma
aparência melhor, ela o encarou.
– Não posso acreditar que não tenha
nada a dizer. Quando foi que parou de se
importar?
– Foi isso o que eu fiz? – ele perguntou
em voz baixa. – Parei de me importar?
– É o que está parecendo.
Ele a olhou de volta. A dor no peito do
rapaz, anestesiada quando levantou,
tornou-se mais forte enquanto os dois
ficaram parados ali.
– Gostaria que isso fosse verdade.
Ela sorriu de maneira jocosa e já se
preparava para dizer algo quando o som
do celular soou em alguma parte da casa,
interrompendo-a. Carmine passou por ela
e se dirigiu à sala, pegando o aparelho no
sofá.
– Ah, então o telefone funciona – disse
Celia. – Estou chocada.
– Agora não – disse Carmine,
acenando com a cabeça. – Apenas…
Agora não é o momento.
Ignorando o pedido, ela continuou.
– A casa inteira está nesse estado?
Porque se o andar de baixo está desse
jeito, nem quero ver o que há lá em cima.
Você pelo menos tem roupas limpas para
usar? Está lavando suas roupas? Tem
tomado banho?
– É claro que tenho tomado banho – ele
gritou, sem conseguir aguentar o
interrogatório da tia além de tudo o que
estava passando. – Por que não vai pegar
no pé de outra pessoa? Já estou cheio
desse interrogatório!
– Eu não estou te interrogando – ela
respondeu. – É só que esse lugar está um
caos! E parece um forno aqui dentro.
– Tenho estado ocupado.
– Ocupado demais para cuidar de si
mesmo?
– Sim.
– Ocupado demais para abrir uma
janela?
– Sim.
Ela o encarou, nada satisfeita com as
respostas do rapaz.
– O que realmente está acontecendo,
Carmine? O que está acontecendo com
você?
Ele riu de um jeito seco.
– Tenho coisas a fazer, Celia. Não
tenho tempo para isso.
– Muito bem – ela assentiu. – Mas essa
nossa conversa ainda não terminou.
Depois que Celia saiu, Carmine
colocou uma camisa e calçou os sapatos
antes de retornar à cozinha. Ele abriu o
freezer e franziu o cenho ao perceber que
estava vazio: não havia comida nem gelo
e, mais importante, não havia vodca.
Pensou em dar um pulo no mercado e
comprar uma garrafa, mas seu telefone
tocou, fazendo-o se lembrar de que havia
uma mensagem não lida.

SYCAMORE CIRCLE, ESTA NOITE.

Carmine olhou para o endereço e ficou


com medo. Sycamore Circle ficava no
norte da cidade, uma área que ele
conhecia vagamente, mas só por nome,
uma vez que era conhecida por ser
território dos irlandeses. La Cosa Nostra
respeitava os limites em Chicago, fossem
eles imaginários ou não.
Carmine pegou sua arma antes de sair
de casa. Entrou no carro e se dirigiu para
o norte da cidade. Foi então que seu
telefone tocou. Era Remy, pedindo que
ele o apanhasse no meio do caminho.
Carmine fez um desvio até a casa do
colega, buzinando ao estacionar na frente
da modesta casa azul com uma grande
varanda e uma cerca de tela de arame.
Um cão da raça pit bull corria em
círculos no jardim, latindo furiosamente
para o carro desconhecido.
Remy saiu na mesma hora, saltando da
varanda e pulando a cerca antes de se
enfiar no banco do passageiro. O cheiro
de maconha estava forte em sua pele e
nas roupas, e os olhos do rapaz estavam
vermelhos.
– Cara, isso é maluco – disse Remy,
relaxando no assento enquanto Carmine
ligava o carro. – Área dos irlandeses?
Agora as coisas vão esquentar.
Carmine suspirou fundo.
– Vamos esperar que não.
O sol já estava se pondo quando eles
chegaram a Sycamore Circle e se
encontraram com os outros rapazes cerca
de um quarteirão de distância. Usando
binóculos, avaliaram o local de longe, de
dentro do carro de Carmine, enquanto
escutavam música. Remy pegou um
cigarro de maconha, o acendeu e deu uma
longa tragada. Em seguida, o entregou a
Carmine, que aceitou, baixando o
binóculo. Ele não conseguia se lembrar
da última vez em que tragara um daqueles
e sentiu a droga se infiltrando em seu
sistema e relaxando os músculos tensos.
Recostando-se no banco, fechou os olhos,
deixando todas as preocupações
desaparecerem ao exalar lentamente a
fumaça.
O trabalho foi rápido e fácil. Entraram
e saíram em poucos minutos, sem que
nenhum tiro fosse disparado e nenhuma
gota de sangue fosse derramada, uma vez
que os homens entregaram os caminhões
sem oferecer resistência. Eles os pegaram
desprevenidos e despreparados. A última
coisa que esperavam era que Sal
invadisse o território deles.

A noite já havia caído há muito tempo,


e o ar abafado da onda de calor no final
do verão já atormentava Chicago há
vários dias. Corrado suava de maneira
profusa e suas costas estavam
encharcadas, mas não ousaria tirar o
paletó até que estivesse seguro dentro de
casa. Ele o deixou cair no chão logo que
passou pela porta, expondo sua camisa
branca respingada com sangue fresco.
Tirou a camisa, tentando livrar-se dela
antes que alguém o visse, mas um suspiro
leve na ponta da escada o fez perceber
que era tarde demais. Ele fora pego em
flagrante por Celia.
– Pensei que já tivesse ido para a cama
– disse ele sem olhar para a esposa, mais
com o intuito de esclarecer do que
propriamente se desculpar.
– Eu estava na cama – ela respondeu –,
mas não consegui dormir.
Corrado tirou a camisa antes de
caminhar até a sala de estar, e então
acendeu com rapidez a lareira e atirou a
peça de vestimenta no fogo. Queimar
roupas manchadas e se desfazer de
evidências incriminadoras era algo que
ele poderia fazer até mesmo de olhos
fechados.
Ele conseguiu sentir a presença de
Celia atrás dele, seguindo-o e
observando seus atos. Também conseguia
perceber seu nervosismo e não gostou
daquilo. Ela sempre encontrava uma
maneira de compreender o que ele fazia.
– Há algo preocupando você? – ele
perguntou. – Normalmente você não me
espera acordada.
– Eu estava preocupada – ela disse,
fazendo uma pausa. – De fato, eu estou
preocupada.
– Não faz o menor sentido você perder
seu sono – respondeu Corrado. – Estou
bem.
– Eu sei – ela disse. – Mas não é com
você que estou preocupada.
Corrado observou a camisa ser
consumida pelas chamas antes de se virar
para a esposa. Os lábios dela estavam
franzidos, e rugas sutis se mostravam
mais visíveis naquela noite. Ele a vira
poucas horas antes, mas era como se ela
tivesse envelhecido vários anos num
único dia.
Sua bela esposa. Ele queria aplacar
toda aquela ansiedade.
– Estou magoado – ele provocou,
passando as costas de sua mão enorme na
face de Celia. – Minha esposa não se
preocupa comigo? Devo estar fazendo
algo errado.
Ele então se inclinou para dar-lhe um
beijo, na expectativa de que os lábios
macios de sua mulher pudessem apagar as
lembranças terríveis daquele dia, mas ela
se afastou com um suspiro dramático.
– Estou falando sério, Corrado. Sei
que pode cuidar de si mesmo.
Celia ficou em silêncio e franziu ainda
mais o cenho. Corrado sabia que havia
muito mais que ela queria lhe dizer.
– Mas? – ele perguntou. – Sei que não
terminou.
– Mas com Carmine a história é
diferente.
Corrado suspirou de modo exasperado.
Ele já deveria saber.
– Não outra vez, Celia. Por favor.
– Tudo isso é novo para ele – ela
disse, ignorando o pedido do marido. –
Eu me preocupo com ele.
– Ele encontrará um jeito – retrucou
Corrado. – Ele não tem escolha.
– Eu sei, mas ele está machucado – ela
continuou. – Você devia tê-lo visto hoje.
Corrado meneou a cabeça.
– Não é problema meu.
– Não é problema seu? Você é o Capo
dele!
– E meu papel é me certificar de que
ele faça o que for preciso neste negócio –
respondeu Corrado. – A vida pessoal
dele não é da minha conta.
– Mas…
– Mas nada – Corrado a interrompeu. –
Tenho meus próprios problemas para
resolver agora. Você sabe bem disso.
– Eu sei, mas ele está se
autodestruindo.
– Não há nada mais que eu possa fazer
– Corrado insistiu. – E, honestamente, sua
intromissão só o está ferindo ainda mais.
– Ele é meu sobrinho, Corrado. Estou
lhe pedindo que o ajude.
– Eu estou ajudando – ele disse,
acenando a cabeça. Contudo, os dois
tinham definições bem diferentes para tal
conceito. – Eu o estou ajudando da única
maneira que sei.
– Abandonando-o?
– Fazendo com que ele aprenda a
caminhar com as próprias pernas.
– Mas ele não está – ela retrucou com
hesitação, como se não tivesse certeza do
que deveria dizer. – Há algo muito errado
acontecendo com ele. Não sei o que é,
mas não está certo.
– Ele está se tornando um de nós –
disse Corrado em voz baixa.
– Não, é mais do que isso – ela
suspirou frustrada. – É difícil explicar.
Não gosto das pessoas com as quais ele
está envolvido. Por que ele não pode
trabalhar diretamente com você?
Corrado riu de maneira abrupta e
amarga.
– Você se esqueceu do que eu faço,
Celia? Precisa que eu a lembre disso?
Ele sabia que ela tentaria argumentar,
mas um olhar de desgosto transpareceu no
rosto dela. Aquilo fez com que o
estômago dele revirasse com um
sentimento de culpa: ser obrigado a
responder daquele jeito para ela.
– Os furtos são bem mais seguros que o
restante – Corrado continuou. – E os
jovens com os quais ele está trabalhando
são inofensivos… Digo, de maneira
relativa, são inofensivos. Você não tem de
concordar comigo, tampouco gostar
disso, mas espero que pelo menos
respeite minha decisão. Que respeite a
mim.
– Eu respeito.
– Então pare com isso – ele disse. –
Estou fazendo tudo o que está ao meu
alcance.
Celia não respondeu nada. E isso
mostrou a Corrado que ele ganhara
aquela batalha, embora já soubesse que
haveria muitas outras. Surgiriam novos
pedidos, mais negações e mais conflitos.
Ele sabia que a determinação da esposa
se equiparava à sua teimosia.
– Estou morrendo de fome – ele disse,
caminhando em direção à cozinha e
esperando mudar de assunto. Ele
trabalhara a noite toda e não tivera tempo
para comer. – Poderia preparar algo para
mim?
Celia resmungou:
– Vou voltar para a cama. Se quiser
comer, tenho certeza de que conseguirá se
virar sozinho. Você nunca precisou da
ajuda de ninguém antes, lembra-se? Então
por que começar agora?
Capítulo 18
– Nós temos um problema.
Corrado meneou a cabeça e se colocou
de pé à janela do escritório de seu
advogado.
– Não me venha com essa. Vim até
aqui porque me disse que tinha boas
notícias.
– E tenho – disse Borza –, quer dizer,
eu tinha, mas me parece que é irrelevante
agora.
Suspirando profundamente, Corrado
virou-se para o advogado sem o menor
humor para adivinhações.
– Esse caso se provará bem mais
complicado que os anteriores.
– Fale de uma vez, homem.
– Bem, conseguimos barrar o uso de
seu histórico criminal, o que poderia
provocar certa inclinação negativa nos
jurados. Todas as acusações anteriores
resultaram em vereditos favoráveis a
você ou então foram apenas retiradas.
– Isso é bom – retrucou Corrado. – Já é
algum progresso.
– Sim – concordou Borza. – A
acusação está impedida de mencionar
isso durante o processo. Seu registro
criminal, em contrapartida, ainda será
usado, mas está limpo.
– Eu sei – disse Corrado. – E que o
mais?
– O juiz considerou que as gravações
feitas no clube não estavam cobertas pelo
mandato, portanto, todas elas se tornaram
inadmissíveis como provas de acusação.
Estou trabalhando nas gravações feitas
em sua casa. As fotos das cenas dos
crimes foram destruídas, uma vez que
iriam incitar o júri de maneira injusta.
Ser considerado culpado de acordo com
a Lei de Combate a Organizações
Corruptas e Influenciadas pelo Crime
Organizado é muito diferente de ser
acusado de ser um assassino sangue-frio.
Nem tanto, Corrado pensou.
– Algo mais?
– Tommy DiMica e Alfredo Millano
estão fora da lista de testemunhas. Parece
que Tommy mudou sua história e agora
alega que nem conhece você, e Alfredo
foi atacado em sua cela há alguns dias.
Está vivo, mas sem condições de
testemunhar.
Corrado assentiu com a cabeça. Ele já
sabia de tudo aquilo. Tommy e Alfredo
eram ex-membros da La Cosa Nostra, e
homens que davam as costas a seus
juramentos tinham mesmo de pagar o
preço.
– Muito bem, então qual é o problema?
– perguntou Corrado. – Parece que o caso
deles está por um fio.
– O problema é que existe um novo
nome na lista.
Borza pegou um papel sobre a mesa e
entregou-o a Corrado, que o examinou
com cuidado. Um nome no final da página
lhe chamou a atenção.
VINCENZO ROMAN DEMARCO

Corrado olhou para o nome, mas não


disse nada, controlando-se para não
reagir.
– É possível que eles estejam
planejando intimá-lo e que no final ele
apele para a Quinta Emenda – continuou
Borza.
– Ou que tenha concordado em
testemunhar contra mim para salvar o
próprio rabo.
– Uma boa barganha – disse Borza. –
Não tenho certeza, uma vez que não estou
mais cuidando do caso dele. Solicitarei
um depoimento, é claro, mas, nesse meio-
tempo verei o que posso fazer para que
isso também seja derrubado de modo
permanente.
Corrado desviou o olhar do papel e o
devolveu ao advogado.
– Não.
– Não?
– Deixe que eu mesmo cuidarei disso –
disse Corrado, voltando-se mais uma vez
para a janela. – Prefiro que ninguém mais
saiba.

O som alto do alarme ecoou pelo


quarto. Haven esticou o braço até a mesa
de cabeceira e o silenciou. Ela estava
exausta e estava confortável demais
enrolada no edredom para pensar em se
levantar. Um estranho som chegou aos
seus ouvidos, mas ela fez o que pôde para
bloqueá-lo, sem se importar em
investigar. Presumiu que o barulho viesse
do apartamento de Kelsey no piso
superior e, se fosse isso mesmo, talvez
não desejaria saber o que era.
O barulho parou e o silêncio voltou a
reinar no quarto. Porém, no momento em
que ela se preparava para cair no sono,
escutou uma sucessão de batidas e deu um
pulo. Resmungando, ela se arrastou para
fora da cama.
– Acorde! – soou a voz abafada de
Kelsey por trás da porta espessa. – Sei
que já saiu da cama! Está vendo a hora?
Vamos logo! Levante-se e brilhe!
– Calma – respondeu Haven com a voz
rouca. – Já estou acordada!
– É melhor que esteja!
Mostrando-se impaciente, Kelsey
voltou a bater na porta mais algumas
vezes, mesmo sabendo que a amiga já
estava a caminho. Bufando, Haven
destrancou a porta e a abriu, deparando-
se com um copo de café na frente do
nariz.
– Tome – disse Kelsey. – Se bem que
já deve estar frio por causa da sua
demora.
Haven revirou os olhos, sabendo que
ela o comprara na esquina.
– Obrigada – respondeu, levando o
copo à boca e tomando um gole. O
líquido quente queimou a ponta de sua
língua. Mesmo assim, ela o saboreou até
o fim.
– De nada – disse Kelsey, adentrando o
apartamento e observando a jovem com
um olhar peculiar. – Se bem que, pela sua
aparência, você ainda precisaria de mais
uns dez copos de café. Conseguiu dormir
na noite passada, querida?
– Um pouco – Haven respondeu, dando
de ombros enquanto continuava a tomar o
café preto, do jeito que gostava. Era o
oposto do que Kelsey trazia nas mãos,
que ela comprava todas as manhãs no
caminho para a escola: um grande chai
latte vaporizado com leite de soja, sem
espuma e extremamente quente. Haven
não fazia ideia do que tudo aquilo
significava.
– Um pouco – Kelsey repetiu a
resposta, demonstrando com sua
expressão que não acreditara na amiga.
Um sorriso surgiu em seus lábios depois
de um segundo, além de uma piscadela
sinistra.
– Ah, você teve companhia na noite
passada? Um cara, talvez?
– É claro que não! – Haven retrucou na
hora, olhando para ela sem acreditar no
que ouvira e com o rosto corado. – Eu
jamais faria… isso.
– Que pena – brincou Kelsey. – Você
até que poderia aproveitar uma boa
trepada para aliviar a tensão.
– Kelsey!
As duas jovens haviam se tornado o
que a maioria das pessoas chamaria de
“melhores amigas”, apesar de serem o
oposto uma da outra em quase tudo.
Kelsey crescera em meio à abundância,
sem jamais ter sido obrigada a lavar suas
roupas ou até mesmo usá-las mais de uma
vez. Ela teve o tipo de infância em que se
pedisse um pônei de presente,
provavelmente o teria ganhado, enquanto
Haven passara a dela dormindo num
celeiro como se fosse um animal.
Kelsey adorava ir a festas lotadas e se
informar com revistas de fofoca. Haven
preferia ficar em casa lendo seus livros.
Ainda assim, algo em relação àquela
moça deixava Haven tranquila. Ela a
fazia se lembrar da vida que deixara para
trás; aquela à qual parte dela ainda
gostaria de pertencer… A vida que quase
construíra ao lado de Carmine.
Ainda doía muito pensar sobre aquilo;
uma queimação no peito sempre a fazia
lembrar que parte de sua alma fora
arrancada: aquela que ficara com ele;
algo que sempre estaria com ele, onde
quer que estivesse.
Na maioria dos dias ela costumava
pensar em Carmine com carinho,
lembrando-se de tudo de bom que haviam
feito juntos, de tudo que ele lhe dizia. No
entanto, nem sempre as coisas eram
assim. Ainda havia momentos em que ela
se questionava se voltaria a sorrir,
imaginando que um dia a dor a engoliria
por completo.
– Ei!
Haven olhou para a amiga enquanto ela
acenava a mão à sua frente.
– O quê?
– Você não ouviu uma palavra do que
eu disse? Caramba, garota, acorda.
– Temos um longo dia à nossa frente.
Não pode ficar aí perdida em seus
pensamentos. – Kelsey olhou para os
lados e perguntou: – Cadê seu telefone?
Tentei te ligar quando estava a caminho,
mas você não respondeu.
– Jura? – a jovem perguntou, sem se
lembrar de ter ouvido o telefone tocar. –
Mas, afinal, onde você estava? Você não
é do tipo que acorda cedo. Em geral sou
eu quem tira você da cama.
– Claro, é que acabei de chegar em
casa – respondeu Kelsey. – Eu passei a
noite na casa do Derrick. Nós…
Haven ergueu a mão para interrompê-
la.
– Poupe-me dos detalhes. Já entendi.
– Danadinha ciumenta – disse Kelsey,
enrugando o nariz enquanto olhava para
Haven. – Ache o seu telefone e se arrume.
Não vamos a lugar nenhum com você
vestida assim.
Revirando os olhos, Haven seguiu de
volta para o quarto.
– Sempre tão mandona.
– Uma das muitas razões pelas quais
você me ama – ela gritou da sala.
Haven continuou a beber seu café
enquanto seguia para o quarto, e logo
encontrou o telefone preto sobre a cama.
Havia três chamadas perdidas, as duas
primeiras de Kelsey. Porém, ficou
petrificada ao identificar a terceira.
Olhou para o nome com o coração
disparado e o sangue correndo
furiosamente pelas veias.

CORRADO MORETTI

– Você não tem nenhuma bebida aqui,


não é? – disse Kelsey, entrando pela
porta. – O que você é, uma freira?
Haven abaixou o telefone, rindo,
enquanto caminhava até a cômoda. Ela se
vestiu com rapidez, puxando os cabelos
para cima para tirá-los do pescoço.
– Não se preocupe – gritou Kelsey. –
Eu vou tomar alguma coisa lá em cima!
Haven acenou com a cabeça e olhou para
o relógio, vendo que faltavam poucos
minutos para as dez horas. Sentando-se na
beirada da cama, pegou o telefone e, com
as mãos trêmulas, acessou a lista de
contatos, parando no número de Corrado.
O telefone tocou algumas vezes antes
de ser atendido.
– Alô?
Haven sentiu-se aliviada ao ouvir
aquela voz suave e feminina.
– Olá, Celia.
– Haven? – ela disse. – Quanto tempo!
– É, eu sei – disse a jovem, sentindo-se
culpada. – Eu tenho estado… ocupada.
– Não precisa arrumar desculpas,
criança. Só me preocupo com você.
– Sei que é verdade, mas juro que
estou bem – ela afirmou. – Corrado está
aí? Ele me ligou hoje de manhã.
– Ligou? – ela perguntou, surpresa. –
Ele saiu cedo, disse que tinha assuntos a
resolver.
– Ah, tudo bem – disse a jovem. –
Pode dizer a ele que liguei?
– Claro, querida.
– Obrigada – ela falou em voz baixa,
sentindo-se enjoada. Haven mordeu o
lábio, tentando se controlar quando disse
adeus e desligou. Ela teria um longo dia
pela frente e precisava se manter
tranquila.
Haven pegou suas coisas e saiu do
quarto, encontrando Kelsey na sala de
estar, olhando para um dos quadros na
parede.
– O que você vê?
Dando um pulo, Kelsey se virou e
colocou a mão no peito.
– Vejo uma garota que precisa transar –
respondeu de maneira sarcástica enquanto
voltava a encarar Haven. – Ela também
precisa de alguma maquiagem para essas
olheiras e uma pedicure, se pretende usar
rasteirinhas.

As jovens saíram, pegando um táxi


para percorrer os poucos quarteirões que
as separavam do Centro de Artes Arco-
Íris. A cada semestre, elas tinham de
prestar cinco horas de trabalho
voluntário, fosse numa galeria, biblioteca
ou na comunidade. Haven sentia-se
entusiasmada com a oportunidade de
ajudar, enquanto Kelsey parecia temer
aquilo mais que qualquer outra coisa.
Kelsey tirou a tampa de seu copo e
tomou mais um gole de chá ao caminhar
em direção à entrada do prédio.
– Que tal você refrescar minha
memória e me dizer o que nós estamos
fazendo aqui?
– Ué, você disse que o pessoal daqui
era mais fácil de lidar que aqueles tipos
intelectuais que se acham o máximo com
suas obras esquisitas, falam em haiku1 e
se levam muito a sério – disse Haven, se
recordando da exata afirmação feita pela
colega.
– É, é isso – disse Kelsey, esboçando
um sorriso torto. – Nunca confie num
homem com sotaque francês e uma boina.
Ou ele é gay ou um charlatão. E pode
acreditar no que lhe digo.
Haven assentiu, sem desejar mais
detalhes sobre o que estaria por trás
daquele comentário.
O caos reinava no local. Vozes altas e
passos pesados ecoavam por toda a
construção. No momento em que a porta
se fechou atrás delas, Haven percebeu
alguém se aproximando e cruzou os
braços sobre o peito como se tentasse se
proteger. Uma menina pequena esbarrou
em suas pernas. Com o nariz empinado e
os olhos arregalados, a criança olhou
para a jovem com uma mistura de
confusão e fascinação.
Ela sorriu para a criança de um jeito
doce. Seus cabelos grossos e escuros
cobriam parcialmente a visão da menina.
– Ei, olá, querida.
A garotinha não disse nada, apenas
continuou a encará-la.
– São animais, eu juro – resmungou
Kelsey. Haven olhou para a amiga e riu
ao ver que ela tinha dois garotinhos
correndo por entre suas pernas,
dificultando seus passos. – Ainda bem
que gosto de ir ao zoológico.
Uma senhora se aproximou das duas,
inabalada pela confusão, e sorriu de um
jeito caloroso enquanto segurava as
crianças.
– Vocês devem ser as voluntárias – ela
disse, puxando a garotinha para perto de
si. – Ah, e esta é a Emma.
– Olá, Emma.
A menina sorriu para ela ao ouvir o
som de seu nome e correu para se juntar
aos outros. A professora, senhora
Clementine, as levou para conhecer o
lugar antes de colocar a turma em ordem
com um forte assobio. O barulho
reverberou pela sala, balançando as
paredes e fazendo com que todos
ficassem quietos.
– Em seus lugares – declarou. Todos
obedeceram enquanto Haven entrou em
ação e começou a ajudá-la a distribuir os
materiais de arte.
O Centro de Artes Arco-Íris era ligado
à associação comunitária local. Lá eles
ensinavam artes gratuitamente para
crianças menos privilegiadas. O nome
soou irônico para Haven, uma vez que
não havia nada colorido no lugar. As
paredes eram pintadas de cinza e a tinta
estava descascando. De fato, o prédio
estava caindo aos pedaços.
A maioria das crianças que frequentava
o centro não tinha família; todas eram
consideradas em situação de risco pelo
Estado. Tão jovens e inocentes. Haven
sabia que eles estavam a apenas um passo
de viver a vida que ela própria tivera de
enfrentar.
Ambas passaram duas horas
desenhando e pintando com as crianças.
Quando a aula terminou, Haven estava
esgotada. Pouco a pouco os assistentes
sociais foram aparecendo para levar os
alunos, mas Emma encontrou-se com
Haven na porta, sorrindo de um jeito
vivaz e entregando-lhe suas pinturas.
– Eu fiz você! – ela exclamou.
Haven sorriu e pegou os trabalhos,
olhando para a figura de palitos
totalmente distorcida que a menina fizera;
a cabeça era gigantesca e adornada com
um enorme tufo de cabelos castanhos.
Havia também uma enorme boca
vermelha e um sol amarelo que tomava
metade do céu.
Haven sorriu e disse:
– Lindo.
– Você pode ficar com ele.
– Obrigada – respondeu. – É muito
bonito.
Os olhos de Emma se iluminaram.
– Posso ser uma artista como você?
– É claro que pode – respondeu Haven.
– Pode ser qualquer coisa que quiser.
Poesia japonesa tradicional, composta
por pequenos versos e poucas estrofes.
(N. E.)
Capítulo 19
Carmine enfiou uma chave de fenda na
ignição de um caminhão de entrega e
tentou ligá-lo, mas nada aconteceu. O
motor não foi acionado.
Resmungando, ele retirou a ferramenta
da igniçao e usou-a para forçar a retirada
do mecanismo e abrir o painel de
plástico. Outro caminhão passou por ele
com rapidez, levantando cascalho e
atirando-o contra o para-brisa, enquanto
ele puxava os fios vermelhos do cilindro
e em segundos retirava a proteção
colorida antes de emendá-los. As luzes
no painel acenderam de imediato e o
rádio ligou sozinho, revelando um rock
pesado nos alto-falantes baratos. Carmine
pegou os fios marrons, desencapou-os e
encostou-os com força nos fios
vermelhos.
Grande erro.
Aquilo provocou uma faísca e um
choque elétrico poderoso, que queimou
as pontas de suas luvas. Ele soltou os fios
e falou um palavrão. Nesse momento,
ouviu uma pancada no lado do caminhão.
– Vai rápido com isso, cara! – gritou
Remy. – Liga logo essa porra!
Frustrado, Carmine pegou os fios
marrons de novo e prendeu o fôlego
enquanto os ligava aos demais. Mais uma
faísca, mas enfim o motor ligou antes que
Carmine se visse forçado a soltá-los.
Com o caminhão ligado, ele chacoalhou a
mão, tentando se livrar da dor. Já tivera
de usar a ligação direta algumas vezes,
quando o truque da chave de fenda não
funcionava, mas ainda tinha de descobrir
um jeito de fazê-lo sem se eletrocutar.
Remy pulou no lado da carroceria e
olhou para dentro. Mesmo com o rosto
coberto com a máscara preta de esqui,
Carmine pôde perceber que o rapaz
estava orgulhoso.
– É assim que se faz, cara – ele disse,
dando-lhe um tapinha nas costas. Foi
legal, mas Carmine estremeceu com a
pancada. – Leve-o até o ponto de
encontro, tudo bem? Nós nos veremos lá.
Antes que pudesse fazer qualquer
objeção, Remy arrancou as chaves de
Carmine do seu colo e correu para o
carro. Carmine colocou o caminhão em
movimento, sabendo que não teria outra
escolha, e fugiu do estacionamento
próximo às docas no Lago Michigan. O
coração estava disparado e ele entrou
pelas ruas de Chicago atrás de sua
Mercedes, com os olhos concentrados
nos demais carros para perceber qualquer
sinal de problema. Distraído, ele acabou
perdendo Remy de vista, enquanto
desviava do tráfego pesado, entrando
com o caminhão em lugares tão apertados
que o veículo mal conseguia passar.
Levou quase meia hora para que
Carmine chegasse até o armazém isolado
no subúrbio da cidade. O outro caminhão
já estava estacionado atrás da construção
e sendo descarregado por alguns sujeitos
da Cosa Nostra. Carmine estacionou e
desceu da cabine. Encostado na lateral da
Mercedes, ficou observando enquanto os
homens trabalhavam em silêncio.
Ele ficou fascinado ao ver como o
processo acontecia de maneira fluida,
como se todos fossem peças de uma
máquina bem lubrificada. Cada um tinha
sua função e fazia o trabalho como numa
corrida de revezamento de bastão. Aquilo
se tornara habitual, à medida que ele
lentamente se entregara àquela vida como
membro de uma equipe de rua. Toda
semana era a mesma coisa, os mesmos
esquemas com os mesmos rapazes, mas
em diferentes locais da cidade. E, embora
não tivesse melhorado, e Carmine se
arriscasse a dizer que isso jamais
aconteceria, ele aprendera a arte do
desapego, ou seja, conseguia abstrair por
alguns momentos e olhar para o outro
lado.
Ele estava dividido: de um lado estava
a metade de um jovem ingênuo que bebia
todas as noites para ficar inconsciente e
tentar esquecer; do outro, o homem,
entorpecido em relação a tudo, que
apenas fazia o que precisava ser feito, dia
após dia. Era o homem que saía durante
as noites e fazia o que era esperado dele:
os furtos, a violência, as fraudes. Mas era
o garoto, de coração partido e enojado,
que acordava na manhã seguinte para
encarar os resultados.
Levou cerca de uma hora para que os
caminhões fossem descarregados. Em
seguida, o dono do armazém entregou a
Carmine um envelope com dinheiro. Ele
o abriu e discretamente conferiu as notas
antes de enfiá-lo no bolso com um aceno.
Depois da transação concluída, o jovem
saiu andando e hesitou fora do armazém.
Seus olhos examinaram a propriedade
sinistra e ele já estava prestes a entrar em
pânico quando sua Mercedes surgiu do
nada e parou bem ao lado dele.
– O que o fez demorar tanto? –
perguntou Carmine quando Remy saiu do
carro. – Já se passou mais de uma hora.
– Eu tinha de resolver um probleminha
– ele respondeu, devolvendo as chaves a
Carmine. – Esse carro é bacana, cara.
Anda macio. Você é sortudo.
– É, o carro é bom, eu acho –
resmungou Carmine, sentando-se no
banco do motorista enquanto Remy se
acomodava no banco do passageiro. – E
o que era tão importante que o fez deixar
o trabalho de lado?
– Eu não deixei o trabalho de lado –
disse Remy, rindo. – Só fiz um pequeno
desvio, só isso. E não foi nada de mais,
pode acreditar. Só tinha que pegar uma
coisa para a Vanessa. Sabe como é.
Carmine não o pressionou para que lhe
desse mais explicações. Afinal, se o cara
estava sendo evasivo era bem provável
que ele não quisesse dar maiores
detalhes.
Haven deixou escapar um profundo
suspiro ao entrar no prédio de tijolos com
as chaves do apartamento na mão. Ela
estivera envolvida numa atividade
escolar até tarde daquela noite, mas deu
um jeito de escapar assim que pôde.
Estava exausta e seus passos não eram
mais rápidos que o arrastar de uma
lesma. Tocou na maçaneta da porta e
ergueu as sobrancelhas ao perceber que
ela se abriu sem ser destrancada. O
coração começou a bater fora do ritmo
normal.
Em silêncio e com bastante cuidado,
entrou no lugar e ficou apavorada ao ver
suas gavetas reviradas. Retirou da bolsa
um spray de pimenta que levava consigo,
antes de cruzar o apartamento na ponta
dos pés. Entrou na cozinha
silenciosamente e esticou o braço para
acender a luz, porém, no momento em que
seus dedos tocaram o interruptor, a jovem
ouviu uma pancada no andar de cima.
O coração de Haven parou por um
segundo e ela instintivamente olhou para
o teto. Os pelos em seus braços se
eriçaram à medida que uma sensação
estranha invadiu seu corpo; a impressão
de que não estava sozinha quase fazia
seus joelhos dobrarem.
Ela ficou imóvel como uma estátua,
tentando convencer a si mesma de que
estava ouvindo coisas. Foi então que ela
escutou outra pancada forte no andar
superior e prendeu a respiração. Em
seguida, começou a tremer ao ouvir
passos no apartamento de Kelsey, indo
em direção ao hall. Eles eram pesados,
como se fossem de alguém muito forte.
Aquilo fez com que Haven se lembrasse
do modo como Michael costumava
caminhar; o som de suas botas dentro de
casa enquanto ela e a mãe esperavam no
celeiro úmido por algum tipo de punição.
Diante daquelas lembranças
tenebrosas, ela teve de se concentrar ao
perceber que alguém descia a escada,
então se enfiou no armário do corredor e
fechou a porta com muito cuidado.
Os passos se aproximaram e algumas
pessoas entraram no apartamento,
passando direto por onde ela se escondia
e ofuscando a luz por um momento. Ela
voltou a prender a respiração, sem ousar
fazer qualquer movimento enquanto eles
estavam ali. Eles fechavam gavetas e
moviam as coisas de um lugar a outro,
respirando alto, mas sem dizer uma única
palavra.
Pareceu passar uma eternidade até que
fossem embora. Haven os ouviu sair do
prédio e saiu do armário. O caos que ela
encontrara ao entrar no local havia
desaparecido. Tudo estava em perfeito
estado, e até mais organizado do que
deixara pela manhã. Até mesmo a porta
da frente fora meticulosamente trancada,
o que não deixava nenhum sinal de que
alguém estivera ali.
Carmine entrou no Luna Rossa,
acenando com a cabeça para o segurança
antes de seguir direto para a mesa dos
fundos, onde sua equipe estava reunida
numa das cabines da casa. Ele estava a
poucos passos do seu destino quando
alguém parou à sua frente e disse:
– Venha comigo.
Carmine empalideceu no momento em
que Corrado fez um movimento em
direção à porta. Ele estava com o casaco
e foi possível ver algo prateado em seu
cinto quando ele ergueu o braço. Uma
arma.
– O quê?
– Apenas me siga.
Carmine hesitou por um momento, mas
seguiu o tio até o lado de fora do clube e
sentou no banco do passageiro, enquanto
Corrado se sentava no banco do
motorista. Sem demora, o tio ligou o
carro e saiu dali em alta velocidade.
– Aonde estamos indo? – perguntou
Carmine. Será que havia feito algo
errado?
– Alguns irlandeses têm aparecido na
rua Clark e incomodado o dono de uma
loja de penhores da esquina.
Carmine o olhou de um jeito peculiar.
– E?
– E vamos fazer com que desapareçam.
O estômago de Carmine ficou
embrulhado. Trabalho. Ele nunca estivera
num trabalho ao lado de Corrado, e não
estava nem um pouco ansioso para fazê-
lo naquele momento.
– Imagino que eles estejam lá agora,
certo?
– Estão jogando nas máquinas de
videopôquer – ele disse, com a voz
exalando repulsa. Carmine sabia que
Corrado detestava jogos, embora muito
de seu próprio dinheiro viesse de apostas
clandestinas.
Ambos ficaram em silêncio ao longo
do curto trajeto até a loja. Corrado
estacionou o carro e saiu sem dizer uma
palavra. Carmine o seguiu até dentro do
local, ouvindo a agitação nos fundos. Os
homens gritavam e riam. O forte sotaque
irlandês ecoava pela loja enquanto eles
operavam as máquinas.
Corrado caminhou pelos fundos, indo
diretamente a eles. Carmine foi pela
frente, se esgueirando por um corredor
lateral para que pudesse observá-los sem
ser visto.
Os homens viram a aproximação de
Corrado, mas sequer tiveram tempo de
reagir antes que ele pegasse a parte de
trás da cabeça de um sujeito e a batesse
com violência contra a máquina em que
estava. O cara deu um grito com a
pancada e o sangue começou a escorrer
do nariz quebrado. Ele levou a mão ao
ferimento cambaleando no momento em
que Corrado o deixou de lado.
Corrado sorrateiramente alcançou a
arma do homem no momento em que um
segundo irlandês puxou a que trazia no
cinto. Ambos apontaram um para o outro
assim que Carmine saiu do corredor e se
colocou atrás do sujeito, destravando sua
pistola.
Um pouco tenso e com a mão
levemente trêmula, Carmine pressionou o
cano contra a nuca do homem. Corrado
sacou a própria arma e a apontou
também. O irlandês hesitou, mas,
devagar, ergueu as mãos, tirando o dedo
do gatilho. Carmine o desarmou e deu um
passo para trás.
Corrado enfiou a arma do primeiro
sujeito no bolso, mantendo a sua apontada
enquanto encarava o homem da cabeça
aos pés.
– Se eu sequer ouvir falar que vocês
retornaram aqui, farei mais que apenas
quebrar um nariz. Você entendeu?
– Sim.
– Certifique-se de dizer a O’Bannon
que eu mandei um “olá” – disse Corrado.
O tom de voz gelado fez com que a pele
de Carmine se arrepiasse. – Agora saiam
daqui.
Eles hesitaram, parecendo espantados
ao olhar para Corrado. Carmine
interferiu:
– Vocês ouviram o que ele disse. Ele
os mandou sair, então saiam, filhos da
puta.
Ambos olharam para Carmine com
raiva antes de caminharem em direção à
saída. Entretanto, um dos sujeitos ainda
se demorou à porta, virando-se para os
dois com um olhar furioso.
– Você quer que fiquemos longe de seu
território, então diga ao seu Chefe que se
mantenha fora do nosso.
– Nós nunca entramos no território de
vocês – respondeu Corrado. – Nunca!
O cara acenou com a cabeça.
– Você fala como se realmente
acreditasse em suas mentiras.
E eram mentiras. O próprio Carmine
fizera um serviço em Sycamore Circle,
então ele tinha certeza de que de fato a
Cosa Nostra havia cruzado os limites
invisíveis.
Corrado suspirou quando eles enfim
saíram, desviando o olhar para Carmine.
– Você e essa sua boca. Os mais velhos
acreditavam que deveríamos ser gentis na
maneira como falamos e sempre estar
apresentáveis no modo como nos
vestimos. Colocar um terno é tão difícil
para você?
Carmine olhou para as próprias
roupas. Ele vestia jeans e uma camisa
preta, nada fora do normal.
– Ternos são para casamentos e
funerais.
– Então imagino que estará usando um
no domingo, certo?
Carmine ficou tenso.
– O que tem no domingo?
Corrado começou a falar, mas seu
telefone tocou e o interrompeu. Ele o
retirou do bolso e olhou para a tela.
– Faça com que ele pague – disse
Corrado, apontando para a direção do
homem que estava no balcão. – Dois mil
dólares.
Um pouco hesitante, Carmine assentiu
com a cabeça enquanto seu tio se virava
para atender a ligação.
– Alô? Está tudo bem?
Pelo modo descontraído como Corrado
atendeu, Carmine soube que não se
tratava de negócios. Porém, quando o tio
saiu como um raio pela porta da frente, o
rapaz ficou confuso, afinal, ele não era do
tipo de pessoa que atendia a um chamado
pessoal durante o serviço.
Ele deu de ombros. Nada parecia ter
feito muito sentido naquele dia. Em
seguida, caminhou até o balcão do
estabelecimento.
– Você tem algo para me entregar?
– Tenho alguma coisa – disse o homem.
– E quanto é alguma coisa?
– Ah, cerca de quinhentos dólares.
– Você tá de brincadeira, né? – disse
Carmine, dando a volta no balcão e se
aproximando do sujeito. Viu um taco de
beisebol escondido próximo à caixa
registradora, para proteção, e o pegou.
– Muito bem, talvez mil – disse o
homem rapidamente, voltando atrás. –
Sim, eu tenho mil dólares.
– São dois mil e quinhentos dólares –
disse Carmine, com sangue-frio, saindo
de trás do balcão e olhando de frente para
o sujeito.
– Eu sei, mas não tenho tudo agora –
ele disse. – Meus filhos têm
acampamento de verão e minha esposa
está grávida. Eu lhe darei o resto na
semana que vem, mas não tenho tudo
hoje.
Carmine caminhou pela loja ao mesmo
tempo em que o homem mexia no cofre e
retirava de lá um maço de dinheiro. As
mãos dele tremiam enquanto contava o
que tinha. Carmine tentou combater o
sentimento de culpa. Aquelas pessoas
eram inocentes, mas estavam tentando
sobreviver no meio de tudo aquilo. Mas
se não fossem eles a extorqui-lo,
certamente seriam outros. Talvez alguém
menos civilizado que exigisse muito
mais.
Além disso, ele pensou, era melhor
que a alternativa. Se não estivesse
roubando o dinheiro das pessoas, talvez
estivesse roubando suas vidas. Ele
preferia pegar o que poderia ser reposto.
– Não é o suficiente – disse Carmine,
balançando o taco com toda força,
destruindo um balcão de vidro e
espalhando cacos em todas as direções.
Ele então atirou o taco para trás do
balcão, quase atingindo o homem, e
pegou o dinheiro.
Carmine saiu da loja, sem conseguir
encarar o proprietário, e abriu a porta do
carro para sentar-se no banco do
passageiro. Ao entrar, percebeu que o tio
ainda estava ao telefone, com uma
expressão séria enquanto ouvia a outra
pessoa.
– Estarei aí pela manhã – ele disse,
saindo com o carro. – Sim, tenho certeza.
Eu avisarei assim que pousar.
Ele suspirou de modo exasperado no
momento em que desligou e olhou para
Carmine.
– Quanto conseguiu?
– Mil dólares.
– Só isso?
– Era tudo o que ele tinha.
Corrado esticou a mão e arrancou o
dinheiro da mão dele. Em seguida contou
o montante, mal prestando atenção ao
tráfego enquanto acelerava pelas ruas da
cidade.
A curiosidade de Carmine foi mais
forte e ele perguntou:
– Você vai viajar ou algo assim?
– Ou algo assim – Corrado respondeu,
entregando cem dólares ao rapaz e
atirando o restante no console. – Você é
bonzinho demais. Ele teria dado mais
dinheiro.
– Eu perdi a paciência e acabei com
um dos balcões do cara – ele respondeu.
– Imaginei que aquilo custaria mais em
danos do que ele possuía.
– Justo – disse Corrado enquanto
estacionava de novo no clube. – Precisa
aprender a controlar seu temperamento.
– Estou trabalhando nisso – respondeu,
olhando para o tio de um jeito curioso.
Ele parecia distraído; seus olhos não se
afastavam do relógio no painel. – Aonde
vai?
– Para onde sou necessário – Corrado
respondeu de modo evasivo. – O lugar
não importa. Mas tenho de partir
imediatamente para conseguir retornar a
tempo para o casamento, então você
precisa descer.
– Casamento – resmungou Carmine, até
que lhe caísse a ficha. Domingo seria o
casamento de seu irmão.
– Sim, o casamento. – Corrado se
esticou, abriu a porta do passageiro e
acenou com a mão. – Fora.
Carmine saiu do carro e bateu a porta
com força. Então viu quando Corrado
apertou o acelerador e saiu cantando os
pneus. As palavras do tio ficaram na
cabeça de Carmine; era uma sensação
estranha. O lugar não importa…
Sua cabeça de repente voltou a pulsar;
a dor no peito se tornou mais intensa e
uma sensação de vazio no estômago
surgiu no momento em que o carro de
Corrado desapareceu.
– Haven.
Não demorou muito para que Carmine
se decidisse depois que Corrado virasse
a esquina. O jovem reagiu de maneira
impulsiva, entrou em seu carro, ligou o
motor e acelerou para fora do
estacionamento.
As vias não estavam congestionadas
àquela hora, mas Carmine não conseguia
ver o tio em lugar algum, então seguiu na
direção de seu bairro, na expectativa de
que ele passasse em casa. No momento
em que entrou na rua, o jovem viu a
Mercedes parada na frente da casa do tio.
Carmine estacionou a algumas casas
dali e desligou os faróis. Corrado saiu
logo em seguida, carregando uma mochila
e olhou em volta com cautela antes de
entrar no carro e partir apressado.
Carmine esperou alguns segundos antes
de pegar a estrada. Ele se colocou atrás
de outro carro e seguiu costurando em
direção ao aeroporto.
Manteve-se o mais longe possível,
certificando-se de que havia veículos
suficientes entre os dois para não levantar
suspeitas. Ele perdeu Corrado de vista
umas duas vezes, mas conseguiu localizá-
lo, já tendo uma ideia da direção que ele
estava seguindo. Então, o tio
inesperadamente entrou numa rua lateral
depois de alguns quilômetros.
Carmine reduziu a velocidade, sem
entender o que ele estaria fazendo, mas
decidiu segui-lo. Eles passaram por
algumas ruas vazias antes de entrar num
beco. Carmine pisou fundo no freio ao
virar e quase bater no para-choque do
carro do tio.
O coração dele disparou ao perceber
que era uma rua sem saída. A porta do
lado do motorista do carro de Corrado
estava aberta e não havia sinal dele em
lugar nenhum. Antes que Carmine pudesse
acionar a marcha à ré, a porta de seu
carro foi aberta e alguém o arrancou para
fora. Tudo aconteceu tão rápido que ele
ficou assustado e o carro deslizou. Ele
teve tempo suficiente para puxar o freio
de mão antes de ser tirado de dentro à
força e atirado contra a parede.
– O que pensa que está fazendo? –
perguntou Corrado, pressionando o cano
de sua arma sob o queixo de Carmine.
Ele tremia, assustado.
– Eu, ah… Caralho! Eu sei lá. Eu só
achei…
– Você não é pago para pensar – disse
Corrado –, e sim para seguir ordens, mas
não me lembro de ter mandado você me
seguir.
– Também não me disse para não
seguir.
– O que foi que você disse? – O som
do dedo de Corrado destravando a arma
o fez sentir um frio na espinha. – Estou
cheio da sua falta de respeito.
– Eu não tive a intenção! Eu só… Eu
só tinha que saber. Eu tinha que ver, tio.
Corrado ficou parado, sem se mover
ou dizer uma palavra.
– Acha que eu não o mataria por ser
filho de Vincent? – perguntou Corrado,
com a voz ameaçadoramente controlada.
– Você acha mesmo que sou tão
bonzinho?
– Não, senhor – ele respondeu
rapidamente, apertando os olhos. – Não
quis desrespeitá-lo.
Corrado afastou a arma e soltou
Carmine.
– Não há a menor justificativa para
você me seguir. O lugar aonde vou não
lhe diz respeito.
– Não? – ele perguntou, tentando parar
de tremer e se firmar sobre as pernas. –
Se você estiver indo aonde acho que está
indo…
– O que foi que eu acabei de dizer? –
perguntou Corrado. – Eu disse, quando
ainda estávamos em Durante, que tomasse
uma decisão, e foi isso que você fez.
Você precisa ser um homem dentro do seu
mundo.
– Então estou certo? – ele perguntou de
maneira exasperada. – Você está indo até
ela?
– Você não tem o direito de interferir.
– Não estou tentando interferir – ele
disse, meneando a cabeça. – Eu só
quero… Caramba… Eu só quero saber
onde ela está, o que está fazendo. Por que
você está partindo às pressas no meio da
noite? Há algo de errado com ela? Ela
está ferida ou algo assim?
Corrado o encarou enquanto ele fazia
essas perguntas; a expressão era vazia,
mas Carmine podia ver que ele estava
bastante irritado. Sabia que não deveria
estar questionando o tio, mas precisava
de alguma resposta, qualquer coisa…
Apenas algo que o fizesse continuar de
pé.
Olhando para o relógio, Corrado
suspirou impaciente. Parecia estar prestes
a dizer alguma coisa e Carmine se encheu
de esperança, mas ela se esvaiu quando
seu tio levantou a arma novamente.
Carmine se encolheu e o tio disparou
duas vezes, deixando-o apavorado. Sem
acreditar naquilo, Carmine se virou e viu
que os dois pneus do lado do motorista
do seu carro estavam esvaziando.
– Se resolver seguir alguém, pelo
menos seja discreto – alertou Corrado,
recolocando a arma no casaco. – Chame
um guincho e volte para casa. Não
preciso que me atrase mais ainda.
– Mas que bosta! – resmungou Carmine
enquanto o tio se afastava.
Corrado parou por um segundo e disse:
– Isso é uma ordem, Carmine.
Capítulo 20
Nervosa, Haven observava o relógio e
esperava pelo carro preto que lentamente
entrou na rua. Corrado estacionou em
frente ao prédio e saiu do carro ajeitando
a gravata e olhando para os lados antes
de entrar. Ele bateu à porta e, com
paciência, esperou que a menina a
abrisse.
Ela começou a gaguejar assim que ele
entrou, tentando explicar o que
acontecera, mas ele ergueu a mão para
interrompê-la. A garota piscou ao ver o
movimento brusco e ele ficou parado.
– Não tenho nenhuma intenção de
machucá-la.
Haven ficou imóvel perto da porta
enquanto ele verificava o apartamento. O
lugar parecia intocado e ela se sentiu
ridícula, imaginando se Corrado teria
viajado à toa.
– Sua vizinha do andar superior está
em casa? – ele perguntou.
– Ah… Não, ainda não – ela
respondeu. – Kelsey passou a noite com
um cara ontem.
– Olhe por aí e veja se algo foi levado
– ele instruiu. – Tenho de checar o
apartamento dela e me certificar de que
nenhuma de vocês tem uma escuta
instalada.
– Sim, senhor.
Ela examinou tudo, fazendo um
inventário, mas não deu falta de nada. Até
mesmo o dinheiro que ela guardava na
gaveta ainda estava lá. Ela se lembrou do
que Corrado lhe havia dito: Sempre use
dinheiro. Nunca deixe rastros em papel.
Depois de algum tempo, Corrado
desceu, deixando a porta semiaberta
enquanto a examinava.
– O lugar está limpo. Algo faltando
aqui?
– Não – ela respondeu. – Mas eu não
tenho mesmo nada de valor.
– Valor nem sempre está associado à
questão monetária – ele explicou. – Não
há diários?
Ela acenou a cabeça antes que a ficha
caísse.
– Ah… Que droga!
Correndo para a sala de estar, ela
procurou na estante e soltou um suspiro
de alívio ao ver o livro de couro entre os
demais.
– Eu tenho o de Maura.
Haven voltou-se para ele e começou a
falar e perguntar o que deveria fazer.
Então, a porta da frente se abriu e a pegou
de surpresa. Ela prendeu a respiração
quando Corrado se virou e buscou a arma
no casaco. Ele chegou a pegá-la, mas não
a puxou ao perceber Kelsey à porta. Seus
olhos imediatamente repousaram sobre a
dupla.
– Quem é o papai bonitão? – ela
perguntou, deixando a porta escancarada
enquanto se movia em direção a Corrado.
Seus olhos o examinaram da cabeça aos
pés e um pequeno sorriso surgiu nos
lábios da moça.
Haven ficou corada.
– Kelsey… Essa é sua amiga
desaparecida? – perguntou Corrado. – A
que mora no andar de cima?
– Desaparecida? – Kelsey ergueu as
sobrancelhas. – Você é policial ou algo
assim?
Corrado a encarou.
– Pareço um policial?
– Mais ou menos – ela disse. – Digo,
você tem uma arma.
Corrado tirou a mão de sua arma e a
cobriu com o paletó.
– Ele é… – Haven começou a
responder, sem ter certeza de como
explicar.
– Corrado – ele completou, com
educação e estendendo a mão.
– Sou Kelsey – ela disse,
cumprimentando-o. – Mas é óbvio que
você já sabe o meu nome.
– Sim. Se me dá licença, preciso fazer
uma ligação – ele disse, levantando-se e
indo até a cozinha com seu telefone.
No momento em que ele se afastou,
Kelsey deu um cutucão no braço de
Haven e perguntou:
– De onde foi que ele surgiu?
– Ah… Bem, eu o conheço há algum
tempo – respondeu em voz baixa.
– Ei, não vou mentir. Eu realmente
esperava que você não voltasse para casa
sozinha ontem à noite. Queria que você se
livrasse de um pouco desse seu jeito
fechado e recluso, se entende o que quero
dizer, mas como conseguiu esse sujeito?
– Você acha que nós…? – Haven se
mostrou surpresa. – De jeito nenhum! Ele
é casado!
– E daí? – Ela deu de ombros. – Um
homem como aquele precisa de mais de
uma mulher para tomar conta dele. Não
posso acreditar que passou a noite com
ele e vocês não transaram.
– E por que acha que passei a noite
toda com ele?
– Você está usando as mesmas roupas
de ontem – disse Kelsey, como se fosse
a coisa mais óbvia no mundo. – Você
pelo menos deu uma chupadinha básica?
– Kelsey, cale a boca!
– Ah, você é tão pudica – disse,
fazendo uma careta. – Se não estiver
interessada, posso?
– Não! – Haven respondeu furiosa –
Meu Deus, por que você iria querer uma
coisa dessas?
– Você está mesmo me perguntado
isso? – ela questionou – Você é cega? Ele
tem aquele olhar misterioso e perigoso.
Não há como um homem desse não ser
bem-dotado.
– Pare! – ela disse, bufando.
Kelsey revirou os olhos.
– Ok, relaxe, eu compreendo. Você não
tem nenhum interesse por homens, exceto
por Cartman…
– Carmine – ela corrigiu.
– Cartman, Carmine, é tudo a mesma
coisa. Já te conheço há alguns meses,
querida, e ainda não vi esse cara. Ele não
liga, não escreve, não faz visitas. Ele
pode até ser um fantasma, mas aquele
belo espécime na cozinha é bem real. Ele
é tangível. E chega um ponto na vida em
que é preciso deixar de fantasiar e
enfrentar a realidade – Kelsey fez uma
pausa e olhou para o corredor enquanto
Corrado retornava à sala. – E quer saber?
Não faz mal nenhum que a realidade se
pareça pra caramba com a minha fantasia.
Corrado entrou na sala já colocando o
telefone no bolso e olhou para Haven.
– Você ficará segura aqui, mas farei
com que todas as fechaduras sejam
trocadas.
Um silêncio tenso tomou conta do
lugar. Os olhos de Kelsey se encheram de
dúvida.
– Aconteceu alguma coisa aqui?
– Alguém invadiu o apartamento –
Haven disse em voz baixa. – Eles
estavam aqui quando cheguei.
Os olhos de Kelsey arregalaram.
– Eles levaram alguma coisa? Será que
eles foram ao meu apartamento também?
– Ela os assustou antes que eles
pudessem ter a chance – respondeu
Corrado. – Não houve danos.
Haven acenou com a cabeça,
confirmando a mentira. Ela olhou para o
relógio quando uma nova onda de tensão
invadiu o ambiente.
– Preciso me arrumar. Temos um
compromisso hoje.
– Prefiro que falte a esse compromisso
hoje – disse Corrado.
Haven meneou a cabeça.
– Mas eu não posso.
Ele a olhou com curiosidade.
– Não pode ou não quer?
– Não quero.
Ele assentiu, como se já esperasse
aquela resposta.
– Vá em frente, então.
Haven deixou os dois na sala e foi se
arrumar. Kelsey estava sentada no sofá,
comendo, quando Haven retornou, mas
Corrado havia desaparecido.
– Ele foi lá fora – disse Kelsey, antes
que Haven tivesse a chance de perguntar.
– Recebeu uma ligação, talvez da esposa.
Isso acaba com qualquer clima.
Haven acenou a cabeça.
– Ele não é seu tipo. É um homem
sério.
– É, eu reparei – ela disse. – Ele é
intenso. Você não está num PPT ou algo
assim, não é?
– O quê? – perguntou Haven.
– PPT. Você sabe, Programa de
Proteção a Testemunhas. É quando o
governo lhe dá uma nova identidade para
que os gângsteres não a encontrem.
Haven sorriu ao perceber a ironia da
situação, considerando que fora
justamente o gângster que lhe dera uma
nova identidade para que pudesse se
esconder do governo.
– Não, não há nada disso.
– Então por que eu nunca vi esse cara
por aqui antes?
– Ele não mora por aqui.
– E onde ele mora?
– Por que você é tão curiosa?
– Porque é assim que sou – Kelsey
respondeu, rindo. – Como o conheceu?
– Ele é… um amigo da família.
– Verdade? Ele me parece bem
familiar, como se eu já o tivesse visto em
algum lugar antes – ela disse, colocando-
se de pé. – É estranho. Mas ele é mesmo
um policial, certo?
– Para que todas essas perguntas? –
Haven questionou.
Kelsey deu de ombros.
– Só estou tentando entender quem ele
é. É algum crime querer saber sobre a
vida da minha amiga? Você não fala muito
sobre isso.
– Não há nada para falar.
Kelsey revirou os olhos.
– Tudo bem, então. Eu vou me vestir
para podermos sair.
O carro de Corrado havia partido
quando as duas saíram do prédio. Em
silêncio, ambas dividiram um táxi até o
Centro de Artes Arco-Íris e passaram
toda a manhã limpando, organizando e
reunindo os trabalhos feitos pelas
crianças. Elas colocaram todos os
desenhos em molduras e investiram
outras duas horas fixando-os nas paredes
e decorando o lugar para a festa. Num
dado momento, Kelsey saiu para comprar
lanches e bebidas, e Haven permaneceu
no lugar para encher os balões. Ela se
virou para pegar algo e quase colidiu
com alguém que estava de pé atrás dela.
A pessoa segurou seus ombros enquanto
ela gritava, pega de surpresa.
– Relaxe – disse Corrado. – Sou eu.
– Como sabia onde eu estava? – ela
perguntou.
Ele ergueu a sobrancelha.
– Acha mesmo que não rastreio todos
os seus movimentos?
– Bem, eu sei que sim, mas não sabia
que era de tão perto.
– Próximo o suficiente para conseguir
encontrá-la quando quiser – ele disse. – É
parte do meu trabalho. É muito
interessante o que faz aqui, a propósito.
– Ah… – ela disse, enrubescendo. Será
que aquilo fora um cumprimento? –
Obrigada. Gosto muito.
– Imagino que sim – ele disse. – Maura
fazia coisas parecidas. Ela sempre dizia
que se conseguisse ajudar uma única
pessoa, seu sacrifício teria valido a pena.
– Ela mencionou isso em seu diário –
disse Haven em voz baixa. – Sinto o
mesmo.
– Então compreende por que Carmine a
deixou?
Haven se encolheu diante daquela
pergunta, uma vez que não esperava
escutá-la.
– Vincent lutou muito para se assegurar
de que Carmine não acabasse igualzinho
a ele, mas aos dezoito anos o rapaz tomou
exatamente a mesma decisão que o pai –
Corrado explicou. – É lógico que se
preocuparam com o fato de que o que
aconteceu com Maura pudesse também
acontecer com você. O que ambos não
percebem, entretanto, é o que de mais
importante Maura tentou ensinar a eles.
Cambiano i suonatori ma la musica è
sempre quella.
– O que isso significa? – ela perguntou.
Ele não respondeu por um instante,
enquanto caminhava pelo salão e
examinava as pinturas das crianças. Era
estranho observá-lo. Haven jamais
pensara em Corrado como alguém que
pudesse se interessar por coisas daquele
tipo.
– Você leu o diário dela, então posso
assumir que sabe que falhei com ela,
certo?
– Você falhou com ela? – ela perguntou
de maneira hesitante – Ela não via as
coisas dessa maneira. Ela dizia que todos
eram justos com ela, mesmo quando ela
era… Você sabe… Em sua casa.
– Eu poderia ter feito mais.
– Todos nós não podemos? – ela
respondeu. – Somos apenas seres
humanos, afinal.
– Você se parece muito com Maura,
mas existem algumas diferenças. Ela
jamais teria permanecido aqui e
conversado comigo. E certamente teria
abandonado seus planos no momento em
que eu lhe dissesse para fazê-lo – ele fez
uma pausa e sorriu. – Apesar disso,
entendo por que eles se preocupam, mas
o fato de a situação de alguém mudar não
significa que a pessoa mude. Não importa
se você está na Carolina do Norte, na
Califórnia, em Nova York ou em Illinois:
você é exatamente quem você é. Foi isso
o que quis dizer: trocam-se os músicos,
mas a melodia continua a mesma.
A porta se abriu e a luz de fora invadiu
o ambiente.
– Você alguma vez já esteve num Wal-
Mart? – berrou Kelsey de longe, antes de
entrar no salão desatenta e colocar as
sacolas no chão. – Aquele lugar parece
um hospício. Foi como se eu tivesse
entrado num universo paralelo em que as
mulheres ainda usam prendedores no
formato de banana nos cabelos e sombra
azul-claro nos olhos. E, Jesus, o que são
aqueles cabelos enormes? Estou surpresa
de ter saído de lá viva! Metade daquelas
mulheres parecia capaz de me devorar no
jantar! E eu juro que vi uma minivan no
estacionamento com um daqueles
adesivos de faculdade. A mulher que a
dirigia usava… – só então ela parou de
falar ao deparar de novo com Corrado –
calças jeans até a cintura. Olá, de novo.
– Olá – respondeu Corrado – Bem,
acho melhor deixar vocês continuarem
com seu trabalho – completou,
caminhando em direção à porta e pegando
seu telefone.
– Ah… Um segurança particular? –
perguntou Kelsey, com um olhar travesso
e cintilante. – Será que é como no filme O
guarda-costas, com todo aquele romance
e tudo mais?
– Não. Eu já lhe disse, não há nada
disso entre nós.
– Que pena – ela deu de ombros
enquanto abria as sacolas e preparava a
mesa para o lanche. Em seguida, elas
pediram pizzas e Haven preparou um
ponche quando as pessoas começaram a
chegar. As crianças correram felizes para
dentro do local, enquanto seus cuidadores
se reuniam num dos cantos. Alguns sequer
se deram ao trabalho de entrar, deixando
os menores ainda na calçada.
Corrado ficou por perto e acompanhou
a festa, observando com uma expressão
cansada e de maneira tão reservada que a
maioria das pessoas mal reparava em sua
presença. Outras, entretanto, o encaravam
com curiosidade e se mantinham
afastadas. Haven sorria, percebendo que
provavelmente elas imaginavam o mesmo
que Kelsey, ou seja, que ele fosse um
policial.
Aquilo parecia um caos, com tantas
crianças correndo de um lado para outro.
Haven fazia o melhor que podia para
manter tudo sob controle enquanto a
cerimônia era realizada e os certificados
entregues. Quando enfim o evento
terminou e já era hora de todos partirem,
Haven abraçou cada uma das crianças,
dizendo a elas as mesmas palavras que
lhe haviam sido ditas quando criança.
Palavras que ela própria esquecera em
meio a todo o sofrimento que enfrentou,
mas nas quais Maura e sua mãe
acreditavam do fundo do coração.
– Nunca percam a esperança – ela
repetia – Você é especial e alcançará
coisas maravilhosas em sua vida. Eu
acredito em você.
Kelsey se ofereceu para levar uma das
crianças para casa enquanto Haven
limpava a bagunça. Ela podia sentir os
olhos de Corrado sobre ela, mas fez o
possível para ignorá-lo, tentando se
concentrar e terminar suas tarefas.
Corrado limpou a garganta e
perguntou:
– Vocês eram muito ligadas?
– Como? De quem está falando?
– Daquelas crianças.
– Sim – respondeu Haven, em voz
baixa – Elas me faziam lembrar de mim
mesma.
– É estranho como essas coisas
funcionam. Não importa aonde você vá,
sempre haverá alguém. – Haven assentiu
e se preparou para pegar o grande saco
de lixo, mas Corrado o pegou antes. –
Permita-me carregá-lo para você.
– Obrigada – ela sussurrou. – A lata de
lixo fica na parte de fora, lá atrás.
Haven terminou a limpeza, pegou suas
coisas e saiu em direção ao
estacionamento. Viu o carro de Corrado,
mas não havia sinal dele. A jovem deu a
volta no prédio para ver se ele ainda
estava próximo à lixeira e congelou ao
vê-lo ao lado de um homem. A porta
lateral de um carro preto estava aberta e
as placas eram de Nova York. O sujeito
estava de costas, então ela não podia ver
seu rosto, mas sua linguagem corporal
dizia que não se tratava de uma conversa
casual.
Depois de um segundo, o homem
entrou no carro e saiu cantando pneus
pelo outro lado do estacionamento.
Corrado se aproximou.
– Precisa de uma carona?
– Posso ir a pé – ela respondeu – São
apenas alguns quarteirões.
– Bobagem – ele retrucou – Entre no
carro.
Corrado não disse uma única palavra
durante o trajeto. Não muito tempo depois
de chegarem, alguém apareceu para
trocar todas as fechaduras do prédio.
– Tenho alguns assuntos a resolver, e
preciso dormir um pouco – disse
Corrado, entregando a Haven um novo
conjunto de chaves. – Viajarei amanhã
cedo para comparecer ao casamento.
Casamento?
– Alguém vai se casar?
– Dominic e Tess – disse Corrado,
olhando-a com estranhamento. – Você não
recebeu um convite?
Ela meneou com a cabeça, devagar.
– Não, eu não fazia ideia.
A expressão dele mudou e ele pareceu
titubear, franzindo os lábios.
– Ah, devo ter me esquecido de enviar-
lhe o convite. Mas ainda há tempo, se
quiser enviar um presente. Passo aqui
pela manhã antes de ir para o aeroporto
para apanhá-lo. Se quiser, é claro.
– Claro – ela disse, sem saber como
responder àquela oferta. – Obrigada, eu
acho.
– Então eu acho que “de nada” – ele
respondeu. – Tenha uma boa noite,
criança.
Capítulo 21
Carmine estava sentado sozinho numa
das cabines nos fundos do clube, com
vários copos de shot espalhados à sua
frente sobre a mesa. Ele podia sentir o
álcool fluindo por suas veias, reduzindo o
fluxo sanguíneo e impedindo que os
pensamentos alcançassem sua mente. Eles
ainda vinham; várias lembranças
voltavam à sua cabeça, mas, para ele era
mais fácil suportá-los em pequenas
doses.
Ele ainda estava machucado. Aquelas
memórias eram um lembrete constante do
que poderia ter sido, mas não foi e, no
que dizia respeito a ele, jamais seria.
Havia lembretes por todos os lados: no
tom castanho-escuro da mesa que o fazia
se lembrar dos olhos dela; no piscar das
luzes do bar que o fazia recordar a caça
aos vaga-lumes; na melodia que tocava e
parecia com a que ela costumava
cantarolar.
Ela estava em todos os lugares, mas,
ao mesmo tempo, em lugar nenhum. E
cada segundo que passava o fazia sentir
como se mais uma vez estivesse se
afastando dela. Independentemente do que
fizesse, do que tentasse, não conseguia
esquecê-la. A lembrança de Haven o
assombrava.
Ele engoliu a última dose que estava na
mesa e fechou os olhos ao sentir a
queimação, esperando que aquilo
aliviasse sua dor.
Se alguém tivesse perguntado a
Carmine como seria a vida em Chicago,
ele teria dado uma resposta clichê,
envolvendo dinheiro, poder e respeito,
mas agora ele conhecia a situação de
perto. La Cosa Nostra não tinha nada a
ver com aquilo.
Enquanto Sal se sentava
confortavelmente, apontava o dedo e
dava ordens a partir de sua mansão de
doze milhões de dólares e bebia do
melhor uísque que o dinheiro podia
comprar, os homens que realizavam os
trabalhos sujos mal conseguiam
sobreviver. Eles arriscavam suas vidas
por pessoas que apenas os observavam a
distância, sem se importar com o que iria
acontecer a eles, desde que sua parte lhes
fosse devidamente entregue.
Tudo se resumia a “pagar tributos”. Se
um grupo de homens desviava uma carga,
mais da metade do dinheiro ia direto para
os bolsos dos administradores. Depois de
pagarem aos parceiros e também as
propinas a todos que olhavam para o
outro lado, o que cada integrante da
equipe recebia mal dava para pagar o
aluguel.
O sabor, eles diziam. Todos queriam
provar o sabor. Como uma família,
afirmavam que todos trabalhavam como
um só, que era uma questão de respeito.
Diziam que era a coisa mais honrada a se
fazer.
Por tudo o que Carmine havia
testemunhado, tudo aquilo não passava de
babaquice.
Onde está o respeito em ser arrancado
da cama às três da manhã para ver um
homem com a cabeça esmagada pelo fato
de não ter pagado o dinheiro que pediu
emprestado? E cadê o respeito em
queimar a casa de um homem, roubando-
lhe tudo o que conseguiu na vida, só
porque ele olhou para o chefe do jeito
errado? Onde estava o respeito em
intimidar uma jovem de dezessete anos e
ameaçar matar todos que ela amava
porque ela testemunhou algo que não
deveria?
Violência, extorsão, sequestro, desvio
de cargas, roubo, pagamento de propina,
jogatina, desmanches, prostituição,
corrupção, incêndios criminosos,
coerção, fraudes, contrabando, tráfico de
seres humanos e assassinatos… Onde
estava o respeito em tudo isso?
Carmine certamente não conseguia vê-
lo.
– Noite ruim, cara?
Carmine olhou para cima no momento
em que Remy se sentou à mesa, à sua
frente.
– É, acho que podemos dizer isso.
Remy fez um movimento para chamar a
garçonete e pediu-lhe uma dose de rum e
uma Coca-Cola, além de uma dose de
vodca para Carmine, por sua conta.
– Logo percebi – disse Remy. – Você
está com a cara típica de quem viu
alguma coisa que jamais irá esquecer.
Carmine empurrou o copo vazio para
junto dos demais.
– Isso não quer dizer que eu não possa
tentar, não é?
– Claro, mas está tentando da maneira
errada. O álcool é só um depressor.
Como se a situação como um todo já não
fosse deprimente o suficiente, embriagar-
se apenas o levará mais para baixo. Você
deixa de ser um filho da puta mal-
humorado para se tornar um filho da puta
desprezível e infeliz. E ninguém gosta de
um filho da puta desprezível e infeliz,
DeMarco, nem eu. E olha que eu adoro
todo mundo.
Carmine esboçou um pequeno sorriso
diante daquelas palavras.
– Isso me deixa entorpecido.
– É, acho que provavelmente o
entorpece o suficiente para que não sinta
o concreto esmigalhar seus ossos quando
seu cu deprimido se atirar de cima da
Sears Tower – ele disse. – Mas lembre-
se, nunca deve saltar a menos que saiba
que pode voar ou, pelo menos, flutuar.
Ninguém quer cair. É assim que acaba se
machucando.
Carmine encarou Remy enquanto
tentava compreender aquelas palavras.
Ele já não tinha certeza se estava muito
bêbado ou se o sujeito estava falando em
códigos.
– Sabe, não consigo me decidir se
você é um gênio ou um maldito tagarela
idiota.
– E por que não posso ser as duas
coisas?
Carmine deu de ombros. Talvez ele
fosse mesmo as duas coisas.
– Seja como for, quer saber como é
possível esquecer o inesquecível? –
perguntou Remy. – Como realmente se
esquece o que se viu?
– Como?
– Em vez de se arrastar para baixo,
levante-se. Você não quer ficar
entorpecido, cara. Você quer ser feliz.
Carmine meneou com a cabeça. Feliz.
Ele se lembrou de uma época em que se
sentia feliz.
– Esse barco já partiu faz tempo,
companheiro.
– Ah, mas é aí que você se engana –
um sorriso travesso apareceu nos lábios
de Remy, que se inclinou na direção de
Carmine e sussurrou como se estivesse
prestes a envolvê-lo numa conspiração. –
Acho que está na hora de eu te apresentar
à senhorita Molly.
– Molly?
Remy assentiu.
– Ela é linda. Uma única noite ao lado
dela irá mudar sua vida.

Foi estranho, abrupto, mas ainda assim


vagaroso. Num segundo não havia nada e,
de repente, estava lá, deslizando por suas
veias. Não houve um fluxo intenso de
sensações que o deixasse ao mesmo
tempo cego e extenuado. Carmine não se
sentiu como se estivesse nas alturas. Não.
Pela primeira vez em muito tempo, ele
sentiu que tinha os pés firmes no chão.
Tentou encontrar as palavras para
descrever o que sentia, mas elas não
existiam. Aquilo era novo, mas ainda
assim familiar, como uma combinação de
tudo de bom que sempre existira dentro
dele. Era sua mãe viva. Estar apaixonado
por Haven. Jogar futebol, ir para a
faculdade e ter um futuro. Significava
perdão, compreensão. Era como se tudo
que estivesse errado de repente se
tornasse certo. Era como o sol brilhando,
luz e belos arco-íris se formando. Era
como caminhar sobre a água antes de
transformá-la em vinho. Era o paraíso.
Era felicidade. Era como ter estado cego
por toda a vida e, de repente, conseguir
enxergar tudo. Era liberdade; felicidade.
As estrelas haviam se alinhado e…
alcançado uma paz mundial do caralho.
– Que merda é essa? – perguntou
Carmine, esfregando o nariz sem
perceber enquanto olhava para o resto do
pó branco sobre a mesa. A coisa brilhava
como se fosse glitter sob as luzes do
clube. Aquilo o deixava fascinado. Seus
sentidos estavam mais claros; as notas da
música ecoavam dos alto-falantes e
penetravam sua pele, alcançando as
profundezas de seu corpo.
Ele não sabia bem por quê, mas de
repente sentiu vontade de tocar piano de
novo.
– Eu já te disse: Molly – respondeu
Remy. – Puro ecstasy.
Carmine sorriu para si mesmo. Aquele
era o primeiro sorriso genuíno que
aparecera em seus lábios em todos
aqueles meses, e ele se sentiu grato.
Molly era mesmo linda. Era êxtase.
Literalmente.
Ele já havia ouvido falar daquilo, é
claro, mas no formato de pílulas, nunca
encontrara o produto antes. Ecstasy ainda
não havia se infiltrado na sua pequena
cidade da Carolina do Norte assim como
nas cidades grandes.
– Então, como se sente? – perguntou
Remy. – Ainda entorpecido?
Carmine meneou a cabeça. A sensação
de entorpecimento era oposta ao que ele
experimentava. Aquilo o atingiu
profundamente, preencheu um buraco e
removeu a dor, o sofrimento, o sentimento
de coração partido.
– Eu me sinto como se pudesse
enfrentar o mundo inteiro e sair vitorioso.
Remy riu ao pegar o copo de rum e
Coca e tragar o último gole.
– É, bem, você não pode. O mundo
ainda o destruiria, amigão, então não faça
nada de estúpido… Não se quiser viver
para ver um novo dia.
Colocando-se de pé, Remy procurou
no bolso e puxou um pequeno saquinho
com o pó brilhante. Ele o colocou na
frente de Carmine.
– Um presentinho. Use apenas de vez
em quando, ok? O efeito disso é bem
longo.
Carmine pegou a droga e a escondeu na
palma da mão.
– Obrigado.
– Não diga nada a ninguém. – disse
Remy, dando um passo em direção à
porta e então retornando. – É sério, cara.
Por favor, não diga nada a ninguém.
Prefiro que as pessoas não saibam,
entende?
– Compreendo – disse Carmine,
olhando para o pacotinho em sua mão. Os
chefões não gostavam de mexer com
drogas. Os homens no topo da hierarquia
podiam até fingir que não viam nada e
negociar por fora para ganhar dinheiro
mais rápido, atuando como
intermediários invisíveis num jogo bem
maior, mas eles jamais deveriam sujar as
mãos com o negócio de drogas. Era
perigoso demais; muitas pessoas
envolvidas, muita publicidade e grande
risco de exposição. Aquela era uma das
regras mais fundamentais do grupo,
perdendo apenas para “manter a boca
fechada e nunca dedurar os amigos”.
Capítulo 22
O prédio ocre e retangular ficava na
esquina de um cruzamento tranquilo e
tomava quase metade do quarteirão. O
lado externo era modesto, com arcos na
cor marrom e gramado bem verde e vivo.
Uma placa na porta trazia as palavras THE
ROSEWOOD HALL, em letras cursivas e
informais.
Carmine imaginara algo mais
deslumbrante. Ele sempre achou que Tess
fosse o tipo de noiva que exigiria cavalos
brancos e um salão de dança com o piso
dourado em um local afastado; que nunca
aceitaria um salão simples no centro de
Chicago.
Encostado no prédio, ele olhou mais
uma vez para o convite, checando pela
terceira vez se aquele era mesmo o lugar
certo, antes de enfiá-lo no bolso de seu
terno preto. Observou em silêncio
enquanto o estacionamento lotava,
surpreso pela quantidade de pessoas
presentes. Ele não conhecia metade dos
convidados, o que o deixava nervoso.
Todos haviam prosseguido com suas
vidas, encontrado pessoas, feito amigos,
mas ele estava sozinho… Ele era ainda o
mesmo Carmine DeMarco.
Pelo menos era o que parecia. Tanto
havia mudado e, ainda assim, nada
parecia diferente. Ele era novamente
aquele adolescente solitário, sem
ninguém com quem conversar, sem
ninguém a quem confiar um segredo. Em
vez disso, costumava enterrar tudo o que
sentia, escondendo de todos seus
segredos e a verdade, às vezes até de si
próprio, enquanto enfrentava a realidade
e se recusava a aceitar que metade
daquilo de fato fizesse parte de sua vida.
Era um belo dia em Chicago. A
temperatura estava em cerca de vinte
graus, mas ainda assim o suor se
acumulava em suas costas e fazia com
que sua camisa ficasse grudada ao corpo.
Sentindo-se no limite, ele contemplou a
ideia de ir embora, embora soubesse que
não deveria fazê-lo. Não podia. Ele já
havia desapontado muita gente em sua
vida, feito escolhas erradas e impulsivas,
mas se ausentar do casamento do próprio
irmão seria a pior de todas. Mesmo que
esse irmão já não se importasse se ele
iria ou não aparecer.
Soltando um suspiro, Carmine colocou
a mão no bolso para pegar sua garrafinha
e tomou um gole. O líquido forte queimou
sua garganta e as chamas alcançaram seu
peito. Ele tomava um segundo gole
quando ouviu alguém chamar seu nome. A
voz afiada o assustou e ele acabou
engasgando e tossindo. O jovem
rapidamente tampou o frasco.
– O que foi? – respondeu de maneira
ríspida quando Celia se aproximou.
– Era mesmo necessário trazer esse
frasco? – ela perguntou, apontando para o
pequeno vasilhame.
Ele revirou os olhos enquanto o
guardava no bolso.
– Seu marido está aqui?
– Não, ainda não tive nenhuma notícia
dele hoje – Celia franziu o cenho. – Não
sei se chegará a tempo.
Carmine sentiu um aperto no estômago.
– Então ele ainda está com ela?
– Ela quem?
– Não me trate como um idiota, Celia.
Você sabe muito bem de quem estou
falando.
Ela o olhou com cautela.
– E o que o faz pensar que ele esteja
com ela?
– Eu não penso. Eu sei.
– Não tenho certeza – respondeu a tia.
– Sei tanto quanto você, criança. Ele saiu
e eu não sei por que nem para onde ele
foi, muito menos quando retornará. Mas
tenho certeza de que se ele o flagrar
bebendo não ficará nada contente.
Vincent gritou da porta da frente do
salão, dizendo que a cerimônia já iria
começar. Todos entraram em silêncio em
direção ao jardim na parte de trás. Um
longo corredor fora preparado, cercado
com dúzias de cadeiras enfileiradas.
Celia arrastou Carmine até a frente,
forçando-o a se sentar na cadeira ao lado
dela.
A cerimônia foi rápida. Carmine
praticamente não ouviu uma palavra do
que fora dito. Estava ansioso e não
parava de mexer as mãos, ajeitar a
gravata e olhar para os lados em busca do
tio. Em seguida, todos entraram no prédio
para a recepção. O garoto foi direto para
o bar, sentou-se no banco e gritou para
que o barman lhe servisse uma vodca. Ele
bebeu duas doses, uma atrás da outra,
assim que foram servidas.
O barman continuou a servir outras
doses, até a visão de Carmine ficar um
pouco turva. A festa se desenrolava atrás
dele; havia música e pessoas dançando e
brindando, celebrando a união de Tess e
Dominic, enquanto ele apenas apreciava
o familiar entorpecimento que já afetava
seus órgãos.
Outra dose foi servida. Era a número
cinco, talvez seis. Foi então que o
banquinho ao lado de Carmine foi
ocupado. Nervoso, ele se virou e viu
Dominic soltando sua gravata. Ele não
olhou para Carmine, tampouco
reconheceu sua presença, apenas pediu ao
barman que também lhe servisse uma
dose.
Dominic tomou num gole só e fez uma
careta, pedindo que o copo fosse
preenchido mais uma vez.
– Não sei como consegue beber isso
desse jeito, Carm.
Carmine deu as costas ao irmão ao
perceber o barman se aproximar. O rapaz
encheu os dois copos, acenando
levemente com a cabeça ao deixar a
garrafa sobre o balcão.
Já era hora de o sujeito entender que
a garrafa devia ficar ali.
– Seu corpo se acostuma depois de um
tempo – respondeu Carmine. – Já nem
sinto a queimação na garganta. É como
beber água.
– Ah – disse Dominic, tomando a
segunda dose e mais uma vez fazendo
careta. Ele balbuciou alguma coisa ao
bater com o copo no balcão. Carmine deu
risada e encheu os dois copos de novo,
mas Dominic não tocou no dele, apenas
olhou. Depois de um momento, ele ergueu
o copo e o girou em frente aos olhos
como se estivesse pensando
profundamente.
– Vamos lá, diga de uma vez –
murmurou Carmine.
– Não vale a pena – retrucou Dominic.
– Seu estado miserável tira toda a graça.
– Eu estou bem – insistiu Carmine,
pegando o copo. Ele estava prestes a se
servir de mais uma dose quando parou e
recolocou a garrafa no balcão.
Não havia razão para fingir; ambos
sabiam que ele beberia todo o conteúdo.
– Sabe, nenhum de nós tem qualquer
notícia a respeito de Haven – disse
Dominic, pegando um descanso de copo e
tentando girá-lo no balcão.
– Aconteceu alguma coisa com ela? –
Carmine perguntou. – Ela está bem, não
está?
– Tenho certeza de que se algo
estivesse errado nós saberíamos. Corrado
tem cuidado dela.
– E quanto a Dia? – perguntou. – Elas
não se veem mais?
Dominic riu, achando graça.
– Não. Ela viajou para a casa dos pais
na primavera e, quando voltou, Haven
havia desaparecido. Mas, a propósito,
você saberia disso se tivesse mantido
contato com ela.
Carmine ficou surpreso.
– Dia também não me liga mais.
– Isso é porque ela tem medo de que
você perca as estribeiras. Ela acha que
falhou pelo fato de Haven ter
desaparecido, mas eu disse a ela que o
que aconteceu foi algo que já era
previsto. Você empurrou o pequeno
pássaro do ninho e ele fez exatamente o
que tinha de fazer.
– O quê? – perguntou Carmine.
– Voou.
Um sorriso surgiu nos lábios de
Carmine ao ouvir aquelas palavras. Ela
voou.
– Acho que beberei a isso.
– Você beberia a qualquer coisa.
Carmine ergueu a garrafa.
– É, beberei a isso também.
Dominic se levantou e deixou o irmão,
reunindo-se com as pessoas que estavam
sentadas na mesa principal, ao lado de
Tess e Dia. Carmine olhou para a garrafa
na mão, percebendo que seu irmão fizera
exatamente o que ele próprio fora
teimoso demais para fazer: abriu mão do
passado.
O garoto hesitou antes de se levantar e
caminhar até a mesa. Parou por um
instante, olhou para todos em silêncio e
se sentou numa cadeira vaga.
Dia arriscou esboçar um sorriso de
onde estava. Ele o retribuiu, sentindo
conforto no calor e na aceitação da
expressão dela.
Os três conversaram sobre casamento,
família e sobre o futuro, mas Carmine não
falou muito. Afinal, não havia muito que
pudesse dizer. Seu futuro estava
entalhado numa pedra, e não era algo de
que pudesse se orgulhar, tampouco podia
compartilhá-lo. Entretanto, era bom poder
estar ao lado daquelas pessoas mais uma
vez. Não havia raiva nem ressentimento;
não restava culpa nem acusações pelas
coisas que aconteceram – ou que não
aconteceram. Naquela mesa só havia
amor e amizade, e até mesmo uma
simpatia que já não sentia há muito
tempo.
Vincent veio depois de uns minutos,
rindo e brincando. Carmine sentiu uma
estranha sensação infundindo dentro de si
enquanto o observava. Ali estava sua
família – sua família de verdade –,
aqueles que passaram por tudo junto a
ele.
Mesmo assim, ele ainda sentia um
enorme vazio. Uma parte dele estava
faltando. Ele sentia falta dela, e tudo o
que mais queria era a presença dela.
E, se quisesse ser honesto, ele também
sentia outra coisa… A necessidade de
sentir o mesmo que sentira na noite
anterior.
O Rosewood Hall ficava próximo à
Escola de Música para Crianças. Na
mesma rua também havia um antigo
cinema que, no ano de 1972, costumava
exibir filmes a vinte centavos, mas que
agora estava vazio e fechado.
Vincent era apenas uma criança na
época; uma criança levemente rebelde e
facilmente impressionável. Com
frequência ele saía de sua casa em Felton
Drive, a dois quarteirões de distância de
onde mais tarde viveria com a própria
família, e se escondia no cinema sem que
seus pais soubessem. Era uma época em
que ele e a irmã, Celia, iam de um lado a
outro sempre que tinham vontade. Mas
não muito antes de a guerra brutal do
submundo eclodir e mudar tudo. Antes de
os pais passarem a controlá-los mais de
perto e a monitorar cada um de seus
movimentos… Antes de eles perceberem
que precisavam fazê-lo.
Sua mãe sempre foi muito rígida e
talvez já se mostrasse um pouco delirante
naquela época, recusando-se a permitir
que eles assistissem à TV. Ela não queria
que a mente deles fosse envenenada,
então ele se acostumou a mentir sempre
que ela perguntava, dizendo-lhe que ia ao
parque com os amigos.
O filme O poderoso chefão fora
lançado naquele ano. Vincent assistiu a
ele numa tarde nebulosa de terça-feira, no
mês de julho, sentando na última fileira
do cinema lotado. Aquelas três horas
mudariam sua vida para sempre,
colocando de cabeça para baixo tudo o
que ele acreditava saber.
Até aquele momento, ele compreendia
pouco o que a Máfia significava, com
base nas coisas que testemunhara e
também nos surtos e desvarios de sua
mãe, cujo temperamento era bastante
volátil. Ele achava que fosse apenas um
clube, talvez parte de um sindicato,
considerando que ele vira seu pai receber
dinheiro do Sindicato dos
Caminhoneiros. Porém, a realidade se
tornou clara naquela tarde, ao ser
retratada na tela gigante do cinema.
Vincent ficou tão fascinado com o
filme, tão movido com tudo o que viu,
que sequer percebera que o lugar
abrigava pelo menos uma dúzia dos
melhores amigos de seu pai.
Naquela tarde, ele voltou para casa
com um milhão de perguntas na cabeça,
percorrendo um caminho que ele
conhecia como a palma de sua mão. Eram
dois quarteirões para cima e um
quarteirão para o lado; um desvio por
uma ruazinha estreita e mais uns quatro
quarteirões para o sul, até sua casa. Ele
era capaz de ziguezaguear por aquelas
ruas de olhos fechados e chegar ao seu
destino em poucos minutos.
Anos mais tarde, enquanto caminhava
pelo local depois do casamento e de
olhar para sua família uma última vez,
seus pés pareciam percorrer o caminho
instintivamente. Ele passou pelo velho
teatro e examinou as janelas lacradas e os
tijolos frágeis. Foi então que voltou a
pensar no dia em que assistiu a O
poderoso chefão. Ele pretendia perguntar
à irmã quando chegasse em casa, mas
nunca teve a chance de fazê-lo.
Assim que abriu a porta da frente de
sua casa e correu para o interior, ouviu a
voz tempestuosa do pai que chegava a
fazer a escada tremer:
– Vincenzo Roman!
Os pés de Vincent logo grudaram no
chão enquanto ele se encolhia ao ouvir o
som de seu nome completo. Olhando na
direção do pai, ele o viu de pé à porta de
seu escritório. Seu coração disparou.
Aquilo não era bom; não era nada bom.
– Sim, papai?
– Precisamos ter uma conversa.
Antonio desapareceu dentro do
escritório. Vincent ficou ali por um
momento, intencionalmente protelando
antes de forçar os pés na direção em que
precisava ir. Ele se sentou à frente de seu
pai, do outro lado da mesa.
– Muito bem, o que foi que você fez
hoje? – Antonio perguntou, recostando-se
na cadeira com as mãos juntas sobre o
peito volumoso.
– Fui ao parque.
– Ao parque, não é?
– Sim.
– E como estava o parque, filho?
– Legal.
– E ficou lá a tarde toda?
– Sim.
– Você se divertiu?
– Sim.
– Fascinante – disse Antonio. – Fico
imaginando como conseguiu fazer isso,
digo, estar em dois lugares ao mesmo
tempo. Sabe, eu recebi uma ligação há
alguns minutos e me disseram que você
esteve no cinema esta tarde, e sei que
você jamais mentiria para mim, não é?
A cor desapareceu do rosto de Vincent.
Antonio o encarou com seriedade,
esperando por uma resposta que nunca foi
dada.
– Você não pode achar que não
descobrirei essas coisas, que não ficarei
sabendo – ele continuou, percebendo que
Vincent pretendia manter o silêncio. –
Tenho olhos e ouvidos espalhados por
toda a cidade. Ninguém dá uma mijada na
vizinhança sem que isso acabe chegando
aqui. E não gosto do fato de meu filho,
meu único filho, imaginar que poderia me
passar a perna. Você me considera um
idiota? Acha que seu pai seja algum
estúpido?
Vincent acenou de maneira negativa e
veemente para o pai.
– Claro que não, papai.
– Tem perguntas? Quer saber de
alguma coisa? Venha falar comigo. Você
não vai buscar informações com outras
pessoas.
– Sim, senhor – Vincent fez uma pausa,
pensando em tudo aquilo. – Eu só queria
assistir a um filme. Não sabia que…
Antonio o encarou enquanto o menino
se justificava, soltando um profundo
suspiro ao se inclinar para frente.
– Escute aqui, filho. Há um ditado que
diz “a sorte favorece os audazes”. Se
quiser coisas na vida, se quiser ser bem-
sucedido, é preciso se arriscar e aceitar
os riscos. Você tem que fazer, sabe,
algumas coisas que talvez outras pessoas
não fizessem. A vida… é como um jogo
de xadrez. Você conhece o xadrez, não é?
Vincent assentiu.
– Então sabe que o rei é a peça mais
importante. Desde que ele continue de pé,
o jogo continua. E o mesmo se aplica à
vida. Você deseja se tornar o rei, mesmo
que isso o transforme num enorme alvo.
O rei é a chave de tudo; é dele que
depende a vitória. Você nunca irá querer
se tornar um peão, uma torre, nem mesmo
um cavalo. Não quer ser descartável,
apenas mais uma peça no jogo. Você
precisa controlar o jogo. Compreende o
que lhe digo?
Mais uma vez ele assentiu.
– Muito bem, uma vez que conhece o
xadrez, também sabe a verdade – disse
Antonio. – O rei dita o jogo, com certeza,
mas e a rainha? É ela que mantém o poder
real. E é por isso que não contaremos à
sua mãe o que você fez hoje. Ela não
precisa saber que você mentiu e quebrou
as regras, porque a rainha não será tão
compreensiva, capisce?
– Sim, papai.
Vincent se levantou para sair do
escritório, mas só chegou até metade do
caminho antes de Antonio voltar a chamá-
lo.
– E como foi, filho? O poderoso
chefão.
Ele olhou para trás e disse:
– Foi o melhor filme a que eu já
assisti.
Antonio sorriu de maneira genuína
antes de mandá-lo sair.
Anos depois, quando Vincent
caminhava pelas ruas de Chicago, ele
ainda conseguia se lembrar da expressão
de orgulho no rosto do pai. Não era o tipo
de olhar que ele via sempre. Na maioria
das vezes ele se mostrava desapontado ao
forçar o filho a aprender lições difíceis
enquanto crescia; lições que ele levaria
consigo durante toda a vida. Algumas
boas, outras ruins, mas todas o haviam
transformado de algum modo. Elas o
haviam tornado a pessoa que era: um
homem destruído pelo conceito de
lealdade.
Ele caminhou os três primeiros
quarteirões com facilidade, diminuindo a
passada ao se aproximar da rua estreita.
Algo lhe dizia que optasse pelo caminho
mais longo, mas ele ignorou aquela voz
inoportuna e continuou. Entrou na
pequena rua e caminhou pela trilha
estreita enquanto olhava para os prédios
altos, que precisavam desesperadamente
de reforma.
Mais ou menos na metade do caminho,
parou e chutou alguns cascalhos no chão.
Passou os dedos pela parede envelhecida
de uma das construções e pequenos
pedaços de tijolo se desfizeram em sua
mão. Soltou um suspiro quando sentiu os
sulcos e os arranhões profundos na
fachada, e sentiu um aperto no peito por
conta da ansiedade.
– Vincent.
Vincent observou enquanto Corrado
caminhava pela rua estreita em sua
direção. O terno estava amarrotado, seus
olhos cansados, e ele trazia debaixo do
braço um pequeno pacote embrulhado em
papel verde.
– Você perdeu o casamento, Corrado.
– Eu sei – respondeu. – Acabo de
retornar de Nova York.
– Negócios? – perguntou Vincent. –
Algo em relação à família Amaro? À
família Geneva? Aos Calabrese?
Corrado meneou a cabeça.
– Não, na verdade tem mais a ver com
os Antonelli.
As sobrancelhas de Vincent se
curvaram para baixo.
– Haven?
– Não há motivo para preocupação –
disse Corrado, tranquilizando o cunhado
enquanto olhava para a viela imunda,
transferindo o pacote para o outro braço.
Seus olhos se concentraram na parede de
tijolos atrás de Vincent. – Foi bem aqui.
– Sim, foi bem aqui.
Fora naquele exato lugar, mais de uma
década antes, quando o mundo de Vincent
se partiu violentamente. Ele sentia a
pressão que o assolava, as lembranças
que pesavam em sua memória. Sempre
que piscava, naquele milésimo de
segundo em que tudo ficava escuro, ele
ainda conseguia ver: a tez pálida, os
olhos sem vida, os cabelos ruivos
cobertos de sangue. Seu rosto esboçava
terror; uma horripilante máscara de
perguntas sem respostas…
Por que ela? Por que os dois? Por
que agora?
Havia coisas sobre as quais ele
pensara por vários anos, questões que
considerava ter respondido quando matou
Frankie Antonelli. Mas, de pé naquele
lugar, as perguntas ainda persistiam.
Por quê?
– É estranho, não é? – perguntou
Corrado. – A sede por vingança. É fácil
esquecer as coisas que fazemos, mas é
impossível deixar de lado o que acontece
conosco. Nunca pensamos nas famílias
deles, mas quando se trata da nossa,
jamais superamos a perda. Carregamos
isso para sempre.
– Eu penso – disse Vincent. – Sempre
considero suas famílias.
– Você pensou na família de Frankie?
Vincent hesitou.
– Não. Naquele momento pensei
apenas na minha, mas hoje eu penso.
Todos os dias.
– Isso não conta – disse Corrado. – O
único parente que resta é Haven, e eu lhe
asseguro que ela não está sofrendo por
sua “perda”.
Vincent pensou naquilo por um
momento.
– Você honestamente nunca considerou
as famílias?
– Nunca – disse Corrado, encarando-o
com firmeza. – Minha consciência está
limpa, Vincent. Não tenho
arrependimentos e não quero começar a
tê-los agora. E é por isso que, tendo Deus
como testemunha, jamais puxo o gatilho
sem ter certeza absoluta de que o mundo
se tornará um lugar melhor sem aquela
pessoa.
– Você tem sorte – disse Vincent. –
Cada vez que penso ter limpado minha
consciência, outra coisa acontece.
– Isso é porque você está se deixando
viver como um peão de xadrez.
Uma risada amarga partiu do peito de
Vincent.
– Eu estava justamente pensando sobre
o dia em que meu pai me disse para ser o
rei, não um peão. Porém ele se esqueceu
de me avisar que só poderia haver um rei.
O restante de nós, bem… Só podemos
fazer o que nos é possível.
– Essa não é a questão aqui – disse
Corrado. – Ser o rei nem sempre significa
ter a coroa na cabeça. Às vezes esse
título é apenas um artifício. Você quer o
controle? Precisa estar no comando, sem
que ninguém saiba que você o tem até que
esteja pronto para agir.
– E se a única ação que me restar for
justamente quebrar as regras?
Corrado deu de ombros e disse:
– Bem, isso depende das regras que
você quebrar e de por quem elas tenham
sido estabelecidas.
Em seguida ele acenou com a cabeça e
foi embora.
Depois que ele partiu, Vincent se
voltou de novo para a parede da
construção e passou a mão sobre os
tijolos velhos que se desfaziam sob seus
dedos.
– Eu a verei mais tarde, Maura. Ti
amo.
Vincent caminhou pela viela e desceu o
quarteirão em direção à pizzaria. John
Tarullo estava de pé do lado de fora,
varrendo o enorme tapete de boas-vindas
com uma vassoura de palha. Ele ergueu a
cabeça e fez um gesto de cumprimento.
– Doutor DeMarco, ouvi dizer que um
de seus filhos se casou hoje.
– É verdade. Dominic.
– Ouvi dizer que ele é um bom rapaz.
– Ele é – respondeu Vincent. – Meus
dois filhos são bons rapazes.
Tarullo olhou para ele desconfiado,
erguendo as sobrancelhas.
– Pelo que sei, seu filho Carmine se
tornou amigo do meu filho Remy.
– Ah… Mas isso não significa que
sejam pessoas más – disse Vincent. –
Talvez um pouco sem rumo. Eu também
era assim, e não acho que me considerava
uma pessoa má. Ou estou errado?
– Não – disse o homem imediatamente,
mas Vincent pôde ver a verdade nos
olhos dele. A resposta era sim, um sonoro
e inegável sim.
Vincent soltou uma risada e foi
embora.

Carmine tomou mais um gole de sua


bebida, esticando-se na cadeira branca de
vime enquanto ouvia seus amigos e
familiares conversando. Ele se sentiu
relaxado, quase apreciando a vida por um
momento, até que ouviu alguém pigarrear
atrás.
O rapaz ficou petrificado ao ouvir
aquilo.
– Isto é para vocês – disse Corrado,
dando a volta na mesa e entregando o
embrulho verde ao casal. Carmine se
virou para encarar seu tio, que parecia
exausto, mas bem, de modo geral. – Peço
desculpas por não ter chegado a tempo
para a cerimônia, mas tive assuntos
inesperados a tratar.
– Obrigado, tio – disse Dominic ao
pegar o presente. – É compreensível.
Corrado se foi sem sequer olhar para
Carmine. O rapaz viu quando ele se
aproximou de Celia e fez um movimento
com a mão para que ela o seguisse. Os
olhos de Corrado observaram tudo ao seu
redor e o coração de Carmine disparou
quando ouviu a voz de seu irmão.
– Pé de Valsa.
Carmine se virou tão rápido que quase
derrubou uma taça de champanhe que
estava sobre a mesa, imaginando por que
ele teria dito aquele apelido, e viu que
ele retirara um cartão do topo do
embrulho.
– Leia em voz alta – disse Tess.
Dominic suspirou.
Dom e Tess, gostaria de poder
entregar este presente pessoalmente,
mas estou enrolada aqui com várias
coisas. Tenho certeza de que Tess estava
linda em seu vestido. Talvez um dia eu
possa ver as fotos.
O noivo fez uma pausa antes de
continuar.
– Ah, ela está certa, amor. Você está
sempre bonita, mas hoje está ainda mais
bela.
Sorrindo, Tess lhe pediu que
continuasse.
É difícil acreditar que já faz tanto
tempo desde a última vez que nos
falamos. Eu estou bem e tenho estado
ocupada, mas não vou incomodá-los
com detalhes. Por favor, digam olá a
todos por mim na próxima vez que os
virem e digam que sinto falta deles.
Espero que você e Tess estejam indo bem
na faculdade.
Ele ergueu a cabeça e disse:
– Bem, Pé de Valsa diz olá e que sente
falta de todos os bundões que estão aqui.
Ela espera que ninguém esteja se ferrando
na faculdade.
Carmine esboçou um sorriso quando
seu irmão olhou novamente para o cartão.
Não sei o que se deve dar de presente
em casamentos. Alguém me disse que os
noivos costumam fazer listas de
presentes em lojas, de coisas para a
casa, mas não achei que Tess fosse
gostar de um liquidificador, então
comprei algo que ambos irão apreciar.
Sugiro que abram o pacote quando
estiverem sozinhos, mas não acho que
Tess vá ficar envergonhada de jeito
algum.
Tess arrancou o embrulho das mãos de
Dominic, rasgou o embrulho e abriu a
caixa. Ela olhou para dentro, retirou o
papel de seda que estava por cima e
começou a rir.
– Eu sabia!
– Mas quem diria, hein? Pé de Valsa é
uma pervertida! – exclamou Dominic,
pegando a caixa de volta e retirando de lá
uma peça de lingerie e chamando a
atenção de todos enquanto a balançava no
ar. Tess ficou corada quando as outras
pessoas da mesa se revezaram em pegar o
conteúdo e atirá-lo de volta na caixa. Ela
rapidamente a pegou de volta.
– Você é tão idiota às vezes – ela
resmungou, saindo apressada da mesa.
Dia se desculpou e foi atrás da irmã.
– Bem, parece que Haven estava
errada – disse Dominic. – Tess ficou
envergonhada.
– Nunca imaginei que fosse possível –
disse Carmine.
– Nem eu. Aliás, eu enviaria um
bilhete de agradecimento, mas ela não
deixou nenhum endereço.
Não havia nada, Carmine percebeu.
Nenhuma indicação de onde ela estava
morando.
Dominic se levantou para ir atrás da
esposa e Carmine ficou sentado ali por
um momento, terminando sua bebida
sozinho enquanto a realidade voltava a
assediá-lo, arruinando aquele breve
momento de felicidade. Ele então saiu do
salão, sem se importar em se despedir de
ninguém, e optou pelo trajeto mais longo
rumo à sua casa. Caminhou pela rua até
lá, diminuindo o passo ao ver o pai
sentado no primeiro degrau. O jovem
franziu o cenho ao se aproximar, vendo
um cigarro aceso nos dedos do pai.
– Quando foi que começou a fumar?
Vincent deu de ombros, livrando-se
das cinzas sobre o concreto.
– E quando foi que você começou? –
retrucou o pai, apontando para velhas
bitucas de cigarro espalhadas pelo
jardim.
– Não são minhas – respondeu. – A
maioria delas, pelo menos. Remy fuma.
– Ah – Vincent puxou um maço de
cigarros e ofereceu um a Carmine,
juntamente a um isqueiro.
O rapaz acendeu um cigarro e deu uma
tragada enquanto olhava para o pai.
– Não faz muito sentido estar aqui
fumando com você, um médico.
– Já não sou mais um médico – ele
disse, com um sorriso amargo. – Não é
uma boa ideia manter no quadro
hospitalar um suspeito que integra La
Cosa Nostra, e ainda por cima segurando
bisturis.
Carmine se sentiu mal por ter trazido
aquele assunto à tona.
– Sinto muito.
Vincent ergueu as sobrancelhas.
– Você por acaso acabou de me pedir
desculpas?
– Talvez.
Vincent sorriu.
– É, também sinto muito. Mas isso não
importa, pelo menos não mais. As coisas
são como têm de ser.
– Não é possível ser reintegrado
depois do julgamento? Voltar a praticar
medicina?
DeMarco olhou incrédulo para
Carmine, sem sequer considerar a
pergunta.
– Na verdade eu comecei a fumar
depois que sua mãe morreu. E também
passei a beber. E beber muito. Essa foi a
principal razão para não conseguir
encarar meus filhos por quase um ano.
Sei que você se culpava e era difícil
olhar para você, mas também não queria
que você me visse.
– E o que mudou? – perguntou Carmine
com cautela. Aquilo era algo que sempre
quisera saber, mas se mantivera
concentrado demais em si mesmo para
questionar. – O que fez com que você se
reerguesse?
Vincent deu uma longa tragada e
respondeu:
– Eu tentei matar Haven.
Aquela resposta fez com que Carmine
sufocasse com a fumaça do próprio
cigarro.
– O quê?
– Na noite em que dei fim nos
Antonelli, eu também tentei matá-la.
Minha arma falhou e ela continuou
dormindo como se nada estivesse
acontecendo. Mas naquela noite percebi
que sua mãe teria ficado enojada. Não
estaria respeitando a memória dela,
tampouco fazendo justiça. Então tentei me
refazer antes que mais alguém saísse
ferido.
Carmine atirou o cigarro no chão e
pisou sobre ele. Ele não tinha certeza se
fora a fumaça ou a admissão de seu pai,
mas, repentinamente, seu peito começou a
doer. Levando a mão ao bolso, o jovem
pegou seu frasco de bebida e tomou um
gole, tentando aplacar o sofrimento.
Vincent o observou com curiosidade, até
que Carmine ofereceu a bebida para ele.
DeMarco hesitou, mas logo atirou o
cigarro no chão e pegou o frasco. Ele fez
uma careta ao sentir o líquido queimar
sua garganta, o que não o impediu de
tomar um segundo gole.
– Eu falhei muito com você. Mantive
segredos quando mais deveria ter sido
honesto, e agora tudo o que me resta é lhe
contar a verdade – disse Vincent em voz
baixa. Ele parecia em frangalhos,
derrotado. – Lembro-me do rosto de cada
pessoa que matei. Eu as vejo onde quer
que eu vá. Sei que não estão lá, mas a
lembrança de seus últimos momentos de
vida permanece viva dentro de mim. O
medo, o ódio, o coração partido; tudo
isso me persegue de maneira constante.
Também me lembro do rosto de sua mãe
na noite em que a encontrei morta na
viela.
– Também me lembro – disse Carmine.
– Eu me lembro dos gritos.
Vincent olhou para o filho com atenção
e percebeu que havia apreensão nos olhos
dele.
O garoto nunca conversara com o pai
sobre aquela noite. As lembranças eram
dolorosas demais para serem
verbalizadas. A única pessoa com quem
discutira aquilo fora Haven, mas estar ali
com o pai e encarar a expressão de
angústia em seu rosto parecia necessário.
Soltando um suspiro, Carmine fechou
os olhos e se sentou ao lado do pai no
degrau, passando as mãos nos cabelos de
um jeito nervoso enquanto se recordava
de todos os detalhes do que acontecera
naquela noite fatídica. Desde o momento
em que saíram do recital de piano até o
hospital, cada átimo de dor apareceu em
suas palavras.
– Mas não consigo me lembrar de
como eles eram – disse o jovem. – Tentei
imaginar os criminosos centenas de
vezes, mas as imagens são turvas. O
homem com a arma, não acho que ele
jamais tenha olhado para mim; o outro,
seu rosto parece sempre distorcido.
– Eles disseram alguma coisa?
– “Cale a boca dela! Rápido!” Só isso.
Vincent ficou em silêncio enquanto
assimilava tudo aquilo com a cabeça
abaixada.
– Você quase morreu com a perda de
sangue. Eu estava com tanta raiva dela
naquela noite e, durante todo o tempo em
que a segurava morta, você estava caído
atrás daquela lata de lixo.
– Não foi sua culpa – disse Carmine. –
Os únicos culpados são os filhos da puta
que empunhavam as armas naquela noite,
naquela viela.
Vincent limpou a garganta.
– Acho que está certo. Às vezes eu me
pergunto se poderia ter interrompido tudo
aquilo.
– Bem, a mamãe certamente lhe diria
que isso era conversa fiada, pura merda –
retrucou Carmine, recebendo um olhar
divertido do pai. – Bem, talvez ela não
dissesse com essas palavras, mas sabe o
que quero dizer. Como você mesmo falou
há pouco, as coisas são como devem ser.
Digo, ao longo desse último ano fiquei
imaginando com frequência se
poderíamos ter salvado Haven de um
jeito diferente, para que agora eu pudesse
estar com ela onde quer que ela esteja…
– Nova York – disse Vincent,
interrompendo o filho.
Carmine o olhou com curiosidade.
– Nova York?
– Não sei exatamente onde, mas ela
está em algum lugar de Nova York.
Um sorriso surgiu no canto dos lábios
do rapaz. Então ela foi para Nova York,
como eles haviam falado.
– O ponto é que eu aprendi que não faz
sentido ficar pensando. Eu fiz o que fiz,
você fez o que fez e nós estamos onde
estamos. Temos de fazer o que é preciso e
pronto.
– Sabe, você tenta mascarar com a
bebida e com os palavrões, mas o fato é
que você cresceu muito nesse último ano.
– Ah, tá. Bem, eu não acho que
Corrado concorde com você nesse ponto
– disse Carmine. – Ele me ameaça pelo
menos uma vez por semana. Só estou
esperando o dia em que ele tenha uma
laringite e não consiga dizer “eu vou te
matar” e então apenas o faça.
Vincent deu risada, acenando a cabeça.
– Ele já ameaçou me matar também. Eu
também já ameacei matar muita gente,
como a própria Haven. É assim que
somos ensinados a controlar as pessoas, e
isso se torna natural. A maioria dos
homens com quem lidamos não teme
nada, exceto a morte.
– Sabe, é horrível a maneira fria e
impassível como fala sobre matar a
mulher que eu amo.
– Você ainda a ama? – ele perguntou,
curioso.
Carmine acenou com a cabeça.
– Acho que a amarei para sempre.
Apesar de toda essa merda, ela sempre
será meu beija-flor.
– Beija-flor – Vincent repetiu. – Por
que a chama desse jeito?
– Sei lá. Eu a chamei assim um dia e o
apelido simplesmente pegou.
– Sua mãe teria adorado esse apelido –
Vincent sorriu para si mesmo. – Não
tenho visto nenhum já faz tempo, mas no
verão eles invadiam as árvores no
jardim. Maura amava aqueles pássaros, o
modo como conseguiam pairar no ar e
voar para trás, sem nunca se cansarem.
Ela tinha certeza de que a alma das
pessoas puras e inocentes vivia dentro
deles, e era por isso que eles desafiavam
a natureza.
Antes que Carmine pudesse respondeu
seu celular tocou. Ele ficou tenso quando
viu a mensagem familiar:

DOCAS, TERCEIRA COM WILSON.

Carmine enfiou o telefone no bolso e


disse:
– Acho que tenho que ir.
Vincent acenou com a cabeça e
acendeu outro cigarro, sem se mostrar
surpreso, e não fez nenhum movimento
para se levantar do degrau.
– Quer entrar? – Carmine perguntou. –
Ainda é sua casa.
– Não, vou apenas ficar por aqui mais
uns minutos e então irei embora.
– Tudo bem – disse Carmine,
afastando-se do pai. – Te vejo depois.
– Carmine? – chamou Vincent.
Carmine se virou e viu a expressão
séria no rosto do pai.
– Sim?
– Eu te amo, meu filho – ele disse em
voz baixa, dando mais uma tragada. –
Acho que não lhe digo desde que você
tinha oito anos, mas eu amo você.
– Eu também te amo – Carmine
respondeu. As palavras do pai o levaram
ao limite. – Olha, vê se não vai fazer
nada estúpido, ok?
Vincent riu.
– Não farei nada que você mesmo não
faria.
– Ah, bem, é isso o que me preocupa,
porque eu faço muita merda.
– Vá! – disse Vincent, acenando com a
mão. – Sabe que não deve se atrasar
quando é chamado. Não se preocupe
comigo.
– Você é quem manda – respondeu
Carmine em voz baixa, dirigindo-se para
o carro. – Até mais, pai.
– Até mais, filho.
Capítulo 23
Era uma tarde de domingo e Carmine
estava parado de pé nas docas. Um par de
óculos escuros protegia seus olhos do sol
forte. Ele hesitou por algum tempo,
imaginando se aquele seria o lugar certo,
mas as palavras “The Federica” no casco
do barco que estava bem à sua frente não
deixavam qualquer dúvida de que aquele
era o ponto de encontro.
Cinco minutos se passaram, talvez dez,
enquanto ele apenas olhava para o barco
em silêncio, sem querer se aproximar. O
álcool da noite anterior ainda corria por
suas veias e a sensação remanescente de
Molly também estava presente. A
bebedeira havia passado e uma dor de
cabeça já se pronunciava. Ele ficara de
pé até quase o nascer do sol, divertindo-
se com Remy e os outros caras de sua
equipe. De fato, ele acabara de cair na
cama quando Sal ligou para ele, dizendo-
lhe para que o encontrasse exatamente à
uma da tarde.
Negócios? Assunto pessoal? Carmine
não fazia ideia. Mas o que ele sabia era
que não estava interessado em estar ali,
qualquer que fosse o motivo.
Um carro estacionou atrás do rapaz, no
gramado ao lado da Mercedes de
Carmine. Ele se virou e viu o tio sair do
veículo e caminhar em sua direção.
Corrado estava usando uma camiseta
branca com decote em V, calças na cor
cáqui e um par de mocassim bege.
Carmine baixou as sobrancelhas ao olhar
para os pés do tio.
– Algo errado? – perguntou Corrado,
aproximando-se dele na doca.
– Não – ele disse, acenando a cabeça.
– É que nunca o vi vestido assim, de um
jeito tão casual.
– É domingo – ele respondeu, dando de
ombros como se aquela fosse uma boa
explicação. – Celia vai passar a tarde
com a mãe, então pensei em me reunir
com Sal.
– Tá – retrucou o rapaz, voltando a
olhar para o barco. – De qualquer modo,
o que estamos fazendo aqui?
Corrado não respondeu. Em vez disso,
caminhou em direção ao barco e se
sentou numa cadeira de vinil. Carmine
permaneceu imóvel por um instante, antes
de se juntar ao tio, caminhando de um
jeito trêmulo rumo ao deque de madeira
encerado. Ele se segurou firme nas
cordas para se estabilizar, pois o barco
estava balançando. O jovem estava
prestes a se sentar ao lado do tio quando
Salvatore saiu de dentro da cabine,
vestido de maneira ainda mais casual que
o próprio Corrado. Pernas peludas
apareciam abaixo da bermuda xadrez e
ele vestia uma camiseta branca sem
mangas que mal cabia em sua barriga
avantajada. Pelo menos uma vez Carmine
se sentiu adequado vestindo jeans e
camiseta.
– Principe! – disse Sal, com
entusiasmo e desviando os olhos de
Carmine para Corrado. – Corrado! Fico
feliz que tenha conseguido se juntar a nós!
Estamos apenas esperando mais uma
pessoa.
Carmine o olhou ansioso.
– Quem?
Sal acenou com a cabeça em direção à
doca quando um sedã preto estacionou.
Um frio percorreu o corpo de Carmine.
Ver aquele homem saindo do carro o fez
sentir como se suas veias estivessem
cheias de gelo. A cicatriz no rosto do
sujeito brilhava ao sol, como um aviso
claro e sinistro de que o perigo estava à
espreita.
A dor de cabeça de Carmine se tornou
ainda mais forte. A intensa vibração o
cegava e ele cerrava os dentes para evitar
dizer qualquer coisa. Em vez de reagir,
ele se forçou a se sentar ao lado do tio.
Carlo entrou no barco com um andar
determinado e uma aura de prepotência.
Aquilo ficava evidente em cada passada,
em seu sorriso e em sua postura; o sujeito
se achava invencível.
– Espero não estar atrasado – disse
Carlo.
Carmine olhou para o relógio: 13h13.
Tecnicamente, todos estavam atrasados.
– Não, de jeito nenhum – respondeu
Sal, sorrindo e dando um tapinha nas
costas de Carlo. – É bom revê-lo.
Um minuto depois o barco deixou a
doca e navegou até um lugar ermo onde
não havia nada além das tranquilas e
escuras águas do Lago Michigan, que os
cercavam por todos os lados. Carmine
permaneceu tenso. Todos os músculos de
seu corpo estavam rígidos enquanto os
homens preparavam seus equipamentos
de pesca e atiravam os anzóis na água.
Eles estavam relaxados, riam e bebiam
seus drinques.
– Então, temos um probleminha – disse
Salvatore, enfim. Naquele momento, sua
indiferença se transformou em seriedade.
– Temos outro traidor entre nós com o
qual precisamos lidar. Ele não deve estar
preparado e, nesse ponto, ele confiará em
poucos. Compreendem a gravidade da
situação?
– É claro – respondeu Corrado, de
imediato. – Os ratos precisam ser
eliminados.
Salvatore se virou para Carmine e
ergueu as sobrancelhas como se
questionasse a opinião dele. O rapaz
assentiu, embora não tivesse certeza do
porquê ele estivesse lhe perguntando.
Afinal, seu trabalho era apenas
concordar.
– Sim, senhor.
– Que bom que pensa assim –
respondeu Sal, pegando um charuto e
cortando a ponta –, porque preciso que
Vincent seja apagado o mais rápido
possível.
Carmine ficou petrificado e seu
coração parou de bater por um segundo.
Vincent? Não podia ser. Ele não podia
estar se referindo ao pai dele.
– É um infortúnio, mas temos fontes
que nos alertam para o fato de ele estar
dando informações aos federais –
continuou Sal, acendendo o charuto,
saboreando-o e soltando a fumaça. – O
pai dele, Antonio, que Deus proteja sua
alma, foi um dos maiores chefes da
história da organização. A traição de
Vincent é algo que eu jamais iria sugerir
se não tivesse certeza absoluta.
Salvatore fez uma pausa e olhou para
Corrado. Carmine segurou a respiração,
esperando que seu tio defendesse Vincent,
que ele convencesse Salvatore de que não
havia nenhuma lógica naquilo. Vincent
DeMarco jamais trairia a famiglia. No
entanto, no momento em que Corrado
abriu a boca as esperanças do rapaz se
desintegraram.
– Eu cuidarei disso.
– Ele irá esperar por isso – disse
Salvatore. – Ele sabe que você é o
melhor.
Corrado começou a responder, mas
outra voz o silenciou:
– E quanto ao garoto? – perguntou
Carlo. – Por que não ele?
– Eu? – perguntou Carmine incrédulo.
– Eu não posso…
– Não pode? – questionou Sal, com os
olhos enegrecidos. – Está se recusando?
– Com todo o respeito, senhor, Vincent é
muito experiente – disse Corrado. – E
Carmine ainda é um amador.
– É verdade, mas não atiraria no
próprio filho, especialmente num que se
parece tanto com a esposa. Seria como se
Maura morresse de novo. Não, Carlo está
correto, Carmine é a pessoa perfeita para
o trabalho.
Carmine encarou aqueles homens em
estado de choque, sem saber de que modo
reagir. O fato de Salvatore pensar em
utilizar a memória da mãe dele como uma
vantagem em seu jogo violento o deixava
enojado. Não podia ser verdade que ele
tivesse acabado de receber ordens para
matar o próprio pai. Aquilo era
impensável.
– Eu devo matar meu próprio pai?
– Um traidor, Carmine – disse
Salvatore com a voa afiada. – As ordens
são para eliminar uma ameaça. De
qualquer modo, já está na hora de você
provar sua lealdade. Aliás, você já devia
tê-lo feito há muito tempo, mas não quis
pressioná-lo pelo fato de você ser quem
é. Na verdade, já tolerei muita coisa que
não deveria por conta de seu sobrenome,
mas de agora em diante as coisas serão
diferentes. Seu avô deve estar se
revirando no caixão neste momento.
– Com certeza – afirmou Corrado. –
Antonio jamais teria aceitado isso.
– Então faça o que é esperado de você
– prosseguiu Salvatore. – Resgate o
respeito que sua linhagem merece.
– Mas…
Salvatore olhou para Carmine com
fúria nos olhos e o fez se calar de
maneira abrupta. O clima mais uma vez
ganhou um ar tranquilo, enquanto Sal
tragava seu charuto e voltava a cuidar de
seu equipamento de pesca.
Duas horas depois o barco chegou
novamente à doca e Carmine foi o
primeiro a sair. Ele seguiu em direção ao
carro, ainda em estado dormente, e ouviu
Corrado segui-lo, mas não se virou. Com
o sangue fervendo, ele continuou a andar,
mas o tio o agarrou pelo braço.
– Me solta – gritou, afastando-se de
Corrado.
– Relaxe – disse o tio. – Você se saiu
bem.
Carmine riu de um jeito amargo.
– Você está me pedindo para relaxar?
Talvez você consiga matar sua própria
família sem nenhum remorso, mas eu não
sou capaz de fazê-lo! Como você pôde
concordar com ele? Achei que
conhecesse meu pai melhor que isso!
– É óbvio que conheço seu pai melhor
que você – ele retrucou. – Você é muito
ingênuo se acredita que ele não sabia que
isso iria acontecer.
– Está me dizendo que ele planejou
tudo isso? Em que mundo nojento você
vive?
– No mesmo em que você vive –
respondeu Corrado com calma, pegando
o telefone no bolso. – Mas isso não faz
diferença, porque você não irá matar
ninguém, Carmine.
– Isso é novidade para mim,
considerando que acabei de receber
exatamente essa ordem. O que esperam
de mim?
– Eu espero que volte para casa.
Corrado então se virou e entrou em seu
carro, deixando o lugar sem dizer mais
nenhuma palavra. Carmine seguiu para
casa, estacionando na garagem poucos
minutos depois. A casa estava aquecida.
O ar-condicionado ainda estava
quebrado. O jovem pegou uma garrafa de
Grey Goose do congelador antes de
caminhar até a sala, atirando-se no sofá e
chutando os sapatos para longe.
O tempo passou e ele continuou
sentado ali, olhando para o chão. Sua
mente estava exausta enquanto ele tentava
esquecer tudo aquilo com o álcool. A
bebida fluía pelo sangue, mas era incapaz
de extinguir a dor em seu coração.
Na melhor das hipóteses, pensou
Carmine, seu pai desapareceria e ele
jamais o veria outra vez. Na pior, ele
acabaria morto e, provavelmente, pelas
mãos do próprio filho. Violência, caos,
derramamento de sangue, destruição
completa. Ele imaginava se haveria ainda
alguma maneira de evitar tudo aquilo.
Mais tarde ele ainda se mantinha
sentado no sofá, segurando os cabelos e
com a garrafa de vodca vazia aos pés.
Incrivelmente, ainda estava lúcido.
Sequer se aproximara de beber o
suficiente para desmaiar. Ele se levantou
dali quando o sol se pôs. A casa estava
um pouco mais fresca e escura. O
assoalho frio era uma boa sensação sob
os pés enquanto ele caminhava até a
cozinha. Sua cabeça estava explodindo e
ele procurou mais bebida nos armários.
Ficou ainda mais furioso ao não encontrar
nenhuma garrafa e fechou com toda a
força as portas que permaneciam abertas.
Em seguida, ele pegou o telefone e
deslizou o dedo na tela em busca de um
nome. Remy.
– Alô? – respondeu Remy no primeiro
toque. – E aí, cara, o que tá rolando?
– Preciso de Molly.
Remy soltou uma gargalhada e disse:
– Chego aí rapidinho, cara.

Molly acabaria se transformando numa


companheira para as noites de Carmine.
A droga o fazia se sentir vivo de novo,
preenchendo aquele vazio dentro de seu
peito, mas se revelava uma bênção e uma
maldição. Ela lhe proporcionava
condições para se concentrar, algo pelo
qual esperar, mas, enquanto isso, o
arrastava cada vez mais para a escuridão.
Quando o garoto estava alterado, ele não
podia se sentir mais fora da realidade;
porém, quando o efeito da droga acabava,
ele se via cada vez mais fundo no poço.
A depressão tomou conta dele. Sua
cabeça era bombardeada por
pensamentos suicidas. Imprudente e
instável, ele já não conseguia pensar
direito nem agir normalmente.
Ele se tornou obcecado pela sensação,
tentando vivenciá-la com cada vez mais
frequência na tentativa de retardar o
inevitável término do efeito. Chegou a um
ponto em que estava constantemente
drogado; em sua busca por sentir alguma
coisa, o mundo ao seu redor desabou.
Sua queda em espiral acontecia de
maneira abrupta, como se despencasse de
uma altura de doze andares e caísse
direto no concreto.

O evento Novak Gala, que ocorria


duas vezes ao ano numa galeria ao norte
de Chelsea, sempre atraía os grandes
amantes das artes. Centenas de pessoas se
reuniam para celebrar artistas locais,
desde os profissionais da área até os
novos talentos pós-graduados que
floresciam nas escolas da região.
Peças eram leiloadas e o dinheiro
arrecadado era usado para sustentar
programas de arte em escolas públicas
menos privilegiadas. A mídia sempre
prestigiava essas ocasiões e mencionava
os talentos em ascensão. Aquela era uma
data bastante esperada pela comunidade,
mas provavelmente ainda mais ansiada
pelos alunos da SVA – School of Visual
Arts.
Afinal, em cada evento, alguns alunos
sortudos ganhavam a oportunidade de
mudar suas vidas: a chance de expor seus
trabalhos. Os estudantes recebiam um
tema e tinham de submeter uma única
peça de arte para ser avaliada pela
administração. A competição era
duríssima: dos três mil inscritos, apenas
vinte eram escolhidos. A probabilidade
de ser um dos escolhidos era de menos de
um por cento, o que não impedia os
alunos de se aplicarem ao máximo.
Novembro acabava com rapidez e com
o passar das semanas se aproximava a
data limite para a entrega das obras ao
comitê avaliador. O tema para aquele
evento específico era “Frieza” e Haven
se manteve ocupada, criando vários
cenários de paisagens brancas, nevascas
e chuvas congelantes, antes de se decidir
pela pintura de um campo sendo coberto
pela neve que caía. Era algo simples, mas
muito bonito. O branco se misturava ao
verde desbotado. Ela passou o feriado de
Ação de Graças fechada em seu
apartamento, bem aquecida pelo grande
radiador de metal, dando os últimos
retoques em sua obra enquanto comia seu
jantar direto da caixinha entregue pelo
restaurante chinês. Ela estava tão
concentrada e determinada em terminar
seu trabalho que quase nem percebeu que
se tratava de uma data especial.

Quando a escola reabriu na segunda-


feira após o feriado, Haven entregou à
senhorita Michaels, sua professora de
Pintura Básica, o projeto já terminado.
Ela o olhou por um momento e acenou
com a cabeça.
– Eu o entregarei ao comitê esta tarde.
– Obrigada – disse Haven, sorrindo
orgulhosa ao olhar pela última vez para
seu trabalho. Ela não conseguia ver
nenhuma falha, tudo parecia preciso;
várias técnicas de arte ensinadas foram
incorporadas ao quadro. Ela não podia
imaginar o que mais eles poderiam
querer.
– De nada, querida.
A jovem correu para casa depois da
aula naquela manhã, enfiada num casaco
grosso, e se deparou com Kelsey saindo
às pressas do prédio. Haven ficou
surpresa e franziu as sobrancelhas. Ela
não tinha nenhuma aula matutina agendada
justamente para não ter que acordar cedo.
– Estou indo aos estúdios – disse
Kelsey antes mesmo que Haven tivesse a
chance de lhe perguntar. – Esqueci do
prazo de entrega e nem comecei meu
projeto!
Haven olhou para a amiga em choque,
piscando algumas vezes.
– Ah, boa sorte, então.
Kelsey respondeu com um meio sorriso
antes de correr rua a baixo.

Duas semanas depois, quando a aula


terminou, a senhorita Michaels entregou a
cada aluno um envelope. Na sala, o
burburinho começou, junto ao som de
papel sendo rasgado, amassado e, por
fim, atirado no lixo no caminho até a
porta.
Eram notificações de que aquelas
obras não haviam sido aceitas. Haven
ficou nervosa ao ver aquilo. Com
cuidado, ela abriu seu envelope e leu o
que estava escrito na carta.

Apreciamos seu esforço…


A competição foi dura…
Tem muito talento…
Receamos informar que…
Desejamos melhor sorte da próxima
vez…

Haven lentamente absorveu o conteúdo


e ficou desapontada ao ler a última frase.

Sua obra obteve o 348º lugar.


Bem longe dos vinte melhores.
– Você está bem, querida?
Haven olhou para a professora
enquanto dobrava a carta e a enfiava de
volta no envelope.
– Não compreendo o que havia de
errado com o meu quadro.
– Tecnicamente falando, absolutamente
nada – disse a senhorita Michaels –
Apenas não era o que estavam buscando.
– Por quê?
– Veja, você encarou o projeto de
modo literal e, embora não haja nada de
errado, isso fez com que ele não
apresentasse o que estavam buscando.
– E o que seria isso?
– Alma – ela respondeu. – Era
possível olhar para sua pintura e ver o
frio, mas não era possível senti-lo. E é
isso o que importa. Seus quadros devem
ser capazes de fazer com que as pessoas
sintam algo ao olhar para eles, mesmo
que não façam ideia do motivo.
Capítulo 24
O tempo é algo peculiar. Um momento
pode parecer uma eternidade, enquanto
meses podem passar num piscar de olhos.
É algo em que não se pode confiar e é
instável, mas, da mesma forma, é o que há
de mais constante no universo. Tempo.
Independentemente do que você faça, não
se pode pará-lo. Os ponteiros do relógio
continuarão a se mover e os minutos se
transformarão em horas, e as horas em
dias, até que, de repente, você percebe
que um ano inteiro já se passou.
Era Natal. Doze meses haviam
transcorrido desde que Carmine deixara
sua casa em Durante. Fora um ano
marcado por violência e incertezas, em
que a dúvida pairava com frequência em
sua cabeça, como uma nuvem teimosa que
insistia em não se dissipar.
E o tempo estava marcado em seu
rosto; sua expressão estava mais dura,
sua pele mais grossa e seus olhos mais
frios, inamistosos e reservados. Porém,
na mente de Carmine era difícil imaginar
que estivera longe de sua antiga casa por
tanto tempo. Era como se ele tivesse visto
Haven no dia anterior, como se tivesse
escutado sua voz ou ouvido sua risada
apenas um segundo atrás, como se ele
tivesse acabado de beijá-la e de fazer
amor com ela. O tempo que passou
representava apenas um átimo nebuloso
para o jovem; um piscar de olhos, uma
batida do coração, mas o cansaço em
seus ossos revelava a verdade.
Ele conseguira sobreviver um ano
longe de Haven… O primeiro, ele
pensou, de toda uma existência que teria
pela frente.
Embora agora já fosse um homem e já
tivesse visto coisas que ninguém merecia
ver e cometido atos que nenhum ser
humano deveria cometer, lá no fundo
ainda residia um garoto. Um garoto que
se esquivava de sua família, evitava
prestar contas de seus atos e preferia
viver num mundo próprio e ilusório. Um
mundo em que, de algum modo, ele
acreditasse que poderia sim sobrepujar o
tempo, que sua vida não era controlada
por um relógio cujos ponteiros andavam
para trás e faziam uma espécie de
contagem regressiva das horas que ele
ainda teria na Terra.
Afinal, com a vida que ele levava, não
iria demorar muito para que a morte o
encontrasse. E aquele momento só se
aproximava a cada toque do seu celular.

SYCAMORE CIRCLE

Carmine olhou para a mensagem


enquanto descia descalço a escada de sua
casa bagunçada, bebendo vodca
diretamente da garrafa já pela metade.
Soltando um suspiro, colocou sua bebida
no balcão da cozinha antes de ligar para
Remy, batendo o pé com impaciência
enquanto o telefone tocava e tocava, sem
resposta.
Tentou ligar duas vezes mais antes de
vestir um casaco e calçar os sapatos.
Carmine precisava saber se o rapaz
precisava de uma carona, mas todas as
tentativas alcançaram a caixa postal.
O céu estava escuro. Não havia uma
estrela sequer naquela noite. A única
claridade vinha da neve do piso
congelado. Até aquele momento o inverno
fora peculiar e só tinham ocorrido alguns
dias de gelo e neve pesada. E aquilo era
uma das poucas bênçãos que Carmine
registrava em sua vida naqueles tempos.
Porém, de algum modo, ele podia sentir
que uma tempestade se aproximava. As
pontas dos seus dedos latejavam e seu
nariz ficou dormente assim que saiu da
casa e se deparou com o ar frio.
Encolhendo-se, vestiu um par de luvas
pretas e ergueu o capuz do casaco,
entrando no carro e ligando o aquecedor
antes de partir para a casa de Remy.
Não havia sinal do amigo na casa. As
luzes estavam apagadas e não havia
nenhum carro na garagem. Outra chamada
perdida, então Carmine se dirigiu ao
ponto de encontro, imaginando que o
encontraria lá. Dois outros carros se
escondiam sob as sombras do prédio
abandonado. Eles estavam estacionados
bem perto de onde os caminhões estavam
parados, mas nenhum deles era o velho
carro de Remy.
Ele tentou ligar mais uma vez, mas sem
sucesso.
Os homens estavam parados no local,
observando e esperando, mas não havia
nenhuma movimentação, assim como da
última vez. Os caminhões estavam ali,
prontos para serem roubados.
Ou pelo menos era isso que parecia.
Eles se reuniram e prosseguiram com a
mesma rotina, quebrando cadeados e
passando pelos portões, aproximando-se
dos caminhões. Aquele era um
procedimento metódico e rotineiro, fácil
e rápido, até que, de repente, já não era
mais.
Carmine abriu o baú de um caminhão
esperando encontrar armas, mas em vez
disso não encontrou nada. Absolutamente
nada. Seu coração saltou à garganta; sua
visão ficou turva e ele sentiu uma tontura.
Algo estava errado. Algo estava
terrivelmente errado.
Um único tiro foi disparado no escuro
da noite, confirmando seus piores
temores. Ele se virou com rapidez, com o
sangue fluindo intensamente pelas veias e
viu quando um dos rapazes de sua equipe
caiu no chão, soltando um grito
horripilante, tão alto e avassalador que
reverberou por todos no local.
– Homem ferido! – alguém gritou. –
Caralho! Homem ferido!
Antes mesmo que Carmine pudesse
pensar ou reagir, as sombras se moveram
e pessoas começaram a surgir de todos os
lados. Ele pegou sua arma e começou a
atirar de volta, mas não conseguia ver
nada na escuridão. Uma bala passou
zunindo por sua cabeça e ele logo sentiu a
dor no rosto. Ela o atingira de raspão na
face. Soltou um palavrão e correu,
atirando para trás. Carmine escorregou no
piso coberto de neve e perdeu o
equilíbrio, mas conseguiu se levantar
antes que outra bala quase o atingisse.
Entrou correndo no carro e saiu
voando do lugar. Suas mãos tremiam e
seu estômago revirava. Dessa vez os
homens estavam esperando por eles.
Todos ali, prontos, esperando nas
sombras, prontos para atacar em vez de
se defender.
Enquanto dirigia pela cidade,
ziguezagueando em meio ao tráfego, tudo
o que ele poderia pensar é que fora pego
em uma armadilha. Alguém havia avisado
sobre o furto.
Um filete de sangue escorreu de seu
rosto. Ele tirou o capuz da cabeça e
passou a mão trêmula pelos cabelos
desarrumados. Carmine estava
aterrorizado. O medo substituiu o tédio
em que sua vida se transformara. Ele
estava tão acostumado a não sentir nada
por conta de toda a bebida e de todas as
drogas que engolia e cheirava que a
emoção que o atingiu parecia
insuportável. Aquilo tudo era real e seu
coração batia violentamente.
Teria sido Sal? Será que ele o queria
morto?
Desorientado, acelerou pelas ruas e foi
direto ao clube em busca de Corrado.
Passou pelo segurança da frente e foi
para os fundos, pelo corredor estreito. Ao
chegar à porta, ele percebeu que a música
estava muita alta; hip-hop tocava nos
alto-falantes. Aquele era o primeiro sinal
de que o tio não estava ali. Mesmo assim
ele deixou de lado aquele pensamento e
bateu à porta em desespero.
– Ei – disse um guarda de segurança
que o seguira desde a entrada. – Está
procurando por Moretti?
– Sim.
– Ele saiu por um instante, mas não
deve demorar. Pode beber alguma coisa
se quiser – disse o homem.
Frustrado, Carmine voltou ao clube,
pegando uma toalha no bar para estancar
o sangramento no rosto. Olhando ao
redor, ele ficou ainda mais nervoso ao
localizar Remy, sentado numa mesa
lateral, cercado de garotas. Confusão e
ódio tomaram conta de Carmine.
– Onde diabos você se enfiou? – gritou
Carmine, aproximando-se da mesa.
Remy olhou para ele e arregalou os
olhos.
– Merda, cara, o que foi que aconteceu
com você?
– O que aconteceu? – retrucou Carmine
com um riso amargo, retirando a toalha
do rosto ensopada de sangue e ficando
ainda mais zonzo ao ver aquilo. – O que
aconteceu foi que tivemos uma bosta de
trabalho essa noite e você não estava lá!
Remy se ajeitou rapidamente na
cadeira e pegou o telefone.
– Merda, merda, merda – ele repetiu,
rolando a barra do celular e vendo as
mensagens e ligações perdidas. – Não
ouvi meu telefone, cara, eu juro.
Carmine pegou a cadeira que estava
mais próxima e a puxou, quase atirando
ao chão a moça que estava sentada nela.
Ela deu um pulo e Carmine se sentou.
– É, bem, foi uma emboscada, de
qualquer modo.
– Não é possível! – disse Remy,
meneando a cabeça sem acreditar. – Nas
docas?
– Sycamore Circle. Caralho – Carmine
meneou a cabeça. – É, caralho é a
palavra certa.
– Olha, cara, tome uma bebida ao algo
assim – disse Remy, colocando-se em pé.
– Vou ver o que aconteceu com os outros.
– Passe a sua bebida – disse Carmine,
pegando seu braço antes que ele saísse. –
Eu preciso… Merda, eu preciso de
alguma coisa.
Enfiando a mão no bolso, Remy pegou
um pequeno saquinho de pó.
– É melhor ir com calma. Não é o que
você está acostumado a usar.
Carmine o ignorou logo que saiu.
Colocou um pouco de pó sobre a mesa e
o inalou, repetindo a ação várias vezes,
sem o menor cuidado, sem a menor
prudência. Ele precisava sentir a
excitação… Precisava aplacar o medo.
Recostando-se na cadeira, esperou que
a droga fizesse efeito. Depois de dois ou
três minutos, a euforia tomou conta dele
de maneira intensa e ofuscante. Ele curtiu
a sensação, soltando um suspiro de alívio
e esperando que o efeito se dissipasse,
mas isso não aconteceu. Aquilo cresceu e
se tornou cada vez maior dentro dele,
apoderando-se de cada célula de seu
corpo, até que não houvesse mais por
onde se espalhar. Finalmente a droga
alcançou seu coração acelerado,
diminuindo os batimentos tão rápido que
eles quase cessaram.
Ele não conseguia respirar. Todo seu
corpo foi envolvido por uma sensação de
paz. Não havia mais medo, ansiedade;
não havia nada.
Aquilo foi demais para ele, rápido
demais, intenso demais. A queimação no
rosto foi substituída por agulhadas. Suas
pálpebras estavam se fechando tão rápido
que ele se sentia prestes a perder a
consciência.
– Merda – sussurrou, deslizando as
mãos pelo rosto na tentativa de se manter
acordado e espalhando o sangue em seu
rosto.
De repente, a música parou. A
atmosfera do ambiente se transformou em
escuridão. Aquela sensação
desesperadora o consumiu por completo,
até que uma voz familiar a distância
interrompeu o silêncio, chamando seu
nome:
– Carmine!
O garoto olhou na direção de quem o
chamava, lutando para manter os olhos
abertos, e viu Corrado aproximar-se com
rapidez. Tudo parecia acontecer em
câmera lenta. Era como se tudo se
movesse conforme o piscar constante de
luzes.
– Mantenha-se acordado, criança –
disse Corrado, com a voz calma e
contida. Carmine o encarou brevemente,
tentando obedecê-lo, mas a droga era
muito forte. Apesar do ferimento no rosto
que queimava e latejava, as pálpebras
pesadas do rapaz se fecharam.
O lugar estava um caos, mas Carmine
só percebeu isso vagamente antes de
perder os sentidos e adentrar a completa
escuridão induzida pela droga pesada.
Bipe… bipe… bipe…
Mas que merda é essa?, pensou
Carmine ao abrir os olhos e se deparar
com as fortes luzes fluorescentes acima
dele. O som constante ecoava pelo quarto
pequeno e fechado, oriundo de um
monitor cardíaco posicionado à sua
esquerda. O equipamento apresentava
picos a cada respiração, emitindo os
bipes em sintonia com o batimento de seu
coração. As batidas pareciam fortes e
regulares. Por um momento ele ficou
olhando para a máquina, e então deslizou
os olhos pelos fios que estavam
conectados ao seu corpo, concentrando-
se na agulha presa à sua veia. Ele estava
numa desconfortável cama de hospital,
vestido apenas com um fino avental e
coberto com um lençol branco.
De repente, algo se moveu do outro
lado do quarto. Carmine virou a cabeça e
sua atenção se voltou para a janela.
Corrado estava de pé ali, olhando para
fora em direção ao grande
estacionamento. Ele não se virou nem
disse uma palavra, apenas ficou ali com
as mãos enfiadas nos bolsos.
Antes que Carmine pudesse
compreender o que estava acontecendo, a
porta se abriu e uma enfermeira entrou,
seguida por um médico. De cabelos
grisalhos e vestido de branco, o
profissional trazia consigo uma
prancheta. Então olhou com certa
hesitação para Corrado antes de se voltar
para Carmine no leito.
– Senhor DeMarco, é muito bom vê-lo
desperto.
– Ah… Sim. – disse Carmine, com a
garganta arranhando. Ele pigarreou um
pouco antes de voltar a falar. – O que eu
estou fazendo aqui?
– Não se recorda? – perguntou o
médico, olhando para a prancheta.
Carmine se lembrava do serviço que dera
errado e de ter ido à procura de Corrado,
mas quanto ao restante não fazia a menor
ideia. – Bem, você foi trazido para cá há
algumas horas, sem reagir depois de uma
overdose.
– Overdose?
– Os exames indicaram a presença de
algumas drogas em seu organismo, mas o
que provocou a overdose foi o uso
excessivo de heroína.
Carmine ficou sem palavras. Heroína?
Ele já não absorvia mais nada
enquanto o médico falava sobre Narcan,
antitóxico, programas de reabilitação e
efeitos colaterais de longo prazo. Mais
uma vez ele se sentiu apavorado e o medo
se espalhou por sua corrente sanguínea.
Seus músculos estavam retesados; todo o
corpo parecia enrijecido e dolorido. Era
como se um caminhão o tivesse
atropelado.
– Faremos mais alguns testes e então
você terá alta amanhã – continuou o
médico. – Até lá, sugiro que o senhor
repouse.
Os olhos do médico se voltaram para
Corrado uma vez mais antes de ele se
despedir e sair junto à enfermeira. A
tensão no quarto aumentou
consideravelmente depois que os dois
saíram. Carmine ficou deitado ali,
tentando encontrar as palavras adequadas
diante daquela situação, mas Corrado foi
mais rápido.
– As regras são tão simples – ele
disse, ainda olhando pela janela. – De
fato não existem muitas regras, mas
esperamos que as que existem sejam
seguidas à risca. Manter-se longe de
drogas e dos holofotes. Que parte disso
você ainda não compreendeu?
– Eu, ah… Olhe, eu não queria que
isso tivesse ido tão longe, eu…
– Não quero ouvir suas desculpas
esfarrapadas, Carmine. Há quanto tempo
você tem usado drogas?
– Algumas semanas – Carmine admitiu.
– Há uns dois meses no máximo, eu acho.
– Você acha?
– Bem, eu não anotei o primeiro dia na
agenda ou algo assim.
– Você se dirigirá a mim com respeito,
moleque – o tom de voz de Corrado fez
Carmine sentir um frio na espinha. Ele
não estava falando como membro da
família, mas como seu superior. – Você
compreende?
– Sim, senhor.
– Muito bom. Agora, o que deu em
você para realizar um trabalho em
Sycamore Circle? Todos sabem que
aquele território pertence aos irlandeses!
– Eu, ah… Eu recebi uma mensagem no
celular – Carmine olhou para os lados em
busca de seu telefone, localizando suas
roupas numa pilha no chão. – Pensei que
a ordem tivesse partido de você.
– Deve ter partido de Sal – murmurou
Corrado, meneando a cabeça. – Três
homens foram hospitalizados, sabia? Um
deles quase morreu. E você fugiu do
local… Fugiu para ir se drogar.
– Eu fui atrás de você – disse Carmine,
colocando-se na defensiva. – Foi uma
emboscada. Eles estavam esperando por
nós.
– Mas é claro que estavam. Eles nos
avisaram disso há semanas.
Carmine não disse nada. Não sabia o
que dizer.
– Você conhece a história entre os
italianos e os irlandeses em Chicago? –
perguntou Corrado, olhando para o
sobrinho e erguendo as sobrancelhas.
O jovem fez um movimento negativo e
limpou a garganta.
– Eles se odeiam.
– Muito mais que isso – respondeu
Corrado. – Nós já nos estranhávamos
mesmo antes da Lei Seca, quando John
Torrio estava construindo seu império.
Ele era um homem diplomático,
acreditava que o fato de sermos
criminosos não justificava que agíssemos
como selvagens. Bugs Moran, o subchefe
da máfia irlandesa na época, tentou matar
Torrio, que ficou muito ferido durante a
tentativa de assassinato. Isso o fez
entregar o poder nas mãos de Al Capone,
que, por sua vez, continuou o que Torrio
começara. Mas Capone não pensava
diferente.
– Olho por olho – Carmine resmungou.
– Exato – disse Corrado. – Moran
tentou matar Capone algumas vezes, mas
fracassou. Ele não era um bom atirador.
Então, uma conferência de paz foi
convocada. Durante a reunião, Capone
disse que considerava Chicago grande o
suficiente para todos, que era como uma
grande torta e, assim, cada um poderia ter
sua própria fatia.
– Faz sentido – disse Carmine, mesmo
sem ter ideia de aonde aquela conversa
iria chegar.
– É, também faz sentido para mim –
respondeu Corrado. – Por algum tempo,
depois daquele encontro, o banho de
sangue parou. Mas isso não durou muito.
Sabe o que houve depois, não?
Carmine olhou para o tio.
– Mais ou menos. Nunca fui bom em
História. Repeti duas vezes seguidas
nessa matéria.
Corrado soltou um riso amargo.
– Essa é a única história que
interessa… A nossa história. Moran
começou a matar os amigos de Capone.
Então a paciência do Chefão chegou ao
fim e ele finalmente decidiu que já era
demais. Ele enviou alguns homens até o
armazém de Moran. Estavam vestidos de
policiais. Seis homens dele foram
colocados contra a parede e executados.
– O Massacre do Dia de São Valentim.
– As mortes pararam depois daquilo.
Mas isso só aconteceu porque sempre
respeitamos os limites uns dos outros; só
mantivemos a paz porque a torta foi
dividida. – Corrado fez uma pausa. –
Tudo isso termina agora, Carmine. Se eu
ouvir que você voltou a usar drogas, se
essa porcaria não matá-lo eu mesmo me
incumbirei de fazê-lo. Não permitirei que
se torne um viciado em heroína.
– Eu não sabia que era heroína – o
rapaz respondeu. – Eu achei que fosse
Molly, você sabe, ecstasy.
Corrado se virou onde estava.
– Então essa é a tal Molly. Pensei que
você tivesse arrumado uma namorada
com esse nome.
– Pensou que eu estivesse saindo com
alguém? – perguntou. – Isso é maluquice.
– Não, maluquice é você destruir seu
corpo com drogas ilícitas só para se
sentir excitado, em vez de procurar algo
mais seguro, como uma mulher.
Carmine negou.
– Só existe uma mulher na minha vida.
Corrado ignorou a resposta e se voltou
para ele mais uma vez.
– Este é o mesmo quarto, sabia? Foi
reformado, mas é exatamente o lugar onde
você ficou quando levou o tiro da
primeira vez. Tive um déjà vu essa
manhã, vendo você deitado nessa cama. A
única diferença é que seu pai não está
aqui agora. Mal consigo imaginar como
ele se sentiria vendo você atirar sua vida
no lixo dessa maneira… Uma vida que
Maura perdeu justamente para proteger.
Por um momento os bipes no aparelho
se tornaram erráticos, diante da menção
dos pais de Carmine. O garoto ficou
muito envergonhado quando o tio
continuou com o sermão.
– Preciso poder confiar em você,
Carmine, mas até agora você não me deu
nenhuma razão para fazê-lo. Não pode
continuar me desrespeitando dessa
maneira, desrespeitando a organização
que seu avô ajudou a construir. Já é ruim
o suficiente que seu pai tenha… –
Corrado parou de falar e sua postura se
tornou mais rígida. Ele ficou paralisado,
como uma estátua, e sua voz mudou de
tom ao falar de novo. – Não manche
ainda mais o legado dos DeMarco.
A voz de Carmine foi apenas um
sussurro.
– Sim, senhor.
Corrado caminhou até a cama.
– Onde foi que você conseguiu?
– Conseguiu o quê?
– As drogas, Carmine. Onde você as
conseguiu?
Carmine meneou a cabeça.
– Ah, eu…
– Diga de uma vez – Corrado exigiu. –
Quero saber quem está fornecendo drogas
a você.
– Mas eu…
– Diga quem foi!
Com a respiração ofegante, uma única
palavra escapou dos lábios de Carmine:
– Remy.
As sobrancelhas de Corrado se
ergueram.
– Tarullo?
– Sim.
Antes mesmo que o rapaz pudesse
elaborar sua resposta, a mão forte de
Corrado o agarrou pelo pescoço. O
monitor cardíaco disparou e os bipes
inundaram o quarto enquanto Carmine
lutava para respirar. Seus pulmões
queimavam em busca de oxigênio.
– Regra número um: nunca dedure seus
amigos – disse Corrado em voz baixa,
inclinando-se e aproximando-se do rapaz
aterrorizado, colocando a boca em sua
orelha.
Corrado soltou o pescoço de Carmine,
que inalou todo o ar que conseguiu.
Lágrimas se formaram em seus olhos e
sua visão ficou turva enquanto via o tio
caminhar até a porta.
– Eu voltarei. Tenho de pensar na
melhor maneira de lidar com você.
O sol estava começando a se levantar e
os raios de luz invadiam o quarto pela
janela à medida que refletiam sobre os
para-brisas dos carros estacionados.
Devia ser umas sete da manhã, talvez um
pouco mais cedo.
Carmine permaneceu deitado naquela
cama desconfortável, atendendo a todas
as ordens das enfermeiras enquanto elas
tiravam seu sangue e checavam os sinais
vitais, até ele se decidir que já era o
suficiente. Livrando-se de todos os fios,
retirando a intravenosa do braço e
ignorando o sangue que escorria, ele
mesmo se desconectou de todos os
equipamentos. Os médicos correram para
o quarto ao perceberem que o monitor
cardíaco não emitia sinal de batimentos.
Tentaram segurá-lo enquanto ele vestia
suas roupas. Carmine ignorou todos os
pedidos para que voltasse para a cama e,
contra a vontade dos profissionais,
passou por todos eles e foi direto para a
porta do hospital.
Mas ele não foi muito longe. Mais ou
menos a um quarteirão do lugar o jovem
entrou num bar cuja porta estava aberta e
uma luz piscava na janela. Sua cabeça
estava explodindo, seus olhos queimavam
e sua garganta estava seca. Ele precisava
tomar alguma coisa.
– Me dá uma cerveja – ele resmungou,
enfiando a mão no bolso e retirando de lá
algumas notas amassadas.
– Você tem algum documento? –
perguntou o atendente. Carmine só olhou
para o sujeito, sem dizer uma palavra.
Ele não sabia se foi sua postura do tipo
“vou cortar suas bolas se não me servir
uma bebida agora” ou o fato de sua
camisa estar suja de sangue, mas algo fez
com que o cara mudasse de ideia.
– Não se preocupe. Você parece ter
idade suficiente.
Ele serviu uma cerveja para Carmine,
colocando a garrafa no balcão à frente
dele e, sem dizer nada, pegou o dinheiro.
Carmine pegou o caneco e tomou um
gole, fazendo uma careta ao sentir o gosto
amargo. Ele estava prestes a tomar o
segundo gole, mais longo, quando alguém
o agarrou por trás. Ele voou de cima do
banquinho e caiu no chão, sentindo um
forte impacto e também a bebida
derramada sobre o corpo.
– Mas que merda é essa? – reclamou
Carmine enquanto a pessoa que o
agredira o pegou firme pelo braço e o
arrastou em direção à porta do
estabelecimento. Foi só então que ele
finalmente ficou de pé e viu que se
tratava do tio. – Corrado?
– Você sai da cama de um hospital e
vai direto para um bar? – disse Corrado,
com o sangue fervendo. Ele o empurrou
pela calçada e o colocou de costas para
sua Mercedes, estacionada no local. Em
vão, Carmine tentou livrar o braço, mas
Corrado era forte demais para ele, e o
forçou a se sentar no banco do
passageiro. Em seguida, também entrou
no carro e saiu cantando pneus. – Você
quase morreu ontem à noite.
– Bom, tudo bem, mas não morri. E
como foi que você me encontrou afinal?
Tem um chip GPS implantado em mim?
– Não, claro que não – respondeu
Corrado. – Mas, se quer saber, não acho
que essa seja uma ideia ruim. É isso o
que quer que eu faça? Que injete um chip
em você, como seu pai fez com sua
namorada?
– Ex-namorada – Carmine resmungou.
– Ela não é mais a minha namorada.
– Que sorte a dela – retrucou Corrado.
– Isso significa que ela está evitando
levar uma bala na cabeça… Diferente de
você.
Carmine tentou se manter firme e não
demonstrar a dor que sentiu no momento
em que o tio esticou a mão e beliscou seu
rosto com força, no lugar do ferimento.
Aquilo doía tanto quanto suas palavras
duras.
Corrado passou de carro em frente ao
Luna Rossa e olhou para o clube pela
janela.
– Sou o proprietário desse lugar há
décadas e, até a noite de ontem, nunca
houve um único incidente ali. Assassinos
e ladrões entram e saem por aquela porta
todos os dias, mas foi preciso que um
covarde como você acabasse com a
tranquilidade do lugar.
Capítulo 25
– Venha para casa comigo.
Haven tirou os olhos do livro que
estava lendo e ergueu a cabeça no
momento em que Kelsey invadiu seu
apartamento com cerca de uma dúzia de
malas de diferentes tamanhos nas mãos.
Cansada e com a respiração ofegante, os
olhos da moça estavam tão arregalados
que ela parecia uma maluca.
– O quê? – perguntou Haven. – Por
quê?
– Por quê? – retrucou Kelsey, deixando
sua bagagem no chão. – Porque é Natal, é
por isso. O semestre acabou e você não
tem nenhum trabalho para fazer, portanto
não há motivo para que não possa ir para
casa comigo.
Haven fechou o livro e respirou fundo.
– Mas é Natal.
– Dã! Foi exatamente isso o que eu
disse – falou Kelsey, revirando os olhos.
– Você não deveria ficar aqui sozinha.
Não é certo.
– E a sua família? – Haven perguntou.
– Não acho que o Natal seja uma ocasião
para se levar uma estranha para casa.
– Você está de brincadeira? Você não
conhece minha família – disse Kelsey,
abanando a cabeça e rindo de um jeito
seco enquanto murmurava algo para si
mesma. Depois de um segundo, ela se
voltou para Haven, dessa vez com a
expressão severa. – É sério, venha para
casa comigo. Por favor, não me faça ir
sozinha.
Haven deu risada.
– Ah, eles não podem ser assim tão
ruins.
– Como eu já disse, você não os
conhece – retrucou Kelsey. – Então,
venha conhecê-los, passe a ceia de Natal
conosco e discutiremos se eles são ou
não assim tão ruins.
Hesitando, Haven olhou para o lado.
– Eu não arrumei nada para viajar.
– Arrume agora. O carro estará aqui
em dez minutos. É tempo suficiente para
você se preparar. E eu falo sério… –
Kelsey olhou para Haven e enrugou o
nariz. – Você leva menos que dez minutos
para se arrumar toda manhã.
– Está bem! – Haven deixou o livro
sobre o sofá antes de se levantar. – Eu
vou.
– Fantástico – berrou Kelsey, enquanto
Haven caminhava até o quarto. – E troque
de roupas enquanto está aí! Você não vai
usar moletons quando estiver ao meu
lado.
Revirando os olhos, Haven bateu com
força a porta do quarto depois de entrar.
Dez minutos depois ela surgiu com uma
mochila cheia de roupas e objetos
pessoais, usando jeans e uma blusa rosa
de mangas longas que combinava com os
tênis Nike. Ela puxara os cabelos para
trás, formando um rabo-de-cavalo. Pegou
o casaco, parando diante da amiga para
ser inspecionada.
– Está bom assim?
– Muito bom – Kelsey se voltou para a
janela quando uma buzina tocou na frente
do prédio. – No tempo certo! O carro já
chegou.
Haven trancou o apartamento antes de
seguir a amiga até a rua, mas seus passos
vacilaram no momento em que pisou do
lado de fora. Estacionada ao lado da
calçada havia uma limusine; o motorista
rapidamente pegou as malas de Kelsey e
as colocou no porta-malas. Kelsey
agradeceu com um sorriso amarelo antes
de se virar para Haven.
– O que você está esperando?
O que ela estava esperando? A garota
piscou algumas vezes, apertando os olhos
com força da última vez, esperando que
aquele carro enorme desaparecesse de
sua frente ao reabri-los, mas ele ainda
estava no mesmo lugar. Kelsey e o
motorista a encararam de um jeito
estranho.
– Eu, ah… nada – Haven acenou
negativamente a cabeça e caminhou até a
limusine. Ela tentou colocar sua própria
mala no porta-malas, mas o motorista a
impediu, pegando-a de suas mãos. – Ah,
obrigada.
– De nada, senhorita – ele respondeu,
caminhando até a porta de trás e abrindo-
a para que ambas pudessem entrar no
carro. Em seguida, deu a volta e se sentou
ao volante. O cheiro de couro fresco era
forte no veículo. Os bancos e o piso
estavam imaculados; não havia um único
sinal de sujeira.
– Primeira vez numa limusine? –
perguntou Kelsey, sentando-se de modo
casual no banco.
– Isso parece tão óbvio?
– Talvez – ela respondeu. – Meu pai
envia uma para mim o tempo todo. “Nada
além do melhor para o meu bebê” é o que
ele diz.
Haven sorriu.
– Ele parece ser legal.
A gargalhada de Kelsey reverberou
pelo espaço confinado.
– Legal? Tá, apenas espere pra
conhecê-lo…
As palavras da amiga só aumentaram a
ansiedade de Haven.
– Você disse que ele é político, certo?
– Certo. O bom e velho senador do
grandioso estado de Nova York. Não que
ele de fato faça alguma coisa, na
verdade.
– E o que faz a sua mãe?
– Bebe vinho e fica o dia inteiro
repetindo as mesmas coisas – respondeu
Kelsey. – Portanto, basicamente ela faz o
mesmo que o meu pai: nada.
Mesmo que a residência ficasse a
apenas alguns quilômetros de distância, o
tráfego pesado fez com que o trajeto até a
casa levasse quase quarenta e cinco
minutos. Era uma mansão de três andares
localizada em Upper East Side. Haven
ficou boquiaberta quando o carro
estacionou diante da propriedade,
admirando o gramado perfeito e as belas
fontes decoradas.
– Você morava aqui? – ela perguntou,
descrente. – E por que você foi morar
num apartamento minúsculo?
Kelsey soltou um suspiro.
– Meu pai se ofereceu para me arrumar
um lugar mais próximo, mas eu queria
morar em Chelsea. Esperamos tanto que
foi difícil encontrar um lugar próximo à
faculdade, mas no final ele fez algumas
ligações e conseguiu alugar o
apartamento em cima do seu.
Haven meneou a cabeça, estupefata
demais para compreender tudo aquilo. A
limusine parou e o motorista logo abriu a
porta para as duas. Ele também retirou as
bagagens do porta-malas. Na mesma
hora, a porta da frente se abriu e dois
homens surgiram. Sem dizer uma palavra,
eles pegaram as malas das mãos do
motorista e as levaram para dentro.
Um terceiro homem apareceu na
sequência, caminhando de modo casual
para fora da casa. Ele usava um casaco e
uma gravata. Seus cabelos negros
estavam perfeitos, com apenas alguns fios
grisalhos brilhando sob o sol. Ele parou,
olhando para as duas de maneira intensa.
– Kelsey.
– Papai.
– É bom revê-la.
A garota resmungou de maneira
inaudível, mas petulante, antes de limpar
a garganta e responder:
– Digo o mesmo.
– Vejo que trouxe uma amiga.
De repente, o rosto de Haven ficou
quente quando a atenção do homem se
voltou para ela.
– Sim, essa é minha vizinha, Hayden
Antoinette – disse Kelsey. – Eu a
convidei para passar o Natal conosco.
– Ah, isso foi muito educado de sua
parte – ele respondeu. – E nada
característico do seu comportamento
normal, diga-se de passagem.
Kelsey estreitou os olhos.
– Sei ser gentil.
O homem ignorou sua afirmação ao se
aproximar e esticar a mão para
cumprimentar Haven.
– Hayden Antoinette, correto? Alguma
relação com a Maria?
– Maria Antonieta? – As sobrancelhas
de Haven se ergueram enquanto ela
cumprimentava o homem. Algo em seu
toque, em sua presença imponente, fez
com que ela ficasse ainda mais nervosa. –
Bem, ah… Ela foi uma rainha francesa,
certo? Eu sou apenas, ah… Bem, não faço
parte da realeza.
Ele deu uma gargalhada enquanto ela
gaguejava e ficava ainda mais corada.
– Eu estava apenas brincando, querida.
É bom conhecê-la.
– Digo o mesmo, senhor.
– Cain – ele respondeu, soltando sua
mão. – Pode me chamar de Cain.
– Pode me chamar de Cain – Kelsey
imitou a voz do pai engrossando a voz. –
Já terminou com a puxação de saco,
senador? Será que podemos entrar?
Cain fez um movimento com a mão na
direção da entrada.
– Mas é claro, querida, podem entrar.
Kelsey agarrou a mão de Haven e a
puxou para dentro da casa. Cain as
observou cuidadosamente, como se
estivesse estudando todos os movimentos
das duas. Seu olhar deixou Haven um
pouco desconfortável.
Ela seguiu Kelsey e, com discrição,
olhou para a casa conforme ambas se
dirigiam para a escada. Kelsey a levou
até o quarto de hóspedes, no qual a mala
de Haven havia sido colocada ao lado da
cama.
– Meu quarto fica no final do corredor
– ela disse. – A porta no final.
Kelsey a deixou ali sozinha e Haven se
sentou na ampla cama com um dossel. O
quarto de hóspedes era do tamanho do
seu apartamento na cidade e era decorado
em vários tons de vermelho e dourado. O
carpete era branco e parecia tão
impecável que ela tinha medo de se
mover.
Haven abriu a mala, buscando dentro
dela o familiar diário de couro. Tirando
os sapatos, se deitou na cama e olhou
através do tecido dourado e transparente
sobre ela, franzindo o canto dos lábios.
Independentemente do quanto lutasse e
tentasse manter um sorriso no rosto, a
tristeza sempre prevalecia.
Era véspera de Natal. O dia seguinte
seria festivo. Já o próximo… Bem, ela
não gostava de imaginar o que o dia 26
representava.
Abrindo o livro, ela retirou o pedaço
de papel que havia colocado ali e o
desdobrou, olhando para a carta que fora
escrita de maneira apressada no meio da
noite após o Natal do ano anterior. Ela a
havia lido tantas vezes que já memorizara
cada palavra.
Terminou de ler e seu dedo deslizou
sobre três palavras simples: “Eu te amo”.
– Eu também te amo – ela sussurrou.
Um ano inteiro havia se passado, mas
ela ainda o amava.

As sobrancelhas de Carmine se
enrugaram no momento em que Corrado
passou a rua que daria acesso à casa
dele. O jovem pigarreou.
– Ah, acho que você passou direto pela
rua.
Os olhos de Corrado se mantiveram no
caminho e ele não se deu ao trabalho de
responder, apenas ligou o rádio,
pressionando o botão para aumentar o
volume. A voz de Frank Sinatra vibrava
nos alto-falantes; a música deixava a pele
de Carmine arrepiada. Seu coração batia
forte dentro do peito e ecoava em seus
ouvidos.
Frank Sinatra costumava desencadear
certa reação em Carmine.
Entrando em pânico, a paranoia do
jovem chegou ao limite no momento em
que Corrado seguiu na direção de
algumas estradas vazias, entrando numa
região da cidade à qual Carmine não
retornava havia mais de uma década. Ele
sabia que havia feito merda e que haveria
consequências, mas nunca imaginara que
seria daquele modo. Ele jamais
considerara a possibilidade de que seu
tio realmente se enchesse dele. Nunca
pensara que Corrado pudesse de fato
colocar um ponto final em sua vida.
Até aquele instante, Carmine sempre
acreditara que fosse invencível.
Depois de dirigir por mais alguns
minutos, Corrado diminuiu a velocidade e
estacionou. Em seguida ele se esticou e
abriu a porta do lado do passageiro.
– Saia.
Os olhos de Carmine buscaram algum
sinal de vida no local. Corrado não o
mataria se houvesse testemunhas.
– O quê?
– Eu mandei sair!
Carmine obedeceu ao ouvir o tom do
tio. Ele saiu do carro e bateu a porta. Sua
mente não parava de pensar no que fazer.
O jovem considerou a possibilidade de
correr, imaginando se conseguiria fugir e
se esconder nas vielas no meio da noite,
mas ele não teve de fazer nada. Corrado
saiu cantando os pneus e deixando para
trás apenas uma nuvem de fumaça
enquanto acelerava e desaparecia,
deixando o sobrinho sozinho no meio do
nada.
Carmine observou as luzes traseiras
sumirem no meio da noite. De certo modo
ele se sentia mais aliviado, mas, ao
mesmo tempo, atônito.
– Mas que porra é essa?
Virando-se de costas, Carmine buscou
instintivamente por sua arma no cinto,
porém, sem se surpreender, não a
encontrou. Na verdade, ele não trazia
nada consigo, nem documento, nem
carteira, nem um centavo no bolso.
Ficou petrificado ao perceber a
situação. No entanto, seu pânico começou
a se dissipar ao perceber alguém com
uma batina a alguns passos de distância.
A primeira coisa que ele notou foi o
colarinho de padre, depois, as mangas de
tecido branco que brilhavam na
escuridão.
Confuso, Carmine olhou para trás do
homem e viu a grande construção
marrom, absorvendo a porta da frente
ornamentada e a escadaria que levava até
ela. Corrado o havia deixado na frente de
uma velha igreja.
– Desculpe, senhor – ele sussurrou. –
Quero dizer… Sua Santidade?
O padre sorriu.
– Pode me chamar de padre Alberto. O
que o está consumindo esta noite, meu
rapaz?
– Nada. Digo, não há nenhum
problema. Eu só… – Carmine não fazia
ideia do que dizer. Só, tipo, meio que
fodi com a minha vida e pensei que meu
tio fosse acabar com a minha vida pelas
merdas que eu fiz…? – Eu só preciso de
um telefone. Saberia me dizer onde eu
poderia encontrar um? Quero dizer, sei
que o senhor não teria, mas talvez saiba
de alguém que pudesse me emprestar.
Padre Alberto ergueu as sobrancelhas.
– E por que eu não teria um telefone?
– Não sei. Talvez pelo fato de o senhor
ser um padre mais velho, digo, da velha
escola.
O padre começou a rir.
– Sou católico, filho, não Amish. Não
tenho nenhuma aversão à tecnologia.
Venha comigo. Poderá usar meu telefone.
Fazendo um movimento para que ele o
seguisse, padre Alberto seguiu para
dentro. Carmine hesitou um pouco antes
de entrar na igreja e olhou para todos os
lados com cautela. O lugar estava escuro
e tinha um brilho dourado que, de um
jeito estranho, parecia convidativo e
caloroso. Carmine se sentiu mais leve e
tranquilo. Pelo menos, ele pensou, seu tio
não o mataria numa igreja.
Seguiu o padre até um pequeno
escritório nos fundos. Lá havia uma mesa
que ocupava a maior parte do espaço. Um
velho telefone branco estava no canto,
com o fio enrolado. Pegando o fone,
Carmine ligou para o número de Celia
enquanto o padre se sentou atrás de sua
mesa. O jovem se encostou no móvel,
esperando enquanto o telefone tocava.
A secretária eletrônica atendeu depois
do quinto toque e o celular foi direto para
a caixa postal. Ele tentou ambos os
números duas vezes antes de desistir.
– Não atendem? – perguntou o padre.
– Não.
– Então sente-se – disse o padre
Alberto, apontando para a cadeira à
frente da mesa. – Podemos conversar um
pouco enquanto você espera e tenta
novamente mais tarde.
O jovem ficou em dúvida por um
instante e então se sentou. Não que ele
tivesse outra opção além daquela. Sem
dinheiro nem amigos, ou ele esperava ali
ou começava a andar, e ele estava exausto
demais para a segunda alternativa.
– Obrigado – disse Carmine. – Pelo
telefone e pela cadeira.
– Não tem de quê. É o que nós, padres
da velha escola, costumamos fazer, afinal.
Sua voz era gentil e alegre, e Carmine
deu risada.
– Desculpe o que eu disse. Eu não
sabia. Nunca fui muito ligado às coisas
de igreja.
– E por que não?
Carmine deu de ombros.
– Sei lá, acho que não faz meu gênero.
Padre Alberto o encarou de um jeito
peculiar.
– Acredita em Deus?
Carmine temia aquela pergunta e por
um momento pensou em mentir para
agradar o padre, mas achou melhor ser
honesto, uma vez que estava numa igreja.
Ele escapara da morte duas vezes naquela
semana. Algo lhe dizia que não teria a
mesma sorte da terceira vez.
– Honestamente, não tenho certeza.
Talvez? Mas eu tenho visto muita mer…
digo, muitas coisas ruins na minha vida, e
isso me faz duvidar de que alguma porra
lá em cima dê a mínima, digo, se importe,
com quem está aqui embaixo. – Os olhos
do garoto se arregalaram ao perceber
que, mesmo se esforçando, não evitara
uma linguagem vulgar. – Merda. Ah, me
desculpe, padre. Está sendo uma noite
muito ruim.
Carmine esperava ser chutado para
fora dali, mas padre Alberto apenas
sorriu.
– Você não é o primeiro a dizer tais
palavras entre essas paredes e certamente
não será o último. Preocupo-me mais com
sua negatividade do que com as palavras
profanas.
– Bem, acho que é mais fácil o senhor
conseguir me fazer parar de xingar do que
mudar o meu modo de enxergar as coisas.
É difícil acreditar que exista alguém lá
em cima olhando por nós quando tanta
gente se fode todos os dias.
– Ah, esse é um argumento que ouço
com frequência – disse padre Alberto. –
Como pode existir um Deus quando tantos
parecem ter sido abandonados? Mas o
que você não percebe, filho, é que sem as
coisas ruins não podemos
verdadeiramente apreciar o que há de
bom. O sofrimento ensina a nos tornarmos
pessoas melhores. O que fazemos nos
tempos ruins nos permite avaliar quão
bons como pessoas nós somos.
Carmine deixou escapar um riso
amargo, recostando-se na cadeira
enquanto pensava em como havia se
adaptado àquela vida.
– Então acho que não devo ser um cara
muito legal.
– Ah… Eu não acredito nisso.
– Isso é porque o senhor não me
conhece. Não sabe as coisas que já fiz.
– Então me diga – desafiou o padre. –
Mude sua mente.
Carmine respondeu, em tom de
zombaria:
– Não posso.
– E por que não? – o padre perguntou –
Sente vergonha?
– Não – Carmine hesitou. – Bem, na
verdade sim, mas não é este o ponto.
– Sim, este é justamente o ponto –
retrucou o padre. – Este é um lugar
seguro. O que quer que diga entre essas
quatro paredes permanecerá aqui.
Portanto, a única coisa que o impede de
confessar seus pecados é sua relutância
em admiti-los.
– Porque eu tô ferrado. Quem iria
querer admitir isso?
– Alguém sem ética – respondeu o
padre –, o que nos leva de volta ao fato
de eu considerá-lo um bom homem.
Pessoas más não têm consciência, filho.
Carmine pensou sobre aquelas
palavras. O velho padre havia de algum
modo invertido as coisas.
– Se não quiser discutir seu passado,
por que não falamos sobre o seu futuro? –
sugeriu o padre. – Talvez possamos
compreender por que Deus o trouxe até
aqui esta noite.
– Deus não me trouxe aqui – respondeu
Carmine.
– Não?
– Não. Foi o diabo em pessoa quem me
largou aqui na frente.
De modo surpreendente, o padre sorriu
diante daquelas palavras.
– E existiria alguma razão para que ele
o fizesse?
– Sei tanto quanto o senhor, mas estou
começando a achar que ele tem senso de
humor.
O tempo passou enquanto os dois
conversavam no escritório apertado.
Ambos discutiram a respeito de religião e
da vida. Nenhum dos dois se deixou
abalar. De um lado, Carmine se recusava
a abandonar sua linha de pensamento,
mas começou a se sentir melhor à medida
que o padre falava. Algo na voz daquele
homem, a compaixão em suas palavras,
deixou Carmine mais calmo. Por fim, ele
começou a fazer pequenas concessões e a
se abrir um pouco enquanto abordava
superficialmente sua realidade e
compartilhava pequenas coisas.
O sol já havia começado a nascer
quando Carmine voltou a ligar para os
mesmos números, sem obter sucesso.
Desligou e franziu o cenho, percebendo
que ninguém viria para ajudá-lo.
– Ninguém atende ainda? – perguntou o
padre.
– Não – ele respondeu. – Acho melhor
eu ir embora. Tenho um longo caminho
pela frente.
– Pretende caminhar? – perguntou o
padre, fazendo um movimento negativo
com a cabeça. – Isso é bobagem. Eu lhe
darei uma carona.
Carmine piscou algumas vezes,
surpreso.
– O senhor tem um carro?
– Mas é claro – disse o padre. – Um
telefone, um carro e, inclusive, um micro-
ondas, caso precise de um. O que é meu é
seu.
Carmine encarou o padre sem
acreditar.
– Por que não me disse antes?
– Você não perguntou.
Carmine ficou de pé, esticou seus
membros cansados e passou as mãos no
rosto.
– Perdemos a noite toda aqui, quando
você poderia ter me levado para casa há
várias horas.
– Ah, mas eu não diria que perdemos a
noite toda – retrucou padre Alberto. –
Gostei muito de conversar com você. Foi
bastante esclarecedor.
Carmine seguiu o padre até o lado de
fora da igreja, onde estava estacionado
um velho Cadillac Deville. Ele sorriu ao
vê-lo, observando a cor azul-claro e o
interior bege.
– É seu? – Carmine perguntou.
– Bem, tecnicamente ele pertence à
igreja de Saint Mary, mas, sim –
respondeu. – Um antigo paroquiano o
doou para nós há anos. Acho que faz uns
treze anos.
– Caramba – disse Carmine, surpreso
que o veículo ainda se movesse e deu um
sorriso suspeito quando o padre o olhou
de um jeito peculiar. – É só que, puxa
vida. Meu avô tinha um igualzinho. Ele
costumava me pegar na escola às vezes
quando eu ainda era criança e me levar
para passear. É a única lembrança que
tenho dele.
– É mesmo?
– É, ele morreu quando eu ainda era
pequeno, talvez… – Carmine fez uma
pausa ao fazer os cálculos mentalmente –
há uns treze anos.
O padre sorriu para ele antes de entrar
no carro e ligar o motor. Ele não ligou de
primeira, mas logo o ronco pôde ser
ouvido e o carro começou a tremer ao
ganhar vida. Soltando um suspiro,
Carmine entrou no banco do passageiro e
disse qual era seu endereço, olhando para
fora da janela enquanto ambos cruzavam
a cidade.
Padre Alberto estacionou o carro na
garagem assim que chegaram. Carmine se
virou para agradecer ao padre, e foi então
que reparou na expressão de admiração
em seu rosto. Antes que o rapaz pudesse
dizer qualquer coisa, o padre começou a
gargalhar. Ele riu tanto que lágrimas
surgiram em seus olhos. Carmine o
encarou, confuso.
– O que é tão engraçado?
– A porta agora é azul.
– Sim, e daí?
O padre meneou a cabeça.
– Pensei que Vincenzo estivesse
brincando.
A expressão no rosto de Carmine ficou
séria ao ouvir o nome do pai. Em choque,
ele ficou apenas olhando o padre.
– Ele realmente fez um péssimo
trabalho pintando essa porta – continuou
o padre Alberto –, mas eu o parabenizo
por tê-lo feito mesmo assim.
– O senhor conhece meu pai?
– Claro que conheço – disse o padre. –
Não foi uma coincidência que tenha
terminado sua noite diante da minha
igreja, filho.
Carmine assentiu. O que foi isso, uma
intervenção divina ou algo assim?
– Feliz Natal – sorriu o padre, dizendo
adeus e completando –, e, só para deixar
registrado, sempre suspeitei de que
Corrado tivesse senso de humor.
Capítulo 26
O Natal em Upper East Side se revelou
um evento mais formal do que Haven
previra. Nenhum presente foi trocado
pela manhã, nenhuma história foi
compartilhada durante a tarde.
Precisamente às 15h, todos se reuniram
na ampla sala de jantar. Eram quatro
pessoas sentadas a uma mesa que tinha
comida suficiente para uma dúzia de
convidados. Os empregados serviram a
comida, em silêncio e com rapidez,
oferecendo um prato a cada um antes de
desaparecerem.
Enquanto os outros começavam a
comer, Haven olhou para seu prato e seu
estômago parecia dar nós. Aquelas
pessoas, os empregados… Será que eles
não tinham família? Por que estariam
trabalhando em pleno Natal?
Os piores pensamentos se infiltraram
em sua mente. Não era possível que eles
fossem… Será…? Um senador, um
homem da lei, também manteria
escravos em sua casa?
Será?
A possível resposta para aquela
pergunta deixava Haven aterrorizada.
– Então, Hayden…
Haven ergueu a cabeça e olhou para a
mãe de Kelsey, Anita, que estava à
extremidade da mesa. Ela usava os
cabelos escuros presos num coque no
topo da cabeça e um longo colar de
pérolas decorava seu pescoço. Ela pegou
o copo de vinho branco, que já havia sido
preenchido duas vezes desde que se
sentara, e tomou mais um gole.
– Sim, senhora?
– Conte-me a respeito de sua família.
Haven olhou para ela.
– Minha família?
– Sim, sua família. Gostaria de saber
por que não está com eles na noite de
Natal.
– Mãe… – Kelsey disse com os dentes
cerrados.
No mesmo instante, o pai murmurou:
– Anita, por favor.
– Relaxem, só estou curiosa – ela
retrucou, acenando com a mão enquanto
olhava para Haven. – Então, sua família?
– Bem, ah… Na verdade, eu não tenho
uma – ela respondeu. – Meus pais já
faleceram.
– Uma órfã? – disse Anita em voz alta,
inclinando-se em direção à mesa. – Mas
que trágico! E como foi que eles
morreram?
– Acidente de automóvel – ela
respondeu rapidamente, engolindo a
verdade cruel de que o único parente que
tivera havia tirado a própria vida para
libertá-la das correntes que a prendiam…
Correntes que lhe foram impostas pelo
homem que supostamente seria seu
próprio pai.
– Mas que triste – disse Anita. – E
quanto aos demais familiares? Irmãos,
primos, tios, tias? Você tem alguém?
– Já chega, Anita! – exclamou Cain
com a voz firme. – Pare com isso.
– Ah, pelo amor de Deus – disse Anita
antes de tomar mais um gole. – Você não
pode me dizer que não está curioso para
saber por que uma garota tão jovem não
tem um lugar para ir no Natal.
– Ela tem um lugar para ir – Cain
contra-atacou. – Ela está aqui, não está?
Anita debochou:
– Por favor, Cain. Ninguém realmente
deseja estar aqui. Nem mesmo nossa
própria filha gosta de estar nesta casa.
– É justamente pelo fato de você
aplicar um interrogatório a todos que
entram aqui – ele disse. – Nem eu gosto
de estar aqui na maior parte do tempo por
conta de suas perguntas intermináveis.
– Ah, não me venha com essa! Não é
por isso que você não vem para casa!
Talvez possa mentir para todo mundo e
fazê-los acreditar nas mentiras que saem
de sua boca, mas eu não.
– Mentiras? – Cain bateu com a mão na
mesa. – Você quer falar sobre mentiras,
muito bem, falemos sobre mentiras.
E os dois continuaram a discutir e a
ofender um ao outro, utilizando de
palavras duras. Kelsey continuou a comer
normalmente, como se nada estivesse
acontecendo, enquanto Haven piscava e
se encolhia diante de toda aquela
hostilidade. A discussão parecia não ter
fim, até que ambos ficaram sem ter o que
dizer.
O silêncio tomou conta da sala de
jantar. Haven comeu algumas garfadas do
que estava em seu prato, forçando a
comida goela abaixo, feliz por tudo
aquilo ter acabado.
Até que Anita voltou a falar.
– Então, Kelsey, querida, como foi o
seu fracasso na escola dessa vez?
– Eu não fracassei na escola –
respondeu Kelsey. – A maioria das
minhas notas ficou entre A e B, com
exceção de um único D.
– E em que matéria você conseguiu
tirar um D?
– Pintura.
– Mas como você conseguiu tal
façanha? – disse Anita, acenando
negativamente em desaprovação. – Até
mesmo um macaco é capaz de passar
nessa matéria. Qualquer idiota consegue
passar tinta numa tela.
Aquelas palavras abriram uma fissura
no peito de Haven. Ela não conseguiu se
controlar e soltou um suspiro
involuntário, sentindo-se ofendida por
aquele insulto. Os olhos de Cain se
desviaram da garota e se fixaram na
esposa.
– Mas que diabos está fazendo, Anita?
– Ah, você é pintora? – ela perguntou.
– Tenho certeza de que seu trabalho é
adorável, querida. O de minha filha, em
contrapartida…
A discussão recomeçou.
Haven soltou um suspiro aliviado
quando o jantar terminou. Kelsey pediu
licença e foi ao banheiro. Anita pegou sua
garrafa de vinho e saiu da sala, deixando
Haven sozinha na companhia de Cain.
Os empregados apareceram para
limpar a mesa. Haven os encarou curiosa,
esquecendo-se de que o pai de Kelsey
ainda estava na sala, até que ele abriu a
boca.
– Eles trabalham para minha família já
há muito tempo.
Haven olhou para ele, curiosa.
– O que disse?
– Os empregados. Eles já estão
conosco há vários anos, desde que
Kelsey era bebê. Estar aqui no Natal só
depende deles, porém, uma vez que
recebem o dobro nos feriados, em geral
preferem trabalhar parte de seu turno.
– Entendo – Haven sentiu certa
suspeita em relação àquela resposta. –
Como o senhor…?
– Como eu soube que você estava
imaginando isso? – ele perguntou,
interrompendo-a no ato. – Não nasci um
homem rico. Minha mãe fazia bico como
dançarina de boate. Meu pai era um
vigarista. Portanto, não é necessário dizer
que conheço bem esse olhar em seu rosto.
– E que tipo de olhar é esse?
– O olhar de quem não entende como a
vida pode ser tão difícil – respondeu
Cain, levantando-se e acenando a cabeça.
– Foi muito bom conhecê-la, minha
jovem. Será sempre bem-vinda em nossa
casa.
Ele saiu e deixou Haven sozinha na
gigante sala de jantar. Kelsey retornou em
seguida, ficando de pé à porta.
– E aí, o que achou?
– O que eu achei? – disse Haven,
colocando-se de pé. – Que talvez você
não tenha exagerado, no final das contas.
Kelsey deu risada.
– Eu te disse. É terrível.
Terrível? Talvez a palavra “terrível”
não fosse a mais adequada, mas eles
certamente a fizeram se lembrar de
pessoas que ela tentara evitar desde que
era uma criança.

A Igreja Católica de Saint Mary era


como uma cidade fantasma no sábado à
tarde. As fileiras que levavam ao altar
ficavam vazias. As bíblias fechadas e
guardadas em seus escaninhos, esperando
pela missa do dia seguinte, quando as
palavras ali contidas se tornariam mais
uma vez o foco de dezenas de pessoas.
Indivíduos que, de modo ao mesmo
tempo casual e rígido, desconsideravam
todos os mandamentos que juraram
obedecer pela manhã assim que a lua
brilhava no céu escuro.
Vincent entrou na igreja escondido pela
escuridão, disfarçado sob um casaco
enorme e com capuz, coberto por flocos
de neve. Removeu o capuz depois que já
estava seguro dentro do prédio, expondo
seus cabelos escuros e despenteados. Ele
já não ia a um barbeiro há semanas,
tampouco havia se barbeado. Os pelos
recobriam seu rosto e ele vestia uma
calça jeans folgada na cintura. Parecia o
oposto do médico asseado e organizado
que fora no passado.
Ele caminhou pelo corredor até a
frente da igreja, parando próximo ao
gigantesco órgão à esquerda do púlpito.
Não demorou muito até que ouvisse
passos atrás dele. Eles eram sutis, quase
imperceptíveis a ouvidos não treinados
para escutar os perigos que se escondiam
em todos os lugares.
Ele não via padre Alberto há algum
tempo. Pelo menos desde quando se
confessara, contando-lhe seus segredos
mais profundos e obscuros. Mas
precisava falar com ele naquele
momento. Necessitava de suas
orientações. Precisava saber que, às
vezes, era normal fazer coisas imorais
para impedir que outros sofressem. Os
fins não justificam os meios, ele sabia
disso, mas não conseguia evitar imaginar
que, talvez, só talvez, um erro
inconcebível poderia ser perdoado se
ajudasse a colocar tudo de volta nos seus
devidos lugares.
Vincent abaixou a cabeça, fechou os
olhos cansados e fez o sinal da cruz.
– Perdoe-me, Pai, pois eu pequei.
– E qual é a novidade?
Os olhos de Vincent se arregalaram ao
ouvir a voz atrás dele, baixa, mas ainda
assim firme e inconfundível;
completamente desapegada e
assustadoramente familiar. Cauteloso, o
coração de Vincent batia acelerado
quando ele se virou e ficou frente a frente
com a última pessoa que esperava
encontrar ali: Corrado.
– Quase não o reconheci – disse
Corrado, colocando-se ao lado do
primeiro banco a apenas alguns passos de
distância. – Você não está surrupiando as
roupas do seu filho, está? Sua aparência
não é nada boa.
Vincent olhou para o cunhado de modo
suspeito. Corrado parecia relaxado, com
as mãos nos bolsos da calça de seu terno,
enquanto encarava DeMarco e esperava
uma resposta.
– Como sabia que eu estaria aqui? –
perguntou Vincent.
Corrado acenou com a cabeça.
– Sorte, eu acho. Você é um homem
bastante previsível, para ser honesto. Tão
previsível quanto seu filho.
– O que faz aqui?
– Eu poderia lhe perguntar o mesmo,
Vincent? – retrucou Corrado. – A ideia de
as igrejas serem santuários sagrados já
foi abandonada há séculos. Elas já não
são capazes de garantir proteção a
ninguém. Bem, talvez proteção divina,
mas não em relação aos homens. E nada
poderá protegê-lo da ira deles. Nem a
polícia, muito menos um padre.
– Não vim em busca de proteção –
respondeu Vincent. – Estou aqui em busca
de um conselho.
– Então talvez eu possa ajudá-lo. Por
favor, continue. Perdoe-me, Pai, pois eu
pequei. Já faz algum… – Corrado ergueu
as sobrancelhas em expectativa ao
continuar.
Vincent olhou para os lados. Corrado
bloqueava a principal saída da igreja.
Não havia como ele sair dali, nenhum
jeito de fugir, a menos que Corrado o
deixasse passar.
– Já se passaram seis meses desde
minha última confissão.
– Seis meses – repetiu Corrado. –
Acredito que tenha alguns
arrependimentos a confessar, então.
Vincent zombou:
– Provavelmente não tantos quanto
você.
Corrado soltou uma gargalhada e tirou
a mão do bolso. Os pelos na nuca de
Vincent se arrepiaram quando viu as
luvas negras. Era uma visão à qual ele
estava acostumado e que significava que
ele viera a trabalho. Ele era como um
anjo da morte, um espírito maligno que
ceifava a vida das pessoas antes de
desaparecer sem ser visto ou deixar
qualquer evidência.
As vítimas de Corrado raramente
tinham a chance de ver quem ou o quê os
atingira. A maioria sequer sentia sua
presença, uma vez que ele fazia o que
tinha de fazer à noite, no escuro, com um
único tiro na nuca, matando sua vítima de
maneira instantânea. Tudo era muito
simples, limpo, meticuloso e indolor. Ele
entrava e saía em questão de minutos e
logo já estava pronto para seguir adiante.
Corrado não gostava da ideia de torturar
pessoas… A menos que o indivíduo o
enfurecesse.
Entretanto, quando isso acontecia e
Corrado levava as coisas para o lado
pessoal, uma característica diferente
emergia. Um monstro horripilante saía de
dentro dele, rasgando sua carapaça
tranquila. Nesse caso, ninguém estaria a
salvo de sua ira se ela aflorasse. Ele
nunca cometia um erro, jamais agia de
maneira não calculada, mas aquele
homem geralmente frio e tranquilo
deixava de demonstrar qualquer
compaixão. Ele era capaz de cortar um
sujeito em pedaços, lenta e
metodicamente, até que tudo o que
restasse dele já não pudesse ser
reconhecido.
– Foi Sal quem o enviou? – perguntou
Vincent, tentando manter a voz calma.
Corrado negou.
– Não. Vim por conta própria.
Não se trata de negócios. É pessoal.
Corrado deu um passo à frente,
ajeitando as luvas para se certificar de
que estivessem no lugar. Vincent deu um
passo atrás. Corrado voltou a se
aproximar e Vincent se afastou mais uma
vez. E isso se repetiu algumas vezes,
como se ambos estivessem numa dança
mortal.
– Não quero acreditar nisso – disse
Corrado –, mas vendo-o aqui, olhando
para você desse jeito, não posso evitar
imaginar se tudo é mesmo verdade.
– Não é o que parece – disse Vincent.
Corrado balançou a cabeça.
– Nunca é, não é mesmo? Mas isso é
irrelevante, e você sabe disso. Você
cruzou uma linha e não importa por que
tenha feito ou o que planejava fazer do
outro lado. O fato de que esteve lá é
imperdoável. Lupo non mangia lupo.
Quantas vezes ouvimos seu pai dizer
essas palavras quando estava vivo?
Quantas vezes? Lobos não comem lobos.
Não nos voltamos uns contra os outros.
– Você está certo – disse Vincent. – Se
não pode confiar nos da sua espécie, em
quem irá acreditar?
– Em ninguém, de acordo com o seu
filho – disse Corrado. – Non fidarsi di
nesssuno. Você alguma vez parou para
pensar em como isso irá afetá-lo? Como
isso já o está afetando?
Pensar em Carmine fez com que o peito
de Vincent doesse profundamente.
– Ele está bem?
– É claro que ele não está bem. Ele
jamais ficará bem novamente! É tarefa
dele matar você!
Acovardando-se diante da hostilidade
do cunhado, Vincent deu alguns passos
para trás.
– Você não pode deixar que ele o faça.
– Não tenho a intenção de deixar –
Corrado continuou acuando Vincent, sem
perder um movimento.
Foi então que uma voz ecoou na igreja,
fazendo com que os dois parassem. Padre
Alberto saiu de seu escritório, olhando
para ambos com cara feia. Corrado se
afastou, colocando alguma distância entre
ele e Vincent à medida que o padre se
aproximava rapidamente.
– Senhores, não sou um homem que faz
julgamentos, e nunca os condenei por
suas escolhas na vida, mas para tudo há
um limite! Não posso permitir que tragam
isso para dentro da casa do Senhor. Este
é um lugar de preces, de amor e de
aceitação. Estamos sempre abertos, mas
apenas para os que deixam seus pecados
à porta.
– O senhor está certo – disse Corrado,
recolocando as mãos nos bolsos. – Esse
não é o momento nem o lugar para isso.
– E sobre o que exatamente vocês
estão discutindo? – perguntou o padre. –
Vocês são família!
– Foi apenas um mal-entendido – disse
Vincent. – É só isso.
– Certo, um mal-entendido –
concordou Corrado, limpando a garganta.
– Se me dão licença, tenho de ir embora.
Tenho assuntos a resolver esta noite, mais
tarde.
Padre Alberto ergueu as sobrancelhas.
– Espero que não tão tarde assim.
Espero vê-lo aqui amanhã sentado num
destes bancos.
– Não perderia sua missa por nada,
padre – disse Corrado, desviando o olhar
do padre e encarando Vincent. – Tudo
estará terminado antes de o sol nascer.
Ele se virou e caminhou de modo
casual em direção à saída, como se não
tivesse nada com o que se importar no
mundo. Vincent e padre Alberto ficaram
observando em silêncio até que Corrado
desaparecesse do lado de fora. Vincent
soltou um suspiro, passando as mãos pelo
rosto, exasperado. Isso não é bom. Isso
não é nada bom.
– Diga-me, Vincenzo, no que foi que
você se meteu agora?
– Numa situação para a qual não existe
saída – ele disse em voz baixa.
– Não acredito nisso – retrucou padre
Alberto. – Sempre há uma saída.
– Vivo?
Padre Alberto ficou em silêncio,
olhando para a porta por onde Corrado
havia saído enquanto pensava na pergunta
de Vincent.
– Foi exatamente isso o que pensei –
completou Vincent quando o padre não
respondeu. – Mas acho que há coisas
piores do que estar morto.
– “Venham a mim, todos os que estão
cansados e sobrecarregados, e eu darei
descanso a vocês” – disse padre Alberto,
citando as palavras de Mateus 11:28. –
Bem, por mais que isso seja verdade, não
gosto de ouvi-lo como um homem
derrotado. Você não pode desistir.
– Não estou desistindo padre, estou me
entregando. Nadei contra a corrente por
muito tempo, mas no fim acabei sendo
arrastado. E não posso continuar
nadando. Não consigo. Estou cansado
demais para continuar.
– Então você resolve se deixar afogar?
– perguntou padre Alberto sem acreditar
no que ouvira.
– Não – respondeu Vincent. – Espero
por alguém que me atire um salva-vidas e
então deslizo pela água.
– E se ninguém o fizer? Certas coisas
não podem ser perdoadas. Não faça nada
do que possa se arrepender.
– Tenho fé de que não será preciso.
Padre Alberto negou com a cabeça.
– Você parece péssimo, Vincenzo.
Venha, tenho uma cama extra nos fundos
para que você durma um pouco.
– Não devo.
– Então pelo menos coma alguma coisa
e tome um banho.
DeMarco pensou em recusar, mas a
ideia de se alimentar e se higienizar um
pouco era tentadora demais. Seguindo o
padre Alberto até os fundos, ele comeu
dois sanduíches e um pacote de batatas
fritas enquanto o padre, sentado à sua
frente, estudava-o com olhos
preocupados.
– Há uma razão para ter vindo aqui
esta noite?
– Conselho – ele disse. – Meu pai
costumava usar este ditado: chi tace
acconsente. E eu queria saber o que o
senhor acha disso.
Chi tace acconsente. Quem cala,
consente. Antonio DeMarco acreditava
que se você quisesse algo, se acreditasse
em alguma coisa, era sua
responsabilidade lutar por isso. Se
permanecesse calado, se mantivesse o
silêncio e não dissesse nada, então não
poderia culpar ninguém exceto a si
mesmo se nada acontecesse.
– Eu considerava seu pai um homem
sábio – disse padre Alberto. – Podia não
concordar com suas escolhas, mas
sempre o admirei por suas crenças no que
dizia respeito à família e às suas
responsabilidades. E é verdade: se você
não lutar por alguma coisa, acabará
caindo por nada.
Vincent franziu as sobrancelhas.
– Isso está na Bíblia?
Padre Alberto sorriu.
– Não, acho que quem o disse foi
Alexander Hamilton.
– Obrigado, padre. – Vincent se
levantou. – Tomarei aquele banho agora,
se não se importa.
Padre Alberto o levou até o pequeno
banheiro. Vincent se despiu e soltou um
suspiro ao puxar a correntinha que trazia
no pescoço, colocando-a numa prateleira
ao lado das toalhas. Com dificuldades
por conta do espaço minúsculo, ele
conseguiu se enfiar debaixo do chuveiro.
Vincent saiu da igreja evitando se
despedir do padre Alberto, enquanto
fazia a inevitável jornada até a porta de
saída. Mesmo com os cabelos molhados,
ele cobriu a cabeça com seu capuz. Uma
brisa suave atingiu seu rosto quando
parou no topo das escadas e olhou para a
rua vazia.
Um frio percorreu sua espinha, mas
nada tinha a ver com a noite gelada.
– Corrado – ele disse em voz baixa,
sem se importar em olhar para a figura
que se escondia nas sombras ao lado dos
degraus. Ele sabia que o cunhado estaria
ali esperando por ele.
– Bem, Vincent, nós poderíamos
chamá-lo de um monte de coisas, mas
covarde certamente não é uma delas.

– Vamos logo! Já estamos atrasados!


Corrado estava de pé no banheiro do
andar superior, encarando seu reflexo no
espelho enquanto a luz da manhã entrava
pela janela. Ele já havia tomado banho e
se vestido, mas, além disso, pouco fizera
para se preparar para aquele dia. A
exaustão infiltrava cada célula de seu
corpo, e as linhas em seu rosto estavam
bastante visíveis. Ele estudou cada uma
delas, cada marca e cada cicatriz;
analisou os cabelos brancos e os
pequenos vasos em seus olhos cansados.
– Você está me escutando, Corrado?
Vamos nos atrasar!
Celia entrou no banheiro, franzindo a
testa. Sem dizer uma palavra, ela
caminhou até o marido e ajeitou a gravata
por baixo do colarinho.
– Vinte e sete anos – ele disse, olhando
para ela pelo espelho. – Já estamos
casados há quase três décadas e você
ainda precisa arrumar a minha gravata,
quase todos os dias.
Ela sorriu.
– É difícil acreditar que já se passou
tanto tempo.
– É, eu sei – ele disse, desviando do
olhar dela e concentrando-se em sua
própria imagem. – Minha idade já está
visível.
Celia riu no momento em que ele se
virou e olhou para a esposa.
– Você ainda continua tão bonito
quanto no dia em que nos conhecemos.
– E você está cada dia mais linda.
Ele se inclinou e a beijou
delicadamente, apreciando o toque dos
lábios dela sobre os seus. Ela, entretanto,
interrompeu o beijo em poucos segundos
e franziu o nariz.
– Mas você anda um pouco mais
desleixado ultimamente – retrucou,
esfregando os pelos duros no queixo do
marido.
– Não tive vontade de me barbear hoje
– ele disse. – Estava sem energia para
isso.
– Você parece cansado – ela comentou,
deslizando as mãos de seu rosto até os
cabelos. – Você, afinal, conseguiu dormir
um pouco?
– Um pouquinho.
– Você chegou bem tarde ontem à noite.
– É verdade.
Ele olhou para ela e percebeu as
perguntas que pairavam naqueles
calorosos olhos castanhos. Onde você
estava? Onde foi que se meteu? O que
fez? Com quem você estava? Quem você
machucou dessa vez? Aquelas eram as
perguntas que a incomodavam e estavam
sempre na ponta de sua língua, mas que
ela jamais elaborava. Ele se sentia grato
por isso. Não queria mentir para Celia,
mas não havia como lhe dizer que há
apenas algumas horas ele havia rastreado
o único irmão dela e o acuado como um
animal ferido, na mesma igreja para a
qual seguiriam naquela manhã.
– Bem, vamos logo – ela disse,
desviando o olhar. – Ainda temos de
apanhar a mamãe e você sabe o quanto
ela detesta chegar atrasada. Se não nos
apressarmos, ela irá reclamar durante
todo o caminho.
Corrado saiu do banheiro, desligou a
luz e seguiu a esposa até o carro. Nenhum
dos dois falou muito durante o caminho
até Sunny Oaks Manor, onde Gia
DeMarco vivia há alguns anos. Corrado
nunca gostara daquela mulher, muito
menos de sua língua afiadíssima. Mesmo
assim, tinha profundo respeito por ela.
Quando chegaram, Celia saiu do carro
e subiu as escadas, enquanto o marido
ficou esperando na entrada. Depois que
elas desceram, ele caminhou até o carro e
delicadamente abriu a porta de trás para a
sogra. Gia se sentou sem sequer olhar
para o genro. Com os braços cruzados,
ela o repreendeu pelo atraso.
Corrado fechou a porta e soltou um
suspiro enquanto dava a volta e entrava
no carro. Celia o olhou de modo direto,
deixando claro que tudo o que ambos
iriam escutar durante todo o trajeto seria
por culpa dele.
Ele aceitava aquele fato. Afinal, era o
mínimo que poderia fazer.
– Você parece ótima, Gia – ele disse
com delicadeza logo que pegou a estrada.
– Está usando um vestido novo?
– Está usando um vestido novo? – ela
resmungou, fazendo pouco caso do
comentário do genro. Com um ar de
teimosia, fixou os olhos na janela,
recusando-se a se virar na direção dele. –
Não sou criança, sabia, e não gosto de ser
tratada como uma, especialmente por
você. Se ainda estivesse vivo, Antonio
daria fim a você. Que Deus proteja a
alma daquele bastardo.
– É, ele certamente faria isso –
concordou Corrado, em silêncio. – Ele
com certeza estaria bastante desapontado
com o genro.
– Mas é de fato um vestido muito
bonito, mamãe – disse Celia, olhando
para o banco de trás com um sorriso no
rosto. – Aliás, esse tom de azul fica muito
bem em você.
– Está dizendo que as outras cores não
me caem bem? – perguntou Gia,
finalmente mudando de posição e olhando
para a filha. Seu olhar cortante a mediu
milímetro por milímetro. – Você não
deveria usar roupas pretas com tanta
frequência, Celia. A escuridão a engole e
faz parecer como se estivesse sempre
enlutada. As pessoas vão começar a
achar que está infeliz, a questionar sobre
seu casamento. É isso o que quer? Que
todos pensem que não consegue satisfazer
seu marido?
– Não diga bobagens – retrucou Celia,
voltando-se para frente. – Todos sabem
que uso preto porque essa cor me faz
parecer mais magra.
– Bem, não parece estar funcionando –
disse Gia. – Talvez devesse se exercitar
em vez disso.
Celia soltou um riso forçado, mas
Corrado sabia muito bem pela expressão
da esposa que as palavras ferinas da mãe
a haviam machucado. Ele esticou o braço
e pegou na mão da esposa, confortando-a
sem dizer uma palavra.
O carro parou no semáforo por um
momento. Apesar de ser manhã de
domingo, o trânsito estava congestionado.
Gia soltou um suspiro dramático e
Corrado olhou pelo retrovisor a tempo de
vê-la se voltar mais uma vez para a
janela.
– Não posso acreditar que estamos
atrasados. Teremos de nos sentar na parte
de trás.
– Nós sempre nos sentamos na parte de
trás, mamãe.
– Porque queremos sentar lá, não pelo
fato de sermos obrigados a fazê-lo –
reclamou Gia. – Detesto quando não
tenho opções. Eu deveria poder escolher,
sabia? Quando seu pai ainda era vivo
todos esperavam que nós nos sentássemos
primeiro. Era uma questão de respeito.
Mas ninguém se importa mais com isso.
Corrado se sentiu aliviado quando a
luz ficou verde.
A igreja já estava lotada quando
finalmente chegaram e Corrado teve de
estacionar na esquina. Ele desceu, deu a
volta no carro e educadamente ofereceu o
braço a Gia, mas ela recusou sua ajuda e
seguiu para a igreja sozinha, reclamando
e bufando o tempo todo. Celia ainda
tentou acompanhar a mãe, mas Corrado
não se importou em fazê-lo e, em vez
disso, caminhou lentamente em direção à
porta principal.
Poucos minutos depois, ele se sentou
ao lado da esposa e abriu o botão do
paletó. A missa já havia começado e
padre Alberto estava de pé no altar
fazendo um sermão sobre amor e perdão.
Corrado permaneceu quieto durante todo
o rito, participando mecanicamente de
todas as etapas, e não saiu do banco na
hora da comunhão.
Quando tudo já estava terminado,
Corrado foi o primeiro a sair. Celia e Gia
também deixaram a igreja e
cumprimentaram alguns conhecidos e
amigos. Ele esperava pacientemente por
elas quando padre Alberto o encontrou
em meio à multidão.
– Não o vi no começo da missa,
Corrado. Pensei que não viesse, afinal.
– Eu não deixaria de vir, padre – ele
respondeu. – Só chegamos um pouco
atrasados.
O padre o olhou mais de perto.
– Será que voltarei a vê-lo durante a
semana?
– E para quê?
– Qualquer coisa – respondeu. –
Minhas portas estão sempre abertas, mas,
como bem sabe, toda quarta-feira eu
atendo no confessionário.
Ele com certeza estava atirando uma
isca para Corrado. Queria informações
que não lhe seriam reveladas.
– É, quem sabe – respondeu. – A
semana só está começando. Não há como
prever o que acontecerá de hoje até lá.
Capítulo 27
O prédio em ruínas ficava afastado da
estrada principal. Enormes buracos
estavam espalhados pelo estacionamento
coberto de cascalhos ao redor da
construção. Para evitar possíveis
atolamentos, os vários carros que se
encontravam no local não obedeciam a
nenhuma ordem específica. Estavam
simplesmente parados e completamente
tortos entre as crateras. A placa
fluorescente pendurada acima da porta
trazia a palavra SINSATIONS em letras rosa-
choque.
– O que diabos estamos fazendo aqui?
– perguntou Carmine ao sair do banco do
passageiro da Mercedes de Corrado,
depois que este o arrancou da cama às
três da manhã e sem explicar aonde
estavam indo. De todos os lugares que lhe
passaram pela cabeça, um clube de
striptease de quinta categoria seria a
última possibilidade.
– Negócios – respondeu Corrado,
acenando para que Carmine o seguisse.
O rapaz caminhou pelo estacionamento
atrás do tio.
– Você também é dono desse lugar?
Os passos de Corrado vacilaram por
um instante e ele se virou para o sobrinho
com irritação.
– Você claramente não me conhece
muito bem se acha que eu seria o
proprietário de um lugar desses. O dono
paga uma taxa mensal e nós deixamos que
eles mantenham essa lixeira imunda em
nosso território.
– Ah, chantagem e extorsão –
resmungou Carmine. – Legal!
Corrado soltou um riso seco.
– É um negócio justo. Ninguém mexe
com eles porque eles pagam o que nos
devem e, em troca, nós utilizamos as
instalações quando necessário.
– Mas o que você poderia querer nesse
buraco fedorento?
– Você logo verá.
Assim que a porta foi aberta, o som
forte do baixo se espalhou. Os ouvidos de
Carmine começaram a zunir logo que
entrou e o cheiro fétido do local fez com
que ele fizesse uma careta. O odor
parecia uma mistura de suor, bebida e
fumaça de cigarro barato. Tudo isso
formava uma nuvem densa, que o fez
tossir assim que a inalou. Em seguida,
olhou para a névoa que se formava no
palco e viu garotas dançando ao redor de
barras verticais com sapatos de
plataforma. Elas se dobravam em direção
aos homens que penduravam notas de
dinheiro em suas calcinhas estilo fio
dental.
Nenhum ser humano respeitável
colocaria os pés naquela espelunca; ele
então percebeu que era justamente o
ponto, ou seja, ninguém ali parecia
respeitável.
– Pare de olhar – disse Corrado,
aproximando-se de Carmine e falando
alto para ser ouvido. – Não estamos aqui
em busca de prazer.
– Engraçado – Carmine resmungou. –
Se você acha que eu me envolveria com
vagabundas desse tipo, então é você que
não me conhece.
Eles seguiram para um escritório nos
fundos e fecharam a porta depois de
entrar. Corrado abriu um alçapão no piso
e começou a descer a escada, mas o
garoto hesitou quando ouviu o grito
estridente de uma mulher. Seu coração
quase parou ao escutar Corrado rosnar
irritado:
– Por que ela não está amordaçada?
Ela gritou novamente e, em seguida, só
restou o silêncio.
Carmine começou a descer devagar,
sem querer enervar ainda mais seu tio. As
paredes grossas do porão abafavam a
música, sendo possível ouvir apenas o
tom grave do baixo. Ele olhou para os
lados com cautela e ficou chocado ao se
deparar com aquela imagem. Duas
pessoas estavam sentadas em cadeiras no
centro da sala; ambas estavam algemadas
e cada uma tinha um saco de tecido
grosseiro sobre a cabeça. Uma delas era
claramente uma mulher e usava um
vestido dourado; a outra usava jeans e
camiseta. Além de Corrado e Carmine
havia dois outros mafiosi no local,
acompanhando a situação das laterais.
Carmine estava olhando para os
prisioneiros e avaliando a situação
quando seus olhos se fixaram no velho
relógio de ouro no pulso do rapaz. Um
frio desceu pela espinha de Carmine e
seu coração foi parar na boca.
– Não – ele sussurrou, horrorizado. Ele
já havia visto aquele relógio no passado.
– Deus, não.
Corrado olhou de volta para ele,
escutando as palavras que saíam de sua
boca. Os olhos de ambos se cruzaram por
um momento antes que Corrado fizesse
um sinal para que um dos sujeitos
retirasse o saco da cabeça da mulher. Em
desespero, ela olhou para os lados,
apavorada ao deparar com os dois.
Cabelos ruivos cobriam parcialmente o
rosto dela no momento em que se fixou
em Carmine. Ele se viu obrigado a
desviar o olhar.
– Você a conhece, Carmine?
O jovem assentiu lentamente.
– Ela é a namorada de Remy.
Corrado soltou uma gargalhada e o
som amargo fez Carmine sentir um
calafrio na espinha.
– O nome dela é Vanessa O’Bannon.
Ela é filha de Seamus e, aparentemente, a
responsável por fornecer as drogas a
Remy, trazendo o produto dos irlandeses
para o clube, bem debaixo do meu nariz.
Corrado fez um movimento para que o
outro sujeito retirasse o saco da cabeça
do rapaz. Os olhos aterrorizados de Remy
imediatamente buscaram os de Carmine;
lágrimas escorriam deles enquanto,
mesmo sem dizer uma palavra, o rapaz
implorava pela ajuda do amigo.
– Quais são as regras, Carmine?
Recite-as para mim.
Carmine mais uma vez desviou o olhar
e piscou algumas vezes ao registrar a
pergunta.
– Mantenha-se longe das drogas e não
chame atenção para si mesmo.
– Continue.
– Ah, nossas mulheres devem
permanecer intocadas. E os filhos
também.
– E?
– Nunca dedure seus amigos – disse
Carmine, sentindo o arrependimento
borbulhar dentro de seu corpo. –
Mantenha a boca fechada e fique longe da
polícia.
– E o que mais?
– Não roube o que pertence ao colega.
Retribua à organização. Sempre esteja
disponível quando for chamado,
independentemente da situação – Carmine
fez uma pausa. – É isso.
– Está errado – disse Corrado. – Você
se esqueceu de algo muito importante.
– O quê?
– Nunca confraternize com o inimigo.
Corrado enfiou a mão no casaco e
puxou a arma. Sem aviso, um único tiro
soou no porão e o som alto reverberou
pelas paredes grossas. Carmine deu um
pulo ao ver a bala atravessar a nuca de
Remy e o sangue se espalhar pelo chão e
pelas paredes.
O ar desapareceu dos pulmões de
Carmine. Seus joelhos fraquejaram
quando o grito alto e estridente ecoou na
sala. Ele não conseguia se mover. Seus
olhos se fixaram nos respingos de sangue
vivo que cobriam tudo, até seus tênis. Era
o sangue de seu amigo…
De repente, flashes de Nicholas
retornaram à sua mente. Pela segunda vez,
a culpa de ver um amigo morrer o
consumia por dentro.
Abismado, Carmine observou enquanto
Corrado apontava a arma para a testa de
Vanessa. A jovem soluçava e tremia; as
lágrimas escorriam pelo seu rosto quando
ela pressionou os olhos e Corrado puxou
o gatilho, bem de perto, fazendo com que
um clique sutil ecoasse pelo porão.
Carmine sentiu o gosto da bile subir
até sua garganta e então a engoliu
novamente, sem querer vomitar. Vanessa
continuava a soluçar, com a cabeça
abaixada.
Colocando a mão sob o queixo da
moça, Corrado puxou seu rosto para
cima, forçando-a a encará-lo.
– Sei onde mora. Sei por onde seu pai
anda. Sei qual é a escola que seu primo
Jessie frequenta. Sua melhor amiga,
Marie? Sei onde ela trabalha, e já estive
na igreja onde sua avó costuma jogar
bingo nas noites de terça-feira. Se voltar
a se aproximar do meu clube, eu mato um
por um, antes de cortar sua garganta
enquanto você dorme. Capisce?
Vanessa assentiu, soluçando e sem
condições de falar.
Corrado removeu as algemas e deu um
passo para trás.
– Saia daqui tranquilamente e arrume
uma carona de volta para casa. Não diga
uma palavra sobre isso a ninguém.
Vanessa se levantou, e seguiu
tropeçando em direção à escada.
Carmine observou tudo aquilo em
estado de choque. Seus olhos olhando
para a porta e então para seu tio.
– Você a deixou ir embora? E se ela
chamar a polícia?
– Ela não vai – ele respondeu,
guardando a arma antes de sinalizar para
que os dois sujeitos se livrassem do
corpo de Remy. Ambos o enrolaram num
cobertor e o levaram para cima. Corrado
supervisionou toda a ação e então se
voltou para Carmine. – Limpe essa
bagunça.
Em pânico, Carmine passou a mão
pelos cabelos.
– Eu?
– Sim, e seja rápido. Afinal, eu posso
estar enganado e ela pode acabar abrindo
a boca.
Capítulo 28
A longa mesa de mogno tomava toda a
sala de audiência, deixando pouco espaço
para que as pessoas empurrassem suas
cadeiras. O lugar estava lotado e o clima
pesado; Corrado respirava o mesmo ar já
viciado que os outros seis homens na
sala.
Ele se sentou à extremidade da mesa,
com Borza, seu advogado, à sua direita.
O único relator do processo estava ao
lado do advogado. O promotor público
federal, cujo nome era Markson, estava
do lado esquerdo, junto com dois
assistentes. Havia ainda na sala um
policial recostado numa cadeira próxima
à porta, quase dormindo. Corrado não
estava surpreso em perceber que eles
haviam tomado o cuidado de convocar
segurança para o encontro, considerando
a natureza do caso, mas sentiu-se um
pouco ofendido ao ver que eles realmente
achavam que um único idiota seria
suficiente para manter o grupo seguro.
O relógio marcava 8h23. Já havia se
passado quase meia hora desde o horário
para o qual o procedimento estava
agendado. Tensão tomava conta do lugar
enquanto todos olhavam para a porta
fechada, esperando que ela se abrisse a
qualquer momento para que algo
finalmente pudesse acontecer. Ninguém
parecia saber o que dizer; nenhum dos
lados queria ser o primeiro a verbalizar o
que se tornava evidente.
Vincent DeMarco não apareceu para
dar seu depoimento.
Os ponteiros do relógio continuavam a
se mover e outros dez minutos se
passaram, até que Borza limpou a
garganta.
– Acho que todos podemos concordar
que esse depoimento não acontecerá hoje.
– Espere só mais um pouco – disse o
promotor. – Ele virá.
– Já esperamos trinta minutos –
argumentou Borza. – É óbvio que ele
decidiu não testemunhar.
O promotor retrucou.
– Se ele não aparecer é porque algo o
impediu de vir.
– O quê, por exemplo? – perguntou
Borza. – O trânsito? Um pneu furado?
Essas não seriam exatamente boas
desculpas nesse caso.
– Não, refiro-me a algo com o seu
cliente.
– Ah, por favor não me venha com essa
– disse Borza, desqualificando a sugestão
da promotoria. – O senhor Moretti passou
a manhã inteira aqui, ao nosso lado. Você
sabe disso. Aliás, ele já estava aqui antes
de vocês.
– É possível, mas e quanto à noite de
ontem ou o dia anterior? E quanto à
semana passada? – disse o promotor,
voltando-se para Corrado de modo
suspeito e com os olhos em chamas. –
Quando foi a última vez que se encontrou
com Vincent DeMarco?
Corrado sequer teve a chance de
pensar em responder. Borza empurrou a
cadeira para trás, batendo-a contra a
parede e colocando-se de pé.
– Sabe perfeitamente que meu cliente
não tem obrigação de estar aqui por conta
de toda essa tolice, muito menos de
responder a perguntas paranoicas e
absurdas! Entre em contato caso sua
testemunha apareça e então
reagendaremos esse showzinho. Do
contrário, isso acaba aqui.
O advogado saiu da sala furioso,
enquanto Corrado se levantou com a
maior tranquilidade possível.
– Tenham um bom dia, cavalheiros.
– Isso tem exatamente a sua cara,
Moretti – disse o promotor em voz baixa,
fechando seu caderno de notas enquanto
reunia suas coisas. – Você não sairá livre
disso. Marque bem minhas palavras. Eu o
terei fora das ruas antes do final do dia.

Não fazia nem duas horas que Corrado


havia chegado em casa quando seu
telefone começou a tocar de modo
insistente. Ele ignorou as chamadas, sem
o menor desejo de conversar com
ninguém. Porém, percebeu, depois da
terceira chamada consecutiva, que quem
quer que fosse não iria desistir.
Ele atendeu com um suspiro, apertando
o viva-voz:
– Moretti.
– Temos um problema.
Corrado fechou os olhos ao ouvir a voz
do advogado. Ele já estava cansado de
ouvir Borza dizer aquelas mesmas
palavras.
– O que foi agora?
– A promotoria solicitou uma
audiência emergencial com um pedido de
revogação de fiança. Eles têm como base
evidências de que você esteja planejando
fugir e represente um perigo para a
sociedade.
Recostando-se na cadeira, Corrado
deslizou a mão sobre o rosto, frustrado.
– E quais são as evidências?
– Bem, eles citam o desaparecimento
de Vincent. Estão emitindo um mandato
por não comparecimento, porém, até o
momento, não há sinal dele, nem em
Chicago nem na Carolina do Norte.
E não haveria mesmo, pensou
Corrado. Ninguém seria capaz de
encontrar Vincent.
– Parece que ele encontrou um meio de
remover o mecanismo de monitoramento
– continuou Borza. – Eles o localizaram
em Chicago, mas estava dentro de uma
lixeira. Fizeram uma busca, em todo caso,
mas não há nenhum sinal de um… Você
sabe.
– De um corpo – disse Corrado,
completando o pensamento de Borza.
– Sim.
Uma forte tensão parecia presente em
cada palavra dita ao telefone. Aquilo
deixou Corrado preocupado. Até mesmo
seu advogado demonstrava ter dúvidas.
– Eu não chamaria isso de evidência
de que eu tenha feito algo errado –
retrucou Corrado. – Eles estão apenas
buscando uma desculpa e me punindo
pelos erros do meu cunhado.
– Embora isso possa mesmo ser
verdade, não significa que não irá
funcionar – disse Borza. – Você está
sendo julgado por algo que eles
inventaram para conseguir pegá-lo por
crimes com os quais você não está
diretamente envolvido. O governo pode
muito bem aceitar tais evidências para
apoiar a promotoria.
– Então o que está me dizendo é que
eles podem vencer.
Borza hesitou. Corrado já sabia qual
seria a resposta mesmo antes de o
advogado se pronunciar.
– Há grandes possibilidades.
Embora não estivesse surpreso,
considerando as palavras de Markson
naquela manhã, Corrado sentiu um soco
no estômago diante daquela reviravolta
no caso.
– E quanto tempo isso me dá?
– A audiência está marcada para
amanhã cedo. Eles queriam realizá-la
ainda esta noite, mas consegui adiá-la. É
melhor que não esteja presente, eu acho,
ou poderão detê-lo imediatamente. Eles
então lhe darão 48 horas para se
apresentar.
– O final de semana – concluiu
Corrado.
– É, mais ou menos isso.
Corrado ficou em silêncio por um
momento, analisando a situação. Aquele
prazo não seria suficiente para que ele
fizesse tudo o que era necessário. Se eles
o detivessem, ele poderia ficar preso por
meses, até anos. Coisas demais
dependiam de sua habilidade de
permanecer livre.
– Faça o que puder – respondeu
Corrado. – Confio em suas habilidades.
– Farei todo o possível, mas não posso
operar milagres.
Corrado deu risada.
– Está por acaso insinuando que só
Deus é capaz de me ajudar agora?
– Não, de modo algum. Só estou
dizendo que talvez tenhamos de aceitar a
derrota nesta batalha e nos concentrarmos
em vencer a guerra.
Corrado voltou a pressionar o botão,
encerrando a chamada sem responder. Ele
ficou sentado por um momento, com as
mãos juntas sobre a mesa, esfregando as
pontas dos dedos enquanto pensava.
Então se levantou e pegou seu celular, o
colocou no bolso e saiu de seu escritório,
cruzando com a esposa no caminho em
direção à porta.
– Vai sair? – ela perguntou.
Ele deu um beijo no rosto dela.
– Tenho que resolver algumas coisas.
Não me espere acordada.
Acho que algumas pessoas já
nascem com o sangue
impregnado de tragédia.
Mesclados às células, ao
plasma e às plaquetas,
encontram-se segredos
profundamente escondidos dos
quais elas não podem escapar.
Faz parte delas; foram
passados ao longo das
gerações, embora não as defina
como seres humanos. Isso não
significa que elas estejam
amaldiçoadas. Como me disse
certa vez um homem sábio, os
fertilizantes mais fedorentos
fazem crescer as mais belas
flores.
Haven passou os dedos na folha
amarelada, serpenteando-os sobre as
palavras escritas à mão enquanto relia
mais uma vez o parágrafo. Ela estava
sentada no centro do sofá, com as pernas
cruzadas e com o diário de couro nas
mãos. Kelsey, por sua vez, estava
recostada numa poltrona do outro lado da
sala. Com as pernas penduradas num dos
braços da poltrona, ela zapeava com o
controle remoto, sem se interessar por
nada na TV.
Depois de um momento, a voz familiar
de Alex Trebek soou na sala:
– O autor da obra do século XX, O
jardim secreto.
– Frances Hodgson Burnett – Haven
sussurrou, erguendo a cabeça e vendo o
programa Jeopardy na tela.
Kelsey a encarou ao ouvir a resposta,
acenando negativamente com a cabeça ao
mudar de canal.
– Você é tão nerd.
Haven deu de ombros. Se a amiga
disse aquilo como um insulto, não foi
assim que a jovem recebeu a crítica.
Kelsey ainda tentou mais alguns canais
antes de desistir, desligar a TV e atirar o
controle na mesa. Ajeitou-se na poltrona
e pegou uma pasta azul contendo os
registros para o próximo semestre
escolar.
– Afinal, o que você está lendo?
– Nada – respondeu Haven, fechando o
diário. – É só um livro.
Kelsey a encarou por um momento com
as sobrancelhas erguidas.
– Isso eu já tinha percebido, Sherlock.
Haven se levantou e recolocou o livro
na estante antes de pegar a outra pasta de
registro. As aulas recomeçavam na manhã
seguinte, o que daria a Haven um novo
começo. Ela não se saíra tão mal no
semestre anterior, não fora reprovada em
nenhuma de suas matérias, mas tivera
muita dificuldade em algumas delas.
– Então, acho que vou deixar o curso
de Desenho II e entrar no grupo de
Escrita e Literatura com você – disse
Kelsey, lendo seu próprio programa.
Haven olhou para o programa da
amiga.
– Bem, minhas aulas são às terças e
quintas e começam às oito da manhã.
Kelsey fez uma careta.
– Urgh, pode esquecer. Que tal
Pesquisa sobre Arte Mundial?
– Nove e meia, nos mesmos dias.
– Ainda é cedo demais.
– Escultura?
– Detesto.
Haven deu risada.
– Bem, tudo o que resta então é Pintura
II.
– E quando é isso?
– Segundas, quartas e sextas ao meio-
dia.
Um sorriso surgiu nos lábios de
Kelsey.
– Bingo!
Kelsey anotou aquilo num pedaço de
papel enquanto Haven colocava a lista de
volta na pasta e a deixava sobre a mesa.
Ela então voltou ao sofá e mais uma vez
cruzou as pernas e, naquele exato
momento, um som alto reverberou pelo
cômodo.
– O telefone está tocando – disse
Kelsey, pegando uma almofada e
atirando-a contra Haven, que a pegou,
tensa e sentindo um calafrio. Seus olhos
se voltaram para a estante onde
repousava o telefone preto, brilhando e
vibrando enquanto tocava.
Além de Kelsey, somente uma pessoa
tinha aquele número.
– Não vai atender? – perguntou Kelsey.
– Ah… Claro – Haven caminhou até o
telefone e identificou quem estava
ligando, mesmo que não tivesse nenhuma
dúvida. O nome de Corrado aparecia na
tela. Sua mão trêmula pegou o aparelho,
mas antes que pudesse atender, parou de
tocar.
Passaram-se trinta, quarenta e cinco
segundos até que finalmente, depois de
um minuto, o telefone voltou a apitar. Era
uma mensagem de texto. Haven olhou
para a tela e leu o que estava escrito:
LIGUE PARA MIM.

O Luna Rossa estava lotado. Uma


antiga música de Frank Sinatra ecoava
dos grandes alto-falantes situados nos
cantos do local, que, aliás, estava tomado
por fumaça de cigarro. Os olhos de
Carmine arderam e se encheram de água
assim que ele pisou ali.
Corrado o chamara e lhe pedira que o
encontrasse imediatamente. Ele não
adiantou o assunto ao telefone, o que
deixou Carmine um pouco tenso. Será que
era sobre seu pai? Haven? Será que algo
havia acontecido a ela?
Da última vez que estivera ali, as
coisas não haviam saído muito bem.
Lentamente, o jovem caminhou até o
bar.
– Uma vodca, por favor.
O barman ergueu a sobrancelha.
– Identidade, por favor.
Carmine hesitou por um momento. Que
porra é essa?
– Você já me conhece, cara.
– É, tem razão – respondeu o barman,
sem se mostrar impressionado. – Eu te
conheço.
– Então, vai me servir uma dose ou
não?
– Claro – disse o sujeito. – Assim que
me mostrar sua identidade.
Carmine olhou para ele, surpreso.
– Tá de gozação comigo?
O barman respirou fundo.
– Olhe, eu sinto muito, mas você
conhece bem o seu tio… E não vou
perder meu emprego só porque você quer
uma bebida. Ele proibiu que nós o
servíssemos, para sempre.
– Mas que merda é essa? – murmurou
Carmine, desejando poder beber algo que
aplacasse seus nervos em frangalhos
antes de encarar Corrado. – Onde está o
meu tio, afinal? Ele me disse pra
encontrá-lo aqui.
– No escritório dele – respondeu o
barman, indicando o corredor. – Sabe
onde fica.
Frustrado, Carmine se afastou do bar e
lentamente caminhou até os fundos. Ele
bateu na porta e esperou. A última coisa
que queria era discutir novamente com o
tio.
– Está aberta – gritou Corrado.
Carmine entrou e se deparou com
Corrado sentado em sua cadeira de
couro. Sem erguer a cabeça e com certa
indiferença, ele continuou a mexer em
seus papéis. Não querendo interrompê-lo,
Carmine se sentou na cadeira da frente e
se manteve em silêncio.
Corrado olhou para ele e interrompeu
o que fazia.
– Eu mandei você sentar?
– Ah, não.
– Então acho que um homem com o
mínimo de inteligência seria capaz de
concluir que ainda deveria estar de pé.
Você não é nenhum gênio, mas até uma
criança de dois anos é capaz de seguir
regras simples.
Carmine manteve a boca fechada e se
segurou para não responder ao insulto.
Ele já deveria estar acostumado com
aquilo, mas seu temperamento ainda era
difícil de controlar.
O garoto se levantou.
– Agora você pode se sentar.
Filho da puta, ele pensou.
Carmine voltou a se acomodar e, tenso,
começou a dedilhar nos braços da
cadeira. Ele sentiu o suor se formando em
sua testa; as luzes na sala eram fortes
demais e desconfortáveis. Seu coração
estava acelerado enquanto esperava que
Corrado lhe dissesse a razão para tê-lo
convocado, mas o silêncio continuou.
Corrado voltou a remexer os papéis,
ignorando sua presença.
Quase vinte minutos excruciantemente
dolorosos se passaram antes que o tio
olhasse mais uma vez para o rapaz.
– Está sob efeito de alguma coisa,
Carmine?
– Não – ele respondeu, estreitando os
olhos na defensiva. – Não tenho usado
nada desde que…
– E é melhor não usar mesmo – disse
Corrado. – Isso é inaceitável e
desrespeitoso. Já matei alguns homens
por muito menos que isso, e…
Soltando um suspiro, Carmine se
recostou na cadeira enquanto seu tio
prosseguia com o sermão. Era a mesma
merda que ele já ouvira dezenas de vezes
nas últimas semanas. Ele já sabia de tudo
aquilo. Na verdade, já sabia mesmo antes
de aquele incidente acontecer e estava
começando a se cansar de ser relembrado
e repreendido por seu erro.
Ele achava que já havia pagado o
suficiente por aquilo, e o resultado fora
algo que jamais esqueceria. O fato é que
seus pensamentos já estavam longe
quando o telefone tocou e interrompeu
seus devaneios. Corrado parou
imediatamente de falar e olhou para o
aparelho com a expressão severa.
– Se disser uma única palavra, eu o
farei sofrer. Compreende?
O jovem empalideceu e acenou
rapidamente, aterrorizado demais para
responder.
– Estou falando sério – avisou
Corrado. – Não ouse nem respirar alto
demais.
Pegando o telefone, Corrado o levou
ao ouvido e o atendeu.
– Alô, Haven.
De repente, o ar desapareceu dos
pulmões de Carmine. Corrado estreitou
os olhos ao perceber o suspiro trêmulo
do rapaz, mas ele não conseguiu evitar. A
sala, de um momento para o outro, se
tornara menor e sufocante; o ambiente,
opressivo.
Ele queria vomitar. Queria chorar.
Queria dar um soco no tio e pegar aquele
telefone de suas mãos e ouvir a voz de
Haven mais uma vez.
Mas ele não fez nada. Apenas se
manteve sentado, olhando para o outro
lado da mesa, tentando ao máximo escutar
alguma coisa, qualquer coisa… Pelo
menos uma parte da mulher que tanto
amava.
– Só liguei para avisá-la que ficarei
ausente por algum tempo – disse Corrado.
– Não há nada com que deva se
preocupar, mas talvez eu não possa ser
encontrado por alguns meses.
Corrado ficou em silêncio ao escutar a
resposta da garota. Em seguida, tirou o
fone do ouvido por um instante e o
colocou sobre a mesa, apertando um
botão na tela. Carmine sentiu o estômago
revirar, imaginando que o tio o tivesse
desligado, até que ouviu um leve suspiro
do outro lado. Era sutil, quase inaudível,
mas estava lá. Corrado acionara o viva-
voz.
– Como vai a escola? – perguntou
Corrado, soando desinteressado e fixando
os olhos em Carmine enquanto a
questionava.
– Bem, está tudo bem – Haven
respondeu. – O novo semestre começa
amanhã. Já me registrei para todas as
minhas aulas.
– Isso é ótimo – disse Corrado,
dedilhando sobre a mesa. – Espero que
esteja se divertindo e fazendo amigos.
– Sim, eu estou.
– Ótimo – ele disse. – Fico feliz que
esteja bem. Cuide-se, ok?
– O senhor também.
Carmine fechou os olhos quando o tio
apertou outro botão e encerrou a
chamada. Eles se sentaram em silêncio
por um momento até que Corrado se
voltasse para o rapaz.
– Eu não estarei por perto para tomar
conta de você, Carmine, então é melhor
que você se mantenha na linha.
– Para onde você vai?
– Para a prisão.
Carmine piscou algumas vezes.
– O quê?
– Enquanto falamos os promotores
estão revogando minha fiança – explicou
o tio. – Eles acham que tive algo a ver
com o desaparecimento de seu pai.
Depois de se forçar a ficar em
silêncio, Carmine fez a pergunta que já
não podia mais evitar:
– E teve?
Corrado acenou a mão, voltando a se
concentrar em sua papelada.
– Já pode sair, Carmine.
Capítulo 29
No instante em que Corrado entrou em
casa naquela noite, o cheiro delicioso do
molho à marinara despertou seus
sentidos. Ele respirou fundo, inalando o
aroma enquanto se dirigia à cozinha.
Celia estava de frente para o fogão, com
as mangas arregaçadas até os cotovelos e
os cabelos presos num coque um pouco
solto. Um avental azul protegia suas
roupas dos respingos enquanto ela mexia
o molho caseiro.
Corrado a observou em silêncio, com
apenas a sombra de um sorriso nos
lábios. Ela não o ouvira entrar e
continuou concentrada em suas tarefas,
sem perceber a presença do marido. Ele
adorava esses momentos, quando Celia
estava fazendo o que mais gostava e o
resto do mundo parecia desaparecer.
Como um raio de sol, ela brilhava de
maneira radiante enquanto se
movimentava de um lado para o outro.
Aquilo era o que tanto o atraíra naquela
mulher: sua habilidade de iluminar um
mundo tão escuro e devastador.
Ele sentiria falta da esposa, quanto a
isso não tinha dúvidas. Seu mundo logo
se tornaria bem mais frio.
Ele soltou um suspiro, sem querer
imaginar o que aconteceria no dia
seguinte. Celia levou um susto e derrubou
a colher. Levando a mão ao peito, ela se
virou e deu de cara com o marido.
– Você me assustou! Não fazia ideia de
que estivesse em casa.
Corrado abriu um sorriso e, sem dizer
nada, deu alguns passos na direção dela.
Com cuidado, ele desfez o nó do avental
e o atirou longe, enquanto Celia o
encarava sem acreditar no que via. Ele
ergueu a mão e puxou o grampo que
prendia seus cabelos, deixando que
caíssem nos ombros dela.
– O que está fazendo? – perguntou
Celia no momento em que ele pegou sua
mão.
– Levando-a para cima – ele disse –, e
me preparando para tirar suas roupas.
Ela tentou se manter na cozinha e fazê-
lo desistir da ideia, mas ele era bem mais
forte que ela.
– Corrado, espere! Estou cozinhando!
– E daí?
– O molho vai queimar.
– Você sempre poderá preparar outro
mais tarde.
– Mas o fogo está aceso!
– E quem liga para isso?
– Quem liga? – ela perguntou incrédula
enquanto ele a puxava em direção à
escada. – Mas e se pegar fogo?
– Então eu lhe compro um novo fogão.
– Mas pode queimar a casa toda!
– Então eu construirei uma nova casa
para você.
Ela riu sem acreditar.
– Mas ela queimará enquanto nós dois
ainda estivermos aqui dentro, Corrado.
Ele olhou para ela, erguendo uma
sobrancelha.
– Acha mesmo que eu deixaria isso
acontecer?
Ela retrucou na hora:
– E você realmente acha que poderia
conter um incêndio?
Corrado ficou momentaneamente em
silêncio, ainda segurando sua cintura
enquanto ambos estavam de pé diante dos
degraus. Ele ponderou sobre a pergunta.
Será que achava que poderia conter o
incêndio?
– Bellissima, eu seria capaz de fazer o
tempo parar por você. Eu lhe daria a lua
e as estrelas, aprenderia a desafiar a
gravidade. Não há nada que eu não
fizesse por você, ninguém que eu não
matasse se você me pedisse, se
precisasse. Salvá-la de um incêndio não
seria nada além de puro instinto.
Ela o encarou por alguns instantes, sem
se mover, antes de relaxar o corpo e
ceder. Não que aquela fosse uma decisão
difícil de tomar. Ela sabia que Corrado
faria qualquer coisa por ela, e ambos
reconheciam que Celia nunca lhe negaria
nada. Fosse o que fosse, em qualquer
situação, Celia sempre estaria ao seu
lado, por mais difícil que a vida se
tornasse.
De mãos dadas, Corrado levou Celia
para o quarto. Ele fechou a porta,
deixando de fora o mundo cruel que os
separaria no dia seguinte. Aquela noite
seria somente dos dois.
Horas depois, Corrado desceu a
escada e se dirigiu à cozinha escura.
Desligou o fogo e jogou o molho
queimado na pia antes de tentar lavar a
panela. Esfregou-a um pouco, mas quando
percebeu que não valia o esforço, a atirou
no lixo.
Voltou a subir e tomou um banho,
permanecendo debaixo da ducha quente
até que começasse a esfriar. Usando uma
lâmina fina, ele se barbeou
cuidadosamente, contando apenas com o
brilho do luar que invadia o banheiro. Em
seguida, penteou os cabelos para trás e
vestiu o terno mais caro que possuía, um
Brioni preto. Com seu Rolex no pulso e
sapatos de couro italianos nos pés, ele
entrou no quarto e olhou para a esposa,
que ainda dormia.
Celia ressonava levemente, agarrada
ao travesseiro do marido. Corrado se
inclinou e a beijou na testa.
– Durma bem, bellissima.
Ele voltou a descer e, usando seu
celular, chamou um táxi. Não demorou
muito até que o veículo estacionasse em
frente à casa, e em pouco tempo, eles já
haviam cruzado a cidade. Ele deu uma
bela gorjeta ao motorista ao chegar no
local e saiu do carro, acenando para que
fosse embora antes que ele começasse a
caminhar.
Corrado entrou no Centro Correcional
Metropolitano antes das três da manhã,
com a cabeça erguida e os passos
seguros. Estava ali para substituir seu
terno por um uniforme laranja e ser
confinado em um buraco, mas não via a
menor razão para não fazê-lo com estilo.
Capítulo 30
– Segurem com firmeza, todos vocês.
As estocadas devem ser profundas. Para
cima e para baixo, para cima e para
baixo.
Risos contidos podiam ser ouvidos na
pequena sala de artes. Era como se
alguém estivesse se afogando no próprio
ar.
– Experimentem com toques leves e
mais pesados. Brinquem com isso e
encontrem o ponto que lhes parecer mais
confortável.
Kelsey se inclinou para o lado e deu
uma leve cotovelada em Haven,
sussurrando:
– Você acha que ela faz isso de
propósito?
Haven franziu a testa sem entender.
– Faz o quê?
– Isso mesmo. Continuem, todos. Isso é
exatamente o que gosto de ver: sua
criatividade explodindo na tela enquanto
eu os ajudo a alcançar o clímax.
Kelsey tossiu mais alto, tentando
esconder outro riso, mas outros na sala
não conseguiam se controlar tão bem. A
professora, entretanto, não percebeu. E,
se percebeu, não reagiu.
– A arte é algo pessoal. Só diz respeito
a você e a seus instrumentos criando algo
a partir do nada. Trata-se de um processo
sensual. Vocês estão gerando amor.
– Sim, é definitivamente de propósito –
concluiu Kelsey. – A senhorita Michaels
é uma pervertida.
Haven sentiu o rosto corar ao perceber
finalmente o motivo dos risos, e acabou
derrubando o pincel no chão e olhou para
as formas e os padrões aleatórios na tela,
percebendo que tudo parecia sexualizado.
– Belo trabalho, Hayden.
Absolutamente fabuloso.
Haven sorriu delicadamente, e ficou
ainda mais vermelha ao ver a professora
ao lado de sua estação de trabalho.
– Obrigada.
– O prazer é todo meu.
O restante da aula continuou do mesmo
jeito, com risadinhas imaturas
acompanhando cada palavra da
professora que pudesse sugerir uma
conotação sexual. Quando os alunos
foram liberados, cerca de vinte minutos
mais tarde, Haven estava tão perturbada
que queria ser capaz de sair da própria
pele.
Ela pegou suas coisas e saiu
rapidamente da sala, tentando adiar a
inevitável e embaraçosa conversa que
Kelsey jamais deixaria de lado. Haven
desceu do sétimo andar e saiu pela porta
do prédio, trombando com alguém que
estava na calçada. Ela quase se
desequilibrou, tamanha a força do
tropeção.
Aquela segunda-feira não parecia
mesmo ser o seu dia.
– Sinto muito – ela se desculpou,
afastando-se do sujeito à sua frente. Ele
pareceu surpreso e se manteve imóvel
com os olhos arregalados. Eles
ostentavam um tom azul diferente, quase
cinza. A pele do homem era bronzeada.
– Não foi nada – ele respondeu,
deixando o caminho livre. Seu tom de voz
era agudo. O sotaque pesado do Brooklin
era comum em Nova York. – Você está
bem?
– Ah, sim, claro – ela respondeu,
dando um passo para trás. – Estou bem.
Isso acontece o tempo todo.
– O que acontece o tempo todo? – ele
perguntou. – Você trombar com
estranhos?
– Sim.
O homem sorriu e seu rosto se
iluminou, expondo duas covinhas.
– Isso dá um novo significado ao termo
“trombadinha”, não acha?
Ela sorriu diante da piada, feliz pelo
fato de ele não estar zangado.
– É, acho que sim.
Ele começou a falar novamente, mas
ela não lhe deu tempo. Ao ouvir o riso de
Kelsey logo atrás, Haven pediu desculpas
novamente, desviou do sujeito e se
misturou à multidão na calçada.

O curso de Pintura II, também


conhecido como Arte do Coração,
tornara-se o favorito de Haven desde o
primeiro dia do semestre. Era a única
hora em que ela conseguia deixar a
cautela em segundo plano e se permitia
sentir tudo o que se passava dentro de si.
Não havia fingimentos, não quando ela
pintava.
Alma, dissera a professora, e Haven se
empenhou ao máximo para colocar isso
em prática.
– Você acha que a senhorita Michaels
tem orgasmos diante de um Da Vinci? –
perguntou Kelsey na quarta-feira,
enquanto elas deixavam a sala juntas. –
Talvez A última ceia seja pornô para ela.
Ela parecia estar gozando enquanto
falava sobre a obra na aula de hoje – ela
fez uma pausa, franzindo o nariz. –
Gozando. Nojento. Agora eu estou
sentindo isso.
Haven revirou os olhos.
– Trata-se de uma pintura religiosa.
Duvido que ela o considere erótico.
– Tudo bem, então, que tal a Mona
Lisa? – sugeriu Kelsey. – Também é do
Da Vinci, não é? Ou… Espere um pouco,
acho que é Van Gogh. Picasso, talvez?
– É de Da Vinci – respondeu Haven. –
Como você pode ser uma estudante de
artes?
– São duas áreas de estudo totalmente
opostas – retrucou Kelsey. – Eu desenho
coisas num computador, enquanto vocês
fazem amor com suas telas.
– Nós criamos amor nas telas.
– E qual é a diferença? – perguntou
Kelsey com desdém. – Para mim, as duas
coisas parecem pervertidas.
Haven meneou a cabeça, desviando o
olhar de sua amiga enquanto saíam do
prédio. Ela se deparou com um par de
olhos azuis. Era o mesmo rapaz que
conhecera há dois dias. Ele sorriu e
acenou delicadamente. Haven enrubesceu
ao reconhecê-lo.
– Viu? Estou certa – retrucou Kelsey,
reparando nas faces rosadas da amiga. –
Todos vocês pintores se sentem excitados
pela arte.

Na sexta-feira, quando se preparava


para deixar a sala, o jovem estava lá
novamente, assim como estaria nas
próximas segunda e quarta-feiras. O ciclo
continuou com olhares curiosos, sorrisos
educados e acenos de mão em todos os
demais dias da semana, sempre a uma
hora. Ele sempre estava parado do lado
de fora do prédio, como se esperasse
alguém ou, quem sabe, alguma coisa.
Duas semanas depois, também numa
sexta-feira, Haven foi solicitada a
permanecer um pouco mais na sala.
Quando enfim saiu, os corredores
estavam vazios e a rua livre de
estudantes. Ela saiu do prédio arrumando
sua mochila e depois de caminhar um
pouco, seus passos vacilaram. Na
esquina, encostado na parede de outro
prédio, o mesmo sujeito parecia aguardá-
la.
Ele a olhou no momento em que a
garota se aproximou.
Sendo educada, Haven o
cumprimentou.
– Olá.
Ele se afastou da parede e parou na
frente dela.
– Lembra-se de mim?
– Sim. – Seu coração disparou ao
reconhecê-lo prontamente. Ela sempre
preferia quando ele não se dirigia a ela. –
Eu não te machuquei, não é? Olhe, eu
honestamente sinto muito pelo outro dia.
Eu estava apressada e…
– Ei, relaxe – ele disse,
interrompendo-a com uma risada. – É só
que você saiu correndo naquele dia antes
que eu tivesse a chance de lhe falar.
– Ah… – ela disse, olhando para ele
desconfiada. – E falar sobre o quê?
Ele deu de ombros.
– Sobre qualquer coisa.
– Ah… Muito bem.
Ambos olharam um para o outro por
um momento, mas o clima parecia tenso
por conta do embaraço entre ambos.
Haven deu um passo para o lado,
tentando dar a volta, mas ele falou
novamente antes que ela pudesse se
afastar.
– Então, posso acompanhá-la até sua
próxima aula?
Ela negou com a cabeça.
– Já terminei por hoje.
Ele tentou dizer algo, mas ela foi
embora antes que ele tivesse a chance.
Ele tentou de novo na segunda-feira:
– Posso lhe pagar um almoço?
Ela recusou novamente.
– Não estou com fome, mas obrigada.
Na quarta-feira lá estava ele no mesmo
lugar.
– E que tal uma bebida?
Ela passou por ele com a cabeça baixa
e murmurou:
– Não estou com sede.
Na sexta, o rapaz estava parado no
mesmo lugar e na hora exata.
– Posso levá-la até sua casa?
A resposta foi direta:
– Não estou indo para casa agora.
Na segunda seguinte, Haven já estava
preparada. Ela saiu do prédio depois da
aula com a amiga Kelsey ao seu lado,
conversando distraidamente, mas o garoto
já esperava por ela. Ele se afastou do
prédio em que estava encostado e parou
diante das duas, voltando-se para Kelsey.
– Por gentileza, senhorita, será que
posso interromper?
Kelsey franziu as sobrancelhas e, por
um momento, ficou surpresa com o
silêncio que se formou.
– Interromper?
– Sim – ele disse. – Veja, tenho tentado
conversar com sua amiga há semanas,
então, bem… Estou um pouco enciumado
neste momento.
Um sorriso surgiu lentamente no rosto
de Kelsey.
– Ah! Mas é claro!
A amiga se virou para Haven e deu
uma piscada dramática, quase não
contendo um gritinho ao deixar os dois e
se perder na multidão. Haven ficou
parada, sem acreditar no que acontecera,
enquanto o rapaz sorria para ela.
– Então, uma vez que sua amiga parece
aprovar, será que posso acompanhá-la até
onde quer que esteja indo hoje?
Ela negou com a cabeça.
Inacreditável, pensou.
– E por que você iria querer fazer algo
assim?
– E por que eu não iria querer? –
perguntou. – Você é uma garota linda.
Ao ouvir aquelas palavras, ela ficou
surpresa e deu um passo para trás. Ele a
estava paquerando. Aquele garoto estava
flertando com ela.
Ela ergueu os ombros de modo
hesitante.
– Ah, eu acho… Quero dizer, você
pode fazer o que quiser. Não posso
impedi-lo, não é mesmo?
– Certo – ele disse com o sotaque
pesado. – Não vai me dizer a célebre
frase “afinal, este é um país livre”?
– Não, ou melhor, é… – ela disse,
passando a mão na testa. – É um país
livre, não é? Ou pelo menos é o que todos
dizem.
– Sim, mas não quero impor minha
presença. Sei que tenho sido persistente,
mas só queria uma chance de conhecê-la
melhor. Pode recusar e, nesse caso, não
voltarei a abordá-la.
Havia uma certa mágoa naquelas
palavras que a deixou surpresa. Ela não
queria ser rude, mas sua presença a
deixava alarmada e toda aquela atenção
era enervante.
– Bem, você não está impondo sua
presença – ela disse. – Afinal, irá apenas
me acompanhar, certo?
– Certo – ele repetiu, desviando o
olhar e assentindo. Um sorriso surgiu nos
lábios do rapaz, enquanto sinalizou para
que ela seguisse adiante. – Você primeiro,
vou apenas acompanhá-la.
Haven caminhou pela rua e ele
permaneceu ao seu lado com as mãos nos
bolsos e olhando para o chão.
– Então, para onde estamos indo? – ele
perguntou.
– Para a biblioteca – ela respondeu.
– A biblioteca não fica no campus? –
ele perguntou. – Essa é uma escola de
artes, não é? Só artes? Ou eles ensinam
também as mesmas merdas das outras
escolas?
Ela o encarou curiosa. Mas que tipo de
pergunta era aquela?
– Só artes, mas gosto de pensar que é
uma escola bastante normal.
Ele fez um sinal negativo com a
cabeça.
– Ah, eu não quis ser ofensivo.
– Vejo que não frequenta essa escola –
ela comentou –, ou saberia disso.
– Não, não sou um aluno – ele riu para
si mesmo. – É que eu passo por aqui
todos os dias a caminho do trabalho. Eu
trabalho na construção na Sexta Avenida.
Ela o olhou com cautela. As roupas do
rapaz eram limpas e bem arrumadas. Ele
tinha no pulso um relógio caro.
– Não parece trabalhar numa
construção.
Ele sorriu.
– Não, eu fico mais na supervisão. Não
gosto de sujar minhas mãos se não for
preciso.
Haven se soltou um pouco à medida
que caminhavam. Ele se ofereceu para
carregar o material dela e esperou
enquanto ela deixava os livros que
tomara emprestado na biblioteca. Depois,
perguntou novamente se poderia
acompanhá-la até em casa.
– Por quê? – ela questionou, parando
no meio da calçada à frente da Biblioteca
Pública de Nova York. As pessoas
passavam pelos dois, encarando-os por
estarem bloqueando a passagem, mas ela
não se moveu. Pelo menos não até que ele
respondesse.
– Mas você já não me perguntou isso?
– Sim, mas… – ela fez uma pausa. –
Ouça, você está sendo legal. E as pessoas
geralmente não são tão legais, a menos
que queiram alguma coisa.
– Eu sou legal – ele respondeu. – Mas,
de fato, eu quero uma coisa.
Haven estreitou os olhos.
– E o que é que você quer?
– Te conhecer melhor.
– E por que eu?
– E por que não você?
Ele estava sendo evasivo, respondendo
a uma pergunta com outra. Haven ficou
mais tensa.
– Não é um policial, é? Você tem que
me dizer a verdade se for um policial.
Ele a olhou surpreso.
– Não, não tenho. Ou melhor, eles não
têm. Quem disse isso?
– Um amigo.
– Bem, ele está enganado. É
considerado legal que a polícia minta
para as pessoas.
– Tem certeza?
– Sim.
– E isso significa que você seja um?
Ele caiu na gargalhada no meio dos
prédios, assustando quem passava.
– Sabe, a maioria das garotas ficaria
preocupada em saber se o cara seria um
assassino em série ou algo do tipo.
– Mas você não é um assassino em
série, é?
– Não – ele respondeu. – Também não
sou policial. Eu já lhe disse, trabalho na
área de construção civil.
Haven se preparava para responder e
considerar a oferta do garoto quando o
telefone dele tocou. Ele o pegou, com o
ar mais sério, e o desligou.
– Bem, você está com sorte – ele disse.
– O trabalho me chama. Foi muito bom
encontrá-la… – Ele então fez uma pausa,
erguendo as sobrancelhas com
curiosidade.
Foi então que ela percebeu que não
havia lhe dito seu nome.
– Hayden.
– Hayden – ele repetiu sorrindo. –
Você pode me chamar de Gavin.

Pá, pingue, pá, pongue, pá, pingue,


pá, pongue

Corrado estava deitado na cama


inferior de um beliche com o braço em
cima dos olhos, ouvindo o som das
raquetes atingindo a bolinha na sala de
convivência que ficava ao lado de sua
pequena cela. O jogo era acompanhado
de conversas e o barulho era alto o
suficiente para fazer sua cabeça explodir.
Ele estreitou os olhos, tentando evitar
aquele incômodo, porém com o passar do
tempo, o som parecia se tornar cada vez
mais incômodo.
Desde o momento em que se entregara,
aquela foi a primeira vez em que se
arrependera de pedir para ficar na
carceragem normal.
Não havia muito a fazer no Centro
Correcional Metropolitano. Também não
havia nada para ver e ninguém com quem
conversar. As partidas de pingue-pongue
e os jogos de carta pareciam as
atividades nas quais a maioria dos
internos investia seu tempo, mas nenhuma
delas interessava a Corrado.
Ocasionalmente ele se dirigia até a área
de recreação da prisão em busca de um
pouco de ar fresco, porém na maior parte
do tempo, ficava deitado olhando para as
paredes, afastado das outras pessoas,
enquanto contava os dias. Já havia se
passado três semanas e só Deus poderia
dizer por quanto tempo ele ainda ficaria
ali.

Pá, pingue, pá, pongue, pá, pingue,


pá, pongue

Corrado tentava encarar aquilo com


tranquilidade. Afinal, depois de tudo o
que fizera ao longo dos anos, alguns
meses atrás das grades deveria ser visto
como uma punição leve. Em seus
cálculos, era menos de um dia de pena
por cada indivíduo que machucara.
Apenas poucas horas de prisão por cada
um que matara. Era simples: cumpriria
aqueles poucos meses de detenção e
então retornaria à sua vida normal.
Naquele dia, entretanto, estar ali
parecia simplesmente insuportável. O
barulho das bolinhas, a conversa fiada
dos internos e as ordens dos porcos
carcereiros enquanto caminhavam de um
lado para outro esbravejando e bancando
os machões, tudo aquilo era demais para
ele.
Respirando fundo, levantou-se da
cama. Seu colega de cela baixou o livro
que estava lendo e, da cama de cima,
olhou para Corrado com cautela. Ambos
não haviam trocado mais que algumas
palavras durante todo aquele tempo.
– Você está bem, cara? – perguntou o
sujeito, com certo cuidado.
– Ficarei bem num minuto.
Corrado saiu de sua cela e, sem
hesitar, caminhou até a área de
convivência. Alguns dos internos estavam
nos cantos, sozinhos, mas a maioria se
reunia ao redor da mesa de pingue-
pongue. Corrado passou calmamente
pelos presos, que, de modo instintivo,
abriam espaço para que ele seguisse até o
detento na ponta da mesa. O sujeito era o
mais barulhento do grupo. Um cara
grandalhão que estava cumprindo alguns
anos por tráfico de drogas.
O sujeito empunhou a raquete e, rindo,
deu uma pancada na bola, sem se
incomodar com a aproximação de
Corrado.
Pá, pingue, pá, pongue, pá, pingue,
pá, pongue

POW

Esse foi o som que ecoou pelo salão de


concreto quando o punho de Corrado
encontrou o nariz do sujeito, que
imediatamente foi ao chão, surpreso e
com sangue por todo o rosto. Todos
ficaram em silêncio e deram um passo
para trás, recuando ao ouvir os apitos dos
carcereiros. A luz foi desligada.
Corrado ficou imóvel e ergueu as mãos
enquanto uma horda de agentes
correcionais se atirou sobre ele. De fato,
ignoraram a pacífica rendição do detento
e o agarraram violentamente, atirando-o
contra a parede mais próxima. As mãos
dele foram algemadas atrás das costas e
seus tornozelos também foram presos. Em
questão de segundos, ele foi levado para
a solitária.
– Péssima ideia, Moretti – disse um
dos oficiais ao empurrá-lo para uma cela
individual e sem janelas, iluminada
apenas por uma lâmpada antiga que não
parava de piscar. – Terá sorte se não for
acusado de agressão.
Corrado riu de maneira seca. A
promotoria não perderia seu tempo com
aquilo. Ela já havia se livrado de quatro
acusações de assassinato, sete de
agressão, três de extorsão e de pelo
menos uma dúzia de supostas violações
envolvendo porte, ocultação e uso de
armas de fogo, talvez um pouco mais ou
um pouco menos. Um murro não
representava mais que uma multa por
excesso de velocidade.
Ao soltar Corrado na cela, o oficial
acenou negativamente com a cabeça,
irritado pelo fato de o detento se recusar
a reagir.
– Você não é tão infalível quanto acha
que é. Se fosse, não estaria preso agora,
não é?
– É apenas temporário – retrucou
Corrado, esfregando as mãos. Os nós dos
dedos já estavam inchados pela força do
golpe.
– É, isso provavelmente é verdade –
resmungou o oficial. – Nunca conseguirei
compreender.
– Não me surpreende – disse Corrado.
– Compreensão não parece ser o seu
ponto forte.
O oficial ignorou o comentário, fechou
a cela e se afastou. Finalmente sozinho,
pensou Corrado, ao deitar-se no colchão
fino e desconfortável e recolocar o braço
sobre os olhos. Ele estava em silêncio.
Em meio à paz do lugar, conseguiu
dormir.
Ao acordar, sentiu que a cabeça já não
doía. Sentou-se ao mesmo tempo em que
um buraco na porta se abriu e ele ouviu a
voz de um oficial.
– Correio.
Dois envelopes foram enfiados ali e
caíram no chão, ambos já abertos. Ele
não estava surpreso. Fazia parte da rotina
ter sua correspondência checada,
confiscada por vários dias e lida e relida
inúmeras vezes em uma tentativa de achar
alguma mensagem oculta que eles nunca
encontrariam.
Não que elas não estivessem ali…
Eles só não eram suficientemente
espertos para decifrarem os códigos.
– Ouvi dizer que hoje é seu aniversário
– comentou o oficial. – Isso é verdade? –
Sim.
O oficial riu.
– Confinado numa solitária. Que
maravilhoso presente de aniversário.
Corrado se levantou e pegou as cartas
no momento em que o buraco na porta se
fechou. O primeiro envelope era apenas
um cartão de feliz aniversário de sua
esposa, na cor azul e sem nenhuma
mensagem muito especial em seu interior.
Então ele olhou para o segundo envelope
com curiosidade antes de retirar de
dentro uma folha de papel. Era uma nota
breve, escrita de forma confusa à caneta.

ROSAS SÃO VERMELHAS,


VIOLETAS SÃO AZUIS,
FUI TRABALHAR,
E QUANTO A VOCÊ?

P.S.: PENSEI QUE VIOLETAS FOSSEM DE COR


VIOLETA, NÃO AZUIS. FIQUEI SURPRESO. ACHO
QUE PRECISO DE ALGUMA INSTRUÇÃO, DO TIPO
PRÁTICO.

Corrado leu o bilhete duas vezes,


surpreso pela mensagem ter passado pela
segurança. O bilhete não estava assinado
e era impossível ler o remetente, mas ele
sabia muito bem de onde viera.
Ele não tinha caneta ou papel para
responder, então não poderia fazê-lo
imediatamente, mas já sabia o que iria
dizer:
HÁ FLORES DE TODAS AS CORES, MAS
ALGUMAS JAMAIS DEVEM SER COLHIDAS.
APRECIE A VISTA, MAS NÃO TENTE PLANTAR
NENHUMA DE SUAS SEMENTES NO MEU JARDIM.
DETESTARIA VÊ-LO SE SUJAR COM
FERTILIZANTES.
Capítulo 31
No primeiro dia da primavera, 20 de
março, caminhões e vans enchiam as ruas
que cercavam o Prédio Federal Dirksen,
no centro da cidade de Chicago. O sol
brilhava com força e a tarde estava
quente. As árvores ostentavam um verde
brilhante e as flores estavam abertas. No
entanto, a atmosfera no 12º andar do
prédio não permitia que ninguém
pensasse em como as coisas aconteciam
do lado de fora.
Sob a luz suave do tribunal, Corrado
estava sentado atrás da longa mesa
destinada aos réus, com as mãos unidas à
sua frente e uma gravata mal-ajeitada no
pescoço. Sua esposa não estivera ali
naquela manhã para arrumá-la e ele se
vestiu sozinho numa sala próxima de onde
se encontrava agora. O ar estava frio,
tanto no que diz respeito à temperatura
quanto à atmosfera. Apesar de já viver
em Chicago há décadas, Corrado ainda
não se acostumara com o frio do lugar.
Mas ele não tremia, recusando-se a
parecer fraco.

OS ESTADOS UNIDOS CONTRA CORRADO


MORETTI
1º DIA

O tribunal estava lotado. Não havia


nenhuma cadeira vazia em lugar algum.
Corrado já havia olhado os presentes
quando viu Celia na parte de trás,
acompanhada pelo sobrinho, Dominic.
Ao lado deles não havia muitos rostos
amigáveis. Nenhum amigo, nenhum
familiar, ninguém da Cosa Nostra…
Apenas vítimas e seus parentes lotavam a
sala, sugando todo o oxigênio.
Corrado podia sentir a hostilidade
daquelas pessoas em sua pele. Mas não
se importava com o que eles pensavam,
apesar disso. As únicas opiniões que
realmente valiam eram as dos doze
jurados que ocupariam o espaço
reservado. Havia oito homens e quatro
mulheres. Todos ficariam hospedados
num hotel barato das imediações
enquanto durasse o julgamento,
confinados 24 horas por dia.
Aquela era a primeira vez que Corrado
enfrentaria um júri mantido em reclusão.
O juiz temia que ele se valesse de
subornos para conseguir sair ou até que
machucasse alguém para assegurar apoio.
Se depender de um resultado genuíno não
o deixasse irritado, ele até ficaria
lisonjeado pelo medo demonstrado.
Recostando-se na cadeira, Corrado se
inclinou até o advogado.
– O fato de eles estarem mantendo o
júri recluso com armas em punho não
pode gerar certo preconceito contra mim?
– Não mais do que eles já sentem –
respondeu o advogado. – Eles já entraram
aqui acreditando que você é um monstro.
Nosso trabalho é humanizá-lo.
– E como é que você pretende realizar
essa façanha?
– Observe e veja.
O senhor Borza se levantou, ajeitou a
gravata e se aproximou do júri.
– Senhoras e senhores, durante as
próximas semanas ouviremos algumas
histórias terríveis, aliás, algumas tão
horripilantes que provavelmente farão
revirar seus estômagos. Isso é um fato.
Do modo como a acusação coloca este
caso, ela descreverá a vocês um homem
violento, imoral, sem a menor
consciência, que apavora a população
desta enorme cidade praticamente todos
os dias. Estou aqui para dizer-lhes desde
já que se tal homem existe, eu ainda não o
encontrei, e certamente não o
representaria se me pedisse.
O júri ouviu com atenção, pensando a
respeito de cada palavra do advogado.
Borza caminhou sobre o tapete que estava
à frente, olhando para cada um dos
jurados nos olhos.
– Permitam-me lhes falar um pouco
sobre o homem que está em julgamento
aqui – ele disse, apontando para a mesa
do réu. – Corrado Moretti nunca
frequentou uma faculdade. Ele sequer
terminou o colegial, mas isso não o
impediu de seguir seus sonhos. Ele é um
cristão, temente a Deus; um homem que
ama sua família… Em especial sua
esposa, Celia. Eles estão casados há 27
anos.
Foi preciso que Corrado se contivesse
para não olhar para sua esposa naquele
momento. Ele se manteve parado,
observando o júri em busca de sinais de
compaixão, mas não encontrou nada.
– O caso da promotoria se baseia em
meias verdades que serão proferidas por
conhecidos mentirosos que sentarão no
banco de testemunhas e lhes dirão o que
quer que tenham sido instruídos a dizer.
Eles lhes contarão todos os fatos, as
invenções, porque o governo ofereceu a
essas pessoas acordos interessantes.
“Você me ajuda e eu ajudo você.” Por que
estão fazendo isso? Porque têm uma
vingança pessoal contra meu cliente –
afirmou Borza antes de continuar.
– O senhor Moretti construiu seu
negócio a partir do zero, tijolo por tijolo,
investindo cada centavo que tinha no
Luna Rossa. Ele é o proprietário de um
pequeno negócio que emprega mais de
uma dúzia de funcionários e oferece a
eles todos os benefícios. Ele paga seus
impostos em dia. E vive o Sonho
Americano. Apesar da falta de educação
formal, ele alcançou o sucesso. Isso o faz
parecer um homem imoral? Isso por
acaso sugere que ele não tenha
consciência? Em minha opinião, parece
apenas que ele é um ser humano, como
vocês e eu.
Borza prosseguiu, torcendo todos os
fatos, até que no final conseguiu
transformar Corrado num gentil escoteiro.
Enquanto o advogado se sentava, Corrado
mais uma vez olhou para o rosto dos
jurados e, dessa vez, relaxou um pouco
ao perceber um olhar mais compassivo
por parte da jurada número seis. Ela o
encarava com um brilho de esperança por
algum sinal de humanidade. Ingênuo e
bobo, talvez, mas aquela mulher queria
acreditar no melhor dele.
Aquilo era tudo de que ele precisava:
de uma pequena abertura que lhe
permitisse dar o primeiro passo rumo à
liberdade.

9º DIA
Escutas telefônicas.
O som da voz de Corrado soava alto e
claro no tribunal vindo dos alto-falantes
colocados na frente. Pilhas de
transcrições estavam espalhadas sobre as
mesas, intocadas. A voz dele era clara e
concisa. Não era preciso ler o que estava
escrito, uma vez que suas palavras eram
absolutamente claras.
– Faça o que estou mandando – sua
voz reverberava pela sala. – Quando eu
acordar amanhã é melhor não ouvir que
ele ainda esteja respirando, ou então é
você que não estará até a hora que eu
voltar para cama.
Corrado passou a mão no rosto,
frustrado. Como seu advogado explicaria
aquelas palavras?
Fita após fita, ameaça após ameaça.
Não havia ali nenhuma prova, mas muitas
insinuações perigosas.
Todos ficaram apreensivos quando a
promotoria colocou a última gravação do
dia. Corrado se recostou na cadeira,
ficando tenso ao ouvir uma voz familiar
nos alto-falantes.
– Está feito – disse Vincent. –
Aconteceu esta noite, finalmente.
Corrado identificou o diálogo. Ele
estava sentado em casa quando seu
cunhado ligou de Blackburn para dizer
que havia conseguido Haven.
– Já era hora – respondeu Corrado. –
E quanto foi que você pagou?
– Duzentos e cinquenta mil –
respondeu Vincent. – Mas eu teria pago
mais se fosse o caso.
– Eu sei – retrucou Corrado. – Pagou
bem caro por essa garota.
– Sim – Vincent suspirou do outro lado.
– Todos nós pagamos.
Quando aquelas palavras soaram em
seus ouvidos, Corrado acenou
negativamente com a cabeça: tráfico de
pessoas para trabalho escravo. Aquelas
palavras em sua acusação faziam sentido.
As intenções ali não importavam. Aliás,
em geral, não importam.

17º DIA
Testemunho do perito.
Corrado não se ateve muito à parte em
que a promotoria chamou um perito em
contabilidade para testemunhar. Eles
estavam vasculhando seus registros de
caixa e tentando encontrar alguma grande
soma em dinheiro que pudesse ter sido
adquirida de maneira ilegal. Corrado
estava entediado, sabendo que eles não
encontrariam nada substancial. Pelo que
sabia, alguns dólares aqui e ali não
contavam.
– Objeção! – exclamou seu advogado,
interrompendo a linha de questionamento.
– Não compreendo a importância de
saber quanto o senhor Moretti gastou em
suprimentos para os banheiros no mês de
julho.
– Objeção rejeitada! – disse o juiz, e
acenou para que o promotor continuasse.
Mais perguntas, mais bisbilhotices e
mais desespero. Corrado olhou para o
júri que, aliás, parecia tão entediado
quanto ele próprio. Ele se fixou na jurada
número seis, esperando que ela desviasse
o olhar, mas ela o encarou, estudando-o
com curiosidade nos olhos.
– Objeção! – exclamou novamente o
advogado. – Não vejo qual a relevância
de tudo isso.
O juiz respirou fundo.
– Objeção rejeitada.
Aquilo se estendeu por duas horas
excruciantes antes que a acusação
terminasse. O senhor Borza se levantou e
se dirigiu à testemunha.
– Com base em seus cálculos, qual o
total de dinheiro no Luna Rossa que não
foi reportado no ano passado?
– Ah, US$15.776, 49 – respondeu o
especialista.
Corrado se encolheu. Eram mais que
alguns dólares, afinal.
– Parece muito dinheiro – disse Borza,
verbalizando os pensamentos de seu
cliente. – Porém, estamos falando aqui de
um clube cujo faturamento no ano
passado foi de três milhões de dólares,
está correto?
– Sim.
– Esse dinheiro não registrado seria,
portanto, o equivalente a meio por cento?
– Um pouquinho mais que isso, mas…
sim.
– Então mais de 99% da receita do
Luna Rossa está nos registros, preto no
branco. Considerar esse meio por cento
seria o mesmo que acusar um homem de
perder alguns centavos ao ganhar um
dólar numa loja. Isso dificilmente poderia
ser rotulado como um elaborado esquema
de lavagem de dinheiro.
– Objeção! – gritou a promotoria. –
Ele está tentando distorcer os fatos.
– Mantida! Continue, senhor Borza.
A resposta do juiz não abalou o
advogado. Ele havia conseguido
estabelecer um ponto importante, e
prosseguiu:
– E esse meio por cento poderia ser
apenas um erro matemático?
– É possível.
– Então pode ser que nenhum dinheiro
tenha sumido, afinal.
– Objeção.
– Negada! Responda à pergunta.
– É possível – respondeu o contador. –
É justamente por isso que os impostos
são auditados ao longo de um período de
anos em busca de consistência e exatidão
nos dados, porque erros desse tipo
podem ocorrer.
O senhor Borza sorriu e se sentou.
– Erros desse tipo podem ocorrer. Eu
não teria colocado melhor.
22º DIA
Testemunha de acusação.
Várias testemunhas juraram sobre a
Bíblia e responderam às perguntas que
lhes foram colocadas. Eram ex-parceiros,
alguns da própria Cosa Nostra, que
contaram algumas histórias violentas;
donos de estabelecimentos e transeuntes
sem muita sorte também disseram o que
viram. Nenhum deles, entretanto, apontou
o dedo diretamente para Corrado, mas
havia o suficiente para associá-lo aos
crimes, pelo menos de maneira
superficial.
– Senhor Gallo – disse o advogado de
Corrado, dirigindo-se a um ex-capanga
da Máfia. – O senhor testemunhou que,
juntamente a outros três homens, esteve
envolvido em uma série de roubos no mês
de março de 1980. Isso está correto?
– Sim.
– E qual teria sido o papel do senhor
Corrado Moretti nesse caso?
– Ele nos mandou fazê-lo.
– Em pessoa?
– Por mensagem de texto.
– Então imagino que haveria registros
dessas mensagens, correto?
– Não, eram aparelhos pré-pagos,
descartáveis.
– Certo, e as mensagens vieram do
número do meu cliente?
– Não, de um número privado.
– Ainda possui esse aparelho pré-
pago?
– Não, foi destruído. Você sabe,
descartado.
– Então, deixe-me ver se entendi
corretamente… Você roubou esses
lugares porque recebeu mensagens de
texto anônimas para que assim o fizesse;
mensagens das quais não há nenhuma
evidência, e espera que aceitemos a sua
palavra de que elas vieram de Corrado
Moretti.
– Foi ele.
– E se eu lhe dissesse que os outros
três nomes mencionados nesses roubos
afirmam não conhecer o senhor Corrado
Moretti? E vão ainda mais longe, dizendo
que esse foi um esquema planejado e
executado por vocês quatro. O que o
senhor me diria?
– Eu diria que eles estão mentindo.
– Ah, então é possível que os três
estejam mentindo – retrucou o senhor
Borza. – Não seria mais provável que o
senhor o estivesse?

O som de um alfinete caindo no chão


poderia ser ouvido em meio ao silêncio
tenso que tomava conta do tribunal. O
promotor ficou de pé ao lado de sua
mesa, mexendo em sua papelada enquanto
as pessoas aguardavam que ele falasse.
Todos estavam nervosos; os que
acompanhavam o julgamento estavam
ansiosos em suas cadeiras e seus olhos se
voltavam para a porta a cada mínimo
barulho.
Um mês após o início do julgamento e
a acusação estava prestes a chamar sua
última testemunha.
Carmine prendeu a respiração, assim
como a maioria dos cidadãos de Chicago
que lotava a sala. Ele faltara à maior
parte das sessões, por respeito ou
egoísmo, não tinha certeza, mas aquele
era um dia em que teria de estar presente.
Ele precisava estar lá, ver com seus
próprios olhos e encarar a dura
realidade. Ele tinha de saber se o pai
ainda estava vivo.
Se Vincent tivesse sido localizado e
colocado num programa de proteção à
testemunhas, ninguém estaria ciente até
que ele entrasse no tribunal, escoltado
por oficiais armados. No entanto, se ele
não aparecesse – … Carmine nem queria
pensar no que aquilo significaria.
Ele olhou para os lados, fixando os
olhos em Corrado. Este, por sua vez,
parecia relaxado e completamente
entediado ao se recostar na cadeira. Seus
olhos estavam concentrados no júri
inquieto. Ele tinha se mantido daquele
jeito, confiante e calmo, durante todo o
julgamento ou será que ele sabia algo que
os demais desconheciam?
Carmine então se voltou para o outro
lado do tribunal, onde estavam sentados
sua tia e seu irmão. Nenhum dos dois o
vira entrar e ele preferia que tivesse sido
assim. A última coisa de que precisava
era ser forçado a passar seu tempo com a
família.
O promotor Markson limpou a
garganta.
– Meritíssimo, a acusação… –
Carmine fechou os olhos… – …chama
Vincenzo DeMarco para que ocupe o
banco de testemunhas.
– …e encerra seus depoimentos. Não
temos mais testemunhas.
Carmine reabriu os olhos quando o
silêncio foi quebrado pelo burburinho. O
juiz exigiu silêncio e Carmine se
levantou, saindo do tribunal antes que o
julgamento pudesse continuar.
Capítulo 32
Gavin se tornou um frequentador
regular no prédio de artes no lado oeste
de Manhattan. Era raro o dia em que ele
não estava de pé ali no momento em que
Haven saía da aula, encostado
casualmente na parede. Era como se ele
não tivesse nada mais a fazer.
Haven conversava com ele nos dias em
que o via e, de vez em quando, o rapaz a
acompanhava à biblioteca em seu
caminho até a construção, que ficava a
apenas alguns quarteirões. Todavia, ele
não quis se arriscar a propor algo além
daquilo.
Era confortável e tranquilo e, depois
de algum tempo, Haven se acostumou
àquele estranho arranjo, apreciando suas
conversas breves antes que cada um
seguisse seu caminho. Não era muito, mas
já era alguma coisa. Era uma conexão,
uma amizade que aflorava entre ambos e
uma companhia que buscava naqueles três
dias da semana.
Haven sorriu para si mesma numa tarde
de sexta-feira quando os dois
caminhavam pela calçada. A multidão se
movia rapidamente ao redor deles, mas
nenhum dos dois tinha pressa de chegar a
algum lugar. Gavin preencheu o tempo
contando uma piada que ouvira no
trabalho. Era algo vulgar que Haven não
compreendeu muito bem, mas ela riu nos
pontos em que achava que deveria.
– Sabe, você me faz lembrar de alguém
que conheci.
– Jura? – ele perguntou, erguendo as
sobrancelhas. – Um namorado, talvez?
– Não, de jeito nenhum. Apenas um
amigo. Ele adorava contar piadas.
A expressão de Gavin mudou.
– Já estou sendo colocado na categoria
de amigos?
Haven o encarou.
– Não sei o que você quer dizer.
Ele não deu muita atenção àquilo.
– E esse seu amigo… Será que ele era
tão bonito quanto eu?
Ela riu.
– Não exatamente, mas poucos seriam.
– Caramba, será que isso é um elogio?
– ele perguntou, parando de caminhar e
piscando os olhos de um jeito dramático.
– Você está dando em cima de mim?
Haven revirou os olhos e se recusou a
responder, continuando a caminhar. Ele
não teve escolha, exceto segui-la.
– É sério, isso foi um elogio? – ele
perguntou. – Não consigo perceber
quando está sendo sarcástica.
– Eu nunca sou sarcástica.
– Ei – ele fez uma pausa. – Espere aí,
isso foi sarcasmo?
Haven negou com a cabeça.
– Foi um elogio. Eu disse o que queria
dizer.
– Uau, estou chocado – ele respondeu,
sorrindo. – Eu honestamente achava que
você estava pensando na ideia de arrumar
uma liminar para me manter longe de
você. É bom saber que consegui fazer
com que você gostasse de mim, pelo
menos um pouquinho.
Ela riu.
– Eu nunca disse que gostava de você.
Apenas que você era bonito. Isso não diz
nada a respeito de sua personalidade.
– Bem, agora tenho certeza de que isso
foi sarcasmo – ele declarou.
– Eu não teria tanta certeza.
Ele levou a mão ao peito.
– Agora você me feriu.
Haven deu um cutucão no cotovelo do
garoto.
– Sei que irá superar.
Uma folha de papel estava grudada ao
vidro do estúdio de arte naquela sexta-
feira. Duas palavras escritas à lápis e
sem maiores explicações: aula cancelada.
– Que maravilha! – exclamou Kelsey,
atirando os braços para cima em
comemoração. – Hoje não tem aula!
Haven franziu o cenho. Ela sempre
esperava ansiosa pela aula de pintura.
– Por que será que foi cancelada?
– Quem se importa? – perguntou
Kelsey. – Agora terei mais tempo para
passar no laboratório e trabalhar no meu
projeto. E, assim, talvez não tenha que
ficar presa em casa o fim de semana todo.
– Bem, nesse caso acho que terei
tempo para… – Haven interrompeu a
frase, sem conseguir pensar em nada para
fazer –… ir à biblioteca.
Kelsey soltou uma gargalhada.
– Você passa mais tempo lá do que em
casa.
Haven deu de ombros. Aquilo
provavelmente era verdade.
Depois de se despedirem, Kelsey
seguiu para o laboratório no andar de
cima e Haven saiu do prédio. Ela
caminhou pela rua, sem pressa de chegar
a lugar algum, na direção da biblioteca.
Sua mente se perdeu em devaneios no
meio da multidão, e então ela percebeu
que já havia passado de seu destino. Ela
ficou confusa e olhou para a placa da rua:
Sexta Avenida.
Havia uma enorme obra na esquina da
avenida do outro lado da rua. O terreno
era grande e cercado por outros prédios.
A estrutura já havia sido erguida e as
barras de ferro juntas mais pareciam um
labirinto elaborado. Tudo parecia sujo e
caótico, exatamente como Haven havia
previsto.
Curiosa, a jovem atravessou a rua para
olhar mais de perto. A maioria dos
operários estava ocupada, operando
equipamentos ou escalando a estrutura,
mas alguns homens com capacete amarelo
estavam de pé conversando. Um ou dois
deles olharam para ela. Alguém soltou um
assobio quando ela entrou no terreno, mas
ela ignorou. Havia um trailer estacionado
num dos lados e ela ouviu o barulho
suave de um aparelho de ar-
condicionado. Algo lhe dizia que se
Gavin estivesse presente, era ali que ela
o encontraria.
Haven sentiu-se deslocada, e manteve
a cabeça abaixada ao seguir em direção
ao trailer. Ela havia caminhado até lá e
achava que seria idiota ir embora sem
pelo menos dizer olá.
Um homem grande vestindo jeans
surrados e camiseta branca estava
inclinado no veículo, atirando pedras em
algo sobre uma pilha de entulho. Haven
se arriscou e olhou para o homem,
sentindo as pernas vacilarem ao ouvir um
gemido vindo dali. Seus olhos se
fincaram no pequeno monte e localizaram
a fonte do barulho: um pequeno gatinho
branco. Ele mal conseguia se mover; seus
pelos estavam manchados de sangue.
O gatinho miou novamente e o homem
atirou mais uma pedra nele, acertando sua
lateral.
– Pare com isso! – disse Haven,
horrorizada. – Por que está fazendo isso?
O homem olhou para ela com olhos
avermelhados, sem considerar as
palavras da garota. Ele apenas se virou,
pegou outra pedra e atirou no gatinho, que
ficou tonto com o golpe.
Os olhos de Haven se encheram de
lágrimas.
– Não faça mais isso!
– Cuide da sua própria vida, docinho –
o homem resmungou. – Volte para o lugar
de onde saiu. Aqui não é lugar para você.
Ele pegou outra pedra, mas Haven não
se deixaria abalar. Ela correu na direção
do bichinho, segurando-o enquanto o
homem atirava a pedra, que a acertou no
lugar do gato. O golpe atingiu seu
tornozelo, mas ela sequer demonstrou
alguma dor, apenas segurou o gatinho nos
braços.
– Mas que diabos está fazendo? –
gritou o homem, afastando-se do trailer.
Ele deu dois passos na direção dela e
logo se aproximou. Por puro instinto,
Haven deu um passo para trás.
Antes que ela pudesse dizer qualquer
coisa, ou correr, a porta do veículo se
abriu e ela escutou os risos. Dois homens
saíram de lá. O primeiro era mais velho,
usava terno e portava uma bengala. Ele
acenou a cabeça para cumprimentar a
todos antes de seguir até o carro que o
esperava. O segundo vestia calças cáqui
e uma camisa azul, e foi reconhecido
imediatamente: Gavin.
Ele se virou para os dois depois que o
homem de terno havia partido e o sorriso
em seu rosto desapareceu ao ver Haven.
Ele franziu as sobrancelhas ao perceber
que algo acontecia entre ela e o operário.
– O que está acontecendo aqui?
– Também gostaria de saber! –
exclamou o homem. – Eu estava aqui no
meu intervalo, sem fazer nada de mais, e
de repente essa garota entra e começa a
me dizer o que devo ou não fazer!
Acredita nisso?
A expressão de Gavin se tornou
sombria; seus olhos azuis adquiriram um
tom acinzentado e ele ficou furioso. O
coração de Haven acelerou e o gatinho
começou a miar quando ela o apertou.
O Gavin que ela conhecera era
amigável, divertido. Ela nunca o havia
visto nervoso antes.
– Volte ao trabalho – ele rosnou para o
homem.
– Mas…
– Mas nada. Vá. Agora.
O homem hesitou por um instante antes
de ir embora. Gavin deu alguns passos
bruscos até Haven, fazendo com que ela
mais uma vez recuasse, mas ele não
parou.
– O que foi que aconteceu?
– Ah, eu… O gatinho estava
machucado e ele estava atirando pedras
nele. Eu disse a ele que parasse, mas ele
não parou. Então o gatinho miou. Eu não
podia ficar somente olhando. Eu tinha de
ajudar! Ele ficou bravo e então você saiu
do trailer, e ele disse o que aconteceu e
ah…
– E aqui estamos nós? – ele completou.
Haven assentiu com a cabeça, evitando
os olhos do rapaz, que se aproximou,
fazendo a garota se encolher, mas ele
pareceu não reparar. Gavin pegou o gato
dos braços dela.
– Parece bem machucado – ele disse,
avaliando a situação. – Há um abrigo
para animais a alguns quarteirões daqui.
Posso levá-lo até lá.
– E eles a ajudarão? – ela perguntou.
– É possível – ele respondeu. – E é um
macho.
– Ah – ela franziu as sobrancelhas. – O
que quer dizer com “é possível”?
– Bem, eu quis dizer que ou eles irão
ajudá-lo ou… o colocarão para dormir.
Haven se contraiu como se ele a
tivesse ferido com aquelas palavras.
– E por que eles o fariam?
– A cidade está cheia de animais sem
dono. Tenho certeza de que o abrigo
recebe mais deles do que pode dar conta.
Talvez não valha a pena salvá-lo.
Horrorizada, Haven arrancou o gatinho
das mãos dele.
– Eles não podem simplesmente matá-
lo! Isso não é justo! Ele não fez nada de
errado!
Surpreso com aquela reação, Gavin
deu risada e ergueu os braços
defensivamente.
– Caramba, tudo bem, relaxe. Há
outras opções.
– Por exemplo?
– Bem, você pode deixá-lo ir, e talvez
ele seja capaz de se curar sozinho.
– Fora de questão. O que mais?
– Você também pode levá-lo a um
veterinário.
Ela olhou para o gato antes de olhar de
volta para o rapaz.
– E você conhece um bom veterinário?
– Acho que conheço um lugar – ele
respondeu, olhando-a com curiosidade. –
Mas o que você faz aqui? Digo, não
entenda mal. É uma ótima surpresa, mas,
ainda assim, uma surpresa. Eu estava
prestes a ir até a escola.
– Minha aula foi cancelada – ela
respondeu. – Eu estava indo para a
biblioteca e acabei vindo parar aqui.
Gavin a olhou sem acreditar.
– Você acabou vindo parar aqui?
– É. E já que estava aqui pensei em
dizer olá, então… Olá.
Um sorriso orgulhoso surgiu em seus
lábios.
– Então você deve ter sentido minha
falta.
– E por que você acharia isso?
– Porque não me viu ontem e não iria
me encontrar hoje se não teve aula. Já
estamos no final da semana, isso quer
dizer que teria que esperar até segunda
para me ver novamente. E isso é muito
tempo.
Ela revirou os olhos diante daquele
tom esnobe.
– Não foi nada disso.
– Admita de uma vez – ele disse. –
Você sentiu minha falta.
– Não.
– Você gosta de mim.
– Não.
– Nem um pouquinho?
– Bem, talvez um pouquinho – ela
admitiu. – Mas só como amigo – ela
esclareceu. – Nada mais que isso.
Gavin acenou negativamente com a
cabeça e deu um passo atrás.
– Espere aqui. Vou pegar o endereço
do veterinário.
Ele retornou ao trailer enquanto Haven
se afastou ainda mais, acariciando o
animal. Ele a olhou com olhos azuis bem
vivos, que em nada combinavam com seu
corpo machucado.
– Bolinha de Neve – ela sussurrou
depois que as palavras surgiram em sua
mente. – Eu vou chamá-lo de Bolinha de
Neve.
Gavin saiu do trailer, parou nos
degraus e fez um gesto para o homem que
atingira o gato. A firmeza voltara à sua
voz e mais uma vez sua expressão se
tornou rígida. O sujeito se aproximou e
Haven viu quando ele disse algo em voz
baixa. O homem baixou a cabeça e soltou
os ombros, sentindo-se envergonhado.
Ele fez um aceno antes de se virar e
caminhar na direção de Haven.
– Sinto muito, senhorita – ele
resmungou, recusando-se a encará-la. –
Espero que aceite meu pedido de
desculpas. Não sou do tipo que machuca
gatos ou coisa do tipo. Só estava me
divertindo. Mande a conta do veterinário
e o senhor Amaro descontará do meu
pagamento.
Surpresa, Haven conseguiu apenas
balbuciar:
– Tudo bem.
Gavin se aproximou dela logo que o
sujeito voltou ao trabalho e deu-lhe um
pedaço de papel com um endereço e um
telefone.
– Obrigada – ela disse. – E o que foi
que você disse a ele para que se
desculpasse?
– Eu só disse a ele quem você é.
Ela ficou tensa ao ouvir aquelas
palavras.
– E quem sou eu?
Gavin olhou para ela e a encarou por
um momento antes de responder. Com as
sobrancelhas erguidas, como se a
pergunta o tivesse pego de surpresa, ele
disse:
– Uma amiga minha, é claro.
– Ah.
– De qualquer modo, quer que eu a
acompanhe? – ele perguntou. – Não fica
longe, apenas um quarteirão voltando
pelo mesmo caminho. Podemos caminhar.
Ela olhou para o endereço no papel.
– Não quero fazê-lo sair mais cedo do
trabalho.
– Está tudo bem – ele disse. – Eu já
estava mesmo de saída.

Poucas horas mais tarde, os dois


estavam sentados em cadeiras plásticas
azuis na movimentada sala de espera de
uma clínica veterinária de emergência.
Haven parecia nervosa, movimentando as
mãos sem parar. Suas costas já
começavam a doer por causa da cadeira
desconfortável.
Uma enfermeira chamou pelo nome de
Haven, que deu um pulo e caminhou na
direção dela sem esperar por Gavin.
– O gatinho ficará bem – disse a
mulher. – Nós o limpamos e cuidamos do
ferimento. É apenas um pequeno corte
que deve cicatrizar logo. Ele também
tinha muitas pulgas, mas já cuidamos
disso. Enfim, não houve nada de mais
com ele. Já pode levá-lo para casa agora.
Sorrindo aliviada, Haven assinou a
papelada antes de pegar o gato e se juntar
a Gavin. Ambos saíram da clínica com o
gatinho dormindo nos braços de Haven. O
sol já estava se pondo e a maior parte do
dia havia passado.
– Então, o que pretende fazer com o
gatinho? – perguntou Gavin. – Vai ficar
com ele?
Ela franziu a testa.
– Não sei se tenho permissão para ter
animais de estimação.
– Pode tentar encontrar um lar para ele
– sugeriu Gavin. – Coloque um anúncio
no jornal.
– Mas e se alguém mau responder,
como aquele sujeito com quem você
trabalha?
Gavin soltou um suspiro.
– Não sei. Estou sem ideias. A menos
que eu o leve para minha casa.
A expressão de Haven se iluminou.
– Você faria isso?
Ele ficou branco.
– Como?
– Você ficaria com ele? – ela
perguntou. – Sei que você seria bom para
ele.
Gavin hesitou, abrindo e fechando a
boca algumas vezes antes de dar de
ombros e soltar um suspiro.
– Caramba, por que não?
Haven sorriu, segurando o gatinho de
pé e movendo suas patinhas na direção de
Gavin.
– Bolinha de Neve te agradece.
A clínica ficava próxima à escola de
arte. Todos os alunos já haviam saído
para o fim de semana quando os dois
seguiam pela calçada.
– É uma longa caminhada daqui até a
obra – Haven percebeu. – Afinal, o que
você vem fazer aqui toda hora?
– Ah, não é tão longe assim – ele disse.
– Dez ou quinze minutos, no máximo. Eu
vim aqui na primeira vez para ir à
confeitaria.
– E quanto a todos os outros dias?
Ele deu de ombros.
– Vim pela companhia.
Haven ficou vermelha.
Ambos conversaram de modo casual
enquanto caminhavam – sobre o gato, a
escola e até mesmo sobre o tempo. Levou
quase meia hora para chegarem ao bairro
onde Haven morava, embora geralmente
o trajeto demorasse metade do tempo.
– Sinto muito que tenha demorado tanto
– disse Haven, parando diante do prédio
quando chegaram.
– Não me importo – ele respondeu,
erguendo os ombros. – Não tinha nada de
importante para fazer.
– E quanto ao trabalho? Eles não o
esperavam de volta?
– Eu faço meu próprio horário de
trabalho, então isso não é um problema.
Entro e saio quando quero.
Ela o olhou com curiosidade. Ele
realmente parecia não se importar.
– Sabe, você é muito legal. Não são
muitas as pessoas que fariam o que você
fez.
– Será que isso fez com que gostasse
de mim só um pouquinho mais?
Ela sorriu.
– Talvez.
– Posso dizer que sim – ele disse
fazendo uma careta. – Você me permitiu
trazê-la até sua casa.
Haven o olhou com surpresa. A ficha
não havia caído até aquele momento.
Depois de ele ter se oferecido tantas
vezes para acompanhá-la e ela ter
recusado, a jovem deixou que ele o
fizesse sem que ele tivesse de pedir.
Mas antes que a garota tivesse tempo
de responder, a porta da frente se abriu e
Kelsey apareceu, falando em voz alta em
seu celular. Ela olhou para os dois e sua
expressão se iluminou, antes de voltar a
atenção para o telefone. Então, procurou
um carro na rua e começou a abanar o
braço como uma maluca.
– Já está me vendo? Sim, é. Encontre
um lugar para parar.
Ela desligou e deu um gritinho.
– E aí, pessoal? O que estão
pretendendo fazer?
Haven ergueu o animal.
– Eu encontrei esse gatinho, então
Gavin foi comigo até o veterinário.
– Daí eu a acompanhei até em casa –
disse ele, com um tom orgulhoso. Haven
revirou os olhos no momento em que
Kelsey começou a brincar com o
bichinho. – Bem, mas eu já estava indo
embora.
A atenção de Kelsey imediatamente se
voltou para Gavin.
– Indo embora? De jeito nenhum! Eu
chamei alguns amigos… Vamos beber
alguma coisa e nos divertir. Você precisa
se juntar a nós, aliás, os dois.
Haven acenou negativamente com a
cabeça, mas um sorriso se abriu no rosto
do rapaz.
– Fala sério?
– Claro – disse Kelsey. – Será legal!
Os amigos de Kelsey começaram a
aparecer, sendo que alguns deles Haven
só vira de longe, mas ninguém que
conhecesse. Todos pareciam sociáveis,
mas ela preferia se manter quieta. Todos
desapareceram dentro do prédio,
reunindo-se no segundo andar.
Erguendo as sobrancelhas, Gavin olhou
para ela com uma interrogação,
esperando sua reação.
– Bem, você vai me convidar pra
entrar?
Ela deu de ombros.
– Kelsey já o convidou.
– Mas não vim até aqui por causa de
Kelsey, portanto, não entrarei a menos
que você me convide.
Haven considerou aquelas palavras,
sem saber direito como responder.
Aquele fora um longo dia e ela realmente
gostaria de tomar um banho e talvez ler
um livro, mas quando a música começou
a tocar no andar de cima, tão alto que as
janelas balançavam, Haven soube que
não teria nenhum momento de paz.
– Muito bem – é melhor seguir a onda,
ela pensou consigo mesma. Viva um
pouco – Então vamos subir.
– Mas que tipo de convite é esse?
– O único tipo que irá receber.
Gavin deu risada e educadamente abriu
a porta do prédio e colocou a mão nas
costas dela, com suavidade. Passando
pelo próprio apartamento, ela subiu a
escada, ciente do olhar de Gavin sobre
ela enquanto seguia adiante. Aquilo fez
sua pele arrepiar e seu estômago apertar.
O apartamento de Kelsey, embora
idêntico ao de Haven no formato, era
completamente diferente do seu; era como
se tivesse entrado em outro mundo. Tudo
era novo e brilhante; os móveis eram
caros e preenchiam todos os cômodos.
Havia belas obras de arte nas paredes.
Haven sentou-se no primeiro lugar que
encontrou vago, uma poltrona de couro
com braços felpudos. Ela tirou os sapatos
e levantou as pernas, sentando-se sobre
elas, segurando com cuidado o gatinho no
colo; Gavin se sentou casualmente no
braço da poltrona.
Só demorou alguns segundos para que
Kelsey trouxesse bebidas para ambos.
Com um sorriso no rosto, Haven optou
pelo coquetel de limão, mas Gavin olhou
com aversão para a garrafa de bebida
com um líquido amarelo.
– Não consigo beber essa merda –
disse para si mesmo em voz baixa.
– Tenho certeza de que ela tem alguma
outra coisa – disse Haven, apontando
para o outro lado da sala. – A cozinha
fica bem ali. Pode se servir, Kelsey não
irá se importar.
Ele se levantou e olhou para ela.
– Vai beber isso?
– Sim – ela respondeu. – Acho que
sim.
Gavin caminhou até a cozinha
segurando a garrafa na mão e entregando-
a para Kelsey. Haven o observou com
curiosidade, aproveitando para admirar o
modo como ele naturalmente se entrosou
com o grupo. Equilibrado e confiante, ele
conversava com estranhos como se já
fossem amigos.
De repente, ela sentiu um pouco de
inveja daquilo. Seria ciúmes pelo fato de
ele estar compartilhando sua presença
com outros, ou apenas por ele ter se
integrado sem fazer o menor esforço? Ela
acreditava que fosse a segunda opção,
mas a mera possibilidade de que ela
desejasse mantê-lo para si mesma a
deixou desconfortável.
Gavin retornou com um copo de
plástico e sentou-se novamente no braço
da poltrona. Ele tomou um gole de sua
bebida e sorriu.
– Bem melhor.
– O que é isso? – ela perguntou
curiosa, olhando para o copo. – Cerveja?
– Chama-se Mountain Dew.
Haven tomou um gole de sua bebida e
enrugou os lábios.
– Você não bebe?
– Sim – ele brincou. – Bebo água, leite
e refrigerante.
– Mas não bebe álcool?
– Não tenho esse hábito – ele
respondeu.
– Também não bebo – ela disse,
elaborando melhor a resposta ao vê-lo
franzir a testa. – Não, não normalmente.
Não tenho idade para isso.
– Bem, eu tenho idade suficiente, mas
prefiro me manter sóbrio e no controle.
Haven o olhou enquanto ele tomava um
gole de seu refrigerante. Sua pele suave
não revelava sua idade. Os olhos dele
eram brilhantes e encorajadores, e seu
sorriso, genuíno. Ele tivera uma vida
tranquila, e isso parecia claro, mas
pequenas cicatrizes em suas mãos diziam
que o rapaz lutara pelo que tinha.
Gavin se virou para ela como se
pudesse sentir o olhar da garota.
– O que foi?
– Quantos anos você tem? – perguntou.
– Vinte e seis.
– Uau, você é …
– Velho demais? – ele tentou adivinhar.
Ela riu.
– Não, ia dizer que parece jovem
demais para ser um gerente.
Gavin franziu as sobrancelhas.
– Gerente?
– Na obra. Você trabalha naquele
pequeno escritório. Disse que
supervisionava as coisas, certo?
O rosto do garoto se iluminou,
compreendendo finalmente o raciocínio
da jovem.
– Ah, claro. Bem, o que faço tem
menos a ver com currículo e mais com
preferências… Se é que isso faz sentido.
Haven acenou com a cabeça.
– Sim, claro.
Afinal, fora justamente assim que ela
própria chegara onde estava, fora
admitida na escola e se mudara para
Nova York. Corrado havia mexido alguns
pauzinhos, é claro, passado por cima das
leis e manipulado o sistema para
beneficiá-la.
Haven ficou olhando para sua bebida
enquanto pensava sobre tudo aquilo.
Apesar de tomá-la em goles pequenos,
ela podia sentir o álcool fazendo efeito
em seu corpo em apenas alguns minutos, e
relaxou as costas no encosto da poltrona.
Suas pálpebras ficaram pesadas. Ao
sentir-se tonta, sua cabeça flutuava e seu
corpo formigava, aquecendo-se
levemente sob o intenso olhar de Gavin.
Ele continuou acomodado no braço da
poltrona, sem desviar a atenção.
Ela se desculpou quando sua bebida
acabou e foi à geladeira pegar outra,
ficando ali um momento para clarear a
mente antes de voltar à sala
movimentada. As pessoas estavam
jogando, e as risadas reverberavam pelo
apartamento e se misturavam à música.
Ela havia acabado de se sentar no mesmo
lugar e abrir sua garrava quando Kelsey
gritou:
– Ei, venham jogar com a gente!
Haven ergueu a cabeça e olhou para os
convidados da amiga.
– Jogar o quê?
– “Eu nunca” – respondeu Kelsey. –
Vamos, é fácil. Os participantes se
revezam dizendo coisas que jamais
fizeram na vida, e todos que já o fizeram
têm de beber um gole.
Haven ficou corada quando todos se
voltaram para ela, que olhou Gavin,
esperando desviar a atenção de si mesma.
Ele ergueu os ombros e respondeu:
– Claro, por que não?
Todos se mudaram para a sala de estar.
Uma dúzia de pessoas se reuniram no
mesmo local e o volume da música foi
reduzido para que todos conseguissem
ouvir as declarações dos participantes.
Nunca fiz sexo em casa quando meus pais
estavam lá. Nunca fiquei embriagado.
Nunca usei uma identidade falsa. Nunca
fiquei bêbado numa festa da escola.
Nunca dirigi um carro sem carteira de
motorista. Todos riam e levantavam as
mãos, dando tapinhas e relembrando
experiências compartilhadas, enquanto
Haven apenas tomava sua bebida, gole
após gole.
No final, ela bebeu muito mais do que
esperava, considerando a vida regrada
que tinha. Percebeu à medida que o
álcool gradualmente invadia sua corrente
sanguínea, que estava ficando confusa e
perdendo o controle sob as próprias
emoções, recordando-se das várias
experiências às quais Carmine
inconscientemente a expusera. Suas vidas
haviam sido tudo, menos normais; seu
amor podia ser chamado de tudo, menos
comum. De algum jeito, ele conseguiu
mostrar a ela o mundo que todas as outras
pessoas conheciam; o mundo do qual ela
sempre quisera fazer parte, aquele em que
ela imaginava ter acabado de entrar.
Aos poucos, o jogo se tornou mais
intenso e as afirmações mais pesadas e
rudes. A garota não voltou a beber tanto,
mas o que ingerira até então ultrapassara
um ponto sem retorno. Gavin participou
do jogo, tomando goles de seu
refrigerante ao ouvir coisas que faziam
Haven ficar vermelha só de imaginar. Ele
ria das reações dela, sorrindo com certa
culpa diante das perguntas que brotavam
nos olhos dela.
– Nunca fui algemado – alguém disse.
Com a garrafa a meio caminho dos
lábios, Haven hesitou ao lembrar-se do
doutor DeMarco e do dia em que ele a
algemara na cama como forma de
punição. Ela bebeu um pequeno gole e
Gavin ergueu uma sobrancelha ao ver
aquilo antes de tomar sua bebida.
– Não pergunte – ela sussurrou,
acenando negativamente com a cabeça.
Ele não queria saber.
Mais algumas perguntas foram
colocadas, algumas bastante grosseiras
que, por alguns segundos, suspendiam os
efeitos do álcool. Foi então que alguém
disse:
– Nunca vi um cadáver!
Todos riram na sala, outros reviraram
os olhos diante do absurdo, mas Haven
empalideceu ao lembrar-se de todas as
mortes, do caos e da destruição que
vivenciara. Ela viu diante dos olhos o
corpo da número 33, com aqueles olhos
azuis sem vida que tanto a assombravam
e o sangue escorrendo ao redor dos
cabelos loiros.
Fechando os olhos, ela tomou um longo
gole de sua bebida e acabou virando o
resto do conteúdo, tentando apagar as
memórias. Talvez ela houvesse apenas
imaginado aquilo, ou, quem sabe, fora
apenas uma coincidência, mas ao reabrir
os olhos Haven percebeu que Gavin
também havia bebido.
O jogo chegou ao final e as pessoas
começaram a se dispersar em busca de
mais bebidas. O volume da música voltou
a aumentar. Gavin soltou um longo
suspiro e olhou para o relógio,
colocando-se de pé.
– Está ficando tarde.
Haven olhou para os lados em busca
de um relógio, mas sua visão estava
embaralhada demais para enxergar os
números. Ficou de pé, ainda com o
gatinho nas mãos, e se sentiu um pouco
tonta. Gavin segurou seu cotovelo para
equilibrá-la, pegando de suas mãos tanto
a garrafa quanto o gatinho.
– É melhor eu levá-la para casa – ele
disse em voz baixa. – Você está bêbada.
Apesar das objeções de Kelsey, Gavin
levou Haven embora. Ele a ajudou a
descer a escada, fazendo uma pausa no
hall do lado externo enquanto ela tentava
encontrar a chave certa.
– Obrigada novamente por esta noite.
A gente se vê na segunda.
Ela se virou para entrar, mas o rapaz a
interrompeu.
– Vamos nos ver antes?
– O quê?
– Vamos sair juntos.
A cor desapareceu do rosto de Haven
no momento em que ele pronunciou
aquelas palavras.
– O que disse?
– Amanhã. Saia comigo amanhã.
– Não posso – ela disse, negando com
a cabeça. – Já tenho outros planos.
Na biblioteca, ela pensou, mas evitou
dizer aquilo em voz alta.
– Então no dia seguinte – ele insistiu. –
Saia comigo no domingo.
Capítulo 33
Haven estava nervosa e não parava de
mexer com as mãos, olhando para as
grossas cortinas brancas que adornavam
sua sala de estar. Era início da tarde de
domingo e a movimentação naquela
região de Manhattan era intensa, como
sempre. Havia turistas nas ruas,
misturando-se aos moradores, e também
vendedores de rua. Em geral, observar
toda aquela atividade tranquilizava
Haven, mas naquele dia cada movimento
a deixava mais nervosa.
– Relaxe – disse Kelsey, atirando-se
no sofá de Haven com o controle remoto
na mão. – Não há motivo para ficar
estressada.
Haven acenou com a cabeça.
– Ele deve chegar logo.
– E daí? É domingo. Não é como se
fosse um encontro romântico ou algo
assim.
Não era um encontro romântico.
Haven tentava dizer a si mesma, mas as
palavras não pareciam funcionar. Aquilo
certamente parecia um encontro para ela.
– Então o que é? – ela perguntou.
– Apenas duas pessoas se reunindo
para fazer o que quer que gostem de fazer
– retrucou a amiga. – Pessoalmente, a
menos que envolva sexo ou bacon, não
vejo razão nenhuma para fazer qualquer
coisa no domingo.
– Bem, não faremos isso – Haven
resmungou.
– Sem bacon? Ele não é vegano, é?
Não confio em homens que não comem
carne.
Haven sentiu o rubor nas bochechas.
– Estou falando de sexo.
Ela mal conseguiu pronunciar aquelas
palavras. Kelsey caiu na risada.
– Que pena. Eu ainda tinha esperanças
por você.
Meneando a cabeça, Haven olhou mais
uma vez pela janela e o viu caminhando
pelo quarteirão em meio à multidão. Ele
estava impecável, com calças pretas e
uma camisa branca. Os sapatos pretos
brilhavam sob a luz da tarde. Ele tinha
uma gravata escura meio solta em torno
do pescoço. Andava de um jeito
confiante, parecendo tranquilo e seguro.
Vê-lo ali fez com que a jovem se
sentisse tonta.
– Caramba, não entendo por que está
em pânico por causa disso – disse
Kelsey. – Você vê esse cara o tempo todo.
Era diferente daquela vez, mas Haven
sabia que a amiga jamais compreenderia.
Kelsey estava sempre namorando,
encontrando caras novos a cada semana,
mas ela não era assim. Não tinha o menor
interesse em namorar. As caminhadas nas
tardes depois das aulas e as conversas
amigáveis entre os dois eram coisas
inocentes. Mas isso… isso fora
planejado. Era um encontro marcado e
artificial. E, para ela, aquela era a
diferença entre amizade e algo mais.
Aquele simples pensamento de alguém
querer algo mais com ela a deixava
completamente agoniada.
Ela soltou a cortina, ajeitando as
roupas no momento em que Gavin bateu à
porta. Sentiu-se mal vestida usando calça
jeans e uma blusinha rosa. E o que as
pessoas vestem numa ocasião que
“parece com um encontro, mas que de
fato não é”?
– Divirta-se – disse Kelsey, com um
olhar travesso nos olhos. – E não faça
nada que eu não faria.
– Não se preocupe com isso –
resmungou Haven. – Eu não farei nem a
metade do que você faria.
Haven abriu a porta, sorrindo um
pouco sem graça ao se deparar com
Gavin.
– Olá.
– Olá – ele disse. – Já está pronta?
– Ah, sim – ela disse, arriscando um
passo fora do apartamento. – Minhas
roupas estão adequadas, não é?
Os olhos dele a mediram da cabeça
aos pés diante da pergunta. A pele da
jovem ficou toda arrepiada.
– Claro, por quê?
– Não sei – ela respondeu. – É que
você está todo arrumado e…
– Ah, é verdade, acho que eu exagerei
um pouco – ele disse, olhando para si
mesmo e fazendo um movimento para
frente e para trás, como se estivesse sem
graça. – Mas você está ótima para o que
tenho em mente.
Haven fechou a porta e deu mais um
passo na direção dele.
– E o que você tem em mente?
Ele enfiou as mãos nos bolsos no
momento em que eles saíram do prédio e,
em seguida, acenou para que ela o
seguisse.
– Pensei que poderíamos caminhar ou
algo assim.
– Mas isso nós fazemos todos os dias.
– É verdade – ele riu. – Funciona para
nós, não é? Vamos ver aonde o caminho
nos leva. Digo, a menos que queira…
– Ah, não – ela o interrompeu, sentindo
sua ansiedade diminuir. – Caminhar é
ótimo.
Afinal, talvez aquilo não fosse mesmo
um encontro.
Os dois andaram pelas ruas e Gavin
logo começou a conversar. O bate-papo
normal continuou até que chegaram ao
metrô na rua 23.
Haven congelou na plataforma depois
que os dois compraram suas passagens;
seus olhos observavam as outras pessoas
que esperavam o trem. Atrás dela se
estendia uma parede de azulejos brancos,
e o piso de concreto estava coberto de
lixo. De repente, ouviu uma sirene e uma
voz nos alto-falantes que abafava a
conversa das pessoas. Pessoas
empurravam, outros gritavam e a
velocidade com que os trens passavam
levantava a sujeira e evidenciava ainda
mais o cheiro de urina do local. Havia o
som de eletricidade no ar, as luzes
piscavam e as portas faziam barulho ao
abrir e fechar, antes de os vagões
partirem.
Aquilo tudo parecia bastante
contraditório. A movimentação era, ao
mesmo tempo, ruidosa e caótica, mas
também organizada, como uma gigantesca
linha de montagem. Tudo era
automatizado, robótico, quase não
humano. Pessoas preenchiam os vagões e
se moviam para dentro e para fora de uma
maneira metódica, como em um relógio.
O mundo ali embaixo era completamente
diferente; um universo que Haven jamais
imaginara que existisse sob a superfície.
Os olhos arregalados da jovem
observaram todo o cenário, absorvendo
tudo em completo silêncio. Gavin
percebeu aquela expressão e franziu o
nariz.
– É, eu sei, esse lugar é mesmo
horroroso.
– Não, é… Ah… É que eu nunca havia
andado de metrô antes.
– Nunca?
Ela acenou a cabeça.
– Nunca.
– Mas como pode viver em Nova York
e não usar o metrô? – ele perguntou. –
Como chega ao outro lado da cidade?
– Eu não chego. Nunca estive lá.
– Nunca?
– Nunca.
– Madison Square Garden?
Ela acenou que não.
– Times Square?
– Não.
– Broadway?
– Não.
Um trem parou na plataforma e as
portas prateadas se abriram. As pessoas
se moveram e Gavin colocou as mãos nas
costas de Haven, guiando-a para dentro
do vagão todo grafitado. Ele forçou o
caminho pela multidão, protegendo-a com
o próprio corpo. Ela se sentou no último
banco de plástico disponível. Sua figura
pequena e delicada ficou espremida entre
um adolescente que ouvia música e
acompanhava o ritmo e um sujeito careca
e gordo que cheirava mal, meio caído
para o lado e roncando.
Gavin ficou de pé na frente de Haven,
encostado a uma barra de metal. As
portas se fecharam e quando o trem partiu
todos se desequilibraram um pouco, o
que fez com que ela se aproximasse ainda
mais do dorminhoco, que sequer
percebeu. O piso abaixo de seus pés
vibrava à medida que o trem deslizava
sobre os trilhos velhos. Havia ainda um
som metálico e o piscar das luzes no
vagão lotado.
O coração de Haven bateu mais forte
em seu peito. Era uma mescla de medo e
euforia. Seu rosto ficou vermelho ao
perceber os olhos de Gavin fixos sobre
ela, demonstrando curiosidade. Ela
desviou o olhar e baixou a cabeça de um
jeito tímido. Estavam tão próximos que
seus joelhos quase se tocavam; as pontas
dos pés se mantinham encostadas.
Naquele momento ela comparou os
calçados: os dele eram brilhantes, novos
e pretos; os dela eram velhos e estavam
gastos e sujos.
Num impulso, ela deslizou os pés para
trás antes de se arriscar a olhar
novamente para o rosto do rapaz. Ele
também havia reparado nos sapatos. Os
olhos dele se mantinham fixos na jovem e
ela podia sentir aquilo. Havia com
certeza muitas perguntas por trás de sua
expressão curiosa, mas ele não fez
nenhuma.
Depois de alguns minutos, os freios a
ar foram acionados e ela ouviu um som
que se parecia com fogos prestes a
explodir. Haven se segurou no assento,
com cuidado para não trombar em
ninguém enquanto o trem parava. As
portas se abriram e Gavin a levou para
outra plataforma, em que estava escrito
“COLUMBUS CIRCLE” num mosaico na
parede.
– Onde estamos? – perguntou Haven
enquanto ele a puxava por entre a
multidão. O fato de ela estar numa área
da cidade em que nunca estivera a fazia
sentir-se tensa e entusiasmada.
– Você logo verá – ele respondeu.
Ela o seguiu para fora da estação e até
a rua acima. No momento em que pisou
ali, algo dentro dela despertou. Ela então
viu, exatamente como ele prevera. A
visão infinita das árvores; uma floresta
bem no coração daquela cidade
borbulhante.
– Central Park – disse Gavin. – Já
esteve aqui?
– Nunca – ela sussurrou. – Mas sempre
tive vontade de vir.
– Bem, então venha – Gavin acenou
com a mão e esboçou um sorriso. – Nada
poderá impedi-la agora.
Nada poderá impedi-la agora.
Haven seguiu Gavin até o outro lado da
rua e ambos passaram por uma enorme
estátua e adentraram o parque. Ambos
caminharam lado a lado em silêncio,
enquanto Haven admirava as árvores
enormes que os cercavam, como
gigantescos guarda-chuvas. A luz do sol
filtrava por entre os galhos e formava
manchas mais claras nas trilhas. O calor
forçava seu caminho por entre as
sombras. Haven adorou a sensação,
pisando em cada mancha de sol que
aparecia pela frente e olhando para o céu
com um sorriso nos lábios.
O paraíso, ela pensou. Parecia mesmo
como se ela estivesse num pedaço do
paraíso.
– Então, o que gostaria de fazer? –
perguntou Gavin.
Haven ergueu as sobrancelhas.
– Nós já não estamos fazendo?
– Bem, podemos apenas passear, se
quiser, mas há muito mais para se fazer
aqui.
– Jura? Pensei que fosse só um, você
sabe, um parque… – ela fez um giro com
o corpo – … cheio de árvores.
Ele riu.
– De jeito nenhum. Venha, vou te
mostrar.

Estátuas, pontes, trilhas, vida


selvagem… Horas se passaram enquanto
Haven absorvia tudo. Eles assistiram a
um show de marionetes e ela brincou no
parque antes de explorarem o zoológico e
alimentarem os patos no lago. Gavin a
ensinou a jogar xadrez e deliberadamente
a deixou ganhar. Também comprou
sorvete de um vendedor que passava pelo
local. Havia música, jogos, risadas e
entusiasmo. Ela cantarolou diante da torre
do relógio musical enquanto olhavam as
pessoas jogando frisbee e plantando
árvores.
Para todos os lados que olhava achava
algo novo, diferente e, pouco a pouco, ela
foi baixando a guarda. A mágoa que
carregava consigo dera uma trégua, e
esperança e alegria voltaram a preencher
o vazio que havia ali. A jovem obstinada,
contida e desconfiada nem percebeu
quando sua vulnerabilidade se tornou
aparente. Pedacinhos da verdadeira
Haven Antonelli começaram a brilhar
outra vez.
– Vamos comer alguma coisa – sugeriu
Gavin. Já estava ficando tarde e o sol já
ia se por. – Não comemos nada o dia
todo.
– Eu tomei sorvete, lembra?
– Isso não conta – ele retrucou, rindo.
– Conheço um lugar legal. Podemos
jantar e daí eu te levo para casa, afinal,
você tem aula amanhã cedo.
– E você tem que trabalhar – ela disse.
– Você costuma levantar muito cedo?
– Não, eu levanto na hora que quero –
respondeu o rapaz. – Faço meus
próprios horários, lembra-se?
– É verdade. Seu pai também está na
área de construções?
– Mais ou menos – ele disse, franzindo
o cenho ao olhar para o relógio. – Meu
pai está envolvido numa variedade de
negócios.
Ambos saíram do Central Park e
pegaram o metrô de volta até a rua 23.
Durante o trajeto, Gavin sentou-se ao
lado da garota, uma vez que havia um
número bem menor de passageiros
naquele horário. Eles desembarcaram na
estação de destino e caminharam cerca de
um quarteirão até um restaurante. Havia
grandes janelas na construção de tijolos e
Haven viu apenas umas poucas mesas no
interior.
Eles se acomodaram no salão, numa
mesa para dois. Gavin pediu legumes ao
curry e macarrão apimentado, sem sequer
olhar o menu. Haven pediu um
cheeseburguer e batatas fritas. Ambos se
mantiveram em silêncio enquanto
aguardavam os pedidos, apenas
bebericando seus drinques e descansando
os pés depois de andar tanto.
Levou uns dez ou quinze minutos até
que a comida chegasse à mesa. Depois de
alguns segundos, Gavin limpou a garganta
e disse:
– Posso lhe fazer uma pergunta?
– Claro – ela respondeu, enfiando uma
batata na boca.
– Quem é você?
Ela parou de mastigar.
– O quê?
– É só que, você sabe… Você não se
parece com ninguém que eu conheça. Há
algo de diferente em você.
Naquele instante, Haven sentiu que um
muro se erguia entre os dois. O diferente
não se misturava. O diferente não estava
se mantendo longe dos holofotes. O
diferente não fazia parte dos planos.
– Como assim diferente? De que jeito?
Ele ergueu os ombros.
– Você vive em Nova York, mas não
conhece nada da cidade. Você nunca foi a
lugar algum nem fez nada.
Haven não fazia ideia de como
responder àquilo. Ela engoliu fundo e
perdeu o apetite.
– Nasci numa cidade muito pequena e
nunca tive a oportunidade de ir a lugar
nenhum. De fato, não havia nenhum lugar
para ir, mesmo que eu pudesse. Só tinha
minha mãe, mas ela não podia me levar
para conhecer as coisas. Meu pai… Bem,
eu nunca tive um pai de verdade, e então
minha mãe morreu e… aqui estou eu,
acho.
Ela tropeçou nas próprias palavras,
encolhendo-se ao lhe dar aquela
explicação. Embora tudo fosse verdade,
tecnicamente aquilo era uma mentira; uma
omissão. Era o que se poderia chamar de
meia verdade e, pelo que a jovem
percebeu, tudo o que poderia lhe
oferecer.
– Você tem outros familiares, certo?
Tias? Tios? Primos?
A pergunta fez com que Haven se
recordasse do último Natal em Durante.
Dominic, Tess, Dia, Celia, Corrado,
doutor DeMarco e… Carmine. Apesar de
eles não serem sua família de verdade,
eram a única que ela conhecera.
– Sim, mas não tenho muito contato
com eles.
– E por que não?
– Não sei. – Daquela vez ela estava
sendo inteiramente honesta. – Todos
moram muito longe.
– Então o que faz aqui?
Haven começou a responder, erguendo
a cabeça, mas suas palavras cessaram
quando olhou para trás de Gavin. Seu
olhar foi atraído para o pátio na parte de
trás do restaurante, onde havia uma fileira
de vasos com palmeiras alinhadas a um
corrimão.
– Palmeiras.
– Palmeiras? – ele perguntou, atraindo
novamente a atenção da jovem ao falar. –
Foi por isso que veio para cá?
– Ah, não, bem… – ela deu risada e
lágrimas surgiram em seus olhos. – Na
verdade, não achei que houvesse
palmeiras em Nova York.
Ele olhou por sobre o ombro.
– Ah, sim, eles as importaram. Para
criar o ambiente. É meio esquisito, mas
sei lá.
Gavin não continuou a questioná-la,
mas o dano já havia sido causado. Haven
ficou distraída e seus pensamentos se
voltaram para o passado enquanto ela
continuava a olhar para as árvores. Seu
prato permaneceu intocado. Sentia falta
de todas aquelas pessoas, mais do que
gostaria de admitir, porém, mais do que
tudo, ela sentia falta dele.
Ela tentava não pensar a respeito de
Carmine, mas às vezes aquilo era
inevitável. De vez em quando algo
pequeno reabria a ferida, fazendo com
que se lembrasse novamente de tudo que
tentava esquecer. Não ele, ela jamais o
esqueceria, mas o fim do relacionamento.
A devastação. O adeus. Ou talvez a falta
de adeus. O que houve entre eles não
havia terminado e, sem isso, aquela
ferida jamais cicatrizaria. Ela ficaria ali
para sempre, abastecida pela imaginação
do que poderia ter sido.
E o que poderia ter sido? Poderia ter
sido Carmine passeando com ela e
explorando o Central Park, conhecendo
Nova York. Poderia ter sido Carmine ali
à frente dela, sem fazer perguntas. Afinal,
ele já conhecia a verdade. Ele conhecia o
passado dela. Ele sabia de onde ela tinha
vindo. Ele compreendia tudo pelo que ela
havia passado.
Mas não era ele e, enquanto estava
sentada ali, ela permitiu que o vazio
retomasse seu lugar dentro dela.
Gavin pagou a conta no fim do jantar.
Eles saíram do restaurante sem dizer uma
palavra no caminho entre o restaurante e
o apartamento. Ele esticou o braço e
pegou a mão dela, entrelaçando os dedos.
Haven não puxou a mão, não lutou contra
isso. Suas emoções estavam à flor da
pele e se sentia como numa montanha-
russa, confusa e desconcentrada.
– Obrigado pelo dia de hoje – disse
Gavin, parando na frente do prédio.
– Não, eu é que agradeço a você. Foi
muito legal.
– Legal – ele repetiu aquela palavra
olhando-a de um jeito peculiar. – Nada
além de legal?
– Não me entenda mal. Passei uma
tarde maravilhosa e eu realmente gosto de
você.
– Mas?
– Mas é que…
– Nada além disso – ele completou.
– É – ela suspirou. – Não é nada com
você. O problema é comigo, eu acho.
Ele soltou uma risada repentina e
abrupta que a pegou de surpresa.
– Você pretende mesmo usar a velha
desculpa do “não é nada com você, o
problema sou eu”?
– Não. Bem… Sim. Mas é verdade.
Você é um cara muito legal e tem uma
personalidade que eu aprecio muito,
mas…
– É isso que dizem para pessoas feias
– ele retrucou.
Ela revirou os olhos.
– Não, não é. Estou sendo honesta. E,
além do mais, você não é feio. Você é
muito bonito. – Ela sentiu o rosto corar
ao dizer aquilo. – Aliás, muito bonito.
– Então qual é o problema?
Ela olhou para as mãos ainda atadas.
– Não sinto uma faísca dentro de mim.
Não há eletricidade entre nós. Não vejo
relâmpagos ao olhar para você.
Algo surgiu nos olhos dele; as feições
se tornaram mais suaves no momento em
que ele soltou a mão dela.
– Ah, entendo.
– Eu sinto muito – ela disse.
– Não sinta – ele respondeu. – Você
não me fez nenhum mal.
– Tem certeza?
Ele sorriu de maneira genuína.
– Certeza absoluta.
– Mas eu realmente me diverti muito –
ela disse. – Fico feliz em ter saído com
você.
– Eu também – ele retrucou, dando um
passo atrás e enfiando as mãos nos
bolsos. – Bem, acho que tenho que ir.
Tenha uma boa-noite.
Ele foi embora sem dizer mais nada,
caminhando pela rua e desaparecendo na
escuridão.

Na segunda-feira, Haven saiu do


prédio no horário de sempre e logo viu
Gavin encostado na parede. Eles
trocaram sorrisos e caminharam juntos
até a biblioteca, conversando como de
costume.
Na quarta, ele voltou a aparecer, assim
como na sexta-feira. Porém na semana
seguinte, ao deixar o prédio a calçada
estava vazia. Pela primeira vez em
semanas… Meses… Gavin não estava
ali.
Ela o esperou por alguns minutos na
frente do prédio antes de seguir sozinha.
Dias se passaram, então semanas, mas
não havia sinal de Gavin. O que
começara como dúvida rapidamente se
transformou em frustração, antes de por
fim se tornar preocupação. Será que
havia acontecido algo com ele? Será que
ele estava bem?
Na sexta-feira à tarde, em vez de
seguir para a biblioteca, ela decidiu ir à
obra. Parou na esquina ao chegar lá,
permanecendo de pé na calçada
esburacada. Ela examinou o local. Pouco
progresso ocorrera desde a última vez.
Mais algumas camadas de vergalhões,
mas ainda não tinha forma definida.
Havia muitos trabalhadores andando de
um lado para outro. A distância, parecia
um mar de capacetes amarelos, como
patinhos de borracha num lago.
Sua atenção se voltou para o trailer no
momento em que a porta se abriu e Gavin
surgiu no topo do degrau. Um grupo de
rapazes o cumprimentou quando ele saiu.
Ele se juntou a eles, tomando água de uma
garrafinha e se sentou na pequena escada,
rindo.
Ela teve uma sensação de alívio, mas,
logo em seguida, certa mágoa. Ele
parecia estar mais que bem. Parecia estar
feliz.
Haven ficou ali parada por um minuto
antes de se virar. Soube naquele momento
e pôde sentir em suas entranhas quando a
preocupação e a frustração se
transformaram novamente em dúvida e
confusão. Os laços de amizade entre eles
já não existiam; desapareceram de
repente, como se nada significassem… Se
é que um dia significaram alguma coisa.
Capítulo 34
Intuição.
Aquilo era algo em que Haven confiara
desde criança, principalmente vivendo
isolada num rancho na esquecida cidade
de Blackburn. Aquilo a mantivera longe
de problemas, alertando-a para coisas
que não estavam certas. Era uma
sensação que surgia sob a pele, um
desconforto na barriga que a deixava
tensa. Não fazia diferença se eram
coiotes uivando durante a noite ou
monstros se escondendo nas sombras, ela
sempre sentia quando algo ou alguém
estava ali quando não deveria.
Ela se lembrava de apenas umas
poucas vezes em que sua intuição falhara.
Aquela tarde no quarto de Vincent
DeMarco fora uma delas, quando ele a
acuou depois que ela tocou em sua arma.
A sensação de alerta surgiu tarde demais.
Ele a havia pegado de surpresa,
vulnerável e sozinha.
Mas aquilo havia acontecido uma outra
vez, anos antes, quando ainda era menina.
Caminhando atrás da mãe pela estufa
construída ao lado da propriedade, ela se
sentiu entediada enquanto a mãe
trabalhava sem parar. Ela estava numa
idade em que ainda não compreendia a
realidade em que vivia; ainda havia
dentro dela uma alma sonhadora, viva,
ingênua e inocente.
– Posso ir ver a Chloe? – ela
perguntou, puxando a camisa de sua mãe
para atrair sua atenção. O ar frio de um
aparelho de ar-condicionado soprava
atrás delas, levantando seu vestido
branco e imundo.
– Não acho que seja uma boa ideia –
respondeu a mãe sem tirar os olhos das
plantas. – Você deve ficar aqui comigo.
– Não gosto de ficar aqui – a menina
respondeu, enrugando o nariz. – O cheiro
é ruim.
– O cheiro não é ruim.
– É sim. E também está frio. Olhe! –
ela mostrou seu braço arrepiado para a
mãe, mesmo que ela não estivesse vendo.
– E é claro demais, meus olhos doem.
– Hoje você está cheia de
reclamações, não é?
– Mas é tudo verdade! – disse a
pequena Haven. – Posso ir? Prometo que
vou me comportar!
– Sei que irá se comportar. É só que…
Eu não sei…
– Por favor? Chloe é minha melhor
amiga.
A mãe franziu a testa.
– Tudo bem.
Haven saiu correndo pela estufa,
ouvindo sua mãe gritar para que tomasse
cuidado, mas estava entusiasmada demais
para responder. Ela não via Chloe havia
vários dias e sentia falta dela; sua mãe
lhe avisara que era perigoso demais que
as duas se encontrassem com frequência.
Haven olhou para os lados ao sair da
estufa, certificando-se de que ninguém
estivesse por ali, antes de correr pelo
jardim o mais rápido que conseguia. Ela
diminuiu o passo ao chegar na construção
do outro lado da casa, bem ao lado dos
estábulos onde ela e sua mãe viviam. O
prédio era cinza, como se fosse uma casa
de metal, e ela caminhou na ponta dos pés
até a parte de trás, onde havia várias
jaulas, uma ao lado da outra.
– Chloe! – ela chamou, localizando-a
imediatamente na primeira jaula. Ela deu
um pulo assim que Haven disse seu nome,
sentindo-se feliz. – Senti sua falta!
Chloe começou a chorar e Haven
correu até ela, tentando acalmá-la.
– Tem que ficar quieta antes que eles
escutem! – Haven se colocou de joelhos e
esticou a mão para tocar a amiga, mesmo
que somente através do arame. – Mamãe
está trabalhando na estufa de novo –
explicou. – Parece que as plantas estão
doentes e o mestre disse à minha mãe que
ela deveria resolver aquilo, mas acho que
ela não sabe como fazer. Ela me
perguntou se parecia que ela tinha dedo
verde, mas quando tentei olhar, ela me
disse que eu era boba. Então não sei se
ela tem.
Chloe só ficou olhando para ela, então
Haven imaginou que ela também não
soubesse.
– Ah, e alguém veio aqui ontem! Não
sei quem era, porque minha mãe me fez
ficar longe. Ela disse que era para o meu
próprio bem, mas e se fosse minha
amiga?
Chloe latiu.
– Minha outra amiga – esclareceu
Haven. – Você ainda é a minha
melhorzíssima amiga, mas tenho outra que
mora em outro lugar do mundo. Mamãe
diz que o mundo é grande. Você sabia
disso? Ela diz que existem muitas
pessoas lá fora, e muitas casas também!
Tipo, zilhões delas!
Ela abriu os braços o mais que pôde
para mostrar a quantidade. Chloe ficou
entusiasmada e começou a pular e a fazer
barulho. A menina rapidamente abaixou
os braços e levou o dedo à boca.
– Shhhhh, fique quieta! Se alguém
ouvir você…
– Tarde demais.
Parecia que todo o sangue no corpo de
Haven havia congelado. Ela deu um pulo
e se virou, tentando se esconder, mas
Frankie estava ali na sua frente e a acuou.
Ela ficou parada como uma estátua,
imaginando que, se fechasse os olhos,
poderia desaparecer. Ele iria embora e
esqueceria dela de novo. Ela tentou
contar mentalmente, como sua mãe lhe
ensinara a fazer quando ficava com medo,
mas não conseguiu passar do número
seis. Ele a encarava com os olhos fixos.
Haven deu um largo passo para o lado,
pensando que conseguiria escapar, mas
não funcionou. Os olhos dele se
arregalaram e ele acenou com a cabeça.
– Não fuja, menina.
Ela não correu. Voltou a ficar imóvel
como uma estátua.
Então, ele caminhou até a jaula e se
dobrou, tocando nela e estalando os
dedos. Chloe veio imediatamente na
direção dele, buscando atenção enquanto
ele esfregava a cabeça dela.
– Gosta do meu beagle? – ele
perguntou, encarando Haven.
Ela não sabia o que beagle significava,
mas assentiu com a cabeça mesmo assim.
– Ela é uma boa garota. Uma ótima
caçadora. – Mais uma vez ele afagou a
cabeça da cachorrinha antes de se
levantar. – Você tem um nome para ela?
Haven acenou afirmativamente outra
vez.
– Vai me dizer qual é?
Outro aceno. Ela não sabia o que mais
deveria fazer.
Ele riu diante da mudez da garota e
Haven cerrou os olhos ao vê-lo estender
a mão na direção dela, que se preparou
para levar um tapa, para que os dedos
dele apertassem sua carne, pelos
arranhões e hematomas, mas ele não fez
nada disso. O homem apenas afagou sua
cabeça como fizera com a cadelinha. A
mão dele era pesada, mas não a
machucou.
– Devia ser mais cuidadosa, criança –
ele disse, ainda rindo para si mesmo. –
Nunca é bom quando alguém como eu
encontra alguém como você.
Foi somente aí, enquanto Frankie se
afastava, que Haven sentiu os sinais de
sua intuição, alertando-a quando já era
tarde demais.
Anos depois, sentada nos fundos de
uma lanchonete, tomando uma xícara de
café enquanto Kelsey comia ovos
mexidos, ela sentiu aquela mesma
sensação. Começou com um arrepio na
pele, uma leve ferroada, antes que os
cabelos de sua nuca se eriçassem. A
princípio, ela ignorou a sensação,
tentando prestar atenção em Kelsey, mas
aquilo foi crescendo e se tornando cada
vez mais forte.
– Você por acaso está me ouvindo? –
perguntou Kelsey, apontando o garfo para
Haven.
– Claro – respondeu a jovem,
esfregando o pescoço sem perceber. –
Mas o que foi que você disse mesmo?
– Vamos fazer uma viagem de carro.
Haven franziu as sobrancelhas e olhou
para a amiga.
– O quê?
– Vamos fazer uma viagem de carro –
Kelsey repetiu pelo que parecia ser a
terceira vez. – Não temos mais nada a
fazer nesse verão, não é?
– Ah, bem… – Haven hesitou. – Uma
viagem de carro? Pensei em ficar por
aqui mesmo e me matricular para algumas
aulas extras. Você sabe, me adiantar um
pouco.
Kelsey revirou os olhos de um jeito
dramático.
– Ah, tenha dó. A escola estará aqui
quando retornarmos. Foi um longo ano,
merecemos uma folga.
– Eu não sei…
– Bem, pense a respeito – disse
Kelsey, atirando o garfo na mesa e se
levantando. Ela deixou algum dinheiro
sobre a mesa. – Poderíamos viajar logo
depois do Novak Gala.
– Tudo bem – respondeu Haven,
bebendo o resto de seu café antes de
colocar a xícara na mesa. – Vou pensar
sobre isso.
Ela não tinha a menor intenção de
pensar a respeito daquilo, tampouco de
deixar Nova York.
Saíram da lanchonete e Kelsey
continuou a tagarelar enquanto
caminhavam em direção à escola. Haven
estava tensa e seus olhos atentos enquanto
andavam por entre a multidão,
observando a aparência e o olhar das
pessoas. Começou a olhar por cima do
ombro, mas não tinha certeza do porquê.
O que ela tinha certeza era da sensação
no estômago. Sua intuição lhe dizia que
alguém ou alguma coisa estava ali, mas
não deveria estar.

– Explique novamente.
Haven ignorou Kelsey, agindo como se
a amiga não tivesse dito nada ao olhar
para a tela à sua frente. A tinta fresca
brilhava sob as luzes fluorescentes do
estúdio, e a vasta combinação de cores se
cruzava como um arco-íris entrelaçado.
Arte abstrata. Haven ainda estava
tentando se aprimorar naquilo.
– Está bom? – perguntou ansiosa.
– Parece legal – respondeu Kelsey. –
Agora explique para mim de novo.
Haven soltou um suspiro.
–Nós saímos, foi legal, mas não houve
química entre nós.
– E é isso?
– Sim, é isso – confirmou Haven, ainda
olhando para a tela. – Tem certeza de que
isso está bom? Faz algum sentido?
– É abstrato. Não precisa fazer sentido
– retrucou Kelsey. – Mas não
compreendo por que você e Gavin não
podem ser amigos. Tudo bem, não tem
nenhuma faísca, mas vocês eram tão
amigos antes, não é? O que mudou?
Haven bufou. Ela não queria mais falar
naquele assunto. Elas já haviam discutido
aquilo por várias semanas.
– Acho que para ele era tudo ou nada.
– Isso é besteira – Kelsey argumentou.
– Ele não é desse tipo.
Haven revirou os olhos.
– Você sequer o conhecia.
– Mas você sim.
O estúdio foi tomado pelo silêncio.
Será que ela o conhecia mesmo? Ele
trabalhava naquela obra. Negócio de
família, ele dissera, mas Haven não sabia
nada a respeito da família dele. Na
verdade, ela pouco sabia além do nome
dele: Gavin alguma coisa. Ela ouvira seu
último nome antes, mas não conseguia se
lembrar.
– Não importa – disse Haven. – Não
era para acontecer. As pessoas passam
pela nossa vida por alguma razão, então
prefiro acreditar que tenha havido um
motivo para isso, algum motivo, mas não
era que nos tornássemos amigos, eu acho.
Repousando o pincel, Haven se afastou
da tela. O Novak Gala se aproximava
rapidamente, e todos deveriam entregar
seus trabalhos até o final da semana. A
garota lutava para criar algo que valesse
a pena apresentar.
– Vou sentir falta de ver o rosto dele
por aí – disse Kelsey. – O cara era bem
bonitão!
Haven deu risada.
– Se gosta tanto assim dele, porque não
o convida para sair?
Com os olhos arregalados, Kelsey
balançou firmemente a cabeça.
– Nunca. Eu não poderia fazer isso.
– E por que não?
– Por sua causa, dã – ela disse. – É
como quebrar um código de amizade.
– Não seja boba. Ele é um ótimo cara.
Engraçado. Legal. Você seria capaz de
fazer coisas bem piores. Aliás, você já
fez coisas piores.
– Você gostava muito dele – uma
afirmação, não uma pergunta.
– Sim.
– Então por quê? De verdade.
Haven ergueu levemente os ombros e
acenou a cabeça.
– Não havia nada ali.
A expressão de Kelsey se tornou mais
suave.
– É o seu ex-namorado. Carmine.
– O que tem ele?
– Foi por isso que não sentiu nada por
Gavin. Porque já sentiu isso por outra
pessoa.
Haven considerou aquelas palavras,
lembrando-se da química que sentia com
Carmine. Entre eles havia eletricidade.
Tanta, na verdade, que ele a fazia brilhar.
O pensamento de nunca sentir aquilo
novamente e de ter de viver sua vida
apenas com lembranças de como havia
sido a incomodava.
– Você acha possível sentir isso mais
de uma vez?
– É claro que sim – respondeu Kelsey.
– Eu sinto isso toda vez que um cara olha
para mim ultimamente.
Haven sorriu.
– Ou… – Kelsey deu alguns passos na
direção da amiga, olhando para o quadro
colorido. – Ou talvez eu jamais tenha
sentido nada como isso e você seja uma
privilegiada.

– Corrado Moretti é uma figura


notória. Nas ruas ele é chamado de
“Assassino de Aço”, o que nos mostra
que ele é à prova de balas, intocável. E
talvez ele seja, lá fora, mas não aqui.
Aqui buscamos a verdade. Aqui fazemos
justiça. E hoje, a justiça seria o veredito
de culpado. O réu é um assassino, um
mentiroso e um ladrão. Ninguém está
seguro com ele andando pelas ruas. Nós
provamos que ele pertence a uma
organização que se orgulha de matar, que
treina as pessoas para que elas
machuquem outras. Que tipo de
organização faz isso? Uma que seja
imoral e ilegal. Uma que seja perigosa.
O promotor discorreu sem parar por
um bom tempo enquanto Corrado se
sentava tranquilo na cadeira dura, só
esperando. O julgamento de oito semanas
finalmente estava chegando ao fim e
agora só restavam os argumentos finais
de ambos os lados. Logo tudo estaria
acabado e ele poderia seguir em frente.
Ou pelo menos era o que ele esperava.
Quando chegou a vez da defesa, Borza
se levantou e deu risada.
– Assassino de Aço. Devemos nos
lembrar de que a mídia inventou esse
apelido para vender jornais. Puro
sensacionalismo para ganhar dinheiro à
custa de um homem inocente. A única
reputação que meu cliente tem é a de um
homem de negócios bem-sucedido e um
homem de família. Seu registro criminal
está limpo. O governo já gastou milhões
de dólares e milhares de horas de seus
homens vasculhando todos os aspectos de
sua vida. E isso já acontece há anos. Eles
estão sempre tentando encontrar algo
grande, escandaloso, mas tudo o que
conseguiram foram mentiras de
criminosos condenados que estão
dispostos a qualquer coisa para sair da
cadeia. Ah, e também uma suposta evasão
fiscal, pela qual meu cliente está disposto
a fazer um cheque agora mesmo e reparar
o erro. É isso.
Corrado não olhou para seu advogado,
apenas deslizou os olhos pelo tribunal,
ainda acreditando que a jurada número
seis seria sua salvação. Borza foi curto e
eficiente, e o juiz instruiu o júri a se
reunir na sala de trás para deliberar sobre
o caso.
– Quanto tempo acha que irá levar? –
perguntou Corrado depois que a corte
entrou em recesso.
– Não há como prever – ele respondeu.
– Se eles retornarem ainda hoje, eu diria
que as notícias serão positivas. Mas,
honestamente, senhor Moretti? Se
demorarem mais de 48 horas, eu
começaria a rezar para que a decisão não
fosse unânime, o que nos garantiria um
novo julgamento.

Quarenta e oito horas se passaram, sem


que o júri chegasse a uma decisão.
Corrado permaneceu preso no Centro
Correcional Metropolitano por quatro
dias, vestido naquele enorme macacão
laranja. O clima estava quente e abafado
e o ar-condicionado continuava a
funcionar mal. O cheiro de mofo e suor
no ar denso tomava conta de tudo.
Corrado já estava ficando impaciente.
Cada vez que ouvia passos, ficava alerta,
na expectativa de alguma notícia.
Nada acontecia.
Depois de uma semana, o júri
apresentou uma carta ao juiz afirmando
que não conseguiria chegar a um acordo,
mas o juiz o mandou de volta para que
deliberasse por mais alguns dias. Embora
uma decisão não unânime fosse melhor
que um veredito de culpado, ele não
estava tão entusiasmado diante das
possibilidades apresentadas pelo seu
advogado. A falta de unanimidade por
parte do júri significava um novo
julgamento, um novo júri e mais tempo
longe de sua vida… e de sua esposa.
Vinte e quatro horas depois, Corrado
estava deitado na cama quando ouviu
passos pesados se aproximarem de sua
cela. Ele se levantou e olhou para a porta,
esperando, contra todas as
possibilidades, que aquilo tivesse
terminado.
– Correio – disse o oficial, abrindo o
buraco da porta e atirando um envelope.
Corrado o pegou no chão. Mais um
alarme falso.
Soltando um suspiro, olhou para o
envelope rasgado com um endereço de
remetente escrito à mão. Mais uma vez,
ficou surpreso pelo fato de eles terem
deixado passar aquela correspondência.
Ele retirou de dentro um cartão e olhou
para a foto na frente. Corrado não
entendia nada de arte, mas até mesmo ele
saberia reconhecer o quadro O grito, de
Munch.
ESPERO QUE ESSA SEJA SUA EXPRESSÃO NO
FINAL DO DIA.

Era isso o que estava digitado no


cartão e, logo abaixo, de maneira quase
ilegível: EU GRITO, VOCÊ GRITA, TODOS NÓS
GRITAMOS… ATÉ QUE ALGUÉM OUÇA.
Corrado releu várias vezes a
mensagem. Estava ocupado demais
tentando decifrar o conteúdo do bilhete
que alguém havia conseguido fazer chegar
até suas mãos.
– Moretti.
Corrado ergueu a cabeça e viu o
oficial na porta.
– O que foi?
– Hora do show – disse o carcereiro. –
O júri chegou a um veredito.
Haven caminhou pelas ruas
movimentadas de Nova York, seus
cabelos longos e encaracolados caíam
nas costas enquanto seus pés
cautelosamente a levavam pelo
quarteirão. Apesar de se esforçar
bastante, ela, com frequência, esbarrava
nas pessoas e sentia os trancos e as
cotoveladas ao passar.
– Perdão – sussurrava, respirando de
maneira pesada enquanto caminhava pela
calçada, indo em direção ao seu
apartamento. Trazia na mão um envelope
branco e o segurava com força para não
perdê-lo, e também para não perder o
controle.
Ao chegar no prédio, passou direto
pela sua porta e subiu a escada correndo,
indo ao apartamento de Kelsey no
segundo andar.
Na pressa, ela não se preocupou em
bater, apenas girou a maçaneta e abriu a
porta.
– Kelsey, você não vai acredit… Ah,
meu Deus!
Ao ouvir gritinhos e risos na sala,
imediatamente cobriu os olhos e se virou
de costas para Kelsey e um amigo,
enquanto eles procuravam suas roupas.
– Eu sinto muito! – O rosto de Haven
ficou vermelho e quente de vergonha. –
Eu não sabia, bem, eu, você sabe…
– Tudo bem – disse Kelsey. – Já
estamos vestidos agora.
Lentamente, Haven se virou e
averiguou a situação olhando por entre os
dedos.
– Eu deveria ter batido.
– Você acha? – Kelsey se levantou e
fez um sinal na direção do rapaz. – Você
se lembra do Fred, não é? O arquiteto?
Haven olhou para o homem alto de um
jeito peculiar, absorvendo seus cabelos
loiros curtos e os olhos azuis. Ela não se
lembrava dele, mas sorriu e acenou de
qualquer modo.
– Claro. É bom revê-lo, Fred.
– Digo o mesmo – ele respondeu. –
Bem, acho melhor eu ir embora.
Ele beijou a bochecha de Kelsey antes
de passar por Haven e desaparecer nas
escadas. Haven ficou de pé ali por um
momento, observando a amiga enquanto
ela olhava para a porta ainda aberta.
– Ele é gostoso, não é? – perguntou
Kelsey. – Acho que esse cara pode ser o
certo.
Haven arregalou os olhos.
– Você sentiu aquilo? A fagulha?
– É, eu senti – disse Kelsey, rindo e se
voltando para Haven. – Bem, mas o que
foi que aconteceu? Por que essa entrada
triunfal?
Todo o embaraço por conta do
incidente evaporou quando Haven sorriu
e seu rosto se iluminou. Ela ergueu o
envelope amassado e o acenou
loucamente para a amiga
– Eu consegui! Eu entrei!
Kelsey franziu as sobrancelhas.
– Entrou onde?
– Na Novak Gala – declarou Haven. –
A senhorita Michaels me deu a notícia.
Eu fiquei em 13º lugar! Eles vão expor
meu quadro!
Kelsey soltou um grito.
– Você tá brincando! Isso é fantástico!
As duas se abraçaram, pularam e
gritaram para celebrar a novidade.
Lágrimas surgiram nos olhos de Haven. A
jovem estava completamente eufórica e
sentia o sangue fluir forte por suas veias.
Ela conseguira. Entre três mil candidatos,
ela conseguira se classificar.
– Isso é tão maluco – disse Kelsey,
afastando-se. – Temos tanto a fazer agora!
Precisamos comprar um vestido e sapatos
para você. Também vai precisar cuidar
do cabelo e usar maquiagem.
Ela ficou pálida. Um vestido? Saltos?
Uma transformação total?
– Ah, e não podemos esquecer de um
par! Precisamos arranjar um par para
você.
Haven piscou rapidamente.
– Um par?
– Sim! Você pode levar
acompanhantes, não é? Não pode ir
sozinha!
Pegando novamente o envelope, Haven
o abriu e percebeu três convites
amassados juntos a carta. Ela deixou o
dela ali e entregou os outros dois para
Kelsey.
– Quero que você vá comigo.
– Eu? Mas…
– Pegue, por favor – Haven insistiu. –
Você tem sido tão maravilhosa comigo.
Você me levou para sua casa no Natal e
me apresentou sua família.
– Eu é quem deveria te compensar por
isso, não você.
Haven sorriu.
– Venha comigo. E se Fred for o
escolhido, leve-o com você.
Kelsey hesitou antes de pegar os
convites.
– Tem certeza?
– Tenho, certeza absoluta – sorrindo,
Haven deu um passo para trás na direção
da porta. – Convide quem você quiser.
Esse é meu agradecimento pela grande
amiga que você tem se mostrado.
Haven caminhou para fora do
apartamento e escutou o grito de Kelsey
atrás dela
– Tudo bem, mas você ainda vai
precisar de um vestido! Não pense que
irá escapar!

– Em relação à acusação de estar


envolvido em atos ilícitos por intermédio
de uma organização criminosa,
desempenhando atividades ilegais, nós do
júri consideramos o réu, Corrado
Alphonse Moretti… – a pequena pausa
entre essas palavras e o veredito final
pareceu uma eternidade – … inocente.
Naquele instante, todos começaram a
falar ao mesmo tempo no tribunal lotado.
Parte dos presentes celebraram; outros
ficaram horrorizados diante daquela
decisão. Os flashes das câmeras
disparavam e registravam o momento,
enquanto o juiz batia em sua mesa com o
martelo exigindo silêncio.
Todas as acusações foram lidas e, em
todas elas, o resultado foi idêntico:
inocente, inocente, inocente. Corrado se
manteve imóvel atrás da mesa designada
ao réu, sendo o único na sala a não
demonstrar qualquer reação. Mas,
internamente, sentiu o nó se desfazer em
suas entranhas e o suor escorrer pelas
costas. Aquela fora a única vez em sua
vida em que ele não sabia qual seria o
veredito antes que ele fosse lido em voz
alta. Pela primeira vez em sua vida,
vivenciou um momento em que não tinha
certeza de qual seria o fim.
Aquele instante para Corrado, ao
contemplar seu futuro incerto, tinha sido
pior que encarar a morte. Ele podia
aceitar a morte, mas jamais a ideia de
ficar enjaulado como um animal. Jamais
demonstraria aquilo, entretanto.
Continuaria ostentando apenas segurança.
Algo que, aliás, beirava a prepotência e a
total falta de sensibilidade.
Quando o júri terminou a leitura, o juiz
mandou que Corrado fosse imediatamente
solto. Ele ficou de pé ao ouvir pela
última vez o martelo e então se virou para
cumprimentar Borza, ignorando por
completo a gritaria e as ofensas que
partiam das galerias. Virou-se à procura
da esposa e a viu sozinha de pé nos
fundos, com um sorriso no rosto. Ele
inflou o peito. Parecia ter se passado uma
vida inteira desde que a vira feliz pela
última vez.
– Meus parabéns – disse o senhor
Markson com a voz amarga. – Estou
curioso para saber como conseguiu dessa
vez. Intimidação? Extorsão? A boa e
velha propina?
Corrado negou com a cabeça.
– Não fiz absolutamente nada.
– Assassinato, talvez? – perguntou o
promotor com um olhar desafiador. – O
senhor matou um membro de sua própria
família, senhor Moretti? Foi isso o que
aconteceu com Vincent DeMarco?
Corrado encarou o sujeito sem revelar
qualquer expressão. Ah, se ele soubesse a
real profundidade daquela pergunta…
– O júri apenas percebeu o que você
não viu – respondeu friamente. – Você
não tinha um caso. Deveria tentar se
aprimorar nisso, sabia? Não parece muito
bom no que faz.
A postura do promotor se tornou mais
rígida.
– Sou bom no meu trabalho. O
problema é que pessoas como você não
têm nenhum respeito por ele. Não têm
respeito pela lei. Mas um dia receberá o
que está guardado para você.
– Estou ansioso por isso.
O promotor saiu da sala e Corrado se
voltou para o advogado.
– A jurada número seis… quero que
descubra quem é ela.
Borza ficou confuso.
– Mas por quê?
– Porque acho que devo minha
liberdade a ela.
Corrado olhou então para as pessoas
que assistiram à sessão e observou
enquanto sua esposa se aproximava. Ele
abriu os braços e a puxou contra o peito,
num abraço caloroso. O corpo dela
estava trêmulo e ela chorava de alegria
enquanto ele beijava sua testa.
– Seis meses longe de você foi tempo
demais, bellissima – ele sussurrou. –
Prometo que isso não voltará a acontecer.
Capítulo 35
A galeria de arte estava lotada. Não
havia praticamente nenhum espaço entre
as pessoas. Haven estava de pé do lado
de fora do prédio, olhando para a porta
de vidro que a separava do Novak Gala.
Cada vez que ela se abria, era possível
ouvir o som de música clássica, mas ele
desaparecia quando a porta voltava a se
fechar. Ela podia ver os patronos
sorrindo e gargalhando, socializando
enquanto admiravam as obras de arte.
Eles estavam em seu próprio território;
Haven, em contrapartida, se sentia como
um peixe fora d’água.
Nervosa, ela segurou o vestido,
sentindo-se ridícula, estranha e
envergonhada naqueles sapatos de salto
alto. Seu coração batia acelerado no
peito, e tão forte que ela conseguia senti-
lo na garganta. Ela temia que aquilo fosse
justamente o que a estivesse impedindo
de vomitar. Arrependeu-se de dizer a
Kelsey que elas se encontrariam ali,
apavorada com a possibilidade de cair de
cara no chão.
Respirando fundo para se acalmar,
abriu a porta da galeria e entrou,
entregando o convite ao homem na
entrada. Ele o recebeu com um sorriso.
Seu olhar era caloroso e não demonstrava
qualquer indício de que ela não
pertencesse àquele lugar.
– Seja bem-vinda, senhorita – ele disse
de modo educado, fazendo um movimento
na direção de um livro de convidados à
direita. – Por favor, assine seu nome e
divirta-se.
Ela assentiu e deu um passo ao lado,
pegando a caneta e escrevendo na
primeira folha em branco: Hayden
Antoinette. Olhou para aquele nome e,
por um momento, seu sorriso se desfez.
Mas afastou qualquer pensamento triste,
pois sabia quem era de fato, mesmo que
ninguém mais o soubesse.
A iluminação era suave e a atmosfera
do local, confortante. Haven caminhou
pela multidão, mantendo a cabeça baixa a
maior parte do tempo. Seus olhos
hesitavam a cada vez que passava por um
quadro na parede. Apenas quando chegou
no fundo da galeria, localizou sua obra. A
visão familiar interrompeu seus passos no
mesmo instante. Ela o encarou com os
olhos arregalados e viu suas iniciais no
canto da tela.
Era surreal. Naquele momento, Haven
teve de beliscar-se.
Foi um sonho bom… disse Carmine na
última noite que passaram juntos… Você
fez uma pintura, alguma merda abstrata,
sei lá, mas era tão boa que eles a
expuseram num museu e todos a
elogiaram pelo seu talento. Era como se
você fosse a porra do Picasso, tesoro.
– É um belíssimo trabalho, não é? –
disse um homem, parando ao lado dela
enquanto ela observava o quadro. Ele
estreitou os olhos, estudando-o,
analisando o fundo escuro coberto por
branco e ocre, notas musicais distorcidas
por manchas vermelhas. – Me faz pensar
num concerto. Talvez o artista também
seja um musicista.
Haven sorriu. Ele não podia estar mais
enganado.
– É, talvez.
O homem se afastou e Haven ficou ali
de pé, escutando enquanto outras pessoas
ofereciam suas opiniões. Ninguém
conseguiu entender o que aquilo
representava. Ela já estava prestes a sair
e caminhar pela galeria para ver os
outros trabalhos quando alguém pigarreou
atrás dela.
– Imagino que este seja o seu.
Ela se virou tão rápido ao ouvir aquela
voz familiar que quase perdeu o
equilíbrio. Então viu um par de olhos
azuis.
– Gavin? O que você está fazendo
aqui?
Ele ergueu os ombros e deu um passo à
frente.
– Kelsey me convidou.
– Ah! – Levou um instante para que ela
entendesse a situação. – Ah! Então você e
ela… Digo, vocês dois…? – Ela fez uma
pausa e franziu as sobrancelhas. – Mas o
que foi que aconteceu com o Fred?
– Não é nada disso – ele explicou,
acenando a cabeça. – Não estou
interessado nela.
– Não está? Todos os caras se
interessam por ela.
– Não.
– E por que não?
– Não sei, mas acho que meu interesse
está em outro lugar.
– Onde? – ela perguntou. O rapaz
curvou a sobrancelha ao olhar para ela de
modo travesso e a vermelhidão tomou
conta do rosto dela. – Ah.
Gavin deu risada, virando-se para o
quadro.
– É muito bonito.
– Obrigada – ela disse, sentindo-se
mais relaxada ao olhar novamente. – O
que você vê?
Ele ficou em silêncio, estudando a
imagem antes que um sorriso apontasse
em seus lábios.
– Uma faísca.
Ele acertou em cheio.
O evento continuou e Haven recebeu
inúmeros elogios. Ela se sentiu aquecida
por aquelas palavras, enquanto bebia
água com gás e passeava pelo salão ao
lado de Gavin, rindo e batendo papo.
Kelsey apareceu depois de um tempo,
mas só ficou o suficiente para dizer olá.
Haven mal a percebeu em meio ao caos.
O evento fora bem mais sofisticado do
que esperava e ela recebera tamanha
aclamação por algo em que colocara sua
alma. Quando a noite começou a se
aproximar do fim, ela se sentia como se
estivesse flutuando no ar.
Então, o telefone de Gavin tocou,
interrompendo a tranquilidade do
momento. Ele o tirou do bolso e o
desligou.
– Tenho que ir. Assuntos de trabalho.
Ela franziu a testa.
– Obrigada por ter vindo.
– O prazer foi todo meu – ele disse
com sinceridade na voz. – E foi muito
bom revê-la.
– Digo o mesmo.
Sorrindo, ele esticou a mão e fez um
carinho no rosto da jovem.
– Te vejo por aí, Haven.
Ele se afastou, antes que ela pudesse
dizer qualquer coisa. Então, no momento
em que ele cruzou a porta de vidro, ela
percebeu o que ele lhe dissera. Aquilo
soou tão natural saindo de sua boca, tão
casual, que ela teve sorte em perceber o
nome que ele pronunciara.
Haven.
Então seu corpo ficou gelado e ela
começou a tremer visivelmente. Seus
olhos ficaram grudados na porta e sua
mente começou a trabalhar de modo
incessante. Será que ela estava enganada?
Será que escutara errado? Talvez ele
próprio tivesse dito seu nome errado e
nem percebido. Ela nunca havia lhe dito e
tinha plena certeza disso. A garota não
podia imaginar onde ele teria escutado
seu nome verdadeiro.
Tentando aplacar seu pânico, ela
caminhou até o livro de visitantes e o
folheou, lendo a infinidade de nomes que
apareciam ali até encontrar o que
procurava: Gavin Amaro.
Ela sentiu um nó no estômago. Naquele
instante, saiu correndo pela porta,
parando na calçada e respirando fundo o
ar fresco da noite; seu coração batia
acelerado. Ela sentia como se o peito
estivesse em chamas.
Foi então que sentiu uma corrente
elétrica passando pela sua pele, um frio
na espinha e um alerta. Intuição. Seu
corpo foi tomado por uma camada de
gelo e ela ficou aterrorizada. Trêmula,
expirou o ar frio dos pulmões, virando-se
abruptamente para encarar quem quer que
ali estivesse.
Por um momento, quase perdeu o
equilíbrio mais uma vez ao se deparar
com o rosto familiar, tão próximo que ela
até poderia tocá-lo. Mas ela não o fez.
Não podia se mover, apenas ficou ali,
parada, imóvel ao sussurrar um nome:
– Doutor DeMarco.

– Olá.
O cumprimento de Vincent pairava no
ar, em algum lugar entre os lábios dele e
os ouvidos da garota. Boquiaberta e com
o rosto tão pálido como se tivesse visto
um fantasma, ela continuou parada no
meio da calçada, equilibrando-se nos
saltos.
– Doutor DeMarco?
Ele soltou um riso envergonhado
quando ela repetiu seu nome pela segunda
vez.
– Sim.
Ela acenou a cabeça sem acreditar,
olhando cuidadosamente para os lados e
dando um passo à frente em direção a ele.
– Há algo de errado? Aconteceu
alguma coisa?
– Não – ele respondeu, esfregando a
parte de trás do pescoço de maneira
ansiosa quando alguém saiu da galeria
atrás dela. Ele desviou o olhar, virando-
se levemente para evitar ser visto de
frente por aquelas pessoas antes que
desaparecessem pela rua.
Paranoico, talvez, mas ele tinha todas
as razões para se sentir assim.
– O senhor está bem? – ela perguntou,
dando mais um passo em sua direção. – O
senhor parece…
– Um esboço de mim mesmo? – ele
completou a frase dela.
– Eu diria nervoso – ela respondeu.
Nervoso. Aquele era certamente um
bom eufemismo.
– Estou bem – ele assegurou, sorrindo,
esperando que aquilo aliviasse sua
preocupação. – Acha que poderíamos ir a
algum lugar para conversarmos?
– É claro – Haven olhou rapidamente
para a galeria antes de se aproximar dele.
E deu apenas alguns passos antes de
retirar os sapatos e carregá-los nas mãos.
Ele assentiu, sorrindo suavemente,
enquanto os dois desciam a rua. Ambos
caminharam em silêncio, e a garota ainda
o olhava de vez em quando sem acreditar
que ele estivesse ali, enquanto ele
mantinha a cabeça baixa, observando os
arredores.
Em poucos minutos chegaram ao seu
destino. Haven pegou o chaveiro e abriu
a porta do apartamento. Vincent não
esperou pelo convite para entrar, e soltou
um suspiro ao se sentir seguro longe das
ruas.
– Este é o seu apartamento? – ele
perguntou, observando o pequeno espaço
de um único dormitório. Aquele era o
lugar em que Corrado a havia
colocado? – É bem pequeno, não é?
– Não é tão pequeno. Digo, é maior
que a cocheira onde cresci.
Touché.
– Então, o senhor queria me dizer
alguma coisa? – ela perguntou, ansiosa,
sentando-se numa cadeira na sala. – O
que faz aqui?
Vincent se aproximou do sofá e se
sentou.
– Bem, eu estava imaginando se
poderia me dizer alguma coisa a respeito
do seu sequestro.
Como que por milagre, Haven
conseguiu ficar ainda mais pálida.
– Meu sequestro?
– Sim – ele respondeu. – Você não tem
de fazer isso, é claro, mas eu estava
imaginando se você poderia me dizer de
quem se lembra de ter visto no local.
Ela hesitou, mas tentou se concentrar.
– O senhor já sabe. Digo, eles estavam
lá quando… Bem, quando vocês vieram
me resgatar.
– Sim, eu sei, mas gostaria de ouvir de
você – ele disse. – Gostaria de saber do
que exatamente você se lembra.
A garota suspirou fundo e olhou para
as mãos sobre as pernas. DeMarco
conseguia ver que Haven não desejava
falar a respeito daquilo e quase se sentiu
envergonhado por levantar a questão, mas
era importante que ele escutasse de sua
boca. Muito importante, aliás.
– Bem, Nunzio estava lá. O homem
chamado Ivan era quem dava as ordens.
Havia alguns outros homens, mas não me
lembro dos nomes. A maioria era de
russos. E havia ainda as mulheres… A
enfermeira apareceu e então veio a outra.
– Que outra?
Haven hesitou por um momento.
– Não me recordo o nome dela.
– Certo – respondeu Vincent. – Então
isso é tudo?
– Bem, eu acho que sim.
– Você acha? – perguntou Vincent,
inclinando-se para frente e apoiando os
cotovelos sobre as coxas. – Quem mais
estava lá?
– Só pessoas que já não estão entre nós
– ela sussurrou. – Se é que algum dia
estiveram.
Vincent processou lentamente aquelas
palavras; o significado se tornando mais
claro ao repensar nas imagens que vira no
diário de Haven. A memória o feria.
– Maura.
– Sim – ela sussurrou –, e também
minha mãe. E a número 33.
Os olhos dele se fixaram nos dela com
curiosidade.
– Número 33?
– Uma garota que vi num daqueles
lugares… Ela estava à venda. Seu
número era 33.
Vincent franziu o cenho quando se deu
conta do que ela estava lhe dizendo.
– Um leilão?
– Sim. Frankie me levou quando eu
ainda era criança.
Vincent sentiu seu estômago revirar.
Ele jamais soubera daquilo.
– Mas por quê?
– Ele disse que era para me ensinar
uma lição – ela respondeu. – Aquela
garota tentou escapar, então… Bem…
Frankie a matou. E então ele disse que
era aquilo o que acontecia com pessoas
que esqueciam qual era seu lugar. É por
isso que quando o senhor me disse que ia
me fazer lembrar do meu olhar naquele
dia, eu pensei que…
Vincent cerrou os olhos quando a
garota disse aquilo. Ele ainda podia se
lembrar do olhar no rosto dela naquela
tarde, quando despertou algemada na
cama.
Por favor, ela sussurrara. Não quero
morrer.
Antes que Vincent pudesse dizer
qualquer coisa, Haven voltou a falar.
– Sei que elas não estavam realmente
ali, mas eu as vi no armazém.
Conversaram comigo e me deram a força
de que precisava para me manter viva.
– Havia mais alguém? – perguntou
Vincent. – Talvez alguém menos
desejável, como um… monstro, quem
sabe?
Haven ficou imóvel, olhando para
Vincent antes de sussurrar.
– Carlo.
DeMarco ficou surpreso.
– Você sabe o nome dele.
– Eu ouvi quando Frankie disse seu
nome no dia do leilão – ela respondeu. –
Ele queria que meu mestre me vendesse
para ele. Fiquei aterrorizada. Pensei que
fosse me vender.
– Graças a Deus que não o fez.
– Sim, mas ele ainda me perseguiu ao
longo dos anos. Eu costumava vê-lo
quando vinha a Blackburn. Ele ficava de
pé na minha frente, olhando para mim.
Era só um olhar. Ele sempre machucava
minha mãe. Sempre… – Ela fez uma
pausa, com lágrimas de raiva surgindo em
seus olhos. – Ele fazia coisas com ela,
mas nunca me tocou. Apenas me olhava o
tempo todo, como se estivesse esperando
o momento certo.
– E você o viu naquele armazém?
Ela acenou afirmativamente a cabeça,
secando os olhos quando uma lágrima
escorreu pelo rosto.
– Eu o imaginei, eu acho. Sobre mim,
apenas me encarando como sempre, como
se ainda não tivesse chegado a hora. Ele
parecia mais velho, mas com certeza era
ele. Eu jamais esqueceria aquele rosto.
Haven soltou um riso amargo e Vincent
permaneceu imóvel. Ele não queria
acreditar, mas algo nas palavras da
menina o fizeram imaginar se ela não
havia de fato imaginado tudo aquilo.
– Muito obrigado – respondeu Vincent.
– Eu só precisava que você o
confirmasse.
– De nada – Haven respondeu,
olhando-o com atenção. – Tem certeza de
que está bem, doutor DeMarco? Será que
as pessoas que o monitoram não me
rastrearão até aqui agora?
– Já não uso mais o meu monitor
eletrônico.
Os olhos dela se arregalaram.
– Seu julgamento terminou?
Ele a encarou, percebendo naquele
momento o quão ela estivera afastada de
tudo o que acontecera nos últimos
tempos. Ele já a vinha seguindo há
semanas, reunindo coragem para abordá-
la… Um homem que a maioria das
pessoas acreditava estar morto. Mas ela
nem fazia ideia daquilo. Não sabia de
nada.
Colocando-se de pé, Vincent esticou
suas costas doloridas.
– Ainda não acabou, mas logo tudo
chegará ao fim. Não há nada com que se
preocupar.
– Muito bem.
– De qualquer modo, é melhor eu ir
embora agora. Já tomei muito do seu
tempo.
Haven o levou até a porta, e, por um
instante, ambos hesitaram em silêncio no
hall. Havia tanto que Vincent achava que
precisava ser dito. As palavras estavam
na ponta da língua e ele quase conseguiu
forçá-las para fora tentando superar o
orgulho que ainda lhe restava, assim
como a grande vergonha que guardava.
Foi então que a porta da frente do prédio
se abriu atrás dele. O riso feminino se
espalhou pelo piso inferior.
Vincent imediatamente abaixou a
cabeça, mas seus olhos observaram a
moça com cuidado, tentando reconhecê-
la.
A filha do senador Brolin.
– Ah, uau – disse a moça com um
sorriso no rosto. – Mais um?
Vincent não permaneceu ali para tentar
descobrir o que a jovem queria dizer.
Capítulo 36
No primeiro fim de semana de junho,
Carmine recebeu uma ligação de
Salvatore a respeito da celebração pelo
livramento de Corrado. Sem nenhuma
vontade de comparecer, ele se vestiu
naquela noite de sábado e dirigiu até a
casa de Salvatore quando já estava
anoitecendo, estacionando o carro na
parte de trás antes de sair do automóvel,
ainda hesitante. Ele apertou a campainha
e Abby apareceu, aparentando estar
aliviada ao se deparar com Carmine.
– Olá – ele disse quando ela o deixou
entrar. – Como você está?
Ela sorriu suavemente; sua voz era
apenas um sussurro.
– Bem, e o senhor?
– Bem, estou aqui com esses filhos da
puta, então obviamente não me sinto tão
bem.
– Fico feliz que esteja aqui – disse a
moça, envergonhada, oferecendo-se para
retirar o casaco do rapaz. – Você fala
comigo como se eu fosse uma pessoa.
– Você é uma pessoa, Abby. Eles
apenas são infames demais para percebê-
lo.
Ela o encarou, surpresa pela resposta
franca, antes de se afastar para fazer seu
trabalho. Carmine seguia para o
escritório quando alguém chamou seu
nome. Ele se virou e o sangue congelou
em suas veias no momento em que olhou
para Carlo. O sujeito deu um sorriso
amarelo ao caminhar na direção de
Carmine.
– Tem sorte pelo seu padrinho não ter
ouvido essa conversa. Algo me diz que
ele não ficaria muito feliz.
Carmine o encarou enquanto lutava
para controlar seu temperamento diante
da expressão esnobe do homem.
– Não há nada de errado em dizer olá.
– Mas você disse muito mais que
apenas olá.
Carlo parecia pronto para dizer mais
alguma coisa quando Corrado entrou no
cômodo e o interrompeu:
– Carlo, Carmine. Algum problema por
aqui?
– Eu só estava lembrando o jovem
senhor DeMarco de que ele deveria
tomar mais cuidado com o que diz e com
quem conversa – retrucou Carlo. –
Afinal, se ele não for cuidadoso, alguém
pode ter uma impressão errada.
– Eu não…
O rapaz estava prestes a dizer que não
havia feito nada de errado quando
Corrado o interrompeu:
– O jeito sarcástico de Carmine é
notório. Acho que as pessoas teriam uma
impressão errada se ele não ostentasse
sua ironia de vez em quando.
Carmine olhou para Corrado em
choque, sem esperar que ele o
defendesse.
Carlo soltou um riso amargo.
– Só porque é esperado não significa
que seja aceitável. Ele precisa aprender a
demonstrar respeito. Ele estava
conversando com aquela escrava…
– Respeito? – retrucou Corrado. – E
suponho que considere que você poderia
ensiná-lo isso depois de falar dessa
maneira na presença dele? Sabe muito
bem qual é o histórico da mãe dele, e
ainda assim quer falar sobre ter respeito?
Talvez você mesmo precise aprender a
demonstrar algum.
– Eu conquistei meu lugar aqui… Já
me dediquei o suficiente – respondeu
Carlo, com o rosto tomado pela fúria. –
Eu já provei meu valor, mas ele ainda
não. Ele precisa respeitar seus
superiores.
– O mesmo se aplica a você – disse
Corrado com a voz afiada. – Ou será que
já esqueceu de que eu sou seu superior?
Conhece o protocolo. Ou também
esqueceu? Carmine é meu homem. Se
tiver um problema com ele, dirija-se a
mim.
Carlo estreitou os olhos. Corrado
certamente o havia irritado.
– Tudo o que estou dizendo é que ele
não deveria tagarelar tanto.
– Eu o ouvi da primeira vez, mas não
vejo o porquê de você querer criar uma
cena aqui – disse Corrado. – Não é nada
tão sério assim. Então ele é bocudo? Não
é como se ele houvesse matado sua
família, Carlo.
Carmine congelou ao ouvir aquelas
palavras amargas saindo da boca do tio.
Carlo parecia um veado pego pelos faróis
de um carro no momento em que Corrado
o encarou com uma sobrancelha erguida,
esperando por uma resposta que nunca foi
dada.
– Senhores – disse Salvatore,
colocando-se entre eles com a expressão
extremamente séria. – Talvez devêssemos
nos sentar mais tarde para amainar o
clima, mas, por enquanto, vamos apenas
celebrar. Vão se divertir, tomar uma
bebida, conhecer uma das belas garotas
que estão lá dentro.
Corrado acenou de modo obediente.
– Claro, senhor.
Carlo repetiu as mesmas palavras
quando Salvatore pediu licença; a bomba
parecia ter sido desativada por enquanto.
– Não sei o que você disse, mas ele
estava certo – falou Corrado quando os
dois ficaram sozinhos. – Precisa mesmo
aprender a controlar sua boca.
– Eu sei.
– Também deveria ter vestido um terno
– repreendeu o tio. – Parece um
desleixado.
Carmine olhou para si mesmo. Estava
vestindo uma camisa de mangas longas e
calças. Só havia deixado de lado a
gravata. Não era como se estivesse com
jeans desbotados e um casaco esportivo
com capuz, embora fosse exatamente o
que desejasse naquele momento. Assim,
se fosse forçado a se sentir miserável,
pelo menos estaria mais confortável.
O garoto passaria as próximas duas
horas batendo papo com outros homens e
associados, conhecendo as famílias
daqueles que eram descarados o
suficiente para fazê-las conviver com
homens tão odiosos e sem coração.
Carmine fingia se importar, sorrindo e
encarando perguntas curiosas a respeito
do paradeiro de seu pai (Não, não o tenho
visto. Tenho certeza de que está apenas se
mantendo discreto nesse momento.);
fazendo o papel de Principe, neto de
Antonio (Sim, meu avô era um Deus entre
esses homens; espero um dia ser como
ele.). Entretanto, em sua mente, ele
apenas contava os minutos para poder
sair daquele lugar (Duas outras horas
ainda pela frente; duas já haviam ficado
para trás.).
Para um grupo que se orgulhava de seu
silêncio e honradez, eles fofocavam mais
que um bando de meninas no colegial.
Aquele não fora o primeiro encontro
obrigatório para Carmine, mas com
certeza era o mais desconfortável. A
reputação de seu pai estava arruinada e
todos estavam cientes daquilo, ou seja, de
que o “prazo de validade” para Vincent
DeMarco já havia vencido.
Carmine bebeu bastante durante todo o
tempo, dolorosamente consciente de que
Corrado o observava do outro lado da
sala. Ele já o havia instruído a não beber
naqueles encontros, mas o garoto não
conseguia evitar. O álcool que invadia
sua corrente sanguínea era a única coisa
que o impedia de tentar escapar de sua
própria pele.
Com o tempo, o número de pessoas no
lugar começou a diminuir; associados e
homens de posições mais rasas, os
soldados, pouco a pouco deixaram o
lugar; os que faziam parte da cadeia de
comando se reuniram no escritório.
Carmine percebeu a mudança na
atmosfera como uma dica de que a noite
finalmente chegara ao fim. Pouco depois
das nove, ele se dirigiu até Corrado, já se
sentindo um pouco mais relaxado e
aliviado, e disse:
– Bem, estou indo.
– Ótimo – respondeu Corrado. – Vá
para casa e fique sóbrio.
Carmine se virou e fez uma continência
de brincadeira para o tio por trás de suas
costas enquanto ele entrava no escritório.
Em seguida, dirigiu-se até a porta, mas
logo ouviu a voz estridente de Salvatore:
– Aonde pensa que vai, Principe?
O garoto o olhou de maneira
apreensiva.
– Para casa, senhor.
– Isso é bobagem – disse Salvatore,
fazendo um movimento na direção do
escritório. – Junte-se a nós.
Carmine suspirou, sem a menor
vontade de permanecer ali por um minuto
sequer.
– Senhor, eu realmente preferia…
– Não foi um convite – disse Sal,
interrompendo-o enquanto tentava
escapar.
Carmine xingou em silêncio,
observando um olhar alarmado no rosto
de Corrado no instante em que adentrou o
escritório.
– Achei que estivesse indo embora.
– Ah, ele estava, mas eu pedi que
permanecesse – retrucou Salvatore,
acomodando-se na cadeira de sempre. E
então apontou para uma cadeira vaga ao
lado dele para que Carmine se sentasse.
Nervoso, o garoto passou a mão nos
cabelos. Havia cerca de uma dúzia de
homens ao lado dele naquele espaço, mas
ele era o único soldado raso presente.
Essas reuniões eram somente para
convidados e, até então, o jovem
apreciava o fato de que nunca antes fora
chamado a participar, pelo menos até
aquela noite.
Por algum tempo, os homens
conversaram sobre coisas que não
importavam, como times de beisebol e
marcas de uísque, enquanto Carmine
permanecia quieto, bebendo ainda mais
para acalmar seu nervosismo. Ele não
fazia ideia de por quanto tempo aquele
pessoal ficou na conversa fiada, até que
por fim mergulharam nos negócios: quem
devia dinheiro; quem não estava
produzindo o suficiente; quem tinha
potencial; e com quem eles já estavam
cheios de ter de lidar. Os que pertenciam
à última categoria logo foram ticados,
sem que nenhuma pergunta fosse feita e
nenhuma objeção fosse levantada. Não
havia qualquer preocupação em relação à
família dos sujeitos ou quanto às
obrigações deles. Intenções não
importavam. Foram julgados e
condenados sem que sequer tivessem a
chance de se defender.
Aquilo fez o estômago de Carmine
revirar, de saber que algum dia eles
poderiam estar falando a respeito dele
mesmo. Sua vida poderia ser decidida
por aqueles homens como algo tão sem
importância como marcas de bebida.
– Acho melhor desmembrá-lo – disse
alguém à mesa. – Corte o cara em
pedaços e então queime os restos.
– Não, faz muita sujeira – disse um
outro. – Apenas coloque algo na comida
dele. Faça parecer um ataque cardíaco.
Fácil e limpo.
– Isso é covardia! É melhor colocar
uma bomba no carro dele.
– Isso é baboseira! E uma bomba não
seria covardia?
– Não. Isso enviaria a todos uma
mensagem quando a rua toda explodisse.
– É, isso seria uma mensagem, com
certeza… E provavelmente mandaria
muitos de seus vizinhos para o hospital.
Essas pessoas não fizeram nada para nós.
– E daí? Como se transeuntes nunca
tivessem se machucado antes.
– É, mas eles têm crianças. E nós não
machucamos crianças, pelo menos se
pudermos evitar.
– Ah, apenas desapareça com ele –
sugeriu outro. – Não é uma atitude
covarde… É inteligente. O fato é que ele
não vale nada. Não há motivo para uma
cena. Apenas puff e pronto.
Alguém zombou:
– Sempre é covardia, a menos que
você o torne pessoal. Não é isso, Carlo?
É isso que você sempre diz.
Os olhos de Carmine cruzaram a sala
até onde o homem com o rosto deformado
estava sentado, bebendo seu uísque.
Carlo apenas acenou afirmativamente a
cabeça, confirmando o que fora dito.
– Sempre olhe para eles nos olhos para
que saibam que foi você, e também para
que você possa ver seu medo. Você quer
que eles associem a própria morte ao seu
rosto… É assim que se sabe que está
fazendo a coisa certa. Então, quando
compreendem, você faz isso rápido:
explode a cabeça; atira na boca do cara
no momento em que ele tenta gritar por
ajuda. Não há nada melhor. Sempre foi
minha assinatura.
Aquelas palavras atingiram Carmine
profundamente, revirando suas entranhas
enquanto flashes daquela noite na viela
voltavam à sua mente. O som dos gritos
aterrorizados de sua mãe, o pavor nos
olhos dela no instante em que soube que
iria morrer.
– Cale a boca dela! – gritou um
sujeito. – Vá logo! – Então tudo o que
pôde ser ouvido foi o som de um tiro
disparado na boca de Maura, para
silenciá-la.
Carmine se levantou antes mesmo de se
dar conta do que estava fazendo. A
bebida escorreu do copo que ele
esmigalhou e caiu no chão. Seu
movimento repentino assustou a todos,
fazendo com que a conversa parasse e
todos se levantaram, já treinados para
sentir o perigo. Todos empunharam suas
armas e vários cliques foram ouvidos no
cômodo à medida que as travas foram
desativadas e as pistolas apontadas para
a cabeça de Carmine.
Os olhos do garoto se fixaram única e
exclusivamente em Carlo, que
permaneceu esticado em sua cadeira, de
modo casual, enquanto girava o copo com
uísque que tinha na mão e encarava
Carmine. O rosto do homem era pura
indiferença, mas seus olhos contavam
outra história bem diferente. Eles se
mostravam desafiadores e incitavam o
jovem a dizer algo.
Longos segundos se passaram,
carregados de tensão e confusão, antes
que Salvatore interferisse:
– Cavalheiros, isso é desnecessário.
Somos todos família aqui.
Os homens abaixaram suas armas
imediatamente, escondendo-as mais uma
vez e retornando aos seus lugares.
Burburinhos faziam a sala vibrar. Era
impossível compreender o que era dito,
mas o ar estava repleto de hostilidade, o
que sufocava Carmine. Aqueles homens
teriam facilmente atirado nele; bastaria
que um dedo escorregasse para que sua
vida chegasse ao fim.
Ele se sentiu como se estivesse prestes
a vomitar ao se dar conta daquilo.
– Carlo, Carmine – disse Sal, olhando
para os dois naquele momento. – Saiam
agora.
Sal deixou o escritório, mas Carmine
permaneceu no lugar por um momento,
enquanto seus olhos acompanhavam os
movimentos de Carlo, que seguia as
ordens do chefe. De modo hesitante,
Carmine os seguiu, sabendo que não teria
escolha. Os três se sentaram nas cadeiras
de couro no pátio externo, ao lado da
piscina coberta. Sal pediu a Abby que
lhes trouxesse bebidas antes de mandá-la
sair com um aceno e orientando que
permanecesse em seu quarto pelo resto da
noite.
Não escapou aos olhos de Carmine que
Carlo observou a menina conforme ela se
afastou. Era o olhar de um predador se
preparando para atacar sua presa.
Era doentio.
Depois que ela saiu, Salvatore ergueu
as sobrancelhas com curiosidade.
– Como vão as coisas, Principe?
Carmine não gostou da pergunta. Está
tudo maravilhoso, obrigado por
perguntar.
– Tudo bem.
– Tudo bem – repetiu Salvatore,
observando os dois homens brevemente
antes de se voltar para Carmine. – E o
que está acontecendo entre vocês dois?
– Nada.
– Nada? Posso sentir a tensão entre
ambos. Você está me escondendo alguma
coisa. O que aconteceu antes para
provocar aquela briga no meu hall?
Carmine não disse nada.
Independentemente de permanecer em
silêncio ou contar seu lado da história,
sabia que perderia a batalha.
Percebendo que não conseguiria uma
resposta de Carmine, Salvatore voltou-se
para Carlo:
– Talvez você esteja mais disposto a
falar.
– Só fiquei surpreso com a atitude do
jovem DeMarco – disse Carlo. – Nunca
ouvi alguém falar de maneira tão vulgar e
desrespeitosa.
Salvatore se voltou para Carmine,
curioso, mas antes que o garoto pudesse
falar, um riso inesperado foi ouvido ao
lado dos três. Aquele som quase fez o
coração de Carmine parar de bater. Ele
rapidamente olhou para a direção de onde
a risada surgira e, sem acreditar no que
via, se fixou em seu pai. Vincent
DeMarco estava de pé a uns cinco metros
de distância, vestido dos pés à cabeça de
preto, com um terno novo italiano,
coberto por um casaco longo que chegava
aos calcanhares e expunha apenas de
relance um par de sapatos de couro
pretos que brilhavam sob o luar. Seus
cabelos escuros estavam penteados para
trás e seu rosto estava bem barbeado.
– Bem, Carlo, sabe que isso não é
verdade – disse Vincent, dando alguns
passos na direção deles. – Age como se
essa organização estivesse repleta de
santos. Meu filho certamente não é o
primeiro a falar mais que a boca.
– Ah, Vincent – disse Salvatore com
um tom evidente de surpresa na voz. Seus
braços estavam tensos; sua expressão
dura como se estivesse entalhada em
pedra. Não acontecia com frequência,
mas o chefe fora pego de surpresa. –
Estava imaginando se voltaria a vê-lo.
Nenhum dos três sabia como reagir.
Carmine só olhou para o pai, e Carlo
colocou a mão em sua arma sob a mesa.
– Com certeza você sabia que nos
encontraríamos novamente, Sal. Seria
rude da minha parte tirar uma licença
permanente sem me despedir de você.
– É verdade – respondeu Salvatore de
modo cauteloso, desesperado por retomar
o controle. – Venha, sente-se conosco.
Vamos conversar.
Vincent negou com a cabeça.
– Estou bem aqui.
Sal se moveu sutilmente na cadeira
para ver melhor.
– Você esteve sumido por bastante
tempo. Estava preocupado que algo de
ruim tivesse lhe acontecido.
– Tenho certeza de que estava.
– Eu estava, honestamente – respondeu
Sal. – Em especial quando faltou ao
julgamento. Fiquei muito apreensivo com
o que aquilo significaria para o seu
futuro.
– Ah, sim, aquilo. Bem, achei que não
valia mais a pena prosseguir com aquela
charada.
– Não posso dizer que esteja surpreso,
Vincent. Desapontado, sim, mas não
surpreso.
– Bem, você me conhece a fundo –
respondeu Vincent. – É uma pena que eu
nunca tivesse conhecido você, entretanto.
Achei que sim, mas estava equivocado.
Sal deu risada, com certo nervosismo
na voz.
– O que vê é exatamente quem eu sou.
– Gostaria que isso fosse verdade –
disse Vincent. – Sempre pensei que fosse
um homem de palavra; um homem que via
o mundo em branco e preto. Nunca
imaginei o quanto você se ocultava nas
sombras para atender às próprias
necessidades.
– E o que o faz imaginar algo tão
ridículo?
– Haven Antonelli.
Carmine involuntariamente abriu os
lábios ao ouvir aquele nome. Os olhos de
Salvatore se voltaram para o garoto, com
ódio, antes de ele se virar de novo para
Vincent.
– E o que essa garota tem a ver com
tudo isso?
– Tudo – disse Vincent. – Não aja
como se não soubesse do que estou
falando.
Salvatore olhou para Vincent sem
acreditar, mas não estava claro se ele
estava de fato surpreso ou apenas
chocado diante daquilo. O coração de
Carmine batia acelerado enquanto seus
olhos vagavam entre os dois. Todos
estavam no limite, com os ombros tensos
e prontos para atacar.
– Entre, filho – disse Vincent. –
Gostaria de conversar com seu padrinho
a sós.
Afastando a cadeira devagar, Carmine
começou a se levantar quando Salvatore
bateu com o punho na mesa à sua frente.
– Fique onde está!
Carmine sabia que não podia
desrespeitar uma ordem direta do chefe.
Olhando para o pai, ele tentou se
desculpar e voltou a se sentar.
Uma expressão de pânico tomou conta
de Vincent e Carmine percebeu. O que
quer que estivesse prestes a acontecer
não parecia nada bom.
– Ainda não compreendo o que a
menina Antonelli tem a ver com qualquer
coisa – retrucou Salvatore, voltando sua
atenção para Vincent. – Diga-me, por
favor.
– Sabia que ela virou uma artista?
– Eu não podia estar menos
preocupado com o que ela é ou deixa de
ser – respondeu Sal. – Ela não é nada
para mim.
– Ah, mas é claro que sabe que ela é
uma artista – continuou Vincent,
ignorando a hostilidade. – Na verdade,
sabe bastante sobre ela, mais do que
jamais admitiria, incluindo o fato de que
ela não representa nada para você.
– Não sabe do que está falando – disse
Sal. – Ela jamais será nada além de uma
escrava aos meus olhos, um pedaço de
carne sem valor por quem vocês, idiotas,
desperdiçam suas vidas. Ela é irrelevante
em meu mundo. Ela sequer deveria
existir!
Carmine se encolheu ao perceber a
irritação tomar conta do rosto de seu pai.
– Sabe, não parecia fazer sentido na
época – disse Vincent. – Nunca
compreendi por que Frankie se recusou a
entregá-la; por que ele não abria mão
dela uma vez que não queria ter nada a
ver com a menina. Ela era apenas um
fardo, outra boca para alimentar, então,
por que não aceitar dinheiro para se
livrar logo dela?
– Ela era neta dele – afirmou
Salvatore. – E você sabe disso.
– Mas isso não importava para ele –
retrucou Vincent. – O fato de seu filho
engravidar uma escrava não seria
nenhuma desgraça a seu ver, ou uma
mancha em sua descendência; ele teria
apenas desejado se livrar da criança.
Então por que ele não só a manteve ali
como matou por causa dela?
– Ele não queria que ninguém
soubesse.
– Sim, isso foi o que você me disse –
retrucou Vincent, acenando com a cabeça.
– E acreditei nisso por anos, porque não
achei que mentiria para mim, afinal você
afirmou ter certeza. Eu matei Frankie e a
esposa, e em seguida coloquei a arma na
cabeça daquela menina enquanto ela
dormia e puxei o gatilho, porque você
jurou que ela fora a razão para tudo que
perdi. E era justamente isso o que você
queria que eu fizesse, não era? Você usou
meu sofrimento para resolver o seu
problema, e quase funcionou. Se a minha
arma não tivesse falhado, eu teria matado
tudo o que respirasse naquele lugar.
– Não mandei que você matasse
ninguém.
– Não precisou fazê-lo! Você sabia
exatamente o que eu faria com a
informação que me passou, e me deu
tempo suficiente para executá-lo antes de
me chamar.
– Eu jamais teria ordenado a morte de
uma criança!
– Porque não pode! Os homens jamais
teriam voltado a acreditar em nada do
que dissesse se ao menos suspeitassem
que estava envolvido nisso. Teria havido
um motim! Mas você sabia como me
controlar, como fazer com que eu
reagisse. Você queria todos mortos e usou
a mim para manter suas mãos limpas.
– Isso é ridículo – retrucou Salvatore.
– Por que eu os quereria mortos?
– Evidência – disse Vincent. – Nunca
deixe nada para trás que possa ser ligado
a você. É bem simples, algo que todos
nós sabemos. Mas no momento em que
percebeu seu erro, queria que ele fosse
apagado.
– Que evidência?
– A descendência da menina.
O rosto de Salvatore foi tomado pelo
pânico. Carmine o olhou em choque,
percebendo que o padrinho não estava
surpreso… Ele de fato sabia. O garoto
ficou totalmente confuso e aquela
informação quase o deixou paralisado. O
tempo todo, diante de tudo o que
aconteceu, Salvatore sabia do parentesco.
– Está maluco.
– Pode ser, mas ainda estou certo –
disse Vincent. – Tudo o que foi
necessário foi uma picada no dedo e uma
vida inteira de segredos se revelou por
completo.
– Não sei do que você está falando.
– É, eu cheguei a acreditar nisso.
Pensei que fosse tão vítima quanto ela,
mas isso mudou quando ela foi
sequestrada. Você não queria se envolver
porque sabia o motivo pelo qual eles a
haviam levado e não queria ter nada a ver
com isso! Teve medo de que eles o
expusessem e então pensou… ou
esperou… que eles fossem se livrar dela.
Mas eles não conseguiram. Você tinha
fome por poder e fez com que sua própria
família fosse assassinada. Costumava
falar sobre o quanto a família significava
e eu sentia pena de você pelo fato de que
não lhe havia restado ninguém. E o tempo
todo fora culpa sua!
– Como você ousa me acusar disso? –
disse Salvatore com ódio. – Eu o matarei
por isso!
No momento em que ouviu aquelas
palavras, Vincent sacou sua arma e a
apontou para Salvatore. Carmine deu um
pulo, assim como Carlo, chocando as
cadeiras na pressa de se proteger. Um
deles pulou na piscina rasa. Salvatore
permaneceu imóvel, sem sequer piscar.
Carmine congelou ao ver Carlo puxar a
arma e mirar em Vincent.
– Você não fazia ideia de que depois
de trinta anos surgiria o teste de DNA –
ele prosseguiu, mantendo os olhos e a
arma fixos em Salvatore. – É por isso que
ele não me vendia a menina… Ele estava
tentando proteger você, e talvez até
protegê-la em meio a tudo isso. Quando
você ouviu dizer que Maura estava
fazendo perguntas, você entrou em
pânico, e foi aí que colocou o plano em
andamento. Mandou que matassem minha
esposa para encobrir seus rastros, e eu
nunca quis acreditar nisso. Jamais quis
imaginar que você pudesse fazer aquilo
comigo, que fizesse aquilo com meus
filhos. Mas Haven desenhou alguns
retratos depois de seu sequestro. Afinal,
como eu disse antes, ela é uma artista. E
ela desenhou um de Carlo. Eu não quis
acreditar nisso, neguei para meu próprio
filho, mas chegou um momento em que
não podia mais negar. Seu homem de
confiança, seu melhor amigo, estava ali
para cuidar de tudo!
Lágrimas escorreram dos olhos de
Vincent. Carlo gritou, negando as
afirmações, e Salvatore olhou para o
lado, aterrorizado. Carmine fitou o
padrinho com nojo.
– Carmine – ordenou Sal com firmeza.
Ele sabia o que queria e esperava que o
rapaz seguisse suas ordens e fizesse o que
já lhe havia sido ordenado.
– Não dirija a palavra ao meu filho –
disse Vincent entredentes. – Você já o
feriu o suficiente! Mas, diga-me uma
coisa, quando mandou que matassem
minha esposa, também queria que ele
tivesse morrido?
– É claro que não! Ele é meu afilhado!
– Mas não nega que queria minha
esposa assassinada? Não nega que
mandou matar sua irmã? Não nega que
estava mancomunado com os russos? Meu
Deus, quão doente um homem precisa ser
para transformar os entes da própria
família em escravos?
– A vida dela deveria ter sido
tranquila! – resmungou Salvatore,
perdendo o controle e buscando sua arma.
Carmine soltou um palavrão e deu alguns
passos para trás, quase tropeçando numa
cadeira. – Frankie me implorou para que
eu lhe desse a menina, aquele estúpido!
Ele me implorou para que deixasse a
criança viva. Foi ele quem falhou! Ele a
tratou como um lixo! Permitiu que o filho
a estuprasse! Ela estaria melhor se
tivesse morrido!
– É por isso que jamais ia até
Blackburn, apenas mandava que nós
fôssemos até lá? – perguntou Vincent, sem
qualquer hesitação na voz. – Não podia
olhar para ela, sabendo o que fizera?
– Está errado!
– E foi por isso que insistiu tanto em
ver Haven quando nos visitou? Foi por
isso que ficou feliz pelo fato de Carmine
ter se apaixonado por ela? Foi por isso
que você quis que ele se
responsabilizasse por ela? Vocês
finalmente voltariam a formar uma
família?
– Cale a sua boca!
– Achou que seria um tipo de
redenção! Eles eram suas propriedades!
E teve a ousadia de me perguntar se teria
valido a pena comprá-la? Se ela valia a
pena depois de tudo o que eu sofrera,
tudo o que perdi, e foi você quem
provocou tudo isso! Você sentiu prazer
em fazer isso? Você sente tanta satisfação
pelo fato de exercer poder sobre as
pessoas?
– Você está completamente maluco!
– E você é um perturbado mental! Um
traidor!
– Como você ousa me acusar disso?!
Justo você, que tem fornecido
informações aos federais? Diga-me,
Vincent, como se sente em agir como um
rato? Como se sente em quebrar o
juramento que fez? Como é saber que irá
morrer por causa disso?
Vincent ficou imóvel por um segundo
antes que um sorriso sinistro surgisse no
canto de seus lábios.
– Você primeiro.
O disparo da arma de fogo ecoou pela
noite e Carmine se encolheu, percebendo
que seu pai puxara o gatilho. Ele se
cobriu de modo defensivo enquanto
Salvatore cambaleou para trás e soltou
sua arma depois de levar um tiro no
ombro. Virando a mesa do pátio,
Salvatore se abaixou quando Carlo
revidou. Vincent atirou novamente,
atingindo Carlo na coxa e fazendo-o
dobrar a perna. Mesmo assim, o sujeito
conseguiu se manter de pé e atirar.
Uma bala da arma de Vincent atingiu a
mesa atrás da qual Salvatore se escondia,
ricocheteando e seguindo na direção de
Carmine, que se abaixou ao ouvir o
barulho. A bala quase o atingiu.
– Merda!
– Carmine! – gritou Salvatore, com a
voz quase inaudível em meio ao tiroteio.
– Mate-o!
Carmine não sabia o que fazer. Ele
lentamente puxou sua arma e,
completamente atordoado, tentava se
manter lúcido. Mate ou seja morto. Ele
sabia como tudo aquilo funcionava. Se
ele não matasse seu pai, Sal com certeza
o mataria.
Antes de poder considerar a ideia de
mirar em qualquer coisa, outro tiro
passou por ele. Carlo caiu para trás, com
a camisa ensanguentada. O homem
tropeçou e caiu, com o corpo tremendo
enquanto agarrava o estômago. Gritos
horríveis escapavam de sua garganta
enquanto Vincent se aproximou e
disparou mais duas vezes com ódio. Cada
tiro atingiu um braço de Carlo, que ficou
sem ter como se defender. Outro projétil
cruzou sua rótula enquanto ele tentava se
arrastar.
Salvatore deu um salto para o lado e
agarrou sua arma antes de se abaixar.
Vincent estava determinado, com a
expressão séria ao se abaixar e pegar
Carlo pelo colarinho. Ele enfiou o cano
na boca de Carlo e puxou o gatilho sem
hesitar. Sangue se espalhou por todos os
lados conforme o crânio de Carlo
explodiu. Carmine mal conseguia conter a
dor que reverberava pelo seu peito ao se
recordar do que acontecera com sua mãe.
Vincent olhou para Carmine com
preocupação, em busca de possíveis
ferimentos.
– Saia daqui, filho – ele ordenou antes
de se voltar para Salvatore, que se
escondera na porta de trás. Vincent se
levantou, mas não teve tempo de mirar,
sendo atingido no peito por Salvatore.
Ele sentiu o impacto e cambaleou, mas
conseguiu se manter de pé e atirar de
volta.
– Carmine, é uma ordem! – gritou
Salvatore, continuando a atirar, mas sem
conseguir atingir o alvo. – Faça-o agora
ou eu mesmo o matarei!
– Não ameace meu filho!
As palavras de Salvatore fizeram com
que Vincent recuperasse sua força. Houve
uma grande comoção quando a porta do
escritório se abriu e vários homens
correram para fora. Corrado os seguiu,
mas ficou petrificado, avaliando a cena
enquanto Carmine soltava o pino de
segurança de sua arma.
Corrado percebeu o movimento.
Levantando sua arma, ele mirou em
Carmine.
– O que diabos voc… – ele tentou
dizer, sem conseguir pronunciar o resto
da frase antes que o tio puxasse o gatilho.
A bala atingiu levemente as costas de sua
mão e ele deu um berro, derrubando a
arma e segurando o ferimento, que
queimava como fogo e sangrava muito.
Corrado correu na direção de Carmine
e o derrubou, colocando-o de barriga
contra o chão e ordenando:
– Não se mexa.
Colocando-se de pé, Corrado atirou ao
acaso, mas as balas deliberadamente não
acertaram o alvo. Vincent se virou e
atirou contra Corrado, com a mira
igualmente ruim, antes de se abaixar e
buscar abrigo atrás da casa.
Salvatore e os outros se protegeram
próximos da porta de trás, enquanto
Corrado e Carmine se moveram para o
lado, de onde tinham uma visão clara. Os
tiros diminuíram enquanto todos
recarregavam suas armas. Outros homens
se juntaram ao grupo para ajudar
Salvatore.
Carmine viu o pai soltar a pistola e
segurar o peito ao dar alguns passos.
Vincent abriu o casaco revelando uma
pequena Uzi presa em seu ombro. O
sangue que corria nas veias de Carmine o
deixou sem ação; a visão do garoto se
embaralhou enquanto lágrimas escorriam
pelo seu rosto.
Vincent abaixou a cabeça, fez o sinal
da cruz e moveu sua boca rapidamente
falando consigo mesmo. Rezando, ele
percebeu. Seu pai estava rezando.
– Não! – Carmine gritou ao perceber o
que iria acontecer. Seu pai nunca tivera a
intenção de sair vivo daquela missão.
Vincent se virou, olhando rapidamente
para o filho antes de dar um passo ao
lado e se colocar de frente para onde os
homens de Salvatore estavam. Corrado se
atirou no chão e puxou Carmine para
baixo quando ele tentou se levantar. O tio
segurou o sobrinho no solo enquanto uma
tempestade de balas reverberou em meio
à noite. Aquilo foi ensurdecedor. A
cabeça do garoto parecia explodir a cada
disparo quando o tiroteio iluminou o
jardim.
Carmine gritou, implorando que seu
pai não prosseguisse com aquilo, mas já
era tarde demais. Não havia como voltar
atrás. Ele fizera sua cama e estava
disposto a deitar nela… Ele estava
pronto para cair.
Mas Carmine não se sentia assim. Ele
jamais se sentiria assim. Tentou empurrar
Corrado para o lado, mas o tio não se
moveu um milímetro, protegendo o jovem
durante todo o tempo. Dois sujeitos
caíram nas proximidades com os corpos
convulsionando no solo; outros se
abaixavam em busca de cobertura. No
meio do caos, Carmine perdeu a noção de
quem estava lá. Corpos caíam enquanto
outros corriam. Gritos de dor se
misturavam ao som das balas.
Um tiro atingiu o estômago de Vincent,
que cambaleou, tirando o dedo do gatilho
por um segundo, tempo suficiente para
que os outros se recuperassem. Eles
atiraram sucessivamente, atingindo o
ombro de Vincent e então sua panturrilha.
Ele ficou de joelho, vacilando e tentando
se manter firme. Vincent mais uma vez
puxou o gatilho e atingiu mais homens
com a Uzi.
A troca de tiros parou abruptamente
quando o cartucho ficou vazio. Vincent
tirou a arma do ombro e a deixou cair no
chão. Ele se sentou no jardim, com o
corpo tremendo enquanto olhava para a
grama pisoteada. Alguém ficou de pé
próximo à casa e Carmine entrou em
pânico porque seu pai estava desarmado,
mas Corrado reagiu instintivamente. Ele
atirou e atingiu o homem na têmpora.
Carmine gritou pelo seu pai, mas
Corrado o empurrou ainda mais contra o
chão, enfiando a cabeça do rapaz contra o
concreto para silenciá-lo. O garoto
xingou enquanto sangue jorrava de seu
nariz. Sirenes começaram a soar à
distância. Alguém gritou:
– É a polícia!
Todos tentaram desaparecer no escuro
da noite.
Corrado enfim soltou o sobrinho
quando a multidão se dispersou. Carmine
se levantou e olhou para o jardim no
momento em que seu pai se arrastava até
o canto da casa. Corrado foi na direção
dele quando Vincent chegou ao canto,
ajoelhando-se, sentando-se sobre as
pernas, segurou sua pistola vazia.
– Vincent! – gritou Corrado, com
pânico na voz.
Vincent olhou na direção deles.
Carmine soltou um suspiro ao olhar o
rosto de seu pai. A cor havia
desaparecido; sua pele estava
acinzentada e seus olhos inertes e sem
vida. Ele ainda conseguiu dizer alguma
coisa em voz baixa, mas Carmine não
pôde ouvi-lo; no entanto, o que quer que
tenha sido fez com que os passos de
Corrado vacilassem. As sirenes se
tornavam cada vez mais altas. Corrado
negou com a cabeça, com firmeza e raiva,
mas Vincent acenou com determinação.
– Saia daqui, Carmine! – gritou
Corrado.
Carmine começou a correr na direção
deles, ignorando a ordem do tio, mas
ficou petrificado ao ver seu pai erguer a
arma e apontar para o próprio queixo.
– Não! Pai, não!
Os olhos de Vincent se fecharam e seu
dedo tremia violentamente no gatilho.
Corrado abaixou a cabeça e suspirou
fundo, dizendo com a voz baixa:
– Perdonami.
Perdoe-me.
Sem hesitar, Corrado ergueu a arma e
puxou o gatilho. Um grito rouco vibrou no
peito de Carmine e dolorosamente subiu
pela sua garganta, quando a última bala
atravessou o cérebro de seu pai. Vincent
caiu para trás, imóvel sobre o gramado.
Carmine caiu ao mesmo tempo, sem
conseguir se mover, apenas tremendo e
soluçando de dor.
Corrado passou por ele e se aproximou
da piscina. Pegou a arma de Carmine e a
sua própria, as limpou com a camisa e as
atirou na água com cloro. Seus olhos se
voltaram para a carnificina. Havia corpos
espalhados por todos os lados.
As sirenes estavam agora bem
próximas e as luzes dos carros de polícia
já invadiam a propriedade. Corrado
ergueu as mãos e se atirou ao chão antes
que o mandassem fazê-lo. Carmine se
virou de bruços e fez o mesmo que o tio.
Carmine estava completamente confuso
e atordoado quando os policiais
algemaram os dois. Corrado deitado ao
lado dele na grama, murmurava para si
mesmo em italiano. Levou um momento
para que Carmine percebesse que o tio
estava rezando. O jovem perdeu o
controle ao ouvir aquilo e soltou um
soluço forte ao ver um lençol branco
sendo colocado sobre o corpo sem vida
do pai. O tecido imediatamente se tingiu
de vermelho.
Carmine tentou silenciar seus gritos
quando os oficiais puxaram Corrado do
chão e o levaram, mas não fazia sentido.
Ele estava totalmente perturbado.
– Sete mortos, incluindo o doutor
DeMarco – disse um oficial. – Ainda
aguardando a confirmação sobre outros
seis.
– Ande com isso – retrucou uma voz
vagamente familiar. – Alguém lá dentro?
– Apenas a vítima de tráfico que
DeMarco avisou que estaria aqui – disse
o homem. – A moça não quer falar nada,
então não sabemos sequer o nome dela.
– Dê algum tempo a ela, falará ao
perceber que está segura.
Passos se aproximaram e Carmine
ouviu a voz familiar chamar seu nome.
Ele olhou para cima e se deparou com o
agente especial Cerone, que se abaixou e
abriu as algemas do garoto, suspirando ao
pegar a mão dele e olhar o ferimento.
– Chamem um médico para cuidar
desse ferimento, por favor.
– Sim, senhor.
Cerone olhou Carmine por um
momento enquanto ele se sentava.
– Bem, você terá de prestar um
depoimento, mas estará livre pela manhã,
desde que coopere. Quer fazer alguma
declaração agora?
Carmine passou a mão no rosto,
tentando enxugar as lágrimas e gemeu ao
perceber que tudo o que fez foi espalhar
sangue em sua face.
– Abby – ele disse em voz baixa. A
garganta dele doía de tanto gritar e a
palavra quase não foi ouvida.
– Abby?
– A garota lá dentro – disse Carmine. –
O nome dela é Abby.
Capítulo 37
A sala de interrogatório na central de
polícia cheirava como se alguém tivesse
tentado limpá-la com urina velha.
Corrado fez uma careta e suspirou
profundamente, sentindo o forte cheio de
amônia e água sanitária queimando seus
pulmões. Olhando para o outro lado da
mesa, na sua frente, ele encarou o agente
especial Cerone com tédio.
O agente se preparou para falar, mas
Corrado o interrompeu antes que pudesse
começar:
– Eu não estava lá. Eu estava em casa.
Estava sozinho, dormindo, e ninguém me
viu.
O agente ficou boquiaberto.
– Eu o vi esta noite, senhor Moretti.
Corrado ergueu as sobrancelhas.
– É mesmo?
– Claro.
– Tem certeza?
– O senhor foi preso na cena do crime.
– Fui?
– Há algo de errado com a sua
memória?
– Talvez – respondeu Corrado. – Acho
que não me lembro de nada desta noite –
completou, mantendo um olhar de
indiferença à medida que o agente o
encarava sem acreditar no que ouvia. O
oficial se recompôs rapidamente,
cerrando os dentes enquanto virava as
folhas de seu caderno de anotações. Ele
tinha centenas de documentos, mas nada
que o preparasse para enfrentar Corrado.
– Sabe, Vincent DeMarco era um bom
homem.
– Era? – perguntou Corrado. –
Aconteceu algo com ele?
Exasperado diante daquela situação, o
agente acenou negativamente com a
cabeça.
– Você vai mesmo se fazer de idiota,
não é?
Corrado deu de ombros.
– Bem, como eu estava dizendo, ele
era um bom homem. Acho que o julguei
mal. Ele não era egoísta nem insensível.
Preocupava-se com sua família e faria
qualquer coisa por eles. E então comecei
a pensar… Talvez o senhor seja igual a
ele. Talvez eu estivesse errado em
relação ao senhor também.
Os lábios de Corrado formaram um
sorriso sarcástico.
– Duvido.
O agente o olhou por um momento
antes de cair na risada. Corrado era
esperto demais para cair nas táticas
psicológicas da polícia. Ele já passara
por tudo aquilo antes e conhecia os
truques utilizados.
– É provável que tenha razão. Só por
curiosidade, o senhor aceitaria passar
pelo polígrafo?
– Não – ele respondeu. – É contra
minha religião.
O agente franziu o cenho.
– Como disse?
– Somente Deus pode me julgar. E eu
certamente não confiaria numa máquina
para fazê-lo.
– Só teria de temer a máquina se
pretendesse mentir. Planeja mentir?
– Não, planejo ficar só aqui, sentado
mesmo.
O agente soltou um suspiro.
– Quando começou a ser assim tão
sarcástico?
– Não sei se entendo o que está
dizendo – disse Corrado. – Aliás, nem sei
o que estou fazendo aqui.
– Vejo que estou perdendo meu tempo
– retrucou o agente Cerone. – Há algo que
gostaria de dizer antes que acabemos com
isso?
– Só que gostaria de ver meu
advogado.
O agente Cerone reuniu suas coisas
sem demonstrar surpresa.
– Mas é claro. Aguente firme. Vai
demorar um pouco até que o senhor seja
liberado, mas acho que vai sair com
tempo de ir ao funeral.
– Funeral de quem?
– Vincent DeMarco.
– Vincent está morto?
O agente acenou negativamente com a
cabeça.
– Pelo menos é consistente no que fala.
Mas, sim, ele está. Eles devem avisar a
família a qualquer momento.
Quando o agente já se preparava para
sair, a expressão de Corrado mudou.
Estava cansado demais para manter
aquela charada. Ele se aprumou na
cadeira e olhou a parede à sua frente,
sentindo um frio no estômago…
demonstrando certa ansiedade. Ele já não
percebia mais o cheiro da sala. Agora sua
preocupação se mostrava ainda mais
forte.
– Espere – disse ele, interrompendo os
passos do agente.
– Sim, senhor Moretti?
– Preciso fazer uma ligação.
O agente suspirou.
– Seu advogado está na sala ao lado
com Carmine DeMarco. Eu o mandarei
entrar assim que terminarmos lá.
– Não precisa chamar meu advogado –
ele retrucou. – Quero ligar para a minha
esposa.
– Sua esposa não poderá ajudá-lo neste
momento.
Corrado olhou para o homem.
– Ela vai achar que fui eu?
– O quê?
– Disse que eles a notificariam logo.
Assim que chegarem à porta da minha
casa, ela pensará que eu morri.
Naquele momento, o rosto do agente
ficou confuso e seus lábios franziram.
– Seu irmão, seu marido… Ela ficará
mal de qualquer modo. Os oficiais
explicarão o que aconteceu.
– Eu fiz uma promessa a ela. Disse que
jamais a deixaria novamente – retrucou
Corrado. – Não quero que ela pense que
quebrei minha promessa, mesmo que por
um único momento.
O agente franziu as sobrancelhas.
– Como pôde fazer uma promessa
dessas a ela com a vida que leva? É
óbvio que um dia irá quebrá-la.
– Não – ele respondeu. – Não há nada
que não faria para cumprir minhas
promessas.
– Mesmo que isso implique matar?
Corrado apenas encarou o agente, que
também o olhou com firmeza. O oficial
desistiu primeiro, embora um suspiro
ainda ecoasse em seu peito ao olhar para
o outro lado. Franzindo o cenho, ele tirou
Corrado da sala de interrogatório e o
levou para um cubículo, em que pegou um
telefone preto e o entregou na mão dele.
– Tem cinco minutos.
Corrado ligou imediatamente para
casa, mas demorou bastante até que a
esposa o atendesse. De fato, ele estava
quase desistindo quando ouviu a voz de
Celia. Embora ela falasse com hesitação,
ele conseguiu perceber que não estava
magoada. Preocupada, mas não de
coração partido. Ela não havia recebido a
notícia ainda.
– Alô?
– Pensei que não fosse atender.
Celia soltou um suspiro.
– Corrado, por que o identificador de
chamadas está dizendo que esta ligação
está vindo da central de polícia de Cook
County?
– É uma longa história.
– E ela termina com você sendo preso
novamente?
– Não – ele disse, olhando para si
mesmo e observando as algemas nos
pulsos. – Tecnicamente não.
– Precisa que eu o tire daí? – ela
perguntou. – Não acho que consiga
arrumar o dinheiro da fiança até amanhã
cedo, embora possamos ter…
– Celia, pare de falar. Não estou
ligando por minha causa. Posso cuidar de
mim mesmo.
– Carmine! – Ela ficou desesperada. –
Ah, meu Deus, o que foi que ele fez? Ele
está bem?
– Ele está… – Corrado acenou a
cabeça. – Carmine ficará bem. Também
não é sobre ele. É sobre o pai dele.
A linha ficou muda por alguns
momentos. Se ele não tivesse detectado a
respiração regular da esposa, poderia ter
imaginado que ela desligara.
– Celia, Vincent está…
– Não… Por favor, Corrado, apenas
não diga isso.
– Sinto muito, bellissima.
Antes que ela pudesse reagir, antes que
ele pudesse dizer outra palavra, o agente
esticou a mão e desligou o telefone,
encerrando a ligação.
– Você tem muita coragem – disse
Corrado, com os dentes cerrados.
– Queria lhe contar pessoalmente e já o
fez – respondeu o agente. – E eu não
precisava lhe conceder esse favor.
Desorientado, Carmine sentia como se
a sala de interrogatório se movesse; as
paredes cinza-escuro pareciam se fechar.
Mesmo com o ar gelado soprando sobre
ele, resfriando sua pele tensa, seu corpo
parecia estar em chamas. O suor pingava
de sua camisa rasgada e manchada de
sangue, deixando-o desconfortável.
O rapaz tentava explicar tudo o que
acontecera, mas não conseguia pensar de
maneira clara. Tudo aquilo era demais
para ele. O agente Cerone e um outro
homem, cujo nome Carmine não se
lembrava de ter ouvido, estavam sentados
à frente dele, enquanto o doutor Borza se
mantinha à sua direita. O advogado pedia
a Carmine que cooperasse, mas as luzes
fluorescentes piscantes não permitiam
que ele se concentrasse.
– Quem atirou primeiro?
– Não me lembro. Foi tudo muito
rápido.
– Quantas pessoas estavam atirando?
– Eu não faço ideia. Algumas.
– Você também disparou alguma arma?
– Não.
– E quanto a Corrado Moretti?
– Não sei dizer. Eu já disse, tudo
aconteceu rápido demais.
– Bem, e o que você fez quando o
tiroteio começou?
– Nada.
– Nada?
– É, nada.
– E não viu o que aconteceu?
– Tiros.
– Quantos?
– Muitos. Eu não contei.
– Quem estava envolvido no tiroteio?
– Eu não sei.
– Então poderia ter sido Corrado?
– Poderia ter sido Jimmy Hoffa!
– Eu apreciaria se não agisse com
sarcasmo. Essa é uma situação séria.
– Não estou sendo sarcástico. Eu já
disse que não vi. Não vi quem atirou
primeiro, quem atirou em quem, quem
está morto ou quem está vivo. Só sei o
que eu fiz.
– E o que foi que você fez?
– Nada. Não fiz absolutamente nada.
Eles continuaram em círculos, obtendo
as mesmas respostas vagas para as
mesmas perguntas. Ele não viu nada, não
fez nada e não conseguia se lembrar de
nada.
E era verdade… Pelo menos
parcialmente.
Carmine não sabia o que esperavam
dele. Tudo de que conseguia se lembrar
era dos últimos momentos de seu pai.
Aquela imagem brutal o assombrava,
como se alguém tivesse pegado uma tocha
e queimado a cena em seu cérebro.
Morto… Seu pai estava morto.
À medida que o peito de Carmine se
contraía, uma lembrança surgia em sua
mente. Acontecera poucas semanas antes
de sua mãe ter sido assassinada, quando
seus pais levaram ele e o irmão ao
parque de diversão Six Flags. Ambos
entraram numa daquelas xícaras
giratórias, e o movimento foi tão brusco e
constante que, quando tudo terminou, ele
não sabia para que lado ir. Suas pernas se
dobraram ao deixar o brinquedo e seu
estômago se contorcia violentamente. Ele
simplesmente caiu ao chão e vomitou sem
parar no meio do parque.
Agora, dentro daquela sala, ele se
sentia exatamente igual. Confuso e
desorientado, atônito nas mãos da
polícia.
Vincent o havia colocado de pé
naquele dia no parque, ajoelhando-se
diante do filho. O rosto de Carmine ficou
vermelho e lágrimas de embaraço se
formaram em seus olhos. Ele os manteve
fixos no cimento, sem querer que ninguém
o visse chorar, especialmente seu pai.
– Você está bem? – perguntou Vincent.
Carmine hesitou, mas aos poucos ergueu
os olhos, acenando afirmativamente
enquanto via a expressão séria do pai. –
Todos caem em algum momento da vida,
filho, mas o truque é se levantar
imediatamente. As pessoas sempre terão
como alvo aqueles que parecerem
vulneráveis, então precisa ser forte. Finja
até conseguir.
Carmine não entendeu naquele
momento, mas seu pai estava lhe
oferecendo o primeiro conselho sobre
como sobreviver àquele estilo de vida, e
aquela fora uma lição que surgiu em sua
cabeça durante aquele tenso
interrogatório. Lágrimas não derramadas
queimavam seus olhos. Ele lutava para
represá-las, sem querer se dobrar sob o
peso do sofrimento. Precisava ser forte;
precisava manter-se firme.
Não podia deixar que aqueles filhos da
puta o vissem em pedaços.
O som de seu nome sendo chamado o
tirou daquele transe e o trouxe de volta à
realidade. O agente Cerone e o outro
sujeito o encararam, repetindo as mesmas
perguntas. Os ouvidos dele ainda zuniam
por conta do tiroteio incessante; aquele
barulho em sua cabeça o estava levando
ao limite. Ele cerrou as mãos, querendo
que tudo aquilo acabasse e franziu o rosto
quando a dor provocada pelo tiro em sua
mão subia pelo braço. Olhou para sua
mão e viu sangue pingando da bandagem.
Tudo ficou branco à sua frente e flashes
de memória começaram a surgir diante de
seus olhos. Ele segurou seu próprio
colarinho. O ar estava tão denso que ele
achou que estava sufocando.
Sangue… Havia tanto sangue por
todos os lados.
Fechando os olhos, forçou-se a pensar
em mais alguma coisa, tentando evocar a
imagem de Haven. Ela estava livre, ele se
fez lembrar. Ela estava perseguindo seus
sonhos. Desde que estivesse assim, desde
que tivesse sua própria vida, tudo teria
valido a pena. A dor em seu peito, sua
mão latejando e o fato de ele estar ali
naquela sala. Tudo teria valido a pena.
Todo o sangue, o suor e as lágrimas que
ele derramara haviam valido a pena,
porque ela merecia tudo aquilo.
Ele sentia falta dela.
Deus, como sinto falta do meu beija-
flor.
Carmine estava tão envolvido em seus
pensamentos que se esqueceu de onde
estava, até que alguém o cutucou. Ele deu
um pulo, batendo no peito com a mão
machucada e fazendo uma careta ao abrir
os olhos. O agente Cerone se colocou de
pé ao lado dele e segurou em seu ombro,
erguendo as sobrancelhas e perguntando:
– Posso lhe arrumar alguma coisa? Um
copo d’água, talvez?
– Pode me deixar ir embora – ele
retrucou. – Quanto tempo vocês planejam
me manter aqui? Eu não fiz merda
nenhuma.
– Só precisamos lhe fazer mais
algumas perguntas.
– Não há nada mais para falar – ele
disse, acenando negativamente com a
cabeça.
– Quem é seu beija-flor? – perguntou
Cerone ao se sentar de novo.
Os olhos de Carmine se arregalaram.
– O quê?
– Há um momento você disse que
sentia falta de seu beija-flor.
O jovem o olhou em choque,
percebendo que havia dito aquilo em voz
alta, sem saber o que mais teria falado
sem perceber.
– Não vejo o que isso pode ter a ver
com o incidente desta noite – interrompeu
Borza. – Eu apreciaria se vocês se
mantivessem no assunto em questão.
– É justo. – Os olhos de Cerone se
mantiveram mais um pouco em Carmine.
– Há quanto tempo conhece Salvatore
Capozzi?
– Ele é meu padrinho – ele sussurrou.
A expressão no rosto de Cerone se
iluminou naquele instante. Carmine então
negou com a cabeça e esclareceu. – Ele é
meu padrinho de batismo.
– Ah, então ele é como um parente para
você?
– Ele era.
– Era? – Cerone perguntou com
curiosidade. – Está dizendo que não é
mais?
– Ele está morto, não está? – o jovem
retrucou.
– Ah, bem… Não.
Carmine encarou Cerone, esperando
que tivesse ouvido errado.
– Não?
– Não – repetiu o agente. Aquela
confirmação fez o coração de Carmine
disparar. Se Salvatore não estava morto,
sua vida estava em risco… Muito em
risco. Ele havia testemunhado tudo e
conhecia seus segredos sujos, os fatos
que ele, Salvatore, tentaria encobrir de
qualquer modo para evitar ser exposto.
Além disso, Carmine desobedecera a uma
ordem direta. Não havia como Sal
esquecer aquilo e perdoá-lo. Ele tinha
muito a perder se desse uma chance ao
afilhado. – Pelo que sabemos, ele
conseguiu se evadir do local. Temos
razões para crer que ele esteja ferido,
mas não há nenhuma evidência de que não
tenha sobrevivido ao ataque.
Carmine absorveu aquela informação,
tentando manter a expressão firme,
embora estivesse em pânico por dentro.
– Há quanto tempo você foi iniciado? –
perguntou o outro agente, casualmente
mudando de assunto.
Carmine o olhou, surpreso com a frieza
da pergunta.
– Iniciado no quê?
– La Cosa Nostra.
O jovem retrucou:
– Tá de brincadeira, né?
– Parece que eu estou brincando? – o
oficial perguntou, elevando o tom de voz.
– Sabemos que está envolvido, portanto
não faz sentido você negar.
– Você deve ter exagerado e assistido
demais a Scarface – ele resmungou. –
Essa coisa não existe, não é real.
O homem respirou fundo e olhou para
Carmine irritado.
– Sabemos que existe. Não somos
estúpidos.
– Nem eu – Carmine retrucou. – Leve
essas suas perguntas sobre a Máfia para
outra pessoa, porque não tenho nada a ver
com isso. Ponto. Fim de conversa.
Um silêncio tenso se fez presente na
sala antes que o agente Cerone limpasse a
garganta.
– Eu a vi, sabia?
– Quem? – perguntou Carmine. A
mudança de tópico o pegou de surpresa.
– Haven – explicou o agente, franzindo
os lábios ao tentar evitar um sorriso.
– Como…? – A confusão em sua mente
se aprofundou. – Como é que você…?
Você está mentindo.
– Não, não estou – ele respondeu. –
Estou pensando em ir atrás dela
novamente.
– Deixe-a em paz, pelo amor de Deus –
Carmine respondeu, colocando-se de pé e
empurrando a cadeira para trás. – Eu juro
por Deus que se você…
Antes que pudesse terminar, Borza
segurou seu braço e o puxou de volta para
a cadeira.
– Ameaçar as pessoas que meu cliente
ama não irá ajudar em nada.
– Eu não estava ameaçando ninguém.
Estava simplesmente dizendo que…
– Estamos todos cientes do que você
está dizendo – respondeu Borza –, e não
foi nada mais, nada menos que uma
ameaça velada. Você diz que quer a
cooperação dele, mas ainda assim traz à
tona o nome da senhorita Antonelli,
apenas para irritá-lo ainda mais.
– Não fiz isso – disse o agente Cerone.
– Pelo que sei, ele não dá a mínima para
ela. Na verdade, da última vez que
conversamos ele sequer admitiu conhecê-
la.
– Então por que falar sobre ela? –
retrucou Borza. – Eu já lhe pedi que se
mantivesse no tópico, mas me parece
óbvio que não tem a intenção de fazê-lo.
O senhor DeMarco concordou em
responder a suas perguntas, mas não tem
tal obrigação. Considerando o fato de que
há apenas algumas horas ele testemunhou
o assassinato do próprio pai, eu diria que
ele tem sido bastante cooperativo.
– Ele não nos deu nada – disse o outro
agente, encarando Carmine.
– Isso é porque ele não tem nada a
oferecer – respondeu Borza. – Não pode
arrancar o que ele não sabe. E por causa
disso acho que a conversa está encerrada.
Faça uma acusação formal ou deixe-o ir.
– Não temos de fazer nenhum dos dois
– retrucou o agente de maneira arrogante,
cruzando os braços sobre o peito. –
Temos todo o direito de detê-lo.
– É verdade, mas não farão isso. Não
apenas por meu cliente estar ferido, mas
também por estar traumatizado. A mídia
teria um prato cheio se soubesse que
vocês o detiveram… Como se já não
tivessem muitos danos a conter. Não
precisam da acusação de assediar um
jovem inocente para complicar as coisas.
– Assediar? Inocente? Ele é um deles!
– Ele? – perguntou Borza, olhando
para Carmine. – Acha mesmo que alguém
irá olhar para este jovem e considerá-lo
um criminoso?
O agente Cerone suspirou.
– É, tem razão.
O outro agente olhou para o colega sem
acreditar.
– Vai deixar que ele vá embora?
– Eu dei minha palavra – disse o
agente Cerone em voz baixa, empurrando
sua cadeira e olhando para o relógio. –
Aguardem um pouco enquanto cuido da
soltura do rapaz. Eu disse a você que o
deixaria sair pela manhã e parece que eu
estava certo, considerando que o sol logo
vai nascer.
Capítulo 38
Kelsey e Haven estavam sentadas na
lanchonete próxima ao prédio, numa
cabine perto da porta. Era manhã de
domingo do primeiro fim de semana de
suas férias de verão. Havia alguns outros
clientes no local, um casal de idosos a
pouca distância e uma família nos fundos,
e também dois homens bebendo café no
balcão.
Uma senhora usando calças cáqui,
blusa branca e um avental preto entregou
às garotas dois cardápios plastificados.
– O que as moças gostariam de beber?
– Café – respondeu Kelsey. – Com
creme, um pouquinho de leite desnatado e
três pacotes de adoçante. Ah, e dois
cubos de gelo.
– Também quero café – completou
Haven. – Mas puro, por favor. Você sabe,
comum.
A mulher retornou com as bebidas
enquanto Haven abria o cardápio e o
examinava. Kelsey disse uma lista de
itens, enfatizando sua necessidade por
bastante bacon, enquanto Haven pediu
uma pilha de panquecas. Por mais faminta
que estivesse, nada parecia lhe agradar.
– Providenciarei tudo num momento –
respondeu a garçonete, afastando-se
novamente e levando consigo os
cardápios.
Haven suspirou e tomou um gole de seu
café, enquanto olhava pela janela. Ela
ouviu quando um dos homens sentados ao
balcão pediu que a garçonete ligasse a
TV e, poucos segundos depois, o local
estava tomado pelo som das notícias.
As reportagens eram em sua maioria de
caráter político, com escândalos locais
dominando as manchetes. Ela investira
algum tempo aprendendo a respeito dos
partidos políticos de Nova York. O pai
de Kelsey mais uma vez estava
concorrendo a uma vaga no senado e
Haven sempre lhe perguntava sobre isso,
mas a amiga costumava evitar o assunto,
dizendo que aquilo não importava para
ela, que nem se incomodaria em votar se
o emprego de seu pai não dependesse
disso, afirmando que nada jamais
mudaria, independentemente de quem
assumisse o comando.
Haven nunca se contrapôs à amiga,
embora não concordasse. Abraham
Lincoln e o 38º Congresso dos Estados
Unidos aprovaram a 13ª Emenda, que
aboliu a escravatura. Woodrow Wilson e
o 66º Congresso norte-americano
aprovaram a 19ª Emenda, que garantia às
mulheres o direito de votar. Para Haven,
tudo aquilo importava.
Os dois homens começaram a debater
as questões mencionadas e pareciam estar
em lados opostos em cada detalhe. Ela
continuou tomando seu café enquanto a
discussão de ambos se tornou mais
audível. Eles falavam sobre controle de
armas e Haven congelou, derramando seu
café ao olhar de relance para a TV. Seu
estômago se contraiu ao ver o rosto
familiar na tela e seus olhos se voltaram
para o nome que aparecia na parte
inferior do vídeo: agente especial Donald
Cerone, Departamento de Justiça.
Deixando a xícara escorregar de sua
mão e bater com força na mesa, o líquido
quente queimou sua pele, fazendo-a
cerrar os dentes por causa da dor. Todos
ficaram em silêncio no local ao
perceberem a comoção da garota na
mesa, mas Haven os ignorou,
concentrando-se apenas na TV. Ela não
conseguia ouvir bem as palavras, por
conta da ardência na mão, mas sentiu
como se estivesse se afogando.
– […] fez uma declaração sobre o
incidente na cidade de Chicago […] um
grande embaraço para o departamento
[…] massacre na suposta mansão do
Chefão da Máfia, Salvatore Capozzi […]
que teria sido o incidente mais mortal na
história da organização criminosa […] o
debate sobre como as testemunhas devem
ser adequadamente ouvidas […].
Haven ficou petrificada ao ver a
imagem do doutor DeMarco na tela.
– O suposto membro da Máfia estava
desaparecido […]
– Meu Deus – disse o homem ao ver a
imagem de uma grande mansão e dúzias
de carros de polícia estacionados diante
de um cordão de isolamento amarelo.
– Uma testemunha dos agentes federais
[…] teria fornecido informações que
desencadeariam a invasão ao local […] o
tiroteio teve início antes da chegada da
polícia […] não têm certeza de qual era o
principal alvo […] um mandado foi
expedido contra Capozzi […]
supostamente ferido durante a troca de
tiros… – uma imagem de Salvatore
apareceu na tela com um número de
telefone no rodapé. Haven estremeceu e
lágrimas imediatamente se formaram em
seus olhos. – […] sete mortos no local
[…] vários levados em custódia […]
Haven respirou fundo ao ver a figura
de Carlo na tela, seguida de vários
outros. Vítimas, segundo eles, que já
estavam mortas antes de a polícia chegar.
Ela ficou em choque… Carlo estava
morto? A garota estava tão perplexa que
mal conseguiu registrar as palavras
seguintes.
– O funeral de DeMarco está marcado
para amanhã […]
Funeral.
Um dos sujeitos na lanchonete suspirou
exasperado.
– Um ótimo exemplo de por que
precisamos de um controle de armas
neste país.
– De jeito nenhum – retrucou o outro. –
Eles nos fazem um grande favor ao matar
uns aos outros.
Um forte soluço escapou da garganta
de Haven quando conseguiu registrar tudo
aquilo e ela levou a mão à boca para
abafar. Tremia de maneira incontrolável e
acenava com a cabeça furiosamente, sem
acreditar. Funeral? O doutor DeMarco
estava morto?
– Hayden? – chamou Kelsey. – Você
está se sentindo bem?
Haven tentou responder, mas assim que
tirou a mão da boca outro soluço ecoou
pela lanchonete. Ela saiu correndo da
mesa e quase caiu ao sentir que suas
pernas mal conseguiam segurar seu
corpo. Ela passou pela amiga e saiu pela
porta, desceu a rua às pressas até seu
apartamento. Kelsey gritou tentando
chamar a atenção da amiga, mas ela não
se virou. Lutando para encontrar as
chaves, entrou rapidamente e se encostou
à porta, fechando os olhos e tentando se
controlar. Aquelas palavras do noticiário
se repetiam em sua mente, mas não
conseguia compreender o que havia
acontecido. Como ele podia estar morto?
O que acontecera, afinal?
Depois de controlar a respiração, ela
abriu os olhos e secou as lágrimas que
escorriam pelo rosto. Então pegou o
telefone preto e discou o número de
Chicago, esperando ser atendida.
– Corrado Moretti. Deixe uma
mensagem.
Haven afastou o nervosismo que
sempre acompanhava aquelas chamas. A
queimação em seu peito foi aplacada por
outra sensação. Diante daquele choque,
de todo o horror que sentia e do medo,
ela se decidiu e as seguintes palavras
escaparam de sua boca:
– Estou a caminho de Chicago.
Haven saiu de seu apartamento no
escuro da noite, levando consigo apenas
uma pequena mala de roupas. Trancou o
apartamento e caminhou pelo quarteirão
até o estacionamento mais próximo,
pegando o elevador até o terceiro piso.
Localizou o Mazda parado precisamente
onde o havia deixado quase um ano antes.
A grossa camada de poeira cobria a tinta
e escondia os arranhões que ainda
adornavam o teto.
Custou-lhe quase todo o dinheiro que
tinha pagar pelo tempo que o carro ficara
estacionado ali e ainda encher o tanque
para iniciar a viagem.
Seu coração doía enquanto dirigia
rumo à estrada. Sua mente estava tomada
por pensamentos envolvendo doutor
DeMarco. Diferentemente do que
ocorrera tantas vezes no passado, em que
o incidente em que ele a punira sempre
voltava à sua cabeça, agora tudo em que
conseguia pensar era nos bons momentos:
o dia em que Vincent lhe dera uma foto de
sua mãe, os feriados, as risadas que
ecoavam pela casa e o olhar de orgulho
no rosto de Dominic ao se graduar. Ela
pensou em tudo que recebera de
DeMarco e na ocasião em que ele lhe
entregara as chaves de seu próprio carro
para que ela aprendesse a dirigir. Ele
sequer ficou irritado quando ela voltou
para casa com um arranhão no espelho.
Parecia que mais de um ano de boas
memórias tinham invadido sua mente e,
com elas, as lágrimas também inundaram
seus olhos. As palavras de Dominic
ressurgiram em sua cabeça, aquelas que
ele lhe dissera quando caminhavam perto
do rio em Durante:
– Já perdi minha mãe para esta vida –
ele disse. – Não quero perdê-lo também.
Dominic fizera Haven compreender
que não havia nada de errado em querer
mais da vida. Ele a ajudara a encarar
seus piores medos. Era mais que justo
que ela estivesse ao lado dele para
também ajudá-lo a suportar aquela dor.
Capítulo 39
Haven ficou sentada dentro do carro
estacionado próximo à guia; seu estômago
parecia uma gelatina enquanto ela olhava
para a porta azul da antiga casa. Ela só
havia estado ali uma vez, quando se
sentara no primeiro degrau ao lado de
Carmine. De algum modo, mais de um
ano se passara desde aquele dia… Mais
de um ano desde que ela o vira pela
última vez. Ela ficou imaginando se ele
ficaria feliz em revê-la ou bravo pelo fato
de ela ter vindo.
Tantos cenários inundaram sua mente
no momento em que ela saiu do carro e
atravessou a rua. Ela tentou controlar sua
ansiedade ao caminhar para a varanda,
mas antes mesmo que pudesse bater à
porta, ouviu seu nome vindo da rua. Sua
visão ficou turva e seu coração acelerou
no momento em que se virou e viu
Corrado, que se aproximava lentamente.
– Senhor.
– Fico feliz por saber que está bem. –
Ele a olhou intensamente, com uma
expressão séria em seu rosto. Haven
ficou nervosa, imaginando se seria errado
ela estar ali.
A garota entrou em pânico diante da
possibilidade de estar em perigo.
– Eu não sabia se deveria vir.
– Você fez bem em aparecer – ele disse
ao se aproximar.– Peço desculpas por
não ter ligado antes. Quando tive a
oportunidade, já havia recebido sua
mensagem, então presumi que alguém lhe
tivesse dito.
– Eu vi na TV – ela disse em voz
baixa. – Eles disseram que houve um
massacre.
Corrado zombou da palavra utilizada.
– Aquilo não foi um massacre. Se este
fosse o caso, ninguém teria sobrevivido,
mas Carmine e eu conseguimos sair
vivos.
– Carmine? – ela perguntou
horrorizada. – Ele também estava lá?
– Sim – respondeu Corrado. – E como
você pode imaginar, ele não está nada
bem. Depois do assassinato de Maura,
ele não falou uma única palavra com
ninguém por muito tempo. Parece que está
lidando com a morte do pai do mesmo
jeito.
– Meu Deus! – A queimação se
espalhou pelo peito enquanto seus olhos
se encheram de lágrimas. – Ele viu os
dois morrerem.
– É verdade.
– Ele está…? – ela perguntou,
apontando para a porta. – Ele está em
casa?
Corrado negou com a cabeça.
– Ele já foi para o funeral com minha
esposa.
– Ah…
– Pode vir comigo – disse Corrado. –
Estou esperando que um carro me apanhe
aqui. Há muito tempo para nos
encontrarmos com eles no cemitério.
Haven olhou para si mesma e reparou
em sua camiseta amarrotada e jeans
sujos. Ela vestia a mesma roupa desde a
manhã do dia anterior. Não tivera tempo
de se trocar.
– Não tenho nada comigo para usar.
– Deus não se importa com o que está
vestindo, Haven – disse Corrado. – Isso
também não importaria para Vincent. Mas
se isso a fizer se sentir melhor, tenho
certeza de que algo no armário de minha
esposa resolverá o problema.
– Ah, não, eu não poderia – disse
Haven, negando. – Eu não quero abusar
tanto de sua paciência.
Corrado soltou uma gargalhada.
– Depois de tudo o que já fiz, acho que
uma troca de roupas não é nenhum abuso.
Aquilo a fez ficar em silêncio.
– Venha – ele insistiu. – E sem
desculpas.
Haven o acompanhou em silêncio até a
casa dele e seguiu para o quarto de Celia,
para escolher algo para vestir. Ao abrir o
armário, ela foi direto a um vestido preto
e simples. Era um pouco grande, mas lhe
caiu melhor que o esperado.
Ela também tomou emprestado um par
de sapatos que, embora apertassem um
pouco, eram mais que adequados para o
momento. Ela não se preparou muito e em
menos de vinte minutos já estava de volta
à sala.
Corrado a esperava no andar inferior e
olhou para a porta ao ver o carro preto
estacionar na frente da casa. Ambos
entraram no veículo e Haven se mostrou
ansiosa, mexendo-se sem parar no banco
de couro.
– Eu tentei – disse Corrado em voz
baixa depois de alguns minutos. – Fiz
tudo o que podia por Carmine, mas
parece que está além de minha
capacidade. Ele é muito teimoso e
descuidado demais. Do jeito que vão as
coisas, a vida dele já está por um fio.
Por um fio? Aquelas palavras
reverberaram dentro dela, enquanto ela
sentiu um frio percorrer seus ossos.
– Você desistiu dele?
– Não importa… Não quando ele já
desistiu de si mesmo.
Antes que Haven pudesse responder, o
telefone de Corrado tocou. Ele o tirou do
bolso, soltando um longo suspiro ao
responder a chamada.
– Moretti… Sim, está tudo arranjado.
Tenho certeza de que tudo correrá
conforme os planos.
Ele desligou rapidamente, recolocando
o celular no bolso e voltando a se
concentrar na garota.
– Essa visita é temporária ou precisa
que suas coisas sejam trazidas de Nova
York?
Ele ficou sem resposta.
– Bem, eu… Eu não sei.
Corrado se virou para a frente e se
concentrou no caminho.
– Diga-me assim que se decidir.
O longo caixão em tom dourado se
destacava sobre o pequeno monte de terra
coberto de grama. Havia coroas de flores
coloridas por todos os lados. Uma
multidão de pessoas se reunira ali, dúzias
de pessoas vestidas com suas melhores
roupas, cabisbaixas e com os olhares
absortos, como se tentassem evitar
enfrentar a realidade. A tristeza e o
sofrimento envolviam a todos; a
atmosfera estava pesada e a dor pairava
no ar.
Haven fez uma pausa a alguns metros
de onde o funeral acontecia, suas pernas
estavam fracas. O corpo do doutor
DeMarco jazia naquele caixão, seu
coração já não batia e a vida o deixara
para sempre. Ele havia partido e jamais
voltaria a abrir seus olhos para enxergar
um novo dia.
O ar parecia ser forçado para fora dos
pulmões da garota diante daquele
pensamento, e sua visão ficou turva. Ela
deu alguns passos para o lado e encostou-
se numa árvore para recuperar o fôlego.
Corrado prosseguiu e se reuniu à
multidão. Ela os observou de longe
enquanto se recompunha, conseguindo
identificar de longe apenas Celia e
Dominic. Os demais estavam fora de sua
visão.
Ela queria se aproximar, desesperada
para ver Carmine, mas seus pés não se
moviam, apesar de todo o esforço que
fazia.
– Vincenzo era um homem leal –
declarou o padre, de pé ao lado do
caixão, segurando uma Bíblia contra o
peito. – Ele foi um marido e um pai, um
filho e um irmão. Não era um homem
perfeito, e certamente cometeu erros, mas
nenhum homem é perfeito. Todos nós
cometemos pecados; todos nos tornamos
vítimas da tentação. Vincenzo não era
diferente de ninguém.
– Soberba, luxúria, gula, preguiça, ira,
inveja e avareza. Os sete pecados
capitais. Ele lutava contra todos, tentando
equilibrar o que havia de bom e de ruim
em sua vida e, em muitas ocasiões, ele
falhou. Mas apenas pelo fato de ter
sucumbido ao mal que existe no mundo,
não significa que ele fosse um homem
mau. Vincenzo me visitou várias vezes
antes que sua vida chegasse ao fim e
expressou remorso por todo o sofrimento
que provocou e, por causa disso, tenho
certeza de uma coisa: apesar de suas
falhas, Vincenzo Roman DeMarco era um
verdadeiro homem honrado.
Choro e soluços podiam ser ouvidos
entre a multidão, mas Haven não
conseguia decifrar de onde vinham.
Quando o padre terminou depois de
alguns minutos, os presentes se revezaram
atirando longas rosas vermelhas sobre o
caixão, despedindo-se individualmente
do homem que jazia ali dentro. Haven
conseguiu identificar Tess e Dia, mas a
família estava à frente de ambas,
bloqueando a passagem.
Nervosa, Haven mexia as mãos sem
parar enquanto a multidão se dispersava,
descascando o esmalte rosa-claro que
cobria parcialmente suas unhas. Foi então
que viu Carmine pela primeira vez. Ele
estava usando um terno preto; os cabelos
estavam penteados para trás e a cabeça
abaixada, olhando para o buraco na terra.
As pessoas se dirigiam a ele ao se
despedir, mas ele não olhava para
ninguém. Apenas se mantinha ali, parado,
como uma fria estátua de mármore,
imóvel e em silêncio, de pé no mesmo
lugar.
Ela viu quando Celia acariciou as
costas de Carmine antes que ela e
Corrado se afastassem. Corrado colocou
a esposa na direção de Haven. Surpresa,
Celia sentiu as pernas vacilarem ao se
aproximar da jovem com um sorriso
caloroso e abraçá-la com carinho.
– Você está ótima, criança. Já faz tanto
tempo.
– Obrigada – agradeceu em voz baixa,
vendo o rosto de Celia vermelho e com a
maquiagem borrada de tanto chorar. –
Estou tão triste pela sua perda, Celia.
– Eu também, minha querida – ela
sussurrou, olhando de volta para Carmine
e franzindo o cenho antes de olhar de
volta para a moça. – Vá – ela disse,
apontando para o rapaz. – Certifique-se
de que ele volte para casa em segurança,
ok?
Corrado colocou o braço ao redor dos
ombros de Celia, acenando positivamente
para Haven, antes de levar a esposa
embora. Haven ainda permaneceu parada
ali por mais um momento, olhando para
Carmine, e imaginando se ela de fato
conhecia a pessoa que estava à sua frente.
Ele parecia tão diferente, desde sua
postura até o modo como estava vestido.
Tudo era tão estranho. Seus ombros
caídos mostravam um homem derrotado.
O jovem parecia alheio a tudo o que
havia ao seu redor.
Haven deu alguns passos na direção
dele, mas parou novamente ao vê-lo se
abaixar, pegar uma rosa e se aproximar
do túmulo. Ele se agachou diante da
lápide e depositou a flor no solo antes de
passar os dedos sobre as palavras
gravadas no mármore envelhecido.
Haven deu mais alguns passos, curiosa.
Foi então que percebeu onde estava.
Certa vez, ele lhe dissera que sua mãe
estava em Hillside. O coração da garota
bateu acelerado ao sentir que talvez
estivesse invadindo a privacidade de
Carmine. A lembrança dele sentado
diante de seu piano, com os ombros
caídos, chorando no dia do aniversário
da morte de Maura surgiu em sua mente e
a dor tomou conta de seu peito.
Nesse instante, ela deu um passo atrás.
Carmine deve ter sentido o movimento,
pois o corpo dele se enrijeceu; seus
ombros ficaram retos e ele ergueu a
cabeça, como se estivesse em alerta.
Algo na atmosfera havia mudado. O sol
da tarde desaparecia por trás das nuvens
pesadas, tornando o cemitério ainda mais
sombrio. Uma brisa suave fez balançar o
vestido de Haven, provocando nela um
frio na espinha.
Tudo pareceu acontecer em câmera
lenta. Carmine se virou em direção a
Haven e seus olhos se cruzaram. Ela
enfim viu o rosto do rapaz, com os lábios
franzidos e os olhos vermelhos e
inchados. A expressão vazia mudou
quando ele a viu, e seu rosto foi tomado
por emoções fortes; as mesmas que
surgiam dentro dela. Choque, descrença,
confusão, desespero, medo, saudade,
esperança, tristeza, sofrimento… Tudo
aquilo atingiu Haven imediatamente no
instante em que o viu em frangalhos;
aquele mesmo homem a quem ela
entregara seu coração e jamais o
recuperara.
Ela o amava, tanto quanto sempre
amou, e quando viu o mesmo sentimento
refletido nos olhos dele tudo fez sentido.
Afinal, apesar de tudo que havia mudado,
a despeito de tudo que não lhe parecia
familiar, independentemente da dor e do
coração partido, o amor entre os dois
ainda estava lá.
Naquele momento, algo parecia estar
certo novamente.
De um jeito hesitante, o rapaz deu um
passo em direção a ela, o que a fez sair
em disparada. Ela tirou os sapatos, os
jogou longe e correu para ele, tremendo e
chorando ao se atirar nos braços de
Carmine, que se firmou numa tentativa de
se manter de pé e se desequilibrou um
pouco ao abraçá-la. O corpo dele tremia
violentamente quando um gemido abafado
rasgou seu peito.
Nenhum dos dois disse uma única
palavra. Parecia que a garganta de Haven
estava bloqueada, o que tornava
impossível que ela pronunciasse qualquer
coisa; ela apenas chorava. Ela fechou os
olhos quando ele a abraçou, entregando-
se ao perfume e ao calor tão familiares.
Apesar de saber o quanto ele estava
vulnerável, do quanto o solo debaixo dos
pés dele parecia inseguro, ela se sentiu
tranquila nos braços dele. Era como se
tudo o que havia enfrentado e encarado se
resumisse agora àquele momento único
em que ela finalmente se sentia em casa
de novo.
Ele era o seu lar. Sempre fora.
Haven não sabia dizer quanto tempo
ficaram ali, entre os túmulos dos pais de
Carmine, abraçados um ao outro e
compartilhando todo seu sofrimento, sua
dor, seus corações partidos através de
suspiros trêmulos, compartilhando cada
lágrima salgada que escorria pelo rosto
dos dois. Podiam ter se passado alguns
minutos, ou até mesmo algumas horas. O
tempo mais uma vez congelou para os
dois.
– La mia bella ragazza – ele suspirou,
com a voz fracionada.
Aquelas palavras a fizeram sentir toda
a saudade que se acumulara desde a
separação. A garota fechou os olhos e
deixou que a eletricidade do toque de
Carmine percorresse suas veias.
– Carmine!
Ele se afastou por um segundo para
olhá-la. O rosto dele estava coberto de
lágrimas e seus cabelos estavam
alvoroçados. Ela esticou a mão para
tentar ajeitá-los, mas seus dedos logo
ficaram presos no que parecia um ninho
de produtos para fixar os fios.
– Seus cabelos.
Um sorriso triste surgiu no cantinho da
boca do jovem e, embora ele não tivesse
respondido, ela sabia que ele
compreendia. Ele esticou a mão e secou
as lágrimas que escorriam pelo rosto
dela, que fechou os olhos ao sentir o
toque carinhoso. Então, deslizou os dedos
pela face e pelo maxilar da garota,
gentilmente, explorando cada milímetro
de seu rosto. Em seguida, afastou um
cacho de cabelos e o colocou atrás da
orelha de Haven.
Também secando as lágrimas do rapaz,
Haven repetiu o que ele fizera, olhando
de modo peculiar para a pequena marca
na bochecha do jovem e passando os
dedos sobre ela. Ela nunca vira aquela
marca antes.
– Você tem uma nova cicatriz.
– Você é tão linda – ele disse,
esboçando um sorriso quando viu o rosto
dela ficar vermelho. – E continua ficando
envergonhada também.
– Você ainda me deixa assim – ela
sussurrou, olhando para ele. – Está
usando um terno.
Olhando para si mesmo, ele fez uma
careta.
– Eu ainda detesto ternos, mas é um
funeral – a voz dele falhou ao dizer
aquela palavra e ele se virou, respirando
de maneira profunda e calculada. Então
olhou para algo atrás dela. – Você estava
usando saltos.
– Eu ainda os odeio, mas… é um
funeral – ela disse, repetindo aquelas
palavras. – Você não está usando seus
tênis Nike.
– Gostaria de estar com eles – ele
murmurou. – Essa porra de sapato
machuca meus pés.
Ela segurou uma risada.
– E você ainda diz essa palavra.
– Que palavra? – ele perguntou,
erguendo as sobrancelhas quando ela não
respondeu. – Bem, acho que você ainda
não a utiliza.
Haven ergueu os ombros.
Ambos permaneceram ali por algum
tempo. Aquela conversa podia parecer
trivial, considerando-se a situação, mas
era a maneira de eles se reconectarem.
Lembraram-se de todos os detalhes a
respeito um do outro e tentavam
descobrir as novidades, à medida que o
conforto e a familiaridade se
restabeleciam. Inúmeras vezes ela
imaginou o que diria se voltasse a ver
Carmine, pensando no que ele
responderia ao vê-la, mas a garota nunca
pensou que o reencontro seria tão
reconfortante, como se nunca tivessem se
separado.
Ambos haviam mudado e aquilo era
óbvio. Bastava que ela olhasse para os
profundos olhos verdes do rapaz para
perceber que a escuridão pairava dentro
deles, mas ainda assim aquilo não o havia
consumido. Carmine parecia em
frangalhos, mas sua alma continuava
intacta. Foi como encontrá-lo pela
primeira vez, só que dessa vez já sabendo
exatamente quem ele era: Carmine
Marcello DeMarco… E, mesmo
parecendo um trapo velho, ele ainda era
muito bonito.
– Não consigo acreditar que esteja
aqui – ele disse, abraçando-a novamente.
Ele enterrou seu rosto nos cabelos da
garota para sentir o cheiro. – Isso tem que
ser uma porra de um sonho.
– Não é um sonho – ela respondeu. –
Eu estou aqui.
– E por quanto tempo?
Ela hesitou. O telefone de Carmine
tocou e a tensão entre ambos cresceu
quando ele fez um movimento para que
ela permanecesse onde estava. Ela o
olhou preocupada enquanto ele se
afastou, levando o fone até o ouvido e
falando em voz baixa para se assegurar
de que ela não ouvisse.
Ela sentiu algo forte na boca do
estômago. Sabia que a tranquilidade não
duraria para sempre, que aquilo que mais
parecia um encontro, não um reencontro,
se racharia em breve. Ele fazia parte
daquela vida e havia coisas sobre ele
com as quais ela não poderia se envolver;
coisas que ela jamais deveria saber.
Carmine guardava segredos que nunca
seriam compartilhados.
Sem querer parecer curiosa, Haven deu
um passo para trás e olhou para a lápide
no túmulo da mãe dele.

MAURA DEMARCO
ABRIL 1965 – OUTUBRO 1996
“AMA, RIDI, SOGNA – E VAI DORMIRE”

Ela tinha apenas 31 anos quando


morreu; era jovem demais para ter sido
arrancada deste mundo. Doutor DeMarco
vivera mais de uma década sem a esposa.
Haven não conseguia sequer imaginar
como ele havia se sentido acordando
todos os dias e percebendo que jamais a
veria novamente, que jamais sentiria
aquela faísca.
– Desculpe – disse Carmine,
interrompendo os pensamentos da jovem.
– Era…
– Não preciso saber – disse Haven,
interrompendo-o, embora tivesse
escutado o nome de Corrado em certo
momento.
Um silêncio embaraçoso pairou entre
eles antes que Carmine soltasse um
suspiro.
– “Ama, ridi, sogna – e vai dormire” –
ele repetiu, lendo o que estava escrito na
pedra. – Quer dizer “ame, ria, sonhe e
então vá dormir”.
Haven sorriu delicadamente.
– Gosto disso.
– Eu também – ele murmurou, com um
sorriso triste nos lábios. – Era isso o que
ela fazia.
– Ela era uma mulher fantástica.
– Era mesmo. É uma pena que não
tenha puxado mais a ela. Em vez disso,
sou como ele. – Lágrimas surgiram
novamente nos olhos do rapaz, e certa
raiva pôde ser sentida junto a suas
palavras. – Filho de Vincent DeMarco, o
que me transforma na porra de um
inimigo. Por mais que eu deteste tudo
isso, é a pura verdade. Sou um deles.
– Não, não é.
– Eu sou. Você nem sabe o que está
falando – ele disse, acenando
negativamente com a cabeça. – Não teria
coragem de olhar para mim se soubesse.
– Você só fez o que teve que fazer.
– Você nem sabe o que eu fiz – ele
retrucou. – O que eu vi e as coisas a que
assisti sem dizer uma única palavra. Eu
vi pessoas morrerem e mantive minha
boca fechada como se aquilo não
importasse, como se elas não
importassem. Que tipo de pessoa faz
isso?
– Eu – Haven disse em voz baixa. – Já
se esqueceu de quando Frankie matou
aquela menina? Número 33. É tudo o que
sei a respeito dela, um número escrito
num pedaço de papel preso à roupa dela.
Ela está morta e nem sei o nome dela.
Nunca fiz nada para ajudá-la.
Ele negou.
– Isso é diferente.
– E de que modo?
– Eles a teriam matado se fizesse
alguma coisa.
– Está me dizendo que eles não o
matariam se não seguisse as ordens?
– Ainda não é a mesma situação – ele
insistiu, com a voz ainda mais séria. –
Você nasceu dentro disso, mas eu escolhi
essa vida. Eu optei por me tornar essa
pessoa odiosa.
– Por mim – ela retrucou. – Se não for
por nada além disso, esse ato já o torna
uma pessoa boa.
– Pessoa boa – ele disse com
desprezo. – Eles falaram sobre a pessoa
boa que o meu pai era, sobre todas as
pessoas que ele ajudou, mas e quanto ao
mal que provocou? Ele ajuda algumas
pessoas e de repente tudo o que fez de
odioso é esquecido? E quanto ao que ele
fez a você? E o que ele fez a mim? Ele
abriu fogo naquela casa e tive de
testemunhar toda aquela merda! Então
ele… Ele tentou dar fim à própria vida…
Carmine começou a tremer enquanto
tentava se controlar, à beira de
hiperventilar. Haven passou a mão nas
costas dele no momento em que ele
começou a chorar. Ele estava ferido e ela
não tinha ideia de como ajudá-lo.
– Ele se foi – disse Carmine depois de
um instante. – Ele saiu em busca de
vingança e eu não posso evitar odiá-lo
pelo fato de ele ter me deixado também.
E a pior parte é que não fiquei surpreso,
porque ele fez exatamente o que eu teria
feito em seu lugar. Eu teria matado cada
um daqueles filhos da puta. Sou
igualzinho ao meu pai.
Haven agarrou o braço de Carmine
para acalmá-lo, uma vez que seu
temperamento mudava tão rápido que ela
mal conseguia acompanhá-lo. Ele se
soltou dela e buscou no bolso um frasco
de metal com bebida.
Levando-o à boca, ele fechou os olhos
e seu corpo estremeceu ao tomar um gole.
– Eu te devo um monte de desculpas,
mas dizer que sinto muito não parece o
suficiente.
– Suas intenções sempre foram as
melhores – disse Haven, sem apreciar
toda aquela autodepreciação. Com base
naquele comportamento, ela concluiu que
ele já o vinha fazendo há algum tempo.
– Como é que diz o ditado? O caminho
para o inferno está repleto de boas
intenções? Faz sentido, eu acho, já que
estou rumando para lá.
Ela recuou.
– Não diga isso, Carmine.
– Me desculpe, você está certa – ele
disse, tomando mais um gole de seu
frasco. – Eu não deveria estar lhe dizendo
essas coisas. É só que… Eu sinto muito.
Estou feliz que esteja aqui. Você não
precisava ter vindo. Não deve nada à
minha família, mas é bom ver você de
novo.
As palavras dele já não continham a
mesma emoção que ele demonstrara há
poucos minutos.
– Também é bom ver você. Senti sua
falta.
– Jura? – ele olhou para Haven. –
Também senti sua falta. Você parece estar
ótima, tesoro.
O coração dela começou a bater de
modo irregular e ela sentiu algo bom ao
escutar a palavra tesoro escapar dos
lábios do garoto. Ele tentou passar a mão
sobre os cabelos, mas sentiu uma forte
dor e olhou para a bandagem que a
envolvia.
– O que aconteceu com a sua mão?
Ele a enfiou de volta no bolso,
tentando esconder o ferimento.
– Corrado atirou em mim.
– Ele atirou em você? Mas por quê?
– Terá de perguntar a ele – ele voltou a
ficar em silêncio e Haven sabia que ele
não queria contar. – Ah, e foi daí que
surgiu a cicatriz no meu rosto também.
Alguém atirou em mim. Mas daquela vez
não foi Corrado… Algum irlandês filho
da puta.
Haven o encartou quando compreendeu
a situação.
– Isso é apavorante.
– É a vida – ele disse, dando de
ombros como se não fosse grande coisa.
– É a minha vida agora, de qualquer
maneira. Mas graças a Deus que não é
mais a sua.
O silêncio reinou mais uma vez,
enquanto ele tomava alguns goles. Ele
olhava para todos os lados, menos para
ela. A garota conseguia ver a tristeza no
rosto dele, a necessidade que ele sentia
em ter algo que achava não mais poder.
Aquilo provocou uma forte dor no peito
de Haven.
– Um cara chamado Gavin me
convidou para sair há alguns meses – ela
disse.
Carmine congelou com o frasco ainda
nos lábios, contraindo-se ao escutar
aquelas palavras. A tensão se fez
aparente.
– Você saiu com ele?
– Uma vez, mas jamais iria funcionar.
– E por que não?
– Porque ele jamais poderia me
conhecer de verdade – ela disse em voz
baixa. – Eu tinha amigos, mas eles
também não me conheciam. Ninguém me
conhecia. Eles não sabem de onde eu vim
ou das coisas pelas quais passei. Só
conhecem a história fictícia, a mulher que
finjo ser… A garota que todos querem
que eu seja… A garota que eu ainda
gostaria de poder ser. Eles acham que o
mundo de onde eu venho só existe nos
filmes.
– É justamente o ponto – ele disse. –
Você pode ser quem você quiser agora.
Ela soltou um suspiro.
– Será que você não compreende,
Carmine? Eu sou esta garota. Eu sempre
serei esta garota e, acredite ou não, gosto
de ser quem eu sou. Gosto de ser Haven.
Gosto de mim.
– Também gosto de você – ele retrucou
–, mas você merece mais do que essa
vida, Haven.
– Bem, o mesmo se aplica a você.
Ele rosnou.
– Eu escolhi essa merda.
– Então por que você não me deu a
escolha? – ela perguntou. – Por que você
escolheu por mim?
– Porque eu jamais poderia permitir
que você jogasse tudo fora por alguém
como eu. Você é melhor que gente do meu
tipo.
Haven negou, sem acreditar no que
ouvia.
– Gente do seu tipo? Como pode dizer
isso? Justamente você, o cara que me
repetiu milhões de vezes que eu superaria
meu rótulo… Como você pode rotular a
si mesmo? Você queria que eu saísse pelo
mundo e explorasse minhas opções. Eu
fiz isso, Carmine, e adorei, mas eu estava
sozinha. Sabe como é estar numa sala
lotada e ainda assim se sentir como se
fosse a única pessoa ali? Sabe? Porque
foi exatamente assim que me senti.
– Eu não podia ser algo em que você
apostasse sua vida, Haven.
– Acha que estar ao seu lado seria
colocar minha vida em risco? Eu sempre
farei parte do seu mundo. Sempre haverá
alguém me controlando, se certificando
de que eu não abra a boca. Minha casa foi
invadida e sequer pude chamar a polícia.
Tive de ligar para o seu tio! Como eu
explico isso para as pessoas? Não é
normal. Eu não sou normal! Estar lá fora
e sozinha no mundo, passando a vida
fingindo ser alguém que eu não sou…
Acha que isso é uma boa aposta,
Carmine? Será que você sequer se
importa com o que eu quero?
Carmine suspirou de um jeito
exasperado, bebendo outro gole.
– É claro que me importo.
– Então por que fez o que fez?
Ele a encarou, fixando intensamente
seus olhos nos dela.
– E o que você faz quando a coisa que
você mais quer na sua vida está além do
seu alcance?
Aquela pergunta pegou Haven de
surpresa.
– O quê?
– Você escreveu isso em seu próprio
diário – ele disse. – Eu não podia
prendê-la.
Um riso amargo de descrença partiu do
peito da garota.
– Então foi por isso? Está brincando
comigo? A resposta para essa pergunta
não é desistir, Carmine. Você não desiste.
Você continua tentando. Continua
esticando a mão. Tudo o que sempre quis
foi alguém que me enxergasse, que me
amasse, que me compreendesse. Nunca
tive de me esconder de você. Nunca tive
de fingir ser alguém que não era. Você me
conhece; você conhece essa pessoa que
ninguém jamais irá conhecer. Eu queria
estar com você, pensei que ficaríamos
juntos e então você foi embora!
Desapareceu enquanto eu dormia!
Haven acenou negativamente com a
cabeça, colocando para fora todo o seu
sofrimento naquelas palavras, tudo o que
ela guardara pelos últimos dezoito meses
escapou de sua boca como um vulcão em
erupção.
– Eu queria o que fosse melhor para
você – ele disse. – Queria que você
tivesse uma chance.
– Uma chance? – ela perguntou. – Você
me pediu uma chance certa vez. Lembra-
se disso? E eu lhe dei essa chance. Não
me arrependo nem por um segundo.
Nunca me arrependerei. Se você não me
amasse, tudo bem, mas…
– É claro que eu te amava! – Os olhos
dele se encheram de lágrimas. – Eu só
não queria que você acabasse morta!
– Você não é o seu pai, Carmine, e eu
não sou sua mãe.
– Eu sei disso – ele retrucou.
– Sabe mesmo? Está tão ocupado
tentando impedir que a história se repita
que ignora completamente o que está bem
diante do seu nariz!
Ele secou os olhos.
– E o que é que está bem diante do meu
nariz?
– O destino – ela disse. – Você
apareceu em minha vida porque era o que
tinha que acontecer. Não foi um acidente!
Então, não me empurre para fora de sua
vida, porque… Porra… eu te amo,
Carmine DeMarco, e você só está se
ferindo ao fazer isso!
Furiosa, Haven cruzou os braços sobre
o peito, tentando se recompor. Carmine
olhou para ela confuso, mas no instante
em que um soluço escapou da garganta
dela, ele retornou à realidade e a abraçou
com força.
– Ah, tesoro – ele sussurrou sobre os
cabelos dela. – Porra, eu também te amo!
Ambos ficaram abraçados por algum
tempo até que o telefone de Carmine
voltou a tocar e a interrompê-los. Ele
resmungou ao pegá-lo e olhar para a tela.
– Senhor? – ele disse, com a voz
desprovida de emoção, sem deixar de
olhar para Haven dessa vez. – Sim,
senhor. Trinta minutos. Entendi.
Ele desligou, olhando para Haven de
um jeito curioso.
– Você tem que ir? – ela adivinhou.
Ele assentiu.
– E você também. Estão esperando por
nós.
– Era Corrado? – ela perguntou,
surpresa quando ele assentiu. – Parecia
sério, como, você sabe… trabalho.
Ele sorriu de um jeito triste.
– Corrado significa trabalho para mim.
Ele é meu chefe primeiro, só depois vem
a família. Já não posso mais mandá-lo se
foder. Não gostaria que ele atirasse em
mim de novo.
Haven olhou para a mão dele de um
jeito instintivo.
– Ainda não consigo acreditar que ele
tenha feito isso.
– É, bem, eu consigo. Ele já ameaçou
me matar mais vezes do que fui capaz de
contar, então isso era apenas uma questão
de tempo. – Haven o encarou horrorizada
e ele soltou um riso nervoso. – Para falar
a verdade, eu mereci. Já aprontei muito.
– De que jeito? Digo, se você puder…
– Talvez mais tarde – ele disse,
olhando para o relógio. – Ficaríamos
aqui a noite toda se eu tentasse explicar, e
agora só temos 28 minutos.
Ele deu mais uma olhada ao redor e
fixou os olhos nos túmulos dos pais,
pressionando as costas de Haven para
levá-la embora.
– É, acho que eu estava errado.
– Sobre o quê?
– Provavelmente sobre tudo, mas, na
verdade, eu estava me referindo a você
nunca dizer “porra” – ele disse, acenando
com a cabeça. – Não posso acreditar que
tenha dito isso justamente para mim.

Nenhum dos dois disse nada durante o


trajeto. Tanto tempo havia se passado que
Haven sabia que seria impossível que os
dois retomassem exatamente de onde
haviam parado. Parecia irrealista esperar
ter de volta tudo aquilo que
compartilharam no passado. Ainda estava
tudo ali, entretanto, enterrado sob a
superfície. Demoraria algum tempo para
desenterrar os sentimentos e cultivá-los
para que recobrassem a saúde. Isso se ele
estivesse disposto a tentar.
Assim que chegaram, os dois foram à
casa dos Moretti. Carmine estava muito
nervoso, com as mãos enfiadas nos
bolsos e o corpo tenso. Manteve a cabeça
baixa, fechando-se cada vez mais a cada
passo. Ele entrou sem bater, parando no
hall. Ela entrou logo atrás e viu Corrado
de pé na ponta da escada.
Ele olhou para o relógio.
– Trinta e nove minutos.
Atrasado.
Uma voz animada pôde ser ouvida no
corredor conforme caminharam para a
sala de estar. Haven sorriu diante de toda
a familiaridade, reconhecendo
imediatamente Dominic. Carmine parou à
porta e ela parou atrás dele, olhando além
do rapaz com certo nervosismo. A sala
ampla estava lotada de pessoas e ela logo
viu Dia, sentada num sofá. Tess estava ao
lado dela, mas fora de visão, uma vez que
Dominic estava à sua frente. Celia estava
sentada numa cadeira próxima à porta, ao
lado de uma mulher mais velha.
Havia pelo menos mais umas duas
dúzias de pessoas ali, gente que Haven
não conhecia, mas cada uma delas ouviu
atentamente o que Dominic falou. Ele
contou uma história sobre uma pescaria
de que ambos participaram na infância,
discorrendo sobre como Carmine havia
derrubado todas as minhocas que os dois
haviam reunido na noite anterior.
Olhando para Carmine, Haven não
percebeu qualquer emoção em seu rosto,
nenhuma demonstração de
reconhecimento enquanto o irmão narrava
os fatos. Ele se manteve de pé, tenso, com
as mãos ainda enfiadas nos bolsos e com
a cabeça baixa. Haven percebeu, olhando
para o garoto, que ele sabia exatamente
como ela se sentira quando estava
sozinha. Ele sabia muito como era estar
numa sala lotada, cercada de pessoas e,
mesmo assim, sentir-se absolutamente
sozinho.
Haven deslizou seus braços por baixo
dos dele, enfiando as mãos nos bolsos e
tocando suas mãos. Ela entrelaçou os
dedos e encostou a cabeça nas costas do
rapaz. Carmine não se moveu nem disse
uma palavra, mas seu corpo relaxou com
aquele contato.
Várias histórias foram compartilhadas,
uma atrás da outra, até que a sala ficou
em silêncio. Uma sensação sombria se
espalhou quando ninguém mais parecia
saber o que dizer. Haven se afastou de
Carmine e o viu ficar nervoso novamente
quando ela limpou a garganta.
– Acho que tenho algo a compartilhar.
– Pé de Valsa! – Dominic atravessou a
sala no momento em que a viu e lhe deu
um forte abraço, erguendo-a do chão. –
Estou muito feliz que esteja aqui!
– Coloque-a no chão, Dominic – disse
Tess.
Dominic colocou Haven no chão e
sorriu de um jeito sem graça. Dia e Tess
disseram olá para a garota antes que
Celia interferisse.
– Prossiga, Haven. Adoraria escutar o
que tem a dizer sobre Vincent.
Nem todos pareciam tão confiantes
quanto Celia em ouvir o que Haven teria
a dizer. Corrado a encarou apreensivo e
ela percebeu que alguns outros também
ficaram nervosos, todos cientes do que
DeMarco havia feito a ela.
– Há cerca de um ano e meio, quando
ainda vivia em Charlotte, eu não estava
muito bem. Acho que poderia dizer que
sentia, ah… saudades de casa –ela olhou
para Dia, que compreendeu o que ela
queria dizer e sorriu. – Tudo o que eu
queria era correr de volta para aquilo que
era familiar para mim, e o doutor De… e
Vincent sabia disso. Em puro desespero,
cheguei ao fundo do poço certa noite e fiz
algo estúpido. Ele veio conversar
comigo. Disse que sabia que eu estava
com medo, mas que eu precisava dar uma
chance à minha vida. Ele me disse para
mostrar a todos que duvidaram da minha
capacidade que estavam errados, que eu
era forte o suficiente e que, se depois de
tudo isso eu ainda sentisse saudades de
casa, ele me ajudaria a encontrar o
caminho de volta. Ele me prometeu que
quando eu estivesse pronta, me ajudaria,
mesmo que fosse a última coisa que
fizesse.
A garota respirou fundo e olhou para
Carmine. Seus olhos se conectaram
imediatamente.
– É provável que ele tenha pensado
que teria de quebrar sua promessa, mas
não fez isso. Aliás, ele cumpriu
exatamente o que disse. Agora que estou
pronta, ele me ajudou a encontrar o
caminho de volta para casa. Eu só
gostaria que essa não tivesse sido a
última coisa que ele fez.
Uma lágrima escorreu pelo seu rosto
conforme olhou para aqueles olhos
verdes que pareciam recebê-la de volta.
Ele abriu a boca como se fosse dizer
algo, mas nenhum som escapou de seus
lábios. Contudo, aquilo não importava,
pois ela sabia exatamente o que ele
estava lhe dizendo: Bem-vinda de volta à
sua casa.
Então, a senhora sentada ao lado de
Celia se pronunciou, com a voz cheia de
cinismo.
– Quem é essa garota? Como ela
conheceu Vincenzo?
– Esta é… – Celia interrompeu a frase.
– Bem, mamãe, esta é Haven Antonelli.
Ela é…
– Antonelli? Você está falando daquela
garotinha que era escrava?
As pessoas na sala se encolheram e
respiraram fundo, certamente afetadas
pelo que poderia chamar de vergonha
alheia, mas Haven apenas acenou de
modo positivo.
– Sim, sou eu mesma.
– Inacreditável – disse a mulher,
examinando-a da cabeça aos pés. – Bem,
acho que não podemos chamá-la assim,
entretanto, não é? Não, a neta de Federica
não é uma escrava. Ela faz parte da
família.
Dúzias de olhos se voltaram para a
mulher quando ela disse aquelas
palavras, e um silêncio mortal tomou
conta da sala.
– O que foi que disse, Gia? –
perguntou Corrado, chocado e
pestanejando.
– Eu disse que ela é a neta de Federica
– respondeu Gia. – Mas o que foi, vocês
não sabiam?
– Não, quer dizer, sim, eu sabia, mas
como você ficou sabendo?
Gia acenou a mão com desprezo.
– Antonio me contou há muito tempo.
Ele planejou matar aquela Salamandra
quando descobriu, mas não teve a
oportunidade. Deus decidiu levar meu
marido primeiro, eu acho.
Corrado a encarou boquiaberto.
– E por que você nunca nos disse
nada?
– Vocês nunca perguntaram – retrucou
Gia, dando de ombros. – Além disso,
todos vocês me consideram maluca.
Alguém teria acreditado em mim?
Mais um minuto de silêncio se passou
antes que Corrado acenasse
negativamente com a cabeça.
– Não, é bem provável que eu não
tivesse acreditado mesmo.
Capítulo 40
Porra, eu te amo.

Aquelas palavras ainda ecoavam na


cabeça de Carmine mesmo depois de uma
hora. Será que poderia ser assim tão
fácil? Ele queria acreditar que sim,
queria ceder, mas ainda sentia um grande
conflito. Ele não tinha certeza de que
conseguiria mantê-la segura ou ser o
homem que ela tanto merecia. Ele lutava
para sobreviver sozinho, e a última coisa
que queria era arrastá-la para aquela
vida. Jamais se perdoaria se ela se
machucasse.
Carmine desviou o olhar de Haven,
suspirando enquanto considerava a
situação e reparou que Corrado o
observava de um jeito peculiar. Aqueles
olhos fixos e penetrantes o faziam sentir-
se em chamas. Era doloroso e, ao mesmo
tempo, cruel. Todavia, por trás daquele
escrutínio e julgamento, parecia haver
pena. Carmine também o encarou e,
apesar de seus olhos terem se conectado
por apenas alguns segundos, aquilo
pareceu uma eternidade.
O telefone tocou e o garoto respirou
aliviado quando seu tio tirou o telefone
do bolso para atendê-lo. Porém, Corrado
apenas o desligou e o recolocou onde
estava. Permaneceu sentado e imóvel por
um momento, com a expressão vazia e os
ombros relaxados, mas Carmine era
capaz de dizer, pelo modo como
flexionava os dedos, que o homem estava
estressado. E Corrado no limite nunca era
bom para ninguém.
O homem então colocou o braço sobre
o ombro de Celia e a puxou para perto de
si, sussurrando algo em seu ouvido. Ela
ficou tensa ao ouvi-lo e olhou diretamente
para Carmine, que estava de pé à porta.
Quando ele percebeu a preocupação no
rosto dela, todo o alívio que sentira no
momento anterior se dissipara. Algo
estava acontecendo e, pelo rosto de
Celia, o que quer que Corrado estivesse
planejando, dizia respeito a ele.
Carmine não ficou surpreso. Enquanto
Salvatore ainda estivesse solto por aí,
sua vida estaria em risco. Olhando
novamente para Haven, o garoto voltou a
sentir-se paranoico. Todos lutaram para
mantê-la longe da linha de fogo e, sem
saber, ela havia retornado para o campo
de batalha.
Ele permaneceu ali por mais um
minuto, ficando cada vez mais nervoso,
até que não aguentou. Saiu da sala em
silêncio, desesperado por uma bebida,
esperando que um gole o ajudasse a
clarear seus pensamentos conflitantes.
Olhou para fora, observando a rua à
procura de algum sinal de problema, e
saiu. No entanto, antes mesmo que
conseguisse pisar na calçada alguém o
chamou. Carmine congelou ao ouvir a voz
de Corrado e se virou, dando de cara com
o tio.
– Está planejando ir embora sem dizer
nada? Aonde está indo?
Carmine suspirou no momento em que
seu tio parou ao lado dele na calçada.
– Para casa.
– Para casa? – Corrado acenou
negativamente com a cabeça. – Depois de
tudo o que já lhe falei sobre seu
comportamento, era de se esperar que
você já tivesse compreendido alguma
coisa! Você não tem nenhum respeito pela
sua família. Você os trata como se todos
fossem descartáveis. Ao menos se
importa com eles pelo que estão
passando neste momento? Seu pai está
morto!
Agindo de modo defensivo, Carmine
perdeu o controle e retrucou:
– Ele está morto por sua causa.
Naquele momento, os olhos de
Corrado escureceram. Ele se virou e
agarrou o pescoço de Carmine antes que
o garoto pudesse dizer qualquer outra
palavra, pressionando-o contra a parede
de tijolos e apertando sua garganta com
força, quase asfixiando-o. Carmine lutava
desesperadamente para se soltar, mas as
mãos de Corrado eram fortes demais.
– Se sabe o que é bom para você,
nunca mais falará comigo desse jeito –
alertou Corrado, com a voz baixa e cheia
de veneno. – Sua família já está sofrendo
o suficiente agora. Não me faça dar a eles
mais uma razão para isso.
Ele soltou o garoto e deu alguns passos
para trás enquanto Carmine se dobrou,
tentando respirar.
– Que porra é essa? – ele retrucou,
com os olhos queimando e repletos de
lágrimas. Corrado deu um passo à frente
e Carmine se ergueu rapidamente,
erguendo as mãos para se defender. –
Meu Deus, não quis dizer isso! Eu, ah…
Eu sinto muito, tá bom?
– Não, não está nada bom – respondeu
Corrado. – Durante todo esse tempo, eu
venho aguentando você pelo fato de não
conseguir superar seu relacionamento
com Haven, e agora que ela está aqui, é
assim que você age? O que há de errado
com você, afinal?
– O que há de errado é que ela não
deveria estar aqui – ele disse, ainda
arfando e tentando recuperar a
respiração. – Ela vai se machucar. Todos
aqui vão acabar se machucando.
– Ah, então você os está evitando para
mantê-los seguros? – perguntou Corrado
soltando um riso amargo. – Bem, acho
que é uma atitude… honrada de sua
parte, eu suponho, mas também é
insultuosa. Você realmente acha que eu
não irei protegê-los? Que não seja capaz?
Eles são minha responsabilidade. Mantê-
los em segurança é o meu trabalho. Se eu
não tivesse certeza de que Haven estaria
plenamente segura ao seu lado, ela não
estaria aqui agora. Se por um momento eu
considerasse você um perigo para minha
esposa, não deixaria que você chegasse a
cem metros de distância dela.
Corrado fez uma pausa quando seu
telefone tocou de novo, apenas para
silenciá-lo mais uma vez.
– Você compreende o que estou lhe
dizendo, rapaz? – ele perguntou,
continuando no mesmo tom. – As chances
de Haven morrer em um acidente são bem
maiores do que as de ser assassinada por
conta de alguém tão banal quanto você.
Porque é exatamente isso o que você é,
insignificante. Você compreende isso?
Você não é nada!
Ele parou mais uma vez quando o
telefone tocou pela terceira vez, com ódio
no rosto ao ouvir o toque, mas dessa vez
nem se preocupou em olhar quem estava
chamando.
– Tenho assuntos a resolver. Vá e
reúna-se com as pessoas que de fato
ligam para você. Não perca a chance.
Nunca se sabe quando só nos restam
algumas horas de vida para apreciar a
companhia delas.
Carmine sentiu um frio na espinha ao
ouvir aquelas palavras, e ficou parado
por um momento depois que Corrado
saiu, tentando se acalmar. Bastante
agitado, arrancou o cigarro da primeira
pessoa que passou por ele na calçada. A
fumaça queimou seus pulmões no
momento em que deu a primeira tragada.
A nicotina logo aplacou seus nervos. Deu
algumas baforadas e então atirou o
cigarro mentolado barato no chão e pisou
em cima dele.
A casa ainda estava barulhenta quando
ele entrou, mas as pessoas haviam se
dispersado pelos outros cômodos. Ele
caminhou pelo piso inferior e encontrou
Celia na cozinha, que ficou surpresa ao
vê-lo.
– Olá, criança.
– Oi – ele murmurou, pegando uma
garrafa na geladeira. Ele precisava
desesperadamente de uma bebida de
verdade, mas achou melhor não ingerir
nenhum álcool ali. – Ah, onde… Onde
está…?
– Ela está no pátio atrás da casa –
respondeu Celia, sabendo a quem ele se
referia.
– Obrigado – ele respondeu. Em
seguida, caminhou em direção à porta dos
fundos, encontrando o grupo sentado nos
velhos móveis de jardim. Ele caminhou
em sua direção, mais uma vez sentindo-se
nervoso, mas todo o desconforto se
dissipou quando Haven o olhou. Um
sorriso radiante iluminou seu rosto e seus
olhos brilharam. O coração de Carmine
quase parou ao ver aquilo.
O garoto teve de se controlar ao
máximo para não se atirar de joelhos à
frente dela e implorar para que sempre
olhasse para ele daquele jeito. Ele queria
pedir que jamais deixasse de amá-lo, que
o perdoasse por tudo o que fizera de
errado, até mesmo as coisas que ela
desconhecia. Ele queria que ela lhe
garantisse o perdão, que fosse seu anjo
salvador, que jurasse que valia a pena ser
salvo. Ele nunca desejaria que ela se
sentisse envergonhada por sua causa, e,
com toda a certeza, jamais gostaria de ver
qualquer desapontamento em seus olhos.
Ele queria que ela se orgulhasse dele e,
naquele momento, queria jurar que faria
qualquer coisa que ela lhe pedisse para
provar que era digno de seu amor.
No entanto, em vez de colocar seus
sentimentos para fora, ele apenas os
engoliu e manteve a boca fechada,
pegando uma cadeira e se juntando ao
grupo, sentando-se ao lado de Dominic,
de frente para Haven, e manteve os olhos
fixos nos dela.
– E aí, cara – disse Dominic, dando um
tapinha nas costas do irmão. – Já voltou?
Ele ergueu os ombros.
– Nem cheguei a sair, só fui até lá fora
para tomar um pouco de ar.
– É, tenho certeza de que só saiu para
tomar ar – disse Tess com sarcasmo. –
Você está cheirando a cigarro. Fique
longe de mim. Isso fede.
– Nem está ventando, Tess – ele
retrucou. – Cale sua boca.
A voz suave de Haven capturou sua
atenção. Com um olhar curioso, ela
perguntou:
– Você fuma?
– De vez em quando dou umas
tragadas, mas não fiz disso um hábito.
– E falando em hábitos… – Dominic se
virou para a garrafa na mão de Carmine.
– Isso aí é mesmo água, cara?
Normalmente não é sua bebida favorita.
Carmine estreitou os olhos.
– É, é apenas água. É tão difícil assim
de acreditar?
– Bem, eu diria que é. A única bebida
transparente que você bebeu durante esse
ano foi vodca.
– O caralho. Não pode afirmar isso se
nem tem me encontrado com frequência.
– Isso é porque você está bêbado na
maior parte do tempo – retrucou Tess,
soltando uma gargalhada. – É bem
provável que nem se lembre de ter se
encontrado conosco.
– Eu não bebo tanto assim – ele
respondeu, sabendo que era uma mentira
no momento em que as palavras saíram
de sua boca. Na verdade, ele se
acostumara a beber até ficar inconsciente,
mais vezes do que conseguia contar. Com
certeza sua memória estava cheia de
espaços em branco. Dias inteiros
completamente esquecidos.
– Você bebeu alguma coisa hoje? –
perguntou Dia, na cadeira atrás de Haven.
– É, cadê o seu frasco? – perguntou
Dominic. – Você o tem aí?
Carmine baixou a cabeça. Aquele
assunto o fazia desejar ainda mais uma
boa dose de bebida. Ele começou a coçar
o pescoço sem perceber e sua ansiedade
foi se tornando cada vez maior.
– Mas o que é isso, uma intervenção?
– Talvez – respondeu Dominic.
– Bem, estão perdendo seu tempo,
porque não preciso de uma.
– Nós discordamos – Dia retrucou. –
Você sempre bebeu, mas a situação está
piorando agora.
– Deixa para lá, Dia.
A moça começou a argumentar, mas
Tess a interrompeu:
– Para com isso. Tudo bem, ele bebe.
E daí? Pelo menos ele não está mais
curtindo a Molly.
O clima ficou pesado e todos ficaram
em silêncio. Carmine ergueu os olhos
lentamente e encarou Tess, que percebeu
a fúria e a hostilidade no rosto do garoto.
Ela empalideceu e começou a gaguejar
sobre não ter sido sua intenção dizer
aquilo, mas ele a interrompeu:
– Apenas cale a boca, Tess. Fale sobre
qualquer outra coisa, sobre o que estavam
conversando antes que eu os
interrompesse.
– Estávamos apenas nos lembrando das
coisas – respondeu Dominic, olhando de
um jeito preocupado para Carmine,
rapidamente mudando de assunto. –
Estávamos compartilhando algumas
lembranças que temos do papai.
– Bem, então continuem – ele
respondeu, abrindo sua garrafa de água e
tomando um gole. O líquido estava
gelado e desceu suavemente pela
garganta, mas não provocava a
queimação que ele tanto desejava.
O clima ficou um pouco mais leve
enquanto compartilhavam histórias e se
cutucavam uns aos outros. Haven parecia
tranquila, sorrindo e dando risadas, mas
sem falar muito. Carmine queria ouvir sua
voz e escutar suas histórias, saber o que
havia feito durante aquele tempo sozinha.
Ele queria saber tudo, e abrigava um
certo ciúme por ter perdido tanta coisa.
Ela vivera inúmeras experiências sobre
as quais ele não sabia nada, e aquilo não
o agradava.
Celia se juntou ao grupo depois que
vários convidados já haviam saído, e
também compartilhou algumas outras
histórias. De vez em quando, Haven
olhava para Carmine e suas bochechas
coravam. Eram resquícios da garota
tímida da qual ele se lembrava surgindo
novamente. Para o garoto, aquilo era um
sinal de esperança. Algo que deixara de
sentir desde que saíra de sua casa em
Durante.
Talvez eles tivessem uma chance.
Talvez ela pudesse perdoá-lo algum dia.
– Tess, querida, temos que ir andando
– disse Dominic. Ambos se colocaram de
pé. Dominic olhou para todos e se fixou
por um instante a mais em Carmine. – Foi
muito legal encontrar com vocês
novamente. Precisamos repetir isso mais
vezes, e não apenas quando, vocês
sabem… quando algo acontece.
Todos concordaram.
Eles se despediram e, antes de sair,
fizeram com que Haven prometesse
manter contato. Dia partiu logo depois,
deixando Haven e Carmine sozinhos.
Ambos ficaram ali sentados, olhando-se.
O ar ficou denso por conta de perguntas
não feitas.
– Você gostaria de, ah… – ele começou
a pergunta sem saber como terminá-la. –
Caralho, não sei. Gostaria de tomar um
café ou algo assim? É isso o que as
pessoas fazem?
Ela riu.
– Bem, não sei se é isso o que as
outras pessoas fazem, mas me parece uma
boa ideia.
Carmine mais uma vez ficou nervoso e
sentiu um desconforto na boca do
estômago. Ele tinha medo de dizer algo
errado e arruinar qualquer chance de
consertar as coisas.
Ele estendeu a mão para ela, mas a
garota apenas ficou olhando, com uma
expressão apreensiva no rosto que o fez
ficar em dúvida. Ele baixou a mão e a
enfiou no bolso.
– Você não precisa ir. Eu só achei que,
bem… Meu Deus, porque essa porra toda
parece tão embaraçosa?
– Não sei – ela disse ao se colocar de
pé. – Quero dizer, somos só nós dois,
certo? E não é que eu não queira tocar na
sua mão, mas ela está machucada e não
quero feri-lo ainda mais.
– Ah! – Ele tirou a mão do bolso para
olhar para ela. – Você não vai me
machucar.
Nervosa, ela mordeu o lábio inferior
ao oferecer sua mão a Carmine. Ele a
tocou com um sorriso, entrelaçando os
dedos e apertando levemente. O rapaz
sentiu uma forte dor no pulso e se
contraiu. Era óbvio que sua mão não
estava em boas condições como ele
dissera.
– O ferimento é grave? – perguntou
Haven. – E seja honesto comigo.
– Eu não sei – ele murmurou, soltando
a mão dela e desfazendo o curativo. – O
médico disse que não era sério, mas não
fui a um hospital.
Haven olhou para a mão dele. A parte
de trás estava vermelha e ela pressionou
a pele com os dedos, suspirando quando
ele se contraiu.
– Isso está infeccionado.
– Como sabe disso?
– Está falando sério? – Ela ergueu as
sobrancelhas e olhou para Carmine como
se aquela fosse uma pergunta estúpida. –
Nós nos machucávamos com frequência
em Blackburn e não tínhamos acesso a
médicos, então aprendemos a perceber os
sinais. Já vi pessoas morrerem com
ferimentos menos sérios do que este.
– Ah, sei – ele disse, olhando para a
mão. – Não é só limpar e colocar algum
remédio?
– Tão teimoso – ela resmungou,
entrelaçando os dedos mais uma vez. – É
melhor tomar um antibiótico, portanto, vá
a um médico. Por favor?
Ele suspirou, resignado e parcialmente
irritado pelo fato de ela saber exatamente
como convencê-lo. Tudo de que precisou
foi da porra de um “por favor”.
– Eu vou marcar uma consulta amanhã,
mas agora eu tenho um, ah… Seja lá o
que for. Um encontro, eu acho.
Um pequeno sorriso se abriu nos
lábios de Haven ao ouvir aquelas
palavras.
Eles deram a volta na casa para evitar
encontrar qualquer pessoa enquanto
saíam. Carmine não estava disposto a
encarar o sentimento de pena disfarçado
em simpatia. Ele estava no limite no
momento em que desceram a rua. Embora
mantivesse a cabeça baixa, estava atento
a tudo que acontecia ao redor dos dois.
Não importava o que Corrado lhe havia
dito: ele não conseguia controlar a
paranoia. Salvatore ainda estava solto,
em algum lugar, e até que ele tivesse
certeza de que aquela situação estava
resolvida, não haveria como relaxar.
Carmine soltou a mão da garota quando
chegaram à sua casa e destrancou a porta.
Ela entrou e deslizou os olhos com
curiosidade. Ele percebeu que Haven
recuou diante da gigantesca bagunça.
– Ah, cozinha, sala de jantar, sala de
estar, banheiro e lavanderia, ou sei lá o
nome – ele disse, apontando para cada
cômodo no térreo. – Aquela sala depois
do hall, do outro lado da sala de estar,
costumava ser o escritório do meu pai
quando eu ainda era criança, mas agora
só está cheia de caixas. Nunca me
importei em desempacotar tudo.
– Você vive aqui há mais de um ano e
ainda não desfez os pacotes?
– Não.
– E por acaso você fez alguma faxina
nesse tempo todo?
Ele piscou algumas vezes, olhando
para ela, mas não respondeu à pergunta.
– Sinta-se em casa. Eu volto já.
Carmine a deixou sozinha por alguns
momentos e subiu no andar superior. O
jovem chutou os sapatos para dentro do
armário e então substituiu o terno por
calças jeans e uma camiseta verde de
mangas compridas. Calçou seus Nikes e
entrou no banheiro. Molhou os cabelos e
tentou passar os dedos por entre os fios,
mas aquilo fez sua mão latejar. Ele
procurou nos armários e encontrou um
frasco de antisséptico. A ferida queimou
no momento em que despejou o remédio
sobre ela.
Ele desceu as escadas e se deparou
com Haven de pé na sala de estar,
olhando para o piano ainda coberto. Ela o
olhou de um jeito inquisitivo.
– Carmine, quem é Molly?
Ele congelou ao ser pego desprevenido
pela pergunta.
– Tudo bem se ela foi, ah, você sabe…
Não é nada de mais – ela disse, fazendo
uma careta, mas sua reação não
combinava com as palavras. – Só fiquei
pensando se você e ela…
– Molly não é uma pessoa – ele disse,
acenando negativamente com a cabeça. –
Molly é um tipo de droga. Eu queria me
sentir melhor e acabei me viciando. Isso
provavelmente teria me matado… Bom,
na verdade, essa porra quase me matou
mesmo. Na verdade, eu estaria morto se
Corrado não tivesse interferido.
– Ele conseguiu livrá-lo das drogas?
– É, acho que podemos dizer que sim.
Ela olhou para Carmine ao ouvir
aquelas palavras.
– E funcionou?
O rapaz franziu o cenho.
– Eu já lhe disse que parei.
– Estou me referindo à Molly – ela
esclareceu. – Essa droga o fez se sentir
melhor?
Ele soltou um suspiro ao considerar a
pergunta.
– Funcionou por algum tempo, mas não
era real. Não importava o quanto eu
ficasse nas nuvens, nunca encontrava o
que estava buscando. E isso acabou me
atrapalhando mais que ajudando.
Ele a puxou para um abraço e ela o
encarou com brilho nos olhos. O ar
tornou-se denso com tamanha emoção no
momento em que ela colocou os braços
ao redor da cintura dele, seu coração
disparou ao sentir aquele abraço, e o
sangue correu furiosamente por suas
veias. Ele se inclinou de um jeito leve e
hesitante, avaliando a reação de Haven, e
os olhos dela pareciam instintivamente se
fixar em sua boca. Ele assumiu aquilo
como um sinal e torceu para que não
estivesse cometendo um erro ao
aproximar seus lábios dos dela.
No último segundo, Haven entrou em
pânico e desviou o rosto, fazendo com
que ele beijasse apenas sua face corada.
Mantendo o silêncio, o rapaz se
repreendeu. Rápido demais.
– Eu, ah… – ela disse, retorcendo os
dedos e se afastando dele. – Sinto muito.
– Não sinta – ele disse, olhando para o
relógio com um suspiro. Já passava das
19h. – Bem, e que tal um café?
Ela assentiu e enfiou a mão no bolso,
retirando de lá um chaveiro e o atirando
para Carmine, sem nenhum aviso. Ele mal
pôde ver o que era antes que caísse no
chão, olhando para aquilo com
curiosidade e vendo o molho familiar.
– Caralho, você só pode estar
brincando.
– Está estacionado bem aí na frente –
ela disse. – Imaginei que talvez você
gostasse de dirigi-lo novamente.
Carmine dirigiu pelas ruas do leste de
Chicago, recostado no banco do motorista
do Mazda preto. O interior escuro tinha o
mesmo cheiro de quando ele o guiara
pela última vez; de algum modo, o
assento de couro ainda tinha sua forma.
As rádios da Carolina do Norte estavam
programadas nos botões do estéreo e o
mostrador apontava para sua estação
favorita: a 97.1 FM. Um perfumador
preto no formato de uma árvore ainda
estava pendurado no retrovisor, e ele
suspeitava que ainda fosse o mesmo que
ele colocara em Durante.
– Você chegou a dirigir esse carro? –
ele perguntou, olhando para a
quilometragem no painel… Apenas
algumas centenas a mais do que ele se
lembrava.
– Claro – ela disse. – Eu dirigi até aqui
ontem à noite.
Carmine acenou com a cabeça,
voltando a se concentrar na rua.
Estacionou na primeira cafeteria que
encontraram, saiu do carro, deu a volta e
abriu a porta para Haven. Ela sorriu com
doçura ao desembarcar e pegou na mão
dele para entrar no local. A cafeteria
estava lotada. Havia grupos de pé
conversando e outros em torno das mesas.
– Do que você gosta? – perguntou
Haven ao entrar na fila.
Carmine deu risada.
– Bem, não posso dizer que goste de
nada. Eu nem bebo café.
– Então por que me convidou para
tomar café?
– Achei que seria mais fácil convencê-
la a tomar alguma coisa do que a jantar
comigo – ele respondeu, olhando para a
placa com as opções. – Jesus, quem paga
cinco dólares por uma bebida que nem
tem álcool em sua fórmula? Por esse
preço é melhor que venha acompanhado
de uma boa chupada ou algo assim.
– Carmine – ela disse, respirando
fundo ao perceber que as palavras do
garoto estavam atraindo a atenção das
pessoas ao redor. Ele sussurrou um
pedido de desculpas e reparou num
homem a alguns passos de distância que
os encarava. Estreitou os olhos para o
sujeito e fez um movimento com a boca:
“Algum problema?” O sujeito logo
desviou o olhar. Carmine fez uma careta
de desdém e voltou a olhar para a placa.
Então Haven perguntou:
– Você vê alguma coisa que ache que
possa gostar?
– Não sei o que é nenhuma dessas
bebidas – ele respondeu. – Eu consigo ler
o que está escrito em italiano, mas isso
não me diz nada a respeito do sabor. O
que você costuma beber?
– Café puro.
– É sério? Com todas essas opções
sofisticadas como frappé de chai latte e
caramelo Fra-puta-que-pariu-ccino à
base de café, você vai pedir justamente
café puro? – ela assentiu, o que o fez rir e
puxar a mão da garota e dar um beijo na
parte de trás. – É, essa é a Haven de que
eu me lembro, aquela que gosta das
merdas mais simples.
A barista perguntou a Carmine o que
ele queria e ele respondeu:
– Dois cafés pretos puros – com a
expressão de quem a estivesse desafiando
a corrigir seu linguajar. Ela apenas
acenou com a cabeça e ele resmungou ao
ver o preço do pedido.
– Eu tenho algum dinheiro comigo –
disse Haven, colocando a mão no bolso.
– Pelo menos, eu acho.
– Nem ouse – ele disse, olhando-a
incrédulo. – Eu roubaria este lugar antes
de permitir que você pagasse a conta.
Ela tirou a mão do bolso quando ele
pegou a carteira e puxou uma nota de
vinte dólares. A mulher deu o troco a
Carmine, encarando-o com cautela, mas
ele enfiou a nota de dez dólares na
caixinha de gorjetas.
– Isso foi bem generoso – comentou
Haven.
– É, pois é, eu tipo que ameacei até
roubar o lugar, então não achei justo
ainda parecer mão-de-vaca.
– Mas você não roubaria este lugar –
ela retrucou de modo confiante.
– Não, eu não roubaria – ele
respondeu. – Pelo menos desde que não
recebesse ordens para fazê-lo.
Carmine pegou as bebidas e levou
Haven até uma mesa no canto, longe da
multidão. Eles se sentaram e Carmine
tomou um gole de sua xícara fervente,
engasgando por causa do gosto.
– Essa merda é amarga pra caralho.
Ela então tomou o primeiro gole.
– Para mim parece bom.
O jovem quase esvaziou o açucareiro
na xícara e ainda acrescentou um pouco
de creme para tornar o sabor mais
tolerável, mas ainda assim não tinha a
menor vontade de beber aquilo. Os dois
conversaram enquanto Haven tomava seu
café e ele ouviu atentamente enquanto ela
lhe contava a respeito de sua vida em
Nova York. Ela falou sobre ter
frequentado uma escola e criado seus
próprios trabalhos artísticos; contou
sobre as pessoas que conheceu e os
novos amigos, antes de explicar como
ficou sabendo sobre a morte de seu pai no
noticiário.
– Essa não foi a primeira vez que eu
quis vir para cá. Quando ainda vivia em
Charlotte, saí correndo de casa no meio
da noite, peguei um táxi até a rodoviária
– ela riu bem-humorada ao se lembrar do
fato. – Eu estava completamente
descontrolada e já não conseguia dormir
há algum tempo. Seu pai me impediu. Foi
a isso que me referi na casa de Celia.
Carmine ficou boquiaberto.
– Você poderia ter sido presa por
comportamento suspeito, sabia? A polícia
não brinca em serviço. Todo mundo está
de cabelo em pé por causa dessa onda de
terrorismo.
Ela começou a rir.
– Eu não pareço uma terrorista.
– Bem, nem eu, mas a aparência pouco
importa.
– Mas você também não é um terrorista
– ela retrucou. – Então isso prova que
estou certa.
– Não, não prova nada – ele disse. –
Não prova merda nenhuma. Eu aterrorizo
as pessoas.
– Não é a mesma coisa – ela afirmou,
estreitando os olhos e se mostrando um
pouco chateada. – Está sendo duro
demais consigo mesmo.
– Não, é você quem está sendo mole
demais comigo – ele retrucou. – Você
nem faz ideia…
– Então me diga – ela falou de maneira
séria.
– Não posso.
– Não pode me contar nada? – ela
perguntou, erguendo uma sobrancelha e o
desafiando. – Ou será que não quer me
dizer simplesmente porque não quer que
eu saiba?
– É porque você não gostaria de saber.
Acredite.
– Se você acha que sairei correndo por
aquela porta por causa de qualquer coisa
que me diga, está errado – ela disse. – Se
não puder me dizer, compreendo, mas
não esconda nada de mim apenas por
achar que é melhor que eu não saiba.
– Não lhe fará nenhum bem saber o que
acontece – ele retrucou. – Você olhará
para mim e não me verá mais como antes.
Você verá aquelas pessoas. Também verá
os que machuquei e as coisas que fiz.
Então, me desculpe se prefiro que você
olhe e enxergue somente a mim, ok?
Ela abriu a boca para responder, mas
hesitou, apoiando os cotovelos sobre a
mesa e se aproximando de Carmine.
– Você já teve de, ah…?
– Matar? – ele completou a pergunta.
Ela olhou ao redor para se certificar de
que ninguém estivesse escutando antes de
assentir com a cabeça. Ele podia ver a
curiosidade nos olhos dela, mas também
percebia nitidamente a apreensão. E isso
era algo que ele jamais desejaria para
ela. – Faria diferença para você?
– Não – ela respondeu. – Se o tivesse
feito, saberia que foi porque teve de fazê-
lo.
– Então por que está me perguntando?
– Só quero saber.
– Não.
Ela olhou para ele com cautela.
– Não vai me dizer, não é?
Ele soltou um suspiro.
– Essa é a resposta, Haven. Não.
– Ah – ela ficou em silêncio por um
momento, parecendo perdida em seus
próprios pensamentos. – E é isso o que
vê quando olha no espelho? As pessoas
que você machucou?
– É difícil ver algum bem quando
existe tanto mal ao seu redor.
– Eu vejo o bem – disse Haven,
sorrindo de um jeito suave e olhando para
Carmine. – Talvez falar com alguém o
ajudasse, entretanto. Não devia manter
tudo isso dentro de si.
– Ainda não vou conversar com você
sobre essas merdas – ele disse, negando
com a cabeça.
– Eu sei – ela respondeu. – Estava me
referindo a um profissional.
Ele cerrou as sobrancelhas.
– Está sugerindo que eu vá a um
psiquiatra?
Ela ergueu os ombros.
– E por que não? Sei que existem
coisas sobre as quais jamais poderá falar,
mas isso não significa que eles não sejam
capazes de ajudá-lo. Eu assisti a um filme
em que um gângster da máfia ia a um
psiquiatra, e também havia aquele outro
no programa de TV. Ele era o Chefão,
também.
Carmine fez uma careta ao perceber o
que ela havia dito. Ele tentou controlar o
riso, mas não conseguiu. Haven ficou
vermelha.
– Não fique envergonhada – ele disse,
esticando o braço e colocando a mão sob
o queixo da moça. Ele sentiu a pele
quente em sua palma, e sorriu
envergonhado. – É muito legal que você
se preocupe comigo, mas as coisas não
funcionam como na TV, tesoro. Na vida
real não podemos fazer isso.
Ele tocou suavemente a bochecha da
garota e ela sussurrou:
– Gostaria que pudesse.
– Eu também.

O sol já havia se posto quando saíram


da cafeteria. A escuridão cobria o lugar.
Ele a segurou pela mão enquanto
caminhavam pelo estacionamento e o
clima entre o casal estava tranquilo e
leve mais uma vez. Era como se um
enorme peso tivesse sido retirado do
peito de Carmine; o mundo dele parecia
um pouquinho mais brilhante quando
Haven voltou a fazer parte.
Contudo, aquela sensação de
tranquilidade não duraria muito. Não que
ele esperasse por isso. Retornaram à casa
e ele perguntou se ela queria assistir a um
filme. Mal tinham se acomodado para ver
os créditos iniciais quando o telefone
tocou.
Carmine o pegou de um jeito hesitante
e ficou tenso. Corrado.
– Senhor?
– Esteja na frente de minha casa em
cinco minutos.
– Sim, senhor – ele murmurou, mas sua
resposta foi em vão, uma vez que
Corrado já havia desligado. Recolocou o
celular no bolso e olhou para Haven, que
passou a mão nos cabelos dele, ansiosa.
– Você tem que ir – ela disse em voz
baixa, com um ar de tristeza na voz.
Porém, ela forçou um sorriso no rosto. –
Eu compreendo.
Ela se preparou para se levantar, mas
ele segurou seu braço.
– Não vá.
Haven olhou para Carmine um pouco
confusa.
– O quê?
– Eu só… Caralho. Apenas fique, ok?
– Eu não sei – ela respondeu. – Está
tarde. Eu tenho de procurar um hotel.
Ele soltou um suspiro bem alto, como
se estivesse bufando.
– Olhe, não quero lhe dizer o que fazer.
Se quiser ir, tesoro, tudo bem, vá, mas
prefiro que fique.
– Eu, ah… – ela começou a responder,
mas o telefone dele tocou novamente.
Os cinco minutos já haviam se
passado.
Carmine xingou e respondeu
prontamente:
– Estou indo, senhor.
– Agora – esbravejou Corrado antes de
desligar.
Carmine se colocou de pé e olhou
cuidadosamente para Haven.
– Apenas… Espere por mim, ok?
Ela não respondeu, mas também não
fez menção de sair, portanto, ele não tinha
certeza em relação ao que Haven tinha em
mente. Por outro lado, não tinha tempo de
descobrir, então a olhou pela última vez
antes de pegar sua arma e sair feito um
raio pela porta. Ao pisar do lado de fora,
uma lembrança surgiu em sua cabeça: a
última vez que ele dissera aquelas
mesmas palavras para ela, Haven se
recusara a esperá-lo.
Carmine olhou para trás em direção à
casa enquanto descia a rua, com
esperança de que desta vez ela esperasse
por ele.
Capítulo 41
O telefone de Carmine tocou mais uma
vez no momento em que ele chegava ao
ponto de encontro, mas ele não se
incomodou em atender, uma vez que já
estava tão perto. O carro de Corrado
estava estacionado na frente da casa, com
as luzes apagadas e o motor ligado.
Carmine entrou no banco do passageiro e
olhou com cautela para o tio, percebendo
o olhar de impaciência. Por um momento,
teve medo de que o homem fosse surtar.
Corrado desligou seu aparelho e não
disse uma palavra quando o de Carmine
parou de tocar.
Corrado arrancou com o carro,
esperando até que estivesse a um
quarteirão de distância antes de acionar
os faróis. Carmine olhou para o tio e
percebeu que ele estava vestindo suas
luvas pretas, e imediatamente se deu
conta de que algo sério estava prestes a
acontecer.
– Espero que sua noite com Haven
tenha sido boa – disse Corrado,
quebrando o silêncio.
– Ah, sim, foi ótima – respondeu
Carmine. – Aliás, queria agradecê-lo por
tudo que fez. Ela já me contou tudo.
– Não há razão para me agradecer –
ele disse de um jeito frio. – Eu só estava
fazendo meu trabalho, Carmine. É isso o
que fazemos. Sentimentos pessoais são
irrelevantes. Seguimos ordens. E uma
coisa que você já deveria ter aprendido a
meu respeito, e algo pelo qual eu espero
que me respeite é o fato de que nunca
falho em minhas tarefas. Jamais.
Carmine acenou.
– Sim, senhor.
– Ótimo. E não queria ter interrompido
sua noite, mas chegou a hora.
Carmine o olhou com cautela,
imaginando que hora havia chegado, mas
Corrado não continuou e o jovem achou
melhor não perguntar.
À medida que Corrado dirigia sem
dizer nada, embrenhando-se numa área
perigosa no sul de Chicago, o rapaz teve
uma sensação ruim que arrepiou até os
seus ossos. O local estava quase deserto,
exceto por algumas pessoas estranhas que
perambulavam. Ambos os lados da rua
estavam tomados por construções caindo
aos pedaços e cobertas por pichações.
Era território de gangues, uma região que
não interessava a ninguém. Eles se
matavam entre si apenas para garantir o
controle das ruas.
O fato de estarem ali, adentrando
aquele território, não parecia bom para
Carmine, então ele enfiou a mão debaixo
da camisa para se certificar de que sua
arma estivesse mesmo na cintura. E só
para o caso de precisar, já destravou o
pino de segurança.
– Os vagabundos dessa área o
assustam? – perguntou Corrado,
percebendo o movimento do rapaz.
– Não – ele respondeu. – Só acho que
qualquer pessoa que se arrisque a vir
para esses lados não estará segura.
– Isso é verdade – disse Corrado,
fazendo uma pausa antes de continuar. –
Tudo terminará logo.
Aquelas palavras fizeram o coração de
Carmine disparar. Aproximaram-se do
fim da rua principal e viraram à
esquerda, parando na metade de uma
viela. Corrado desligou o motor e abriu a
porta, hesitando ao olhar para Carmine.
– Deixe sua arma no carro. Você
parece estar com o dedo leve esta noite.
– Como é? – Algo estava errado e
Carmine podia sentir. Entrar desarmado
naquele lugar era o mesmo que pedir para
ser morto.
– Você ouviu o que eu disse – insistiu
Corrado. – E não me questione.
Carmine pegou a arma e a colocou no
porta-luvas. Foi obrigado a fazê-lo ou o
próprio Corrado a teria arrancado dele.
Carmine seguiu o tio até o outro lado
da rua, rumo a uma casa em ruínas que
parecia inabitada há décadas. As
venezianas mal se sustentavam nas
janelas e velhas placas de madeira
substituíam todos os vidros. Eles
entraram na varanda da casa e Corrado
bateu duas vezes na grande porta da
frente. Antes que tivesse de bater pela
terceira vez a porta foi aberta. Corrado
entrou e Carmine o seguiu com cautela.
Seus olhos se fixaram num homem
italiano que estava dentro do imóvel. Ele
tinha praticamente a mesma idade de
Carmine e seu rosto parecia familiar; era
com certeza alguém da organização. O
sujeito segurava uma arma de modo
defensivo, mas pareceu relaxar um pouco
quando Corrado acenou.
Aquela troca de olhares silenciosa fez
Carmine se sentir apreensivo. A sensação
ruim o dominava quase por completo.
Ele tentou organizar seus pensamentos
e compreender o que estava acontecendo,
até considerando por um segundo a
possibilidade de sair correndo pela porta
por onde havia entrado enquanto ainda
tinha uma chance. Perguntava-se quão
longe conseguiria ir desarmado, mas
percebeu que aquela linha de raciocínio
não fazia o menor sentido. Seria
apanhado antes mesmo de alcançar a
varanda. Ele precisava se manter calmo e
agir do jeito certo, sem permitir que
identificassem o medo que sentia, mesmo
que fosse isso o que se passava dentro
dele. Na verdade, ele estava
aterrorizado.
Depois que a porta da frente foi
fechada, Corrado pegou Carmine pelo
braço e o empurrou em direção às
escadas para que seguisse o italiano.
Ninguém disse uma única palavra nem lhe
deu qualquer instrução, então, mesmo
contra a vontade, Carmine subiu os
degraus à frente de Corrado. Ao se
deparar com um longo corredor, o rapaz
se sentiu como gado sendo levado para o
abate.
Eles finalmente pararam diante de uma
porta. Assim que entrou no cômodo,
Carmine ficou petrificado; sua visão
ficou turva e seus joelhos enfraqueceram
no momento em que o pavor se irradiou
pelo seu corpo. Ele quase caiu, mas
Corrado o segurou, mantendo-o de pé e
empurrando-o ainda mais para dentro.
Num instante, todas as peças do
quebra-cabeça se juntaram. Ele deveria
ter percebido antes; deveria ter se dado
conta do que estava prestes a acontecer.
Todos os sinais eram óbvios: o olhar no
rosto de Celia, o… modo como Corrado
se dirigira a ele em diversas ocasiões
naquela noite: “Nunca se sabe quando só
nos resta algumas horas de vida”, “Não
queria ter interrompido sua noite, mas
chegou a hora…”, “Tudo terminará
logo”.
Intuitivamente, quando Corrado
mandou que deixasse sua arma no carro,
ele já deveria ter percebido o que
encontraria naquela casa: sua própria
morte.
Mas no momento em que seus olhos
verdes se depararam com os olhos
escuros, frios e embaçados que o
encaravam do outro lado da sala, tudo fez
sentido. Agora se tornara óbvio porque
Corrado lhe dissera para não temer
qualquer tipo de retaliação: durante todo
o tempo ele havia planejado levá-lo
diretamente a Salvatore.
O Chefão estava de pé num canto da
sala vazia, perto de uma janela
espatifada, protegida por uma única placa
de madeira envelhecida. A luz da lua
entrava por um vão, garantindo a Carmine
luz suficiente somente para identificar seu
padrinho. Salvatore estava desarrumado,
seu braço direito numa tipoia azul. O
homem deu alguns passos na direção dos
dois e seus movimentos pareceram
rígidos, como se já não pudesse dobrar
seu joelho esquerdo.
– Já era hora de vocês chegarem – ele
disse com a voz ríspida e os olhos fixos
em Carmine. O italiano seguiu na direção
da janela para vigiar o movimento na rua.
– Peço desculpas pelo atraso, senhor,
mas sabe como é o garoto – disse
Corrado atrás de Carmine, bloqueando a
única saída.
– Sim, eu sei exatamente como ele é –
disse Salvatore, com ódio em cada
palavra. – Ele não escuta. Você o manda
fazer uma coisa e ele ignora as ordens.
Ele parece achar que sabe mais que todo
mundo aqui; é como se estivesse acima
de nós e não tivesse de obedecer a
ninguém.
– Bem, ele é certamente filho de
DeMarco – disse Corrado.
Carmine percebeu algo na voz do tio,
talvez diversão ou uma pitada de
sarcasmo, e começou a se virar para
olhá-lo, para avaliar seu humor, mas
Corrado o pegou pelo pescoço com
violência e o manteve na posição em que
estava.
A expressão de Salvatore se tornou
ainda mais colérica ao ouvir o nome de
Vincent. Possesso, ele cuspiu no chão.
Era como se pensar no pai de Carmine o
fizesse querer vomitar.
Carmine começou a tremer e seus
olhos instintivamente avaliaram a sala.
Os pecados do pai estavam prestes a ser
pagos pelo filho. Seu cérebro funcionava
sem parar enquanto tentava imaginar um
modo de fugir. Ele estava desarmado e
sozinho, e todos naquela sala tinham bem
mais experiência que ele.
– Procurando um jeito de escapar? –
perguntou Salvatore, aproximando-se
lentamente. – Infelizmente para você não
há nenhum.
Com violência, Corrado o empurrou
contra o chão, forçando-o a se ajoelhar
no meio da sala. Em seguida, ele soltou o
pescoço do rapaz e sacou sua arma.
– Por favor, não faça isso! – Carmine
implorou com as palavras trêmulas. – Eu
juro… Porra! Isso não é necessário!
Mas antes mesmo que pudesse dizer
qualquer outra coisa, Corrado pressionou
o cano da arma contra a nuca do
sobrinho. O rapaz fechou os olhos e
sentiu as lágrimas queimarem por dentro
até alcançarem a superfície no momento
em que abaixou a cabeça em desespero.
Se existe a porra de um Deus, Ele não
deixará que eu morra hoje.
– Como você ousa me dizer o que é
necessário! – esbravejou Salvatore. – É
justamente disso que eu estava falando!
Você se acha mais esperto que todo
mundo! Eu lhe dei uma ordem simples, e
você teve todas as oportunidades de
cumpri-la, mas me desobedeceu
deliberadamente! Vincent jamais teria
atirado em você, e agora, por conta de
sua traição, meus homens estão mortos!
Seu pai recebeu o que merecia e,
francamente, digo o mesmo em relação à
sua mãe! Toda a sua família é uma
desgraça!
Carmine lutou para controlar o choro,
mas seu corpo tremeu de modo
descontrolado ao ouvir aquelas palavras.
O mundo estava implodindo e havia uma
arma apontada para sua nuca.
Corrado era um perfeito atirador e
jamais erraria o alvo.
Seu próprio tio, um membro de sua
família…
– Por favor – Carmine sussurrou. –
Pelo amor de Deus, não faça essa porra.
Assim que ele pronunciou aquelas
palavras, sua cabeça foi atingida com
força por um golpe forte, que o fez cair
para frente, equilibrando-se sobre os
joelhos e as palmas das mãos, que
ficaram cheias de farpas do piso de
madeira apodrecido.
Ele sabia que não podia desistir. Não
morreria sem lutar. Seria impossível
vencê-los, mas ele não era um covarde.
Não ficaria parado esperando que lhe
tirassem a vida. Talvez esse tipo de
reação lhe tivesse passado pela cabeça
há um mês, ou até mesmo no dia anterior,
mas não agora. Não hoje.
– Adeus.
Aquela única palavra que saiu dos
lábios de Corrado fez com que Carmine
esticasse o corpo e rolasse pelo chão,
ouvindo um som ensurdecedor ecoar pela
sala. Ele cruzou os braços diante do
peito, tentando de algum modo se
proteger, mas não sentiu nada. Não havia
nenhuma dor, nenhum sangue. Seria pura
adrenalina ou apenas muita sorte?
Carmine se forçou a ficar de pé e se
voltou para a porta, mas um movimento
próximo à janela capturou sua atenção: o
jovem italiano perto da janela desabou no
chão com sangue escorrendo de um único
ferimento no centro da testa. Salvatore se
virou horrorizado no momento em que
Corrado voltou a empurrar Carmine, que
mais uma vez caiu de quatro no chão.
Enquanto tentava mais uma vez escapar, o
rapaz observou em choque quando o tio
usou a distração para arrancar a pistola
que Salvatore trazia no cinto, com
rapidez e habilidade.
Salvatore se virou novamente para
Corrado. Com os olhos arregalados, ele
viu as duas armas apontadas para sua
cabeça.
– Mas o que diabos você está fazendo?
– Seguindo ordens – respondeu
Corrado com calma. – Quando fui
iniciado, fiz um juramento. Jurei a
Antonio DeMarco que seria um homem
honrado, um homem que sempre
colocaria a organização em primeiro
lugar. Para alguns, essas podem ser
apenas palavras sem sentido, mas para
mim elas têm um grande significado. La
Cosa Nostra ou a morte. Foi esse meu
juramento. Escolhi La Cosa Nostra e,
desde então, sempre agi no sentido de
defendê-la. É uma pena que tenha
escolhido a morte, senhor.
Corrado abaixou a arma e disparou
dois tiros, acertando ambos os joelhos de
Salvatore, que soltou um grito de pavor e
caiu no chão. Corrado ficou imóvel ao
lado do chefe, que tentava
desesperadamente se arrastar para longe
enquanto suas pernas sangravam e
ensopavam suas calças cinza.
– Sabe o que acontece com ratos,
Carmine? – perguntou Corrado. – Sabe o
que fazemos com canalhas? Com velhos
desleais e desonrosos?
– Sim – respondeu o rapaz com a voz
fraca e trêmula. Havia uma espécie de
lenda urbana dentro da organização. Uma
história que todos compartilhavam em
voz baixa, mas da qual ninguém tinha
provas de que jamais ocorrera. – Ratos
para os ratos – ele completou.
Corrado deu alguns passos na direção
de Salvatore e acertou-lhe um chute no
nariz. Carmine se contraiu enquanto o
padrinho tentava se proteger. Mas
Corrado não parou. Pelo contrário, ele
continuou desferindo golpes sucessivos
contra o homem no chão. A brutalidade
nos movimentos de seu tio, a raiva e a
paixão que eclodiram naquele instante
deixaram Carmine aterrorizado. Corrado
repetiu os golpes, vez após outra, até que
o rosto de Salvatore sangrasse como uma
torneira quebrada.
– Este lugar está infestado – disse
Corrado, com as palavras estremecidas
enquanto tentava recobrar o fôlego. A ira
havia comprometido por alguns
momentos sua postura fria. – Se ouvir
com atenção, conseguirá escutá-los nas
paredes, arranhando-as enquanto buscam
comida. Não levará muito tempo até que
sintam o cheiro de sangue. E assim que
perceberem a existência de carne fresca,
invadirão este local, às centenas. É um
jeito brutal de morrer: ser comido vivo.
O estômago de Carmine se contorceu e
ele teve de se segurar para não vomitar.
Que tipo de monstro planejaria algo
assim?
Corrado se virou para ele como se
tivesse escutado seus pensamentos, e a
total falta de expressão em seu olhar
respondeu à pergunta silenciosa. Seu tio
parecia inumano; o monstro das lendas
sobre a qual ouvira tanto falar. O
Assassino de Aço. Não havia no rosto
dele nenhum remorso, nenhuma emoção e
nenhum sinal de consciência.
– Não se preocupe, Sal já está ciente
de tudo isso. Afinal, foi justamente por
essa razão que escolheu este lugar. Ele só
não imaginou que seria o prato principal.
Corrado enfiou novamente a arma no
casaco, ignorando os gritos de Salvatore
e concentrou sua atenção na pistola que
tirou do chefe, removendo as balas, uma
por uma. Em seguida, girou o tambor e
caminhou até a porta, fazendo uma pausa
para colocar a arma no chão.
– Deixei uma única bala na pistola,
Salamandra. Levará algum tempo para se
arrastar até aqui, mas tenho certeza de
que conseguirá fazê-lo se quiser colocar
um fim no seu sofrimento. A escolha é
sua.
– Seu traidor! – gritou Salvatore. –
Queimará no inferno por isso!
Corrado soltou uma gargalhada
amarga.
– É bem provável que eu queime no
inferno por tudo o que já fiz em minha
vida, mas esta é uma das coisas pelas
quais acho que terá valido a pena.
Ele saiu do cômodo sem dizer mais
nada.
No instante em que Carmine ouviu os
passos do tio na escada, se levantou e
correu atrás dele, tropeçando numa placa
solta no chão e quase caindo. O garoto
ainda conseguia ouvir os gritos de
Salvatore quando saiu da casa, mas
aquilo não pareceu mexer com Corrado
enquanto ele caminhava na direção do
carro.
Carmine correu, abriu a porta e tentou
se sentar no banco do passageiro. Foi
então que se deu conta de tudo o que
acontecera. Ele mal conseguia respirar.
Era como se tivesse bebido e se drogado
demais e não conseguisse vomitar, mesmo
com a ânsia incessante.
Corrado esperou pacientemente que
Carmine se refizesse e se sentasse antes
de ligar o carro e sair dali.
– As pessoas não irão ouvir os gritos?
– perguntou Carmine enquanto secava as
lágrimas nos olhos.
– É bem possível, mas isso não
importa – ele respondeu. – Como você
mesmo disse, qualquer um que venha a
este lugar estará colocando a própria
vida em risco.
Eles voltaram em silêncio, mas o clima
era sufocante. Carmine chegara ao
extremo, à beira de sofrer um colapso, e
tentava agora se agarrar
desesperadamente ao que lhe restava de
sanidade. De repente, todas as
lembranças o atingiram de uma só vez:
todo o caos, toda a destruição, a dor,
todos os assassinatos.
– Por que fez aquilo? – ele perguntou,
com a voz embargada.
Corrado olhou para ele e retrucou:
– Preferia que tivesse sido você?
– Não estou me referindo a Sal – ele
negou enquanto lágrimas continuavam
vertendo de seus olhos. – Meu pai.
Corrado soltou um suspiro exasperado,
girou o volante para a direita e parou o
carro, desligando o motor.
– Seu pai morreu há muito tempo – ele
disse, com a voz baixa. – O fato de ele
ainda caminhar e respirar não significava
que estivesse vivo, Carmine. Morremos
quando perdemos o desejo de seguir
adiante; perecemos no instante em que
deixamos de nos importar com a nossa
vida. O Vincent que eu conheci, o homem
que lhe deu vida e cujo sangue corre em
suas veias, deixou de existir quando você
tinha oito anos. Ele morreu naquele
quarto de hospital, em vigília ao lado de
sua cama, sofrendo pela morte da esposa.
Eu assisti a cada segundo doloroso dessa
história enquanto ela se desenrolava, e
não fiz nada para impedir a morte dele.
Corrado evitou olhar para o sobrinho
e, em vez disso, concentrou-se na lua
cheia no céu.
– Ele tinha trabalho a fazer, então
continuou a fazer até o fim. Quando
finalmente terminou, chegou a hora de
partir. Para ele, essa seria a melhor
alternativa. Ele não tinha nenhuma
intenção de ir para a prisão.
– Mas por que ele iria? – perguntou
Carmine, acenando negativamente com a
cabeça. – Não precisava ter sido desse
jeito. Digo, os Federais…
– Está equivocado – retrucou o tio. –
Seu pai não fez um acordo para se salvar,
tampouco se tornou uma evidência contra
mim. Na verdade, ele aceitou seu destino
há muito tempo. Ele cooperou com os
Federais por sua causa. Por causa de
Haven e de todos a quem ele amava. Ele
forneceu ao governo tudo o que eles
queriam para que sua família fosse
deixada em paz e, ao fazê-lo, honrou a
memória de Maura salvando a vida de
uma jovem.
Corrado fez uma pausa para organizar
seus pensamentos antes de continuar.
– Vincent tomou sua decisão, mas eu
não podia permitir que ele o fizesse por
si mesmo. Ele jamais encontraria a paz
que buscava se tivesse se suicidado. Ele
queria reencontrar sua mãe. Queria viver
novamente ao lado dela. Eu fiz isso para
que ele conseguisse o que desejava.
Carmine encarou o tio enquanto
processava suas palavras.
– Mas por que então você pediu a ele
que lhe perdoasse?
– O quê?
– Quando puxou o gatilho, você disse a
ele me perdoe.
Corrado negou.
– Eu não estava pedindo perdão a ele.
Religando o motor, Corrado voltou a
dirigir pela cidade.
– Ainda temos mais uma coisa a fazer
esta noite, portanto, controle-se.
Cruzaram a cidade até chegarem ao
prédio em ruínas do clube de striptease,
o mesmo em que estiveram na noite em
que Remy foi morto por Corrado. O
estacionamento estava lotado com os
familiares sedãs pretos. Corrado
estacionou ao lado da construção e saiu
do carro, olhando cautelosamente para os
lados.
– Tem registro para votar?
– Ah… Não – respondeu Carmine ao
sair do carro.
Corrado acenou a cabeça como se
aquilo não o surpreendesse e fez um sinal
para que Carmine o seguisse. O clube
estava lotado e o ar denso com fumaça de
cigarro. Ambos passaram pelo segurança
sem dizer uma palavra e seguiram até o
escritório nos fundos.
– Votar é importante – disse Corrado,
fazendo uma pausa antes de abrir o
alçapão. – As pessoas gostam de se sentir
como se de fato tivessem o direito de dar
suas opiniões naquilo que irá acontecer,
mesmo que isso seja apenas uma ilusão.
Corrado abriu a porta do alçapão e
pessoas puderam ser ouvidas dentro do
porão, mas se calaram no momento em
que ambos desceram a escada. Carmine
hesitou no último degrau, olhando ao
redor do pequeno espaço imundo, ainda
em choque. Havia pelo menos uns 24
homens presentes; pelo que sabia, a
maioria do grupo era formada por Capos.
Aqueles eram os homens de nível
hierárquico mais elevado que haviam
sobrado na organização em frangalhos.
Todos olharam para Corrado no momento
em que ele entrou e acenaram
positivamente para ele, que limpou a
garganta para atrair a atenção de todos.
– Todos sabemos por que estamos
aqui. Indicações?
Alguns disseram o nome de Corrado,
enquanto outros apenas assentiram com a
cabeça, concordando na hora com a
sugestão.
– Mais algum candidato? – Todos se
mantiveram em absoluto silêncio. –
Alguma objeção? – perguntou Corrado. –
Fale agora ou leve esse pensamento para
o túmulo.
Carmine olhou ao redor. Os homens
pareciam nervosos e se entreolharam
antes de voltarem a atenção para
Corrado. Mais uma vez o silêncio se fez
presente; ninguém disse uma única
palavra.
Tudo aquilo pareceu muito estranho
para Carmine.
– Então o escolhido é Moretti – disse
Corrado. – Esta reunião jamais
aconteceu.
Corrado deu meia-volta e fez um
movimento para que Carmine viesse atrás
dele sem que tivesse pronunciado uma
palavra. Seguiram para o estacionamento,
fazendo uma pausa ao lado do carro
pouco mais de cinco minutos depois de
deixarem o lugar.
– Como eu disse antes, as pessoas
gostam de acreditar que têm uma escolha,
mesmo quando na verdade não têm.
O tio sentou-se atrás do volante e
Carmine ocupou o banco do passageiro,
olhando-o com cautela.
– Você agora é o Chefão?
– Sim.
– E o que teria acontecido se alguém
tivesse feito alguma objeção? Essa
pessoa teria recebido a permissão de
sair?
– Com certeza ela teria saído –
respondeu o tio. – Só que em uma dúzia
de pedaços.
Assim que abriu a porta de casa,
Carmine tentou escutar algum barulho no
local, mas percebeu que tudo estava no
mais completo silêncio. Contudo, o brilho
da TV iluminava a sala de estar. Haven
estava deitada no sofá, dormindo
profundamente, com os sapatos jogados
no chão.
Carmine deu a volta e se agachou ao
lado dela, colocando a arma debaixo do
sofá com bastante cuidado antes de
esticar a mão e retirar uma mecha de
cabelos do rosto da moça. Ela se mexeu,
mas continuou dormindo. O rapaz
permaneceu ali por um momento, apenas
olhando para Haven enquanto ela
respirava.
Se ainda lhe restasse qualquer dúvida,
foi naquele momento em que ele teve
certeza absoluta. Foi ali, olhando para ela
dormindo, que ele o sentiu. O garoto não
fazia ideia do que iria acontecer no
futuro, mas com certeza eles seriam
capazes de ficar juntos e seguir adiante se
tentassem.
Mais uma vez, Carmine lutou para
segurar as lágrimas, ainda sem conseguir
se controlar totalmente depois de tudo
que acontecera. A vida pesou sobre seus
ombros, atirando-o para lados opostos
enquanto ele próprio permanecia
estagnado, tentando manter-se inteiro. Ele
estava cercado por violência e morte;
todo aquele horror o desintegrava
internamente, mas então, do outro lado
havia Haven. Ela representava paz,
esperança e a mais pura beleza. Ela era o
bem que ele esperava ser capaz de
superar o mal.
– Haven – ele sussurrou, passando as
costas da mão na face da garota. – La mia
bella ragazza.
Ela mais uma vez se mexeu, mas dessa
vez abriu os olhos, piscando-os
rapidamente, um pouco confusa,
parecendo surpresa ao perceber onde
estava, e um sorriso ainda sonolento se
abriu em seus lábios.
– Você voltou.
– E você esperou por mim.
– É claro que esperei. Eu disse que não
fugiria de você, Carmine.
– Eu também não – ele respondeu,
sorrindo suavemente. – Eu jamais a
deixarei de novo.
– Você jura?
– Pode ter certeza, tesoro.
Ela deu risadas enquanto encarou
Carmine com curiosidade ao sentar-se.
Haven colocou a mão direita na face do
rapaz, passando os dedos suavemente
sobre sua pele e deslizando seu polegar
sobre sua boca.
– Você andou chorando?
– Talvez – ele respondeu, inclinando-
se para frente e pressionando seus lábios
contra os dela. Dessa vez, Haven não se
afastou, tampouco desviou a cabeça. Em
vez disso, respondeu ao beijo, movendo
seus lábios no mesmo ritmo que os do
rapaz. Aquele foi um ato de pura doçura e
inocência, mas suficiente para ambos.
Ele abaixou a cabeça e encostou o
nariz no pescoço dela, inalando seu
cheiro e beijando sua pele exposta. A
presença de Haven era irresistível; o
toque de sua pele, seu perfume e o sabor
de sua boca o deixaram completamente
maluco.
– Você ainda sente isso? – ele
perguntou, tocando sua pele na região do
pescoço. – Digo, a eletricidade entre
nós? Por favor, diga que ainda sente.
– Eu sinto – ela sussurrou.
– Preciso de você, Haven – ele disse,
com as palavras embargadas e presas na
garganta.
– Eu sei.
Um soluço escapou da garganta do
garoto e aquilo a fez abraçá-lo com ainda
mais força e sussurrar baixinho enquanto
ele chorava em seus braços. Ele não
conseguia se controlar. Ela mais uma vez
destruíra suas muralhas; ela o desarmou
por completo, e todas as emoções dele
emergiram de uma só vez.
Capítulo 42
A vida se revelou um vendaval; cada
dia se transformava no próximo sem que
eles percebessem. Haven ficou com
Carmine e as coisas entre o casal
relaxaram à medida que ela transformou
aquela casa em seu lar. Era surreal,
exceto pelos ocasionais beijos doces e
toques gentis.
Exausto, Carmine se tornou cada vez
mais saturado. Seu sono era permeado
por pesadelos e ele tentava ao máximo se
manter sóbrio, mas a bebida parecia
atraí-lo cada vez mais. Haven nunca disse
uma palavra em relação àquilo, mas ele
conseguia identificar a preocupação nos
olhos da garota cada vez que ela o via
com um copo na mão. Aqueles olhares
atingiam Carmine e então ele se enchia de
culpa a cada gole de bebida.
Mas não foi o suficiente para fazê-lo
parar.
Todavia, apesar da bebida, as coisas
pareciam bem. Na verdade, quase bem
demais. Carmine continuava a esperar
que algo ruim acontecesse ao redor deles.
Tudo aquilo parecia surpreendentemente
bom para ser verdade. Era como se ele
não tivesse enxergado a data de validade
escrita em letras pequenas em algum
canto da embalagem.
Para sua surpresa, as pessoas os
deixaram em paz. Ele achava que seu
irmão iria visitá-lo com frequência para
ver Haven, ou que Corrado o chamasse
para tratar de negócios, mas nada daquilo
aconteceu.
Ninguém os visitava, não havia
telefonemas; não acontecia absolutamente
nada.
Somente uma semana depois de tudo o
que ocorrera é que alguém bateu à sua
porta. Meio que reclamando, Carmine
abriu a porta e ficou surpreso ao se
deparar com o carteiro parado na
varanda. Ele olhou para o envelope que
lhe foi entregue, estreitando os olhos ao
ver seu nome escrito.
– Carmine DeMarco?
– Sim, sou eu.
– Correspondência registrada – disse o
carteiro, entregando-a nas mãos do garoto
para que ele assinasse o recibo, que o fez
e devolveu o papel ao profissional,
agradecendo-lhe antes que fosse embora.
Carmine se dirigiu à sala de estar e
sentou-se ao lado de Haven. Viu que era
do advogado e abriu o envelope
imediatamente, retirando um documento.
– O que é isso? – perguntou Haven.
Os olhos de Carmine deslizaram pelo
papel.
– O testamento de meu pai será lido na
próxima segunda-feira. Aparentemente,
ele me deixou alguma coisa.
– Por que você parece tão surpreso? –
ela perguntou. – Você é filho dele.
– Não sei – ele respondeu, dando de
ombros ao abaixar o documento. – Ainda
não parece real. Digo, eu sei que é… Sei
que ele se foi. Afinal, eu testemunhei toda
aquela porra. Mas ainda é difícil
acreditar que de fato aconteceu.
– Aposto que sim – ela respondeu. –
Gostaria de falar sobre isso?
Ele negou.
– Esta é a última coisa sobre a qual
gostaria de pensar nesse momento.
– Muito bem – ela disse, inclinando-se
e empurrando Carmine para trás no sofá.
Ela o abraçou e repousou a cabeça em
seu peito; o jovem pegou o controle
remoto, ligou a TV e começou a zapear
pelos canais. Ambos permaneceram ali
pelo resto da tarde e noite, alheios a tudo
o que acontecia fora daquelas paredes.
No entanto, aquela solidão não duraria
muito tempo. No dia seguinte, na mesma
hora da tarde anterior, Carmine mais uma
vez ouviu alguém batendo à porta. De
novo se levantou e, reclamando, foi até a
porta. O mesmo carteiro estava de pé na
varanda, com um envelope similar nas
mãos.
– Que bosta é essa? Déjà vu? Você não
veio aqui ontem entregar isso aí?
O carteiro se lembrou e confirmou,
olhando para o envelope que trazia nas
mãos.
– Haven Antonelli?
– Ah, sim – ele respondeu, abrindo um
pouco mais a porta e chamando por
Haven. Ela apareceu, olhando
primeiramente para Carmine e, em
seguida, para o carteiro, confusa. O rapaz
apontou para o envelope e disse:
– É para você, tesoro.
– Para mim? – perguntou Haven
surpresa, pegando o envelope e assinando
seu nome em letra cursiva perfeita.
Carmine observou com um sorriso,
lembrando-se do quanto ela se esforçara
para aprender aquilo. A moça devolveu o
papel assinado ao carteiro, que lhe
desejou um bom-dia e foi embora. Ela
não respondeu, apenas ficou parada de pé
à porta, olhando para o envelope.
– Por que você parece tão surpresa? –
ele perguntou, repetindo as mesmas
palavras que ela lhe dissera no dia
anterior. – Você é a namorada do filho
dele.
Haven olhou para Carmine e ergueu as
sobrancelhas.
– Eu sou?
– O quê?
– Sua namorada?
Ele hesitou diante da pergunta.
– Não sei, você é?
Ela sorriu.
– Perguntei primeiro.
– Você acha que estamos indo rápido
demais?
– Não sei, você acha?
Ele a encarou enquanto tentava
compreender aquela conversa.
– Não sei. Essa porra é ridícula,
Haven.
– É – ela retrucou, voltando sua
atenção para o envelope em sua mão. – O
que será que ele deixou para mim?
– Pode ser qualquer coisa – retrucou o
namorado, enquanto ela abria o envelope
e se deparava com as mesmas instruções,
data e horário. – Dinheiro, propriedade…
Quem sabe.
– Mas por quê? – ela perguntou. –
Nada disso importa para mim.
Ele deu de ombros.
– Sei lá, mas acho que iremos
descobrir na segunda-feira.

Os dois passaram o fim de semana


juntos, indo ao cinema e jantando fora
enquanto ele mostrava a cidade para a
garota. A segunda-feira logo chegou e ele
vestiu calças pretas e camisa branca,
tentando parecer adequado, uma vez que
Corrado certamente estaria lá. Para
completar, ele calçou um par de Nikes
nas cores preto e branco e seguiu para o
piso inferior enquanto Haven tomava
banho. Abriu o freezer e pegou uma
garrafa de Grey Goose. Tirou a tampa e
levou o vasilhame aos lábios, tomando
uma boa tragada. Aquilo queimou sua
garganta, mas aliviou seus nervos; a
ansiedade do rapaz diminuiu.
Ambos seguiram para o escritório do
advogado, chegando lá precisamente às
13h15, quando a leitura do testamento
estava marcada para começar. Haven
sentou-se numa ampla cadeira preta ao
redor de uma grande mesa de madeira.
Carmine puxou a cadeira ao lado dela.
que sorriu e esticou a mão sob a mesa,
entrelaçando seus dedos aos dele. Eles
estavam cercados pelos demais
familiares: Celia e Corrado, Dominic e
Tess. Até a avó de Carmine estava
presente, embora não parecesse nada
feliz em estar ali.
O senhor Borza limpou a garganta
antes de começar.
– Bem, todos aqui conheciam Vincent
muito bem, então acho que concordam
que ele apreciaria se agíssemos de
maneira informal. Ele deixou uma carta
contendo seus últimos desejos; eu apenas
a lerei para todos.
Haven se ajeitou na cadeira, olhando
de maneira ansiosa para Carmine. Ele
apertou a mão da jovem, esperando que
ela relaxasse. Borza deu início à leitura.

É COM UM PESO NO CORAÇÃO QUE ESCREVO


ESTA CARTA. SINTO MUITO POR QUALQUER DOR
QUE EU TENHA CAUSADO A VOCÊS. TUDO O QUE
FIZ SEMPRE FOI TENDO VOCÊS EM MINHA
MENTE, E SEI QUE COMETI ERROS, MAS SEMPRE
TENTEI AGIR DA MANEIRA QUE CONSIDERAVA
MAIS CORRETA. NÃO ESPERO QUE TODOS
COMPREENDAM, MAS QUE, COM O TEMPO,
ENCONTREM PAZ EM MINHA DECISÃO.
ASSEGURO A TODOS DE QUE EU ESTOU EM PAZ
COM ELA.

Durante os vinte minutos seguintes, as


propriedades foram divididas e os itens
mais pessoais foram deixados a todos
como herança. A casa em Durante ficou
para Dominic, enquanto a de Chicago foi
passada oficialmente para Carmine. Tess
recebeu uma grande quantia em dinheiro
na forma de títulos e Dia receberia o
mesmo, embora ela não pudesse estar
presente. Para Gia, Vincent deixou
dinheiro suficiente para que ela se
sustentasse.
Celia recebeu vários itens de valor que
invocavam memórias do passado. A
Corrado foi entregue a chave de um
guarda-volumes particular. O restante dos
bens deveria ser dividido igualmente
entre os dois filhos.
A leitura já estava chegando ao final
quando o nome de Haven finalmente foi
mencionado. Naquele momento, todos os
olhares se voltaram para ela, que ficou
nervosa e apreensiva com toda aquela
atenção.
– Deixo a você, Haven, um envelope –
leu Borza. – Parece algo pequeno em
comparação a tudo o que os outros
receberam, mas não acho que irá se
importar. O que está aí dentro é tão
importante e pessoal para mim quanto
para você, e gostaria de tê-lo entregue
pessoalmente como planejara, mas,
enfim, terá de ser desse modo.
Borza entregou um envelope branco
para Haven e ela o pegou com cuidado. A
curiosidade era visível nos olhos de
Carmine, mas ele sabia que aquilo não
dizia respeito a ele, então voltou sua
atenção para o advogado.
– Tenho um último pedido – leu Borza.
– Trata-se de um favor que peço ao meu
filho Carmine.
Carmine revirou os olhos.
– Por que será que não estou surpreso?
Todos riram e Borza continuou.
– Peço que vá até a Igreja Católica de
Saint Mary e encontre-se com o padre
Alberto. Deixei algo lá, uma coisa que
acho que um dia Carmine precisará.
O advogado colocou o documento na
mesa.
– É isso.
Carmine olhou para Haven, lutando
para controlar a forte emoção que
emergiu em seu peito, mas ficou ainda
mais tenso ao ver lágrimas escorrendo
dos olhos da jovem. Ela abrira o
envelope e o colocara sobre a mesa,
segurando nas mãos trêmulas apenas o
papel que tirou de dentro dele.
– Tesoro, você está bem? – ele
perguntou em voz baixa, estendendo a
mão e secando as lágrimas no rosto dela.
Ela olhou para ele e negou com a cabeça
antes de entregar o papel ao rapaz. Ele o
pegou com cuidado e sorriu ao ler as
palavras escritas à mão no centro da
folha.
VOCÊ VALEU A PENA.

– Acho que deveríamos celebrar –


disse Celia. – Que tal um jantar em
família em homenagem a Vincent?
Podemos ir a algum lugar, ou eu posso
cozinhar.
– Eu cozinharei – disse Haven,
enfiando o papel novamente no envelope.
– Mas você não precisa, querida.
– Eu sei – ela disse. – Na verdade, não
cozinho há muito tempo, desde que passei
a morar sozinha. Seria ótimo poder fazer
isso novamente.
Celia sorriu.
– Quer minha cozinha emprestada?
– Não, eu quero cozinhar em casa – ela
disse, arregalando os olhos e começando
a gaguejar enquanto completava. – Digo,
vocês sabem, na casa de Carmine.
Um sorriso apareceu no canto dos
lábios de Carmine. Em casa.
– Sei o que quer dizer, querida – disse
Celia, dando uma piscadinha. – E tenho
certeza de que falo por todos ao dizer que
adoraremos vê-la cozinhando novamente.
– Com certeza – declarou Dominic. – Eu
senti muita falta de sua comida.

Algumas horas mais tarde, Carmine


estava de pé à porta da cozinha,
observando enquanto Haven se
movimentava de um lado para o outro,
cantarolando em voz baixa. Todos os
balcões estavam tomados por
ingredientes. Havia mais comida ali
naquele único dia do que no ano anterior
inteiro.
– Então, o que precisa que eu faça para
ajudar? – Ele sabia o suficiente para
fazer um sanduíche, mas cozinhar a partir
do nada era algo que jamais fizera. –
Acho que eu deveria fazer alguma coisa.
Ele esperava que Haven não tivesse
grandes expectativas, pois certamente iria
fazer uma confusão… Como de costume.
– Ah, bem, pode começar o frango? –
ela perguntou.
Ele olhou para o frango ainda
embalado sobre o balcão e perguntou:
– Por “começar o frango”, você quer
dizer colocá-lo no forno?
– Não, preciso que você o limpe.
Confuso, o jovem ergueu as
sobrancelhas.
– O que quer dizer com “limpá-lo”? Eu
não vou arrancar as penas da porra de
uma galinha.
Haven revirou os olhos.
– Ela já não tem penas, mas é preciso
lavar.
Ele não gostou muito da ideia.
– Eu só tenho de lavar o bicho na pia
ou o quê?
Ela confirmou e pegou uma tábua de
carne, colocando-a sobre o balcão.
– Retire os miúdos que vêm dentro do
frango e então lave o interior com água
fria.
O rapaz pegou o frango e o colocou
sobre a tábua. Em seguida, se armou com
uma faca e retirou a embalagem. Pegando
numa das coxas, Carmine a levantou e
encarou a abertura. Ele ficou ali, parado
por alguns segundos com certo nojo antes
de olhar para Haven. Ela estava ocupada
quebrando ovos em uma tigela para
preparar o recheio.
– Eu devo enfiar minha mão aqui
dentro? – ele perguntou, erguendo uma
sobrancelha.
A garota confirmou.
Carmine respirou fundo e colocou a
mão dentro da ave, encolhendo-se todo
ao sentir o interior do animal em sua
pele. Ele encontrou um saquinho e o
pegou.
– O que diabos é isso?
– São os miúdos – ela explicou. – O
pescoço, o fígado, a moela, o coração.
O garoto arregalou os olhos e retirou a
mão dali o mais rápido que pôde, dando
um passo para trás, sentindo-se
completamente enojado.
– Que porra é essa? Por que essas
coisas estão ali dentro, Haven? Quem
comeria o coração de uma galinha?
Haven pegou o pacotinho e o atirou no
lixo.
– As pessoas usam essas partes para
fazer farofa ou molho, ou apenas as
comem cozidas ou assadas.
– Tem gente que come coração de
galinha? – ele perguntou, achando a ideia
repulsiva. – Por favor, me diga que você
nunca me deu isso para comer.
Ela negou enquanto ria.
– Não, eu nunca lhe servi isso. Mas
não ficaria nada surpresa se você já
tivesse comido isso por aí. – Ela então
pegou o frango e o colocou na pia. – Pode
lavá-lo, por favor?
– Claro.
Ele abriu a torneira e tentou segurar a
ave debaixo da água, mas logo desistiu,
optando pela mangueirinha. Pressionou o
gatilho do esguicho e o disparou como se
estivesse metralhando o animal.
– É assim?
Ocupada no preparo da massa, Haven
não ouviu da primeira vez e ele repetiu.
– Haven?
– O quê? – ela perguntou, voltando-se
para ele com massa entre os dedos.
Nesse momento, ele apontou o
esguicho para ela e pressionou o gatilho a
curta distância. Ela deu um pulo quando o
jato de água atingiu seu pescoço e, de
maneira instintiva, ergueu as mãos
tentando se proteger. A meleca que estava
nas mãos dela espirrou na direção dele e
parte grudou no rosto do jovem.
– Sua va… – ele interrompeu a palavra
na hora em que ela arregalou os olhos e
optou por atingi-la com mais uma
esguichada.
O caos se formou quando ela desviou
do jato e tentou arrancar a mangueirinha
da mão dele. Eles começaram a disputar
o esguicho e, com isso, ficaram
ensopados. Haven conseguiu passar por
ele e fechar a torneira, caindo na
gargalhada.
– Eu não acredito nisso. Estou toda
molhada!
– Foi você que provocou – ele disse,
agarrando-a por trás. – Você me ignorou.
– Eu não te ouvi.
– É a mesma coisa.
Escapando dele, a jovem pegou a
tigela com o recheio e a empurrou para
ele.
– Acha que pode dar conta disso?
Ele considerou a pergunta e respondeu:
– Bem, desde que “isso” não envolva
algum trabalho de vodu com coração de
galinha.
Ela riu.
– Pode deixar pra lá.
– Não… Me diga o que devo fazer.
Apenas não me peça nada que envolva
entranhas de bichos.
– Nem água – ela retrucou, olhando ao
seu redor. – Você pode cortar os
legumes?
– Claro, eu consigo fazer isso – ele
disse com um sorriso sarcástico. Com
certeza ele saberia lidar com uma faca,
pelo menos.
Haven separou algumas cenouras,
batatas, cebolas e também aipo, e instruiu
Carmine sobre lidar com cada um, mas
tudo o que ele escutou foi que precisava
cortá-los.
Eram apenas legumes, afinal. Quão
difícil aquela tarefa poderia ser?
Haven recheou o frango com a mistura
que havia preparado e disse a Carmine
que colocasse os legumes na travessa
junto com o frango quando terminasse.
Ele cortou as cenouras e o aipo sem o
menor problema, mas teve um pouco mais
de dificuldade com as batatas, uma vez
que ela não dissera a ele que precisavam
ser descascadas.
Ou será que ela havia dito? Bem, ele
não prestara atenção.
Por fim, chegou a vez da cebola, e
Carmine olhou para ela de um jeito
suspeito. Haven o observou enquanto ele
removia a casca, interrompendo-o antes
que prosseguisse.
– Ah, você não quer que eu faça isso?
– ela perguntou. Ele disse que não
precisava de sua ajuda. A jovem passou
por trás dele em busca do vinagre para
passar na tábua de carne. – O vinagre
ajuda no processo químico, evitando um
pouco a queimação.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Jeopardy?
– Só um truque que aprendi com o
tempo. Fogo também ajuda. Posso pegar
uma vela, se quiser.
– Não preciso de uma vela, Haven.
Posso perfeitamente lidar com uma
cebola.
Ela sorriu, mas não respondeu.
Carmine pegou a faca e cortou a cebola
em duas partes para, em seguida, começar
a fatiá-la. No momento em que ela se
abriu, o sumo da cebola atingiu os olhos
do garoto, fazendo com que eles
queimassem e ele piscasse sem parar.
Cada nova fatia parecia tornar a
sensação mais intensa. Ele estreitou os
olhos, que se encheram de lágrimas.
Depois de poucos minutos, a coisa ficou
tão intensa que sua visão se turvou e ele
começou a piscar na tentativa de
conseguir enxergar, mas tudo o que sentiu
foram lágrimas escorrendo pelo rosto.
Ele resmungou e começou a cortar mais
rápido, virando-se para o lado para secar
os olhos com o braço. Foi então que ele
perdeu a concentração e acabou atingindo
o dedo.
Carmine imediatamente largou a faca e
ergueu a mão em choque, vendo o sangue
escorrer. Apesar de ser um corte
pequeno, o sumo da cebola provocou um
forte ardume, que o fez levar o dedo à
boca numa reação instantânea e se
encolher ao sentir o gosto da cebola.
Haven puxou a mão dele e franziu a
testa.
– Você está bem?
Ele fez que sim com a cabeça e ela o
puxou até a pia, colocando a mão do
namorado debaixo da água fria e lavando
o corte.
– Olhe para você, cuidando de mim –
ele disse. – Quando foi que invertemos os
papéis, hein?
– No momento em que você decidiu
cozinhar.
Carmine jogou um pouco de água no
rosto antes de desligar a torneira e pegar
uma toalha. Em seguida, se apoiou no
balcão e observou Haven enquanto ela
rapidamente terminava de cortar a
cebola. O garoto se sentiu um pouco
inútil pelo fato de tudo aquilo parecer tão
fácil para ela. Ela ligou o forno e, com
rapidez e muita facilidade, terminou de
organizar as coisas.
Depois que tudo já estava na panela,
ela se virou para Carmine com um
sorriso.
– Quando o forno estiver pronto, pode
colocar a travessa dentro dele? Preciso
me trocar.
– Mas é claro.
Ele ficou ali parado por um momento,
até que uma sequência de bipes começou
a soar pela cozinha. Carmine pegou a
travessa e seguiu na direção do forno,
sem reparar na poça de água que se
formara no chão. Ele escorregou e soltou
a travessa enquanto tentava se segurar.
Conseguiu ficar de pé, mas a travessa foi
ao chão; o frango e os legumes se
espalharam por toda a cozinha.
Sem saber o que fazer, reuniu tudo e
colocou de volta na travessa, ao mesmo
tempo em que ouviu passos na escada.
Soltando um palavrão baixinho, ele
agarrou o frango no exato instante em que
Haven entrou na cozinha.
A moça ficou paralisada e pasma ao
ver toda aquela confusão.
– Aplicamos a regra dos cinco
segundos? – ele sugeriu, segurando o
frango por uma das coxas.
– Qual foi a última vez em que esse
piso foi lavado?
– Isso aqui conta? – ele perguntou,
apontando para as poças d’água no chão.
– Não.
– Bem… Então… – ele fez uma pausa,
tentando calcular. – Onze anos atrás,
quando minha mãe morava aqui.
Ela ficou parada olhando-o,
boquiaberta e piscando. Ele soltou o
frango, deixando que ele caísse no chão
novamente e pegou o telefone no bolso.
Ligou para a tia Celia e esperou que ela
atendesse.
– Ah, bem, será que a gente podia
remarcar o jantar para amanhã à noite?
Ótimo. Obrigado.
Ele desligou e olhou para Haven.
– O que acha de comida chinesa?
– Comida chinesa parece ótimo – ela
respondeu, deslizando os olhos até o
frango no chão. – Já salmonela, nem
tanto.
O banco da igreja parecia duro como
ferro e a bunda de Carmine já estava
formigando de tanto esperar. Impaciente,
ele batia os pés no chão, tentando prestar
atenção à missa, mas tudo aquilo soava
como blá-blá-blá para ele.
– Por que não para quieto? – perguntou
Gia, com um falso sussurro que ecoou por
toda a igreja. Os fiéis que estavam nas
imediações se viraram e o encararam
com um olhar repreendedor. – Parece que
ele está possuído! Tem um capeta nele!
Celia chamou a atenção da mãe em voz
baixa, enquanto Corrado soltou um riso
amargo.
– Chama-se vício. Ele não bebeu nada
hoje.
Gia fez uma careta.
– Não permita que ele tome a
comunhão, então. Ele roubará todo o
vinho.
Carmine revirou os olhos e tentou
relaxar no assento, mas suas pernas não
paravam de se mover enquanto Haven
segurava sua mão. O que o fizera decidir
se juntar ao grupo na missa de domingo
ele não sabia muito bem, mas certamente
estava arrependido a essa altura. Sua
testa estava suando e a ansiedade fluía
por suas veias, deixando-lhe a pele
vermelha.
A missa prosseguia lentamente. Ele
ficou sentado no banco durante a
comunhão, ignorando os comentários
sarcásticos de sua avó à medida que ela
passava por ele para seguir a fila que ia
até o altar. Haven permaneceu ao lado
dele, absorvendo silenciosamente cada
palavra. Seus olhos estavam arregalados
com um fascínio inocente.
Ela nunca havia entrado numa igreja
antes.
Depois que a missa terminou, Carmine
puxou Haven para o corredor central.
Porém ele deu apenas alguns passos antes
de parar, hesitando ao olhá-la.
– Será que você se importaria de
voltar para casa com Celia e Corrado?
Ela ficou confusa e ergueu as
sobrancelhas, mas assentiu, sem lhe
perguntar nada. Ele deu-lhe um beijo,
certificando-se de que a levariam para
casa em segurança antes de seguir até a
frente da igreja. Padre Alberto ainda
estava no altar, conversando com alguns
paroquianos. Ele percebeu a presença de
Carmine e pediu licença às pessoas,
dirigindo-se a ele.
– Ah, senhor DeMarco, precisa usar
meu telefone novamente?
Carmine deu risada e puxou seu celular
do bolso.
– Não, hoje eu estou prevenido.
– Uma carona, talvez?
Ele levantou o chaveiro.
– Não, hoje estou tranquilo.
– Então o que posso fazer por você?
– Esperava que pudéssemos conversar.
Padre Alberto sorriu.
– Mas é claro que podemos.
O padre levou Carmine até o escritório
nos fundos, o mesmo lugar em que os dois
haviam conversado antes, e acenou para
que se sentasse. Um pouco nervoso,
Carmine passou a mão pelos cabelos ao
ocupar o lugar sugerido, permanecendo
em silêncio até que o padre também se
sentasse.
– É muito bom revê-lo – disse o padre.
– Queria ter falado com você depois do
funeral de Vincenzo, mas estava ocupado
com a moça e eu não quis interrompê-los.
– Sim, aquela é Haven. Ela é… Bem…
Ela é…
– Eu sei quem ela é – disse o padre. –
Já ouvi falar muito a respeito dela.
– Do meu pai?
– Bem, isso eu não posso lhe dizer –
disse o padre com um sorriso amarelo e
dando uma piscadela. Definitivamente ele
ouvira da boca de seu pai. – Confissões
são confidenciais.
– Mesmo depois que a pessoa morreu?
– Com certeza. Sua relação com Deus
não termina com a morte, filho.
– Isso não me surpreende – resmungou
Carmine, olhando para o padre do outro
lado da mesa. – Bem, mas é mais ou
menos por isso que gostaria de falar com
o senhor. Quando leram o testamento do
meu pai, ele me pediu que lhe fizesse um
favor; queria que eu viesse aqui… Disse
que havia deixado algo.
O padre confirmou, sem demonstrar
qualquer surpresa em sua expressão. Ele
já esperava por Carmine.
– Sim, ele deixou mesmo. Mas antes
que eu o dê a você, diga-me uma coisa.
– O quê?
– Como você está se sentindo?
Soltando um suspiro, Carmine acenou
negativamente com a cabeça.
– Como parece que eu me sinto?
– Bem, você parece estar aguentando
muito bem.
– É, bem… As aparências enganam.
– Não diga bobagens. Talvez você não
esteja conseguindo ver.
Carmine fez uma pausa, hesitando por
um instante, mas a dor tornou-se pesada
demais para que suportasse. A represa se
partiu e as palavras fluíram de sua boca
como uma onda gigantesca de emoções.
Ele se sentiu como se estivesse
inundando o escritório do padre com a
confissão de seus pecados.
Padre Alberto o olhou e escutou
silenciosamente tudo o que ele
desabafava, sem dizer nada até que
tivesse terminado. Não houve nenhuma
formalidade em tudo aquilo; ele não
pediu perdão a Deus ou aos homens. Era
apenas Carmine e a verdade, sendo dita
para a única pessoa que poderia ouvi-lo
sem encará-lo de um jeito diferente.
O padre era o único ser humano que
poderia escutá-lo sem jamais contar nada
a ninguém.
– E como se sente agora? – perguntou o
padre depois que o escritório voltou a
ficar em silêncio.
– Acho que preciso de uma bebida –
ele murmurou.
O padre deu risada.
– Vou lhe dizer o que pode fazer no
lugar disso.
– Não preciso que me dê penitência,
padre. Não pretendo jejuar, nem rezar
Ave-Maria uma dúzia de vezes. Para
mim, isso é baboseira.
– Mas eu não ia lhe pedir que o fizesse
– disse o padre. – Eu só ia lhe sugerir que
fizesse uma lista. Escreva num papel o
nome de todos a quem você acha que
tenha feito mal e encontre uma maneira de
se redimir e fazer a coisa certa algum dia.
– Isso levaria o resto da minha vida.
Padre Alberto ergueu os ombros.
– Tem algo mais importante a fazer?
Certa vez conheci um homem que tentou
beber o suficiente para aplacar sua dor.
Ele bebia para esquecer a família, para
aliviar a perda de uma vida e, quando
finalmente se tornou um homem sóbrio,
teve de pagar por tudo o que fez de algum
jeito. E então começou a corrigir seus
erros, até o dia em que morreu.
Carmine o olhou com a boca
semiaberta. O pai dele?
– Ah, e por falar nisso, seu pai lhe
deixou uma coisa – disse o padre,
alcançando algo em sua gaveta e
erguendo uma longa corrente de ouro com
uma única aliança pendurada. Carmine
sentiu uma forte dor no peito ao
reconhecer aquilo. Afinal, ele já havia
visto aquela aliança milhares de vezes no
dedo da primeira mulher que amara em
sua vida e, posteriormente, no pescoço do
primeiro homem a quem aprendera a
respeitar.
Era a aliança de casamento de sua mãe.
– Tenho certeza de que sabe
exatamente o que fazer com isso – disse o
padre, entregando o pingente a ele.
Com cuidado, o garoto pegou a
corrente e a colocou no pescoço,
escondendo-a debaixo da camisa. Ele
sentiu o metal frio contra o peito.
– Obrigado.
– De nada, meu filho. Ah, mas eu
também reparei que não tomou comunhão.
Não gostaria de fazer isso agora?
Carmine negou ao ficar de pé.
– Talvez da próxima vez.
– Próxima vez – disse o padre,
enquanto Carmine caminhava até a porta.
– Muito bem. Isso significa que talvez
você retorne algum dia.

Vinte e quatro horas depois, os seis se


reuniram na casa dos Moretti para um
jantar em homenagem a Vincent. Lá
estavam Haven e Carmine, Celia e
Corrado, Tess e Dominic. No final, o
evento acabou sendo transferido para lá,
uma vez que Carmine se deu conta de que
sequer havia uma mesa de jantar em sua
casa. Haven e Celia cozinharam juntas.
Eles se reuniram à mesa, com os pratos
cheios, e compartilharam boas risadas e
comeram até se fartar. Dia foi a única a
não comparecer, pois já havia retomado
sua vida normal em Charlotte. Aquilo
deixou Haven pensativa durante o jantar,
conforme pensava na vida que a esperava
em Nova York. De fato, Kelsey ligara
para ela dúzias de vezes, mas Haven se
sentia muito dividida para retornar
qualquer chamado.
– É tão bom, estamos todos reunidos
aqui – disse Celia. – Tentei trazer a
mamãe, mas ela não quis vir.
– Meno male – resmungou Corrado.
– Ah, ela não é assim tão horrível –
Celia fez uma pequena pausa enquanto
todos a olharam com certo ceticismo. –
Tudo bem, ela é mesmo uma pessoa
difícil. Mas ela contava bastante com o
Vincent nos últimos anos, então todos nós
teremos de nos empenhar um pouco agora
que ele se foi.
– Eu mal a conheço – retrucou
Dominic.
– Digo o mesmo – respondeu Carmine.
– E pelo pouco que percebi, ela não quer
porra nenhuma com a gente.
– Isso não é verdade – disse Celia. –
Ela só é um pouco teimosa.
Corrado soltou um riso sarcástico.
– Não quero parecer desrespeitoso,
bellissima, mas os problemas de sua mãe
vão muito além de teimosia ou
tenacidade. Nós dois sabemos muito bem
que ela sabe como ser deliberadamente
cruel.
– Pode até ser, mas ela faz parte da
família.
– É verdade, razão pela qual farei o
que se espera de mim – respondeu
Corrado. – Mas isso não quer dizer que
eu tenha de gostar dela. Não consigo
entender como Antonio foi capaz de
conviver com ela durante tantos anos.
Aquele homem era um santo.
– Meu pai? – perguntou Celia. – Será
que estamos nos referindo ao mesmo
homem?
– Todo homem peca, Celia. Até os
mais santos.
O jantar se desenrolou, assim como a
conversa. A noite já havia caído há
bastante tempo quando se separaram.
Tess e Dominic pegaram a estrada rumo a
Indiana, enquanto Carmine e Haven
desceram a rua caminhando. Com os
dedos levemente entrelaçados, ambos se
mantiveram em silêncio durante todo o
percurso. Carmine parecia feliz, com os
ombros relaxados, mas havia algo em sua
expressão. De repente ele parou de um
jeito abrupto a poucos metros de sua casa
e soltou a mão de Haven, enquanto ela
prosseguiu mais um passo.
Ela se virou para ele ao sentir a
desconexão, percebendo as sobrancelhas
dele franzidas e seus lábios retos.
– O que há de errado?
– Fale-me sobre Nova York.
Ela ergueu as sobrancelhas.
– Agora?
– Sim.
– Mas eu já te falei sobre isso.
– Você me falou o que havia de errado
lá, sobre tudo de que sentia falta estando
lá, mas quero ouvir o lado bom. Você
sabe, os sonhos. Seus sonhos.
Ele não disse aquilo, mas ela percebeu
nos olhos do rapaz: ele queria saber se
deixá-la viver sua vida fora um erro.
– Bem, a vida em Nova York é
tumultuada, como você mesmo já havia
me dito – ela começou. – Sempre havia
algo acontecendo. Pessoas em todos os
lugares.
A garota contou ao rapaz todos os
detalhes sobre sua vida na Big Apple, os
dois de pé na rua escura. Ela não
escondeu nada de Carmine, querendo que
ele soubesse que sua vida fora boa.
Talvez não tivesse sido perfeita, mas as
coisas nunca são.
Carmine ouviu atentamente, como se
saboreasse cada palavra, e não disse
nada até que ela terminasse.
– Você ama aquele lugar – ele disse em
voz baixa.
– Amo – ela disse sorrindo. – Eu
realmente amo aquele lugar.
Ambos olharam um para o outro
enquanto aquela verdade pairava no ar.
Haven percebeu a expressão dele mudar
aos poucos e outra pergunta se formar em
seus olhos. Ela não perguntou, tampouco
reconheceu sua existência, pois esperou
que ele desse o primeiro passo. Haven
esperou que ele perguntasse, que reunisse
a coragem para pronunciar as palavras.
Os olhos dele diziam ame a mim ainda
mais…
– Você, bem… – ele disse, passando as
mãos no rosto e soltando um suspiro. –
Você ficaria?
– Ficar?
Ele assentiu e finalmente perguntou:
– Você ficaria aqui?
– Sim, eu ficaria.
Os cantinhos da boca do rapaz
seguraram um sorriso.
– Você fará isso?
– Ficar?
– Comigo – ele pigarreou de um jeito
nervoso. – Você sabe, ficar aqui comigo.
Ela abriu a boca para responder, mas
as palavras nem saíram de seus lábios.
Carmine percebeu o que havia dito e a
ansiedade tomou conta dele.
– Meu Deus, não consigo acreditar que
te pedi isso. O que diabos há de errado
comigo? Isso não está certo! Não posso te
pedir que escolha a mim!
Haven segurou o braço dele,
interrompendo-o quando começou a
andar.
– Você não está me pedindo que
escolha você. Não há nada a escolher
sobre isso. Sempre foi você. Seu pai uma
vez me disse que a gente sempre tem uma
escolha, mas acho que ele estava errado.
Penso que algumas vezes as coisas nos
escolhem. É como respirar. É natural. É
parte de nós. Apenas acontece. Podemos
prender a respiração e tentar não respirar
mais, e talvez isso funcione por alguns
minutos, mas acabaremos desmaiando e a
natureza assumirá o controle. É
impossível não respirar, assim como para
mim é impossível não amá-lo.
– Mas e quanto a Nova York? – ele
disse. – E quanto à sua vida?
– As melhores partes da vida não têm
nada a ver com lugares. Amor, amizade,
felicidade… Não preciso estar em Nova
York para ter tudo isso. Tenho tudo aqui
mesmo.
– Mas e quanto à escola? As aulas de
pintura? E quanto a tudo isso?
– Posso fazer isso em qualquer lugar,
Carmine. Mas você… Você está em
Chicago.
Um sorriso de expectativa se formou
em seus lábios e ele não se conteve mais.
– Uma tela em branco?
– Tão em branco quanto nossa tela
poderia ser.
– O que já é uma merda bem
manchada.
Ela riu, observando-o por um momento
antes de estender a mão. Suas bochechas
ficaram vermelhas de nervoso. Uma tela
em branco.
– Olá, meu nome é Haven.
– Carmine – ele disse, estendendo a
mão. – Você tem um nome interessante,
Haven.
– Quer dizer “um lugar seguro” – ela
explicou.
– Eu sei – ele respondeu, entrelaçando
os dedos de suas mãos novamente. – E
algo me diz que ele cai perfeitamente em
você.
Capítulo 43
Os chefes das cinco famílias se
reuniram em uma grande mesa nos fundos
de um sofisticado restaurante italiano nos
arredores de Nova York. A conversa em
voz alta e desenfreada sobrepujava o som
suave do violino que era tocado no salão
principal. Aliás, seus risos e sua alegria
no interior já se destacavam desde o
estacionamento.
A hostess apontou a direção deles para
Corrado no momento em que ele adentrou
o estabelecimento; as palavras se faziam
desnecessárias. Eles já o aguardavam.
Ele se aproximou dos homens e
pessoalmente cumprimentou cada um
antes de ocupar a única cadeira vazia.
– Moretti – disse o chefe da família
Calabrese. – Estamos felizes que tenha se
juntado a nós.
Corrado acenou com a cabeça.
– O prazer é todo meu.
Regada a bebidas, a conversa entre os
chefes abrangia tudo, desde política até
música, deixando os negócios em
segundo plano durante a maior parte da
noite. O diálogo era fluido, quase
amistoso, mas Corrado não se deixava
enganar; sabia que estava sendo testado.
Todos estavam atentos a cada movimento
que fazia e pesavam cada uma de suas
palavras, avaliando se estariam ou não
dispostos a negociar com ele. Ele já
conhecia todos aqueles homens enquanto
trabalhava como capo, mas agora as
coisas eram diferentes.
Aquela seria a entrevista de sua vida.
– O que o traz a Nova York? –
perguntou Sergio Geneva, chefe da facção
Geneva. – E quanto tempo pretende
permanecer aqui?
– Apenas esta noite – respondeu
Corrado. – Eu trouxe meu sobrinho e a
namorada dele.
– Então trata-se de assuntos pessoais?
– Na maior parte.
O Chefe da família Calabrese olhou
para Corrado do outro lado da mesa e
disse:
– Estou feliz que esteja aqui. Há algo
sobre o qual gostaria de falar com você.
Um amigo meu, Sammy Graves… ele
abriu um novo casino. Você sabe a qual
estou me referindo?
– Claro.
– Ele é um bom sujeito, honesto e
decente. Tem família e filhos. Tentei
ajudá-lo a abrir seu próprio negócio,
oferecendo-lhe uma linha de crédito, mas
ele recusou. Queria fazê-lo por conta
própria, e tudo de maneira estritamente
legal.
– Isso é admirável – disse Corrado.
– Então tenho certeza de que consegue
perceber como esse acordo que fechou
com Chicago tem sido um problema. Ele
nunca desejou isso, você sabe, jamais
quis fazer acordos.
– Compreendo – respondeu Corrado. –
Diga a ele que não tem mais de se
preocupar com Chicago. Seu amigo é meu
amigo.
O Chefe Calabrese ergueu sua taça.
– Transmitirei a ele sua mensagem.
– Como anda a trégua em Chicago? –
perguntou outro Chefe de Nova York.
Ele considerou a questão e respondeu:
– É uma situação delicada.
– O’Bannon ainda está forçando a
barra e abusando de sua própria sorte?
Na verdade, quem o pressionou antes
fora o próprio Salvatore.
– É apenas uma questão de tempo,
imagino, antes que ele volte a nos testar.
– Mantenha-nos informados quando
isso ocorrer – ele disse. – O que quer que
precisar, bastará nos pedir. Somos todos
amigos aqui.
Corrado assentiu, pegando o copo e
tomando um gole; a conversa voltava a se
concentrar em banalidades. Embora sua
expressão se mantivesse firme, com seus
olhos fixos e escuros, e revelava o
mesmo homem frio que todos ali já
conheciam, ele se sentiu satisfeito.
Ele olhou para todos na mesa e seus
olhos se fixaram nos de Johnny Amaro,
Chefe da família Amaro e um dos poucos
homens que Corrado considerara um
verdadeiro aliado pessoal ao longo dos
anos. A família dele sempre comandara
aquela facção, desde o início. Era um
negócio passado de geração para geração
já há décadas. Johnny ergueu sua taça,
numa celebração silenciosa.
Você acertou em cheio.

Caixas de papelão cobriam o chão da


sala de estar do pequeno apartamento no
piso inferior do prédio da Oitava
Avenida. Havia pilhas delas, uma sobre a
outra, e todas estavam completamente
cheias. As pilhas estavam separadas em
duas categorias: as que seriam levadas e
as que seriam deixadas para trás. Mais
uma vez a vida de Haven estava sendo
reavaliada e categorizada, e ela se
livraria de vários itens e prosseguiria.
Emoções misturadas pulsavam em seu
peito; alegria e tristeza colidiam de frente
conforme terminava de empacotar as
coisas para se mudar definitivamente
para Chicago. Era um pouco como
prosseguir rumo aos seus sonhos,
deixando outros para trás; era como
quebrar uma promessa para manter outra.
E ela acreditava que Carmine
compreendia perfeitamente aquele
sentimento.
– Sabe de uma coisa? Você não tem
que fazer isso – ele disse, de pé no meio
da sala com as mãos enfiadas nos bolsos
de suas calças jeans. – Podemos resolver
de outro jeito.
Ela olhou para ele.
– De que outro jeito, por exemplo?
– Sei lá! – Ele deu de ombros. – A
gente podia ficar cada um onde já está e
viajar para se ver.
– Viajar para se ver?
– É, você fica aqui e eu fico lá. E nós
nos visitamos sempre que tivermos uma
oportunidade.
– E é isso o que você quer?
– Não.
Haven riu para si mesma, colocando
seus últimos livros dentro de uma caixa.
Ela então pegou o diário que pertencera a
Maura e o abriu aleatoriamente. Virou as
páginas e considerou as palavras ali
escritas, chegando numa passagem mais
ou menos na metade e lendo o que estava
escrito em letras vermelhas no topo da
página:

Às vezes eu perco a
perspectiva, mas parar e olhar
para os lados ajuda. Talvez eu
não tenha tudo, mas tenho mais
que o suficiente. E suficiente,
aos meus olhos, é bem mais do
que muitos possuem.

Haven colocou o livro dentro da caixa


antes de fechá-la.
– Temos algo que muitas pessoas não
têm, sabia?
– O quê?
Sorrindo, Haven afastou a caixa de
livros para o lado, junto aos pertences
que ela planejava manter.
– Uma chance. Não temos a garantia do
amanhã, portanto devemos valorizar o
que temos hoje.
Carmine a ajudou a empacotar mais
algumas coisas antes de se desculpar e se
afastar para fazer uma ligação. Dirigiu-se
ao quarto enquanto Haven ficou de pé na
sala de estar, olhando para as caixas. De
repente, ela ouviu uma movimentação no
hall externo e se virou ao ver a porta da
frente se abrindo e batendo com força
contra a parede.
Era Kelsey. Os olhos da jovem
estavam arregalados como os de uma
pessoa maluca. Haven estava prestes a
cumprimentar a amiga quando ela deu um
pulo para a frente, gritando de maneira
histérica.
– Mas o que diabos aconteceu com
você? Onde você esteve? O que houve?
O que está fazendo? – Kelsey falava sem
parar, apontando para as caixas. – Você
pretende se mudar? Verdade? Você está
em alguma enrascada? Por que não me
ligou?
A porta do quarto se abriu e Carmine
apareceu no cômodo.
– Mas que porra de gritaria é essa?
Kelsey piscou rapidamente e sua
atenção se voltou para o rapaz.
– E quem é você?
Carmine estreitou os olhos.
– Eu? Quem diabos é você?
Haven soltou um profundo suspiro e se
colocou entre os dois.
– Carmine, esta é minha amiga Kelsey.
Kelsey, este é meu, ah… Este é Carmine.
Ambos olharam um para o outro, mas
nenhum deles agiu como se tivesse
escutado uma palavra do que fora dito. A
expressão de Kelsey se tornou um pouco
mais suave no final, embora seus olhos
tivessem substituído o pânico por
suspeita.
– É, acho que ouvi falar em você uma
ou duas vezes.
– Digo o mesmo.
Revirando os olhos diante daquela
discussão, Haven olhou para o
apartamento, certificando-se de que tudo
estivesse nas caixas. As paredes brancas
estavam vazias, e o lugar agora parecia
bem menor que antes.
– Então você está…? – perguntou
Kelsey. – Você está se mudando?
Haven se virou para a amiga com um
sentimento de culpa estampado nos olhos.
– Sim, eu estou.
– Mas por quê? – questionou a moça,
encarando Carmine. – Ah, deixe-me
adivinhar… Por causa dele.
Carmine permaneceu onde estava, com
os braços cruzados sobre o peito, e
torcendo os lábios como se estivesse
lutando para não responder.
– Não por causa dele – respondeu
Haven. – Por ele.
– E tem alguma diferença?
– Um homem muito sábio me disse
certa vez que sim.
Kelsey soltou um suspiro.
– Escute aqui, Hayden, eu…
– Hayden? – Carmine interrompeu,
erguendo as sobrancelhas. – Que porra de
nome é esse?
Haven franziu o cenho e começou a
explicar.
– Esse é o meu nome aqui.
– Por quê?
– Foi ideia do Corrado – ela disse em
voz baixa. – Foi ele quem o escolheu.
– Espere, do que você está falando? –
Kelsey meneou a cabeça, mostrando-se
confusa. – Seu nome aqui? Meus Deus,
esse não é seu nome verdadeiro? Quem é
você?
– Ah, eu posso explicar – disse Haven
fazendo uma pausa. – Bem, na verdade,
eu não posso.
– Não pode?
Haven acenou a cabeça de modo lento
e negativo. A atenção de Kelsey mais uma
vez se voltou para Carmine, que deu de
ombros quando seu telefone tocou.
– Também não posso explicar – ele
disse, olhando para a tela antes de pegar
o celular. – Mas talvez ele possa –
retrucou Carmine, apontando para o
telefone.

Uma hora mais tarde, depois de uma


troca de diálogos bem tensa entre os três,
Corrado chegou ao apartamento e ficou
de pé no meio da sala de estar. Kelsey
estava sentada no sofá e olhou para ele
desconfiada.
– Sabe quem eu sou? – ele perguntou.
– Algum tipo de oficial de polícia? –
ela arriscou. – Não foi isso o que ficou
subentendido quando nos vimos?
Corrado deu um sorriso amarelo.
– Sou Corrado Moretti. Meu pai, Vito,
morreu na prisão enquanto cumpria
prisão perpétua por um assassinato
ordenado por Antonio DeMarco –
Corrado apontou para Carmine e
prosseguiu. – Antonio era o avô deste
rapaz. Este é Carmine DeMarco, e o pai
dele, Vincent, morreu num tiroteio na casa
de Salvatore Capozzi – Corrado em
seguida apontou para Haven. – Salvatore
era tio-avô dela, cujo nome é Haven
Antonelli. O pai dela, Michael… Bem…
Digamos apenas que tudo aqui se
completa.
Kelsey olhou para Corrado atônita e
com a boca aberta.
– Somos uma família – ele prosseguiu.
– Às vezes nós brigamos e seguimos
caminhos diferentes, mas, no final do dia,
ainda somos uma família. Compreende o
que estou lhe dizendo?
Depois de alguns segundos de
hesitação, Kelsey assentiu.
– Cresci em Nova York. Sei tudo sobre
a… Bem…
– Sobre a família – completou
Corrado.
– A família – ela repetiu. – Meu pai,
ele…
– Ele é um senador que foi indicado ao
Congresso por causa de seu último nome.
O pai dele, ou seja, seu avô, era o
senador de Nova York na época em foi
criado um comitê especial para investigar
o crime organizado. Foi por causa desse
comitê que meu pai foi condenado, no fim
das contas.
– Eu, ah… – Kelsey gaguejou. Algo
brilhou em seus olhos. Medo, talvez. – Eu
não…
– Não sou do tipo que costuma punir o
filho pelos erros do pai – prosseguiu
Corrado, interrompendo-a. – E seu pai
também não acredita nisso. Nós dois
temos um acordo sobre isso.
– Vocês têm?
– Sim. Veja, não existem coincidências
na vida, tampouco acidentes. Tudo o que
acontece é resultado de um movimento
calculado que nos leva até onde nos
encontramos. E o lugar em que estamos,
Kelsey, é bem aqui neste apartamento,
tendo esta conversa que, aliás, jamais
aconteceu. Capisce?
A jovem confirmou.
– Sim.
– Ótimo – disse Corrado voltando-se
para a porta. – Haven, Carmine,
partiremos pela manhã. Tenho algo mais a
resolver esta noite.

O local das obras estava silencioso


por volta da meia-noite e todos os
equipamentos já haviam sido desligados
há horas. Não havia nenhuma perfuração,
nenhuma conversa ou qualquer tipo de
movimentação de trabalhadores. Nem
mesmo o barulho do gerador podia ser
ouvido no terreno. O lugar parecia
abandonado, mas havia um fio de luz
vindo de uma janela do pequeno trailer
que mostrava o contrário.
Corrado caminhou silenciosamente
pelo local sob a completa escuridão,
evitando se aproximar do sensor de
movimentos para não atrair atenção
desnecessária. Ele prosseguiu até o
trailer, andando de maneira rápida e
cuidadosa, tocou na maçaneta usando
suas luvas e abriu a porta.
Gavin estava sentado a uma pequena
escrivaninha, de costas para a porta. Ele
endireitou o corpo ao ouvir Corrado
entrar, ficando com os ombros tensos e o
corpo rígido, mas não se moveu para
olhar. Sua atenção permaneceu nos livros
distribuídos à sua frente. Nomes e
números preenchiam as linhas e colunas;
havia também variadas estatísticas com
as probabilidades devidamente anotadas
na margem. Era como olhar para um
elaborado conjunto de exercícios de
álgebra. Para alguém ingênuo, tudo aquilo
poderia parecer como se o jovem fosse
um aluno se preparando bastante para
uma prova importante, mas Corrado não
era do tipo ingênuo… Tampouco era
ignorante.
– Jamais deveria se sentar com as
costas para a porta – disse Corrado. –
Seu pai não o ensinou isso?
– Meu pai me ensinou muito –
respondeu Gavin de um jeito frio. – E
uma das coisas mais importantes que ele
me ensinou foi que se Corrado Moretti
aparecesse à sua porta, seu dia com
certeza seria bem ruim.
Os cantos dos lábios de Corrado
formaram um pequeno sorriso.
– Também é bom revê-lo.
Os ombros de Gavin relaxaram um
pouco à medida que ele se virou devagar
para encarar Corrado, com uma
expressão cautelosa. Corrado não podia
culpar o jovem por estar no limite.
– Você precisa de alguma coisa? –
perguntou Gavin. – Estou apenas dando
uma olhada nos livros de controle do
bairro, mas se precisar que eu faça
alguma coisa…
– Não, é justamente o contrário, na
verdade – respondeu Corrado. – Só vim
até aqui para lhe dizer que seus serviços
já não são necessários.
Corrado enfiou a mão no casaco
rapidamente e Gavin ficou tenso mais
uma vez, empurrando sua cadeira para
trás até o limite. O medo parecia estar
estampado em seus olhos enquanto ele
erguia os braços para se proteger de algo
que não aconteceria. Corrado retirou do
bolso um envelope e o entregou ao
jovem.
– Qual o problema? Achou que eu
estivesse aqui para matá-lo?
Gavin respondeu no ato:
– Não.
Sabendo que aquilo era mentira,
Corrado soltou um riso afiado e atirou o
envelope sobre a mesa, sobre um dos
livros.
– Você não fez nada que justificasse ser
morto… Pelo menos não que eu saiba.
Mas apreciei sua ajuda e queria lhe dar
algo para expressar minha gratidão.
De um jeito hesitante, Gavin pegou o
envelope e olhou o conteúdo. Dentro
dele, presos por um elástico, havia dez
mil dólares em notas novas de cem
dólares. Gavin piscou rapidamente ao
olhar aquilo, mas não disse nada.
Corrado o havia contratado meses atrás
para que ficasse de olho em Haven. A
ideia era que Gavin a mantivesse em
segurança enquanto ele próprio estivesse
preso. E foi isso o que o rapaz fez,
inclusive enviando-lhe mensagens
codificadas na prisão para mantê-lo
informado.
– Foi só para isso que vim – disse
Corrado. – Agora deixarei que se
concentre em seus livros.
Ele já caminhava rumo à porta de saída
quando Gavin se levantou, segurando o
envelope.
– Espere.
Corrado se virou.
– O quê?
Gavin acenou negativamente com a
cabeça e deu um passo à frente.
– Não posso aceitar isso. Sei que
deveria ter sido apenas um trabalho, mas
para mim não pareceu. Não acho correto
aceitar seu dinheiro. Sinto como se
fosse… desonesto.
Corrado ergueu as sobrancelhas.
– Esse é um sentimento terrível,
Amaro. Seu pai também já deveria tê-lo
ensinado que não há lugar para emoções
nesse tipo de vida.
– Eu sei – respondeu Gavin –, mas, na
realidade, ela não faz parte dessa vida.
Sei que disse que ela é importante para
sua família… uma garota comum. Mas
estar com ela não foi nenhum trabalho.
Foi muito bom, aliás. E meu pai…
Bem… Algo que ele realmente me
ensinou é que nunca se rouba um amigo. E
aceitar isso parece um roubo.
Corrado pegou o envelope e o enfiou
de volta no bolso, acenando com a
cabeça.
– Como foi que ela chegou a você?
– Como?
– Só estou curioso para saber como foi
que ela o conquistou – ele respondeu. –
Como foi que ela fez com que se
apaixonasse por ela a ponto de se
arriscar a me ofender dessa forma, não
aceitando meu dinheiro.
Gavin soltou um suspiro e desviou os
olhos pelo trailer até encontrar um
pequeno gatinho branco, dormindo no
cantinho.
– Honestamente? Não sei dizer como
aconteceu.
Corrado o encarou por um momento
antes de se virar para sair.
– Ninguém nunca sabe.
Capítulo 44
Carmine estava de pé em silêncio à
porta do estúdio, encostado na parede
com os braços cruzados sobre o peito. O
grande cômodo mais parecia um
armazém, pintado na cor gelo, exceto
pelo chão escuro de concreto. Luzes
fluorescentes brilhantes estavam
penduradas no teto, iluminando dúzias de
quadros coloridos pendurados nas
paredes. Aquelas obras brilhavam de um
modo proeminente e exigiam atenção,
mas nada se sobressaía mais que a cena
bem no centro do salão.
Haven estava sentada num banquinho
de madeira, diante de uma tela. Havia
papéis amassados atirados no chão aos
seus pés; eram desenhos que ela
descartara, com manchas e respingos de
tinta que os atingiram ao longo do dia. A
bagunça que a rodeava deixava Carmine
fascinado, considerando o fato de aquela
ser a pessoa mais organizada que ele
conhecia em sua vida. Ela não conseguia
deixar que as roupas sujas acumulassem,
o piso tinha de ser varrido todos os dias,
os pratos precisavam ser lavados logo
depois de serem usados. Ela achava que
tudo tinha seu lugar certo, mas em
momentos como aqueles tudo aquilo
parecia fluir pela janela.
Quando Haven pintava, era apenas ela
e a tela. O prédio poderia ser atingido
por um furacão e o teto despencar, mas é
bem provável que ela sequer reparasse.
O apocalipse poderia ocorrer e Jesus
poderia se materializar atrás dela,
tentando levá-la para o céu, mas ela com
certeza o faria esperar até que tivesse
terminado. Ninguém a interrompia nessas
ocasiões, nem mesmo Carmine. E era por
isso que ele estava de pé ali, em silêncio,
esperando à porta.
Mas ele não se importava. Na verdade,
apreciava tudo aquilo: vê-la pintando e
ouvi-la cantarolando enquanto trabalhava
a apenas alguns metros de distância eram
coisas que tranquilizavam sua alma. Há
não muito tempo ele estivera tão próximo
de desistir da vida, estava exausto com
todas as reviravoltas que tivera de
encarar, mas ela voltou a aparecer no
momento em que ele mais precisava.
Já havia se passado alguns meses
desde que ela se mudara para Chicago.
Um novo ano escolar começara e ela se
matriculara numa pequena escola de artes
no centro, enquanto Carmine prosseguia
com sua vida… Aquela mesma vida na
qual se envolvera desde que saíra de
Durante. O fato de o poder ter mudado de
mãos não alterou as circunstâncias de
modo algum, mas, ainda assim, algo
estava diferente. Ele encarava sua vida
de um jeito novo. Não era tão
descuidado… Não agora, que tinha uma
razão para voltar para casa toda noite.
Ainda detestava tudo aquilo. Odiava
cada segundo da vida que desperdiçava
dentro da Cosa Nostra com cada célula
de seu corpo.
Haven soltou um suspiro mais alto e
exagerado no salão vazio. Levantou-se e
empurrou o banquinho para trás enquanto
dava alguns passos para frente e para trás
para analisar a tela. A pintura da árvore
parecia boa para Carmine, mas ele podia
sentir que, para ela, havia algo de errado.
A jovem acrescentou um pouco mais de
cor ao tronco antes de misturar um pouco
de amarelo em algumas folhas, finalmente
colocando o pincel no aparador. Ela
olhou atentamente o quadro, inclinando a
cabeça para o lado, como se a visão por
um ângulo diferente lhe permitisse de
algum modo alterar o resultado.
Carmine sorriu e caminhou até Haven.
Ela ficou tensa ao perceber a presença do
namorado, respirando fundo antes de
voltar a relaxar.
– Há quanto tempo estava aí?
– Só um pouquinho – ele respondeu,
colocando suas mãos nos quadris da
moça. Ele então a puxou contra seu corpo
e se inclinou, enfiando a ponta do nariz
no pescoço dela. – E como você sabia
que era eu?
– Senti seu cheiro – ela respondeu de
um jeito casual.
Ele franziu as sobrancelhas.
– Está me dizendo que eu cheiro mal?
Ela riu e deu um cutucão em Carmine
ao se virar para ele.
– Mas é claro que não. Você cheira
bem, e sabe disso.
– É, eu sei – ele disse, fazendo uma
careta. – Como a porra do brilho de um
novo dia, certo?
Ela revirou os olhos.
– Não aja como um cara de pau
convencido.
– Hum, e por que não? – ele disse,
apertando-a mais ainda contra seu corpo.
– Sempre gostei da minha cara de pau em
você.
Haven ficou vermelha e se virou para o
quadro.
– Então é uma árvore? – ele perguntou.
– Parece legal.
– Há algo de errado – ela disse,
inclinando a cabeça novamente para o
lado ao estudar a pintura. – Não concorda
comigo?
– Bem, parece uma árvore para mim. O
que tem de errado com ela?
– Não faço ideia – ela respondeu. –
Algo está faltando. Não parece com a
mesma árvore, parece?
– Que árvore? – ele perguntou. – A
Árvore Branca de Gondor? A porra do
Salgueiro Lutador de Hogwarts? Ou a
porcaria da macieira de onde Eva colheu
o fruto proibido?
– A árvore em Durante – retrucou
Haven, impaciente. – Você nem a
reconheceu, então é óbvio que não está
certa.
– É uma árvore, tesoro. Ela tem tronco,
folhas, as bolotas do carvalho e toda a
merda que existe em qualquer árvore. Eu
diria que está perfeita.
– Não são bolotas – retrucou a garota.
– Isso é um plátano. Está mesmo
parecendo com um carvalho? Elas não
têm nada a ver uma com a outra.
Ele soltou um suspiro. Como poderia
saber disso?
– Haven, querida, você poderia me
dizer que essa era a Árvore de Josué e eu
iria concordar, porque… Bem… Eu não
sei qual é a diferença.
Ela bufou de um jeito exagerado e
olhou-o.
– E ter de ouvir isso justamente de
alguém que gastou quase uma hora
escolhendo uma árvore de Natal daquela
vez?
– O que posso te dizer? Sou enjoado.
Não nego. Mas nem todos nós temos a
memória fotográfica que você tem. Você
vê algo e de repente aquela imagem fica
gravada em seu cérebro por toda a vida,
mas a única planta que consigo identificar
é a do tipo que posso fumar.
– Ah, está falando dessa aqui? –
perguntou, pegando o pincel, enfiando-o
na tinta verde e rapidamente desenhando
uma folha de maconha no canto da tela.
Ele riu.
– É, essa mesmo, mas você não
deveria ter feito isso aí. Fodeu sua
pintura.
Frustrada, ela negou e enfiou o pincel
na água turva.
– Isso não importa, Carmine. Já estava
fodida.
Ele a olhou boquiaberto.
– O que foi que você disse?
– Eu disse que já estava fod…
– Jesus, tesoro, você não deve dizer
essa merda! – ele a interrompeu antes que
pudesse repetir as palavras. – Sabe o que
isso provoca em mim?
Ela sorriu e ficou vermelha, desviando
os olhos para o zíper da calça do rapaz.
Sim, ela sabia exatamente o que
aquele tipo de palavra provocava em
Carmine. Fechando os olhos, ele soltou
um gemido.
– Eu pediria desculpas, mas,
honestamente, não posso dizer que esteja
arrependida. – ela admitiu.
– Então não peça desculpas – ele
sussurrou. – Aliás, você nunca deveria se
desculpar por dizer o que pensa. Pelo
contrário, há casos em que você inclusive
deveria colocar seus pensamentos em
prática… Como agora, por exemplo.
– Mas nunca se deve dizer coisas que
irão machucar outras pessoas – ela
acrescentou.
– Ah, deixa isso para lá. Estou falando
de outra coisa. Além do mais, às vezes é
preciso sim dizer coisas que machucam
as pessoas.
Haven olhou para Carmine sem
acreditar naquilo.
– Não, nunca é preciso dizer algo que
irá machucar as pessoas.
– Ah, às vezes é preciso sim.
Ela estreitou os olhos.
– Em que situação?
– Em várias.
– Me dê um exemplo.
Ele não se esquivou do desafio.
– Quando alguém lhe diz algo que o
machuca primeiro.
– Neste caso você deve simplesmente
dar as costas e ir embora – ela retrucou. –
Dois erros não tornam uma coisa certa.
– Tá, e se você não puder dar as costas
e ir embora? E se não for possível?
– E acha que ser rude irá ajudá-lo
nessas ocasiões?
Ela o deixou sem resposta, mas ele
insistiu:
– Muito bem, e se tiver algo de errado
com você, tipo, algo preso no seu dente?
Eu não deveria alertá-la?
– Sim, mas isso não seria uma
maldade. Isso seria útil.
– Mas e se fosse algo permanente,
como, por exemplo, o seu nariz? E se o
seu nariz fosse torto e fodido?
Haven imediatamente levou a mão ao
nariz e deslizou o dedo sobre ele
enquanto olhava hesitante para Carmine.
Ele soltou um gemido, percebendo que
era como se ele houvesse dito aquilo
sobre o nariz dela. Ele se lembrou do
quão preocupada ela costumava ser no
passado e se sentiu um idiota. Boa,
DeMarco, da próxima vez por que você
não dá um soco direto no nariz dela???
– Não estou falando do seu nariz,
tesoro. Não estava me referindo a você.
Seu nariz é bonito. Aliás, a porra do seu
nariz é perfeito. Eu só estava falando,
você sabe, de maneira hipotética…
– Bem, de maneira hipotética, por que
seria necessário me dizer isso? Isso não o
afetaria em nada, então para que me
magoar? – E, mais uma vez, ela o deixou
sem ter o que responder.
– Tá, muito bem, e se a sua pintura
fosse uma bosta? Como esta árvore. E se
fosse a pior árvore que você já pintou?
– E é provável que seja mesmo.
– Ok, mas e se fosse um trabalho que
valesse nota e eu tivesse de dizer a você
que está ruim para que não fosse
reprovada?
– Esse trabalho vale nota.
Ele a encarou incrédulo antes de olhar
novamente para a tela.
– E você pintou uma folha de maconha
num trabalho de escola?
Ela deu de ombros.
– Não importa.
A indiferença dela o deixou chocado.
– Há algo de errado com você.
Ela riu. Ela apenas deu risada. Se a
ideia era provar que Carmine estava
certo, ela o conseguiu naquele exato
momento. De fato, havia algo de errado
com ela.
– Posso começar de novo – ela disse. –
Quem sabe pintar algo diferente… – Você
não deveria fazer isso – ele retrucou. –
Gosto dessa pintura.
– Por quê? – ela questionou, olhando
para o quadro com desdém – É apenas
uma árvore.
– Mas é a nossa árvore – ele
completou, voltando ao ponto inicial. –
Nós descemos pela porra dessa árvore
duas vezes. E você caiu dela uma vez,
lembra? Isso a torna especial.
O sorriso que surgiu nos lábios da
garota aqueceu o coração dele. Ele
adorava aquele sorriso. Significava que
ela estava feliz, que ele a fizera se sentir
feliz. E não havia nenhum sentimento
melhor que aquele. Depois de passar
tantos anos de sua vida sem fazer nada
além de desapontar as pessoas ao seu
redor, era bom ser capaz de fazer algum
bem de vez em quando.
– Muito bem, então. Talvez eu pinte
por cima da folha de maconha.
– É, pinte umas nuvens bem alegres
para acompanhar sua árvore linda e
mágica – ele brincou.
Ambos ficaram ali por um momento,
imersos no silêncio enquanto ela olhava
para o quadro, antes que Carmine a
puxasse em sua direção. Ela soltou uma
risada gostosa e o abraçou. Porém, no
instante em que deslizou as mãos pelas
costas do garoto e alcançou o cinto, a
jovem congelou.
– Meu Deus, por favor me diga que
isso não é… – ela interrompeu a frase,
afastando-se dele. – Isso aí é o que eu
acho que é?
– Isso depende do que você acha que é.
Ela segurou o cinto dele e estreitou os
olhos.
– Você entrou aqui armado, Carmine?
Você não pode fazer isso.
– E por que não?
Ela abriu a boca ao ouvir aquela
pergunta.
– Porque tem uma placa na porta que
diz justamente isso? Você não pode entrar
nesse lugar com armas escondidas!
– Tesoro, relaxe. Eu a levo para todos
os lados comigo, e você sabe disso.
– Sim, mas até aqui? – ela o
questionou. – Isso é ilegal!
Agora era a vez de ele cair na risada.
– Nós vivemos em Chicago. O fato de
eu sequer olhar para uma arma já é ilegal.
Gostaria que eu me livrasse dela de uma
vez?
– Sim.
A resposta dela foi rápida e firme,
pegando-o de surpresa. Ela olhou para
Carmine com segurança, que negou com a
cabeça.
– Então você prefere me ver indefeso?
A garota ficou pálida.
– Claro que não.
– Então qual é o problema?
– Não quero que seja preso.
– Não serei.
– Você não sabe com certeza.
– Mas eu sei – ele retrucou. – Sei
muito bem o que estou fazendo.
– Tá, tudo bem, mas…
– Não tem nenhum mas.
Ela bufou ao ser interrompida e o
ignorou completamente.
– Mas para que trazer isso a lugares
como este? Entendo que precise dela em
seu trabalho, mas por que quando está
comigo?
– Nunca se sabe quando algo pode
acontecer.
– É mesmo? Você também nunca sabe
quando irá chover, mas não o vejo
carregando um guarda-chuva só para o
caso de acontecer.
Ele riu diante da comparação absurda,
embora ela estivesse falando muito sério.
– Bem, o homem do tempo geralmente
nos avisa quando vai chover.
– E você também não é alertado?
Corrado não lhe diz quando algo está
prestes a acontecer? O que aconteceu
com a intuição?
– Bem, de fato, mas nem sempre é
possível planejar. Às vezes só tenho
tempo de reagir.
Ela o achou paranoico. Jesus, ele
provavelmente estava sendo paranoico,
mas tinha o direito de se sentir daquele
jeito. Ele sabia quão cruéis aquelas ruas
podiam se revelar e, se estivesse
pensando de maneira clara, ela também
seria capaz de perceber. Mas ele
compreendia a preocupação de Haven. A
vida que ele levava ainda a assustava. Na
verdade, aquela vida também apavorava
Carmine, mas a melhor maneira de lidar
com tudo aquilo era estar sempre
preparado. Além disso,
independentemente do que ela dissesse,
às vezes era preciso ser duro para
sobreviver. Era assim que o jogo se
desenrolava. Se não for o predador,
acabará se transformando em presa.
– Aliás – ele acrescentou –, pelo que
sei, um pouquinho de chuva não será
capaz de te matar.
– Mas se for uma tempestade, os raios
poderão fazê-lo.
– E acha mesmo que um guarda-chuva
iria te proteger nesse caso? – ele
perguntou, devolvendo-lhe um de seus
próprios argumentos. Ele esperou que ela
respondesse, imaginando que teria algo a
dizer, mas a garota permaneceu calada,
num silêncio tenso, enervante e horrível.
– Você confia em mim? – ele perguntou,
sabendo que estavam num impasse e que
não chegariam a lugar nenhum naquele
momento.
– Sim.
– Então confie em mim em relação a
isso, ok? Podemos discutir sobre árvores
e ditados e qualquer outra coisa pela qual
você se interesse, mas não a esse
respeito.
Ela suspirou, frustrada, mas ele sabia
que aquilo significava que ela estava
cedendo ao seu pedido.
– Muito bem, mas eu escolho aonde
vamos esta noite.
Ele franziu o cenho.
– Bem, em relação a isso…
Era uma sexta-feira, um dia que se
tornara só deles. Os horários de ambos
eram bastante conflitantes. Ela
frequentava a escola e Carmine seguia as
ordens que recebia, mas as sextas-feiras
eram a exceção. Era quando os dois
conseguiam ficar juntos e fazer as coisas
normais que outros casais costumavam
fazer, como ir ao cinema e a parques de
diversão. Era a única noite da semana em
que todo o resto ficava de lado; quando
não tinham de pensar sobre o caos em
suas vidas e podiam apenas curtir um ao
outro.
Corrado parecia compreender bem,
então geralmente deixava Carmine em paz
naquele dia da semana. Todavia, a
palavra-chave aqui era “geralmente”. Às
vezes ele jogava um balde de água fria
nos planos do casal.
– …é que tem um lance marcado para
hoje à noite, e todos deverão estar lá.
– Que tipo de coisa? – ela perguntou,
estreitando os olhos.
– É só uma pequena reunião – ele
respondeu, dando de ombros. – O filho
do subchefe da organização vai se casar
ou algo assim, então todos irão se reunir
no Sicillitas.
Em geral, aquele tipo de evento
ocorria na casa do Chefão, mas Corrado
não era do tipo de pessoa que costumava
misturar as coisas. Ele tentava manter a
Máfia fora de seu lar, então ocasiões
especiais costumavam ser celebradas em
estabelecimentos privados. O Sicillitas
era um restaurante italiano que pertencia
a um dos Capos.
– Então você terá que ir? – ela
perguntou em voz baixa.
– Nós – ele a corrigiu. – Corrado foi
bastante claro a esse respeito ao dizer
“você e Haven”.
Ela franziu a testa. Carmine não a
culpava por sentir-se assim, afinal, nem
ele queria estar lá, mas Corrado insistia
em apresentar um grupo forte e sólido.
Ele passara por situações complicadas
quando se responsabilizara por ela, algo
que, aliás, fizera com que alguns dos
homens questionassem seu julgamento.
Era crucial para ele que Haven se
integrasse aos poucos àquele mundo.
Ademais, mesmo que Corrado jamais o
admitisse, Carmine tinha quase certeza de
que ele gostava de tê-la por perto.
– Não ficaremos lá por muito tempo –
ele assegurou. – Na primeira chance que
tivermos, escaparemos e faremos o que
você quiser.
– Tudo bem – ela resmungou.
Ele a observou enquanto organizava as
tintas, se livrava dos papéis sem
serventia e reunia seus pertences. Ele se
sentia mal por não ajudá-la, mas sabia
que acabaria atrapalhando mais que
colaborando. Aquele era o santuário dela,
e ninguém deve interferir na zona de
conforto de outra pessoa.
Ela vestiu o casaco e pegou a pintura
da árvore antes de se voltar para
Carmine.
– Está pronta? – ele perguntou.
Ela assentiu e sorriu de um jeito suave,
mas aquele sentimento não se refletia nos
olhos de Haven. Na verdade, eles
estavam repletos de medo; a alegria que
ele havia lhe proporcionado alguns
momentos antes havia se dissipado.
Aquilo o fazia sofrer. Ele precisava de
uma bebida. Talvez duas. Quem sabe dez.
Ele precisava de alguma coisa, qualquer
coisa que aplacasse a dor que sentia ao
desapontá-la.
Carmine a levou para fora do estúdio e
ela se sentou no banco de passageiro do
Mazda, prendendo o cinto de segurança
enquanto ele se sentava ao seu lado. O
caminho para casa ocorreu em silêncio.
Uma sensação de desconforto e embaraço
pairava sobre eles, invadindo a pele de
Carmine e o fazendo se contorcer por
dentro. Detestava quando as coisas
ficavam assim entre o casal, pois nunca
sabia o que dizer a ela. Algo do tipo
“sinto muito que esteja irritada, tesoro.
Não posso evitar o fato de ser um
fracassado. Então, acostume-se com isso,
pois é bem provável que eu ainda vá
desapontá-la bastante” não parecia
adequado, embora fosse exatamente
assim que Carmine se sentisse.
Ela continuou sem dizer uma palavra
quando chegaram em casa. Apenas pegou
suas coisas e saiu do carro antes que ele
sequer desligasse o motor. Ela usou as
próprias chaves e desapareceu dentro da
casa sem esperar por Carmine, que
aguardou um pouco mais e, ao entrar em
casa, não a viu em lugar nenhum. Foi
direto ao refrigerador e pegou uma
garrafa de Grey Goose, removendo a
tampa e entornando a bebida.
Ele então se apoiou no balcão e
continuou bebendo a vodca. Seu peito
ainda doía, e o álcool não era capaz de
aliviar seu sentimento de culpa. De onde
estava, ele ouviu quando o chuveiro foi
ligado e então desligado no segundo
andar.
Em seguida, ouviu os passos dela
descendo a escada e tampou a garrafa,
guardando-a novamente no congelador.
Haven apareceu à sua frente e, naquele
momento, o coração dele quase parou de
bater. Seus cabelos ainda úmidos estavam
levemente ondulados; seus cachos
escuros quase se mesclavam ao preto do
vestido. Seus pés descalços sobre o piso
de madeira ostentavam as unhas pintadas
de vermelho. A pele de seu rosto, a
despeito das cicatrizes, não trazia
qualquer maquiagem.
Simples e ao mesmo tempo linda.
Aquela era Haven.
A garota olhou para Carmine de um
jeito peculiar ao vê-lo ali na cozinha.
– O que está fazendo? – ela perguntou,
desviando os olhos para o congelador
antes de se fixar no rapaz. Ele não a
culpava por desconfiar dele, afinal, ela o
conhecia muito bem.
– Nada. – Não deixava de ser verdade,
de certo modo. Ele de fato não estava
fazendo nada além de estar de pé ali.
– E o que você estava fazendo? – ela
foi mais específica.
– Nada – ele repetiu, sem a mesma
honestidade dessa vez.
– Ah, ok – ela murmurou, ainda
olhando para Carmine enquanto
caminhava na direção da pia. – Vai se
trocar antes de sairmos?
Ele olhou para as próprias roupas.
Estava usando uma gravata, pelo menos, e
aquilo parecia bom o suficiente para ele.
– Acha que preciso?
Ela deu de ombros.
– Não acho que Corrado irá gostar dos
tênis.
Na mesma hora ele olhou para os
Nikes.
– É, você tem razão – ele disse,
afastando-se do balcão. Ele se preparou
para sair, mas Haven agarrou seu braço.
Ele se virou e a olhou com curiosidade. A
moça puxou Carmine em sua direção e
ficou na ponta dos pés.
Ele congelou e ficou surpreso quando
ela repousou seus lábios nos dele.
Quando finalmente percebeu o que estava
acontecendo e abriu a boca para beijá-la,
ela se afastou de um jeito abrupto,
afastando-se.
– Você estava bebendo.
Não havia raiva nem irritação na voz
dela. Ela não o estava acusando, apenas
relatando um fato. Ele estivera bebendo.
– Um pouquinho – ele respondeu. Ela
acenou positivamente e se virou para
olhar pela janela. Ele ficou ali parado
por um instante, mas ela não voltou a
falar. O assunto estava encerrado e não
havia mais nada a dizer.
Ele subiu e foi ao banheiro. Lavou o
rosto e olhou para seu reflexo no espelho.
Algumas vezes achava difícil se
reconhecer. Círculos escuros e pesados
rodeavam seus olhos vermelhos. Sua pele
estava seca por conta do clima instável
de Chicago. Ele usara um gel para
assentar os cabelos naquela manhã, o que
tornara o tom dos fios um pouco mais
escuro, deixando sua pele ainda mais
pálida que o normal.
Entrou no quarto e pegou um par de
sapatos pretos do armário, sentando-se na
beirada da cama para calçá-los. Haven
entrou no momento em que ele os calçava
e enrugou o nariz.
– Seus sapatos estão riscados.
– Ah, isso não importa. Não é como no
exército, em que eu precisaria lustrar as
botas.
– Tem certeza?
– Sim, tenho certeza – ele respondeu,
olhando para o relógio. Já eram quase
oito da noite, horário em que Corrado lhe
dissera para estar lá. – E você, está
pronta?
Carmine esperou enquanto ela calçava
um par de sapatos de salto alto e ambos
pegaram seus casacos antes de saírem.
Haven estava quieta ao chegar no carro e
continuou calada à medida que se
afastavam da casa. Ansioso, ele começou
a mexer nos botões do rádio, precisando
de alguma distração, mas Haven apenas
olhou para ele com o cenho franzido.
– O que foi agora? – perguntou
Carmine, irritado.
– Nada – ela respondeu, enfatizando a
palavra. Mas o modo como respondeu já
dizia o suficiente: era um “nada” do tipo
“seu cuzão, você acha que eu sou tonta?
Não acredito que tenha pensado que
pudesse me enganar”.
– Sinto muito.
– Sente?
– Sim.
– E pelo quê?
Ele a encarou, sabendo exatamente o
que ela queria ouvir. Ela queria que ele
se desculpasse por ter bebido, mas ele
não podia fazer isso.
– Sinto muito por desapontá-la – ele
disse. – Eu detesto aquela merda.
– Eu sei – ela respondeu, estendendo a
mão e dando um beliscão no rosto dele
antes de deslizar os dedos pelos cabelos
até a linha do pescoço. Os dedos dela
ficaram presos por causa do gel e ela fez
uma careta. – O que eu detesto é quando
você usa essa coisa nos cabelos.
Ele olhou para o retrovisor. Corrado
preferia que ele mantivesse os cabelos
bem curtos, mas ele não gostava.
– Acho que fico meio que parecendo
com o meu p…
Carmine segurou firme no volante, sem
conseguir terminar a frase. Quatro meses
haviam se passado… Cerca de dezesseis
semanas… Cento e poucos dias… Mas a
ferida ainda estava aberta como se tudo
tivesse ocorrido naquela mesma noite.
Ele ainda via aquela cena quando fechava
os olhos, revivendo o instante em que seu
pai respirara pela última vez.
Às vezes, aquela sensação era tão forte
que ele mal conseguia respirar, tamanha
era a dor que sentia. Era como se tivesse
levado todos aqueles tiros.
Haven massageou o pescoço de
Carmine enquanto se concentrava na
estrada, tentando ajudá-lo a recobrar o
controle.
– Então, já que alguém está se casando,
isso significa que posso escolher o que
quiser? – ela perguntou de um jeito
casual, distraindo-o de seus pensamentos.
Ele franziu o cenho.
– O quê?
– Não é verdade que quando alguém se
casa na famiglia pode-se pedir qualquer
coisa ao Chefão e ele não poderá
recusar?
Levou um tempo até que ele registrasse
o que ela lhe dissera, então começou a
rir.
– Você anda assistindo a O poderoso
chefão?
Ela ficou corada.
– Não.
– Bem, de qualquer modo, isso não é
verdade – ele respondeu negando. –
Dizem por aí que no dia do casamento da
filha do Chefão ele não recusará nenhum
favor a ninguém, mas isso é papo-furado.
– Ah – ela murmurou.
– Mas o que você pediria, se fosse o
caso? – ele perguntou com curiosidade. –
Se pudesse ter um desejo realizado, o que
pediria?
– Não sei. E você?
– Estou feliz – ele respondeu. – Não há
nada que eu precise além disso. Haven
olhou para Carmine sem acreditar.
– Há algo que alguém poderia dar a
você. E, na verdade, seria exatamente o
que eu iria pedir.
– E o que seria?
– Sua liberdade.
Carmine não sabia muito bem como
responder.
– Bem, é uma pena que as coisas não
funcionem desse jeito.
– É, é uma pena mesmo.
Em poucos minutos, os dois chegaram
ao restaurante. Eles entraram, e Carmine
imediatamente localizou o tio, sentado a
uma mesa do fundo ao lado de Celia.
Havia muitos homens ao redor deles,
formando uma espécie de barreira
humana, mas Celia também conseguiu vê-
los no meio da multidão. Ela acenou e
atraiu a atenção de Corrado. Ele os
observou quando se aproximaram com a
expressão vazia, mas Carmine podia
perceber a irritação em seus olhos.
– Saiam – ele disse aos dois homens
que estavam sentados à sua frente. Eles se
levantaram e afastaram suas cadeiras,
liberando-as para o casal. Corrado fez
então um movimento com a mão. –
Sentem-se.
Haven imediatamente se sentou na
primeira cadeira vazia e olhou de modo
apreensivo para Carmine. Ele sorriu para
ela, tentando tranquilizá-la, mas a
verdade é que ele próprio estava tenso.
– Está atrasado – disse Corrado,
olhando para Carmine de onde estava.
Carmine olhou para o relógio: 20h05.
– Acho que estou atrasado.
– Você acha que está atrasado?
– Sim – ele respondeu. – Tentei chegar
na hora, mas…
– Mas nada – disse Corrado com a voz
afiada. Carmine fechou a boca enquanto
algumas pessoas se voltaram para ele. –
Não há desculpas para impontualidade.
– Eu sei, só estava dizendo que…
– Sei o que estava dizendo, Carmine –
Corrado voltou a interrompê-lo. – E eu
estou dizendo que não há desculpas.
– Sim, e eu…
– Ele sente muito por isso – disse
Haven de repente.
Corrado a encarou com uma expressão
indefinida.
– Ele sente?
Ela acenou de um jeito hesitante.
– Sim, senhor.
– Bem, pelo menos isso, não é?
O clima ficou tenso, pois Corrado
continuou a encará-los. Haven não parava
de mexer com as mãos, o que deixava
Carmine ainda mais nervoso. Depois de
um momento, Celia soltou um suspiro e
acenou negativamente com a cabeça,
virando-se para o marido.
– Bem, se já terminou de mostrar que é
o mandachuva, eu gostaria de comer.
Corrado parou de olhar para Carmine e
se voltou para a esposa.
– Não estou mostrando quem é o
mandachuva.
– Está sim – ela retrucou. – Você é um
grande chato. Age como se ele tivesse
ignorado o horário marcado. Foram
apenas alguns minutos e isso não causou
nenhum problema.
– Desta vez – disse Corrado. – Pode
não representar nada neste momento, mas
cinco minutos podem fazer a diferença
entre a vida e a morte em outras
circunstâncias.
– Sim, em outras circunstâncias, o que
significa que isso não se aplica neste
caso. Portanto, pare de pegar no pé do
menino.
– Ele não é um menino, Celia –
retrucou Corrado, com a expressão mais
séria.
– Sim, ele é – ela argumentou. – Ele é
meu sobrinho.
– Ele é meu soldato.
– Mas já era meu sobrinho antes disso.
– Não importa. Ele sempre será meu.
Carmine congelou ao ouvir aquelas
palavras da boca do tio. O jovem sentiu
um frio na boca do estômago. Ele já havia
presenciado muitas conversas ridículas
em sua vida, mas vê-los discutir a
respeito da vida dele era surreal.
Celia empurrou a cadeira e ficou de
pé.
– Vou ao banheiro.
Corrado acenou com a cabeça quando
a esposa saiu e o subchefe, que estava
sentado à sua esquerda, deu-lhe um
tapinha nas costas.
– Ah, chi non ha moglie non ha
padrone.
Carmine fez uma careta ao ouvir
aquelas palavras e Corrado sorriu, mas
de um jeito forçado. Ele estava furioso
pelo fato de Celia tê-lo desafiado na
frente de seus homens. Ele esticou a mão
e pegou o copo à sua frente, bebendo um
gole no momento em que Haven se virou
para Carmine.
– O que foi que aquele homem disse? –
ela sussurrou, tentando ser discreta, mas
Corrado escutou o que ela disse.
Colocando o copo na mesa, ele
respondeu antes que Carmine tivesse a
chance de fazê-lo:
– Ele disse que um homem sem esposa
é um homem sem um mestre.
Ela ficou nervosa.
– Ah…
– Esqueci que não fala italiano – ele
disse. – Já pensou em aprender o idioma?
A jovem ficou pálida ao se tornar o
centro das atenções. A maioria das
pessoas na organização já sabia que ela
era uma Principessa, embora muitos
jamais tivessem se aproximado dela. Era
natural que estivessem intrigados.
Carmine compreendia aquela
curiosidade, mas isso não o deixava
menos irritado.
– Ah, sim – ela respondeu. – Já
aprendi um pouquinho.
– Com Carmine?
Ela olhou para o lado e ele se sentiu
mal, vendo o pânico nos olhos dela. Ela
estava se esforçando ao máximo para se
manter calma pelo menos
superficialmente, mas ele era capaz de
ver que estava se sentindo péssima por
dentro.
– Sim, ele me ensinou um pouco.
– Então presumo que já conheça vários
palavrões – disse Corrado.
Ela assentiu.
– É, mas já aprendi outras coisas
também.
– Por exemplo…?
Ela olhou para Carmine novamente,
como se esperasse que ele a ajudasse,
mas ele não podia. Mesmo que tentasse,
Corrado o interromperia. Então, depois
de perceber que estava por conta própria,
ela se virou para Corrado e, ainda com as
mãos nervosas sob a mesa, respondeu:
– Como ti amo e sempre.
– E o que mais?
– E ciao, buongiorno, grazie, prego –
a pronúncia da jovem era perfeita. Eram
frases simples, e bem melhor que nada. –
Ah, e também vaffanculo?
Todos imediatamente olharam para ela
ao ouvir aquilo, e o silêncio tornou-se
ainda mais embaraçoso.
Depois do que pareceu uma eternidade,
a expressão de Corrado suavizou e um
sorriso surgiu no canto de sua boca. Ele
deu risadas, de um jeito bastante genuíno.
– Isso é um palavrão.
– Ops… – ela respondeu,
enrubescendo. – É que Carmine fala isso
todo o tempo.
– O que não me surpreende nem um
pouco.
Todos se sentiram mais relaxados e
começaram a conversar em voz baixa. A
própria atitude do Chefe influenciou a
todos. A tensão se dissipou e Haven
começou a se soltar, sentindo-se mais
aliviada. Celia retornou e ela e Corrado
também se mostraram mais relaxados,
sussurrando palavras entre si. Carmine os
observou, percebendo a química que
havia entre os dois. Apesar de tudo, de
todas as dificuldades, da violência e
também das merdas que tinham de
enfrentar diariamente, às vezes eles
conseguiam viver uma vida normal e
sentir-se felizes juntos. Os dois se
amavam e era justamente aquele amor que
permitia que eles superassem tudo.
Enquanto houvesse amor, nada poderia
separá-los.
Carmine olhou para Haven, pegando
sua mão debaixo da mesa. Ele a apertou
com seus dedos e ela sorriu de um jeito
suave, olhando de volta para ele. O rapaz
percebeu o mesmo tipo de amor nos olhos
dela, aquele que é praticamente
inquebrável.
O lugar estava repleto de comida,
bebidas, conversas e risadas. O tempo
passou rapidamente e, para sua própria
surpresa, Carmine percebeu que de fato
estava se divertindo. Um sorriso se
mantinha constante nos lábios de Haven
enquanto ela conversava com todos, sem
parecer nervosa ao lado de gente como
ele.
Gente como ele. Ele detestava dizer
aquilo, mas era a pura verdade. La Cosa
Nostra era sua família. E, como no caso
de uma família verdadeiramente
disfuncional, ele a odiava na maior parte
do tempo.
Ele olhou ao seu redor e viu todos os
tipos de pessoas que jantavam ali. Havia
casais e famílias, amigos e parceiros de
negócios. Todos pareciam felizes e
relaxados, indiferentes ao perigo que se
concentrava naquele lugar. Era estranho
para Carmine o fato de ninguém se
mostrar desconfortável com a presença
da Máfia entre eles; era como se todos ali
se mantivessem alheios à violência e ao
sofrimento. Pareciam desconhecer o fato
de eles próprios, suas esposas e seus
filhos estarem respirando o mesmo ar que
criminosos frios, impiedosos e
calculistas.
Bem, pelo menos era o que a maioria
deixava transparecer. Então, seus olhos
se fixaram num homem sentado sozinho
num canto. A atenção dele se concentrava
nas mesas próximas. Os olhos dele se
cruzaram com os de Carmine depois de
um instante e, mesmo o sujeito estando do
outro lado do recinto, o jovem conseguiu
sentir a frieza em sua expressão. Com
certeza não se tratava de um rosto
amigável.
Carmine mediu-o da cabeça aos pés
antes de o homem se levantar, atirar
algum dinheiro sobre a mesa que ocupava
e sair.
A noite prosseguiu, com muita comida
e bebida. Com o tempo, a multidão
começou a diminuir e, com ela, qualquer
pensamento relacionado ao sujeito
esquisito.
– Vocês desejam mais alguma coisa? –
perguntou uma garçonete que se
aproximou da mesa em que estavam.
Eram quase dez da noite. Corrado e Celia
estavam a alguns metros de distância,
conversando com os noivos.
Haven negou com a cabeça e continuou
se deliciando com a sobremesa em seu
prato. Carmine, em contrapartida, ergueu
seu copo para mostrar que estava vazio.
A jovem se afastou sem dizer uma
palavra e logo em seguida retornou com
outra vodca com Coca-Cola. O rapaz
pegou o copo, agradeceu e a funcionária
seguiu para outra mesa.
Haven baixou o garfo e olhou para a
direção de Carmine. Seus olhos,
entretanto, estavam fixos no casal de
noivos.
– Você sabe como eles se conheceram?
– É um casamento arranjado – ele
respondeu.
– Um casamento arranjado? Isso
acontece?
Ele deu de ombros e assentiu. Na
verdade, ele não sabia exatamente como
responder ou explicar a situação.
– Eles se conhecem desde crianças.
Eles foram apenas… reunidos, eu acho.
Não sei se isso faz algum sentido, mas é
como a maioria deles age. Eles se unem a
outras pessoas cujo estilo de vida é igual
ao deles. Assim tudo fica mais fácil.
Haven ficou perplexa por um instante
antes que a ficha caísse.
– Como Michael e Katrina, por
exemplo.
Ele confirmou.
– E os pais deles. A maioria das
pessoas aqui fez exatamente isso. Eles
não gostam de pessoas de fora do círculo.
Meu pai quebrou esse protocolo.
– E você também – ela retrucou.
– Não sei, tesoro, afinal você é uma de
nós.
– Mas você não sabia disso, e eu
definitivamente não fazia parte do seu
“círculo”.
– É verdade.
– Você teria feito isso? – ela perguntou.
– Você teria agido como os outros e
encontrado alguém para se casar, como
todos os demais?
– Não.
– Como sabe disso?
– Porque não existe mais ninguém para
mim – ele respondeu. – Essa gente se
importa com linhagem e posições
hierárquicas, com poder e merdas desse
tipo, mas nada disso faz sentido para
mim. Nunca iria atrás de uma mulher pelo
fato de ela ser filha desse ou daquele. É
bem provável que eu a detestasse. E caso
não tenha notado, a maioria das mulheres
nessa vida é mimada; umas vacas
irritadiças que acham que todos sempre
devem alguma coisa a elas. E me recuso a
aceitar o fato de dever algo a alguém…
Exceto a você, talvez. Portanto, a
resposta definitivamente é não, obrigado.
Haven abanou a cabeça.
– Então quer dizer que ficaria sozinho?
– Se fosse para me sentir péssimo de
qualquer maneira, sim, eu preferiria ser
um miserável solitário – ele respondeu. –
Mas por que você está perguntando isso?
– Só estava pensando sobre tudo isso –
ela disse, ainda observando o casal. –
Acha que aqueles dois se amam, pelo
menos?
– É possível – respondeu Carmine. –
Às vezes o que eles sentem é real. Sei
que Celia, por exemplo, jamais ficaria
com Corrado se não o amasse, então é
possível que aqueles dois se casem e
sejam felizes também.
– Mas você não acha que teria ao
menos tentado?
As perguntas dela o deixaram confuso.
– Não sei.
– Não acha que é importante ter alguém
por perto? Alguém que o compreenda?
Antes mesmo que ele tivesse a chance
de pensar em como responder àquilo,
Corrado e Celia se aproximaram deles.
Celia se sentou, e Corrado parou ao lado
de Carmine, encarando-o desconfiado.
– Quantos copos já bebeu?
O jovem hesitou, olhando para o copo
pela metade.
– Bem…
– O fato de ter de pensar sobre isso já
é suficiente para que eu saiba a resposta
– retrucou Corrado, esticando a mão. –
Suas chaves.
O coração de Carmine acelerou ao
olhar para a expressão séria do tio. Ele
enfiou a mão no bolso, pegou as chaves
do Mazda e observou enquanto Corrado
as arrancava de sua mão.
– Tome – ele disse, atirando-as para
Haven. – Certifique-se de que ele chegue
em casa em segurança.
– Sim, senhor – ela disse em voz baixa.
– E lá vai você bancando o
mandachuva de novo – comentou Celia.
Corrado soltou um risinho amargo.
– Bem, ele ainda não tem uma esposa,
então sou o único mestre que ele tem no
momento.
Carmine se controlou para não revirar
os olhos e pegou novamente o copo
quando Corrado foi chamado em outra
mesa. Depois de entornar o copo, o
jovem se voltou para Haven.
– Está pronta para ir, tesoro? Eu já tive
minha cota de família por hoje – ele
disse, olhando para a tia Celia e
completando – Sem ofensa, é claro.
– Você não me ofendeu – respondeu
Celia. – Vão se divertir.
Haven levantou-se e sorriu, então
ambos caminharam na direção da porta.
Eles haviam quase escapado na surdina,
quando Corrado os viu e chamou
Carmine:
– Mantenha-se disponível, para o caso
de eu precisar de você. Ah, e da próxima
vez, use sapatos mais limpos. Será que é
muito difícil lustrá-los de vez em
quando? Leva mais que cinco minutos?
– Ah, claro – ele murmurou. – Não me
dei conta.
Haven o olhou com um jeito
convencido, mas sua expressão mudou
rapidamente quando Corrado se dirigiu a
ela.
– Haven?
A jovem ficou tensa.
– Sim, senhor?
– Você se saiu bem esta noite – ele
disse. – Foi um prazer tê-la aqui conosco.
Os olhos dela se iluminaram.
– Obrigada, senhor. Fiquei feliz pelo
convite.
Carmine agarrou a mão de Haven e a
puxou, querendo fugir dali antes que
Corrado decidisse que tinha algo mais a
dizer.
– Você disse a verdade? – perguntou
Carmine enquanto os dois caminhavam
pelo estacionamento. – Ficou mesmo feliz
por ter sido convidada?
– Sim – ela respondeu. – Na verdade,
todos me pareceram muito… legais.
– Com certeza. São os filhos da puta
mais legais que conheço, tesoro. São
como o arco-íris e o brilho do sol.
Ela riu e deu uma leve cotovelada em
Carmine.
– Sabe o que quero dizer. Nenhum
deles foi frio comigo, como achei que
seriam uma vez que sou uma … Quero
dizer, que eu fui…
– Eles não são estúpidos – ele
interrompeu, apertando a mão da jovem.
– Corrado os teria matado se a
desrespeitassem.
Ela pareceu surpresa e parou ao lado
do carro.
– Acha que ele faria mesmo isso?
– Claro que faria – retrucou. – Corrado
não tem filhos, portanto, você é o mais
próximo que ele tem de uma filha.
Os olhos dela se arregalaram.
– Eu?
– Ele se comprometeu por você. Na
cabeça dessa gente, ele deu vida a você.
Digo, caramba, Haven. Ele exigiu sua
presença esta noite, mesmo sabendo que
você preferiria estar em outro lugar. Ele
só costuma torturar sua própria família
desse jeito. E agora você faz parte dela,
querendo ou não.
– Acho que quero – ela disse em voz
baixa. – Quero dizer, eu gosto da ideia.
– Que bom. Agora vamos dar o fora
daqui – disse Carmine, estendendo a mão.
– As chaves?
Haven deu um sorrisinho seco,
segurando-as com firmeza.
– Acho que não. Eu dirijo – ela
retrucou com uma piscadela ao caminhar
até o lado do motorista.
Carmine resmungou um pouquinho,
fingindo estar irritado, embora não se
importasse que ela dirigisse. Ele confiava
plenamente em Haven. Sempre confiara e
sempre confiaria.
Ela ligou o carro e ele prendeu o cinto
de segurança, já sabendo que ela não
sairia dali antes que ele o fizesse. A
jovem ajustou os espelhos e alterou a
posição do assento para que pudesse
alcançar os pedais. Carmine se controlou
para não dizer nada, recusando-se a se
irritar por coisas tão banais. Há apenas
alguns anos ele teria surtado, mas a ideia
de perdê-la novamente dava ao jovem
uma nova perspectiva. A posição do
assento poderia ser reajustada, assim
como os espelhos. O carro todo podia ser
substituído, aliás, mas ela era a única
mulher de sua vida.
Carmine olhou para os lados enquanto
ela se ajeitava e identificou um vulto
perambulando pelo estacionamento. Ele
estreitou os olhos ao lembrar-se de
alguma coisa e reconheceu o sujeito. Era
o mesmo que estava sentado no canto do
restaurante e que saíra de lá pelo menos
uma hora antes. Embora mantivesse a
cabeça abaixada ao caminhar entre os
carros, Carmine não tinha a menor dúvida
de que se tratava do mesmo homem.
De repente, o sujeito entrou num Chevy
Camaro escuro e passou por eles.
Carmine avaliou rapidamente o
automóvel, conseguindo identificar que a
placa era de Illinois. No entanto, tudo o
que conseguiu vir além disso foram as
duas primeiras letras: JK.
– Conhece aquele cara? – perguntou
Haven, percebendo que ele o estava
observando.
Carmine deu de ombros.
– Não. Mas o carro é bem legal.
O trajeto de volta até a casa foi bem
diferente do caminho de ida. Haven se
manteve dentro do limite de velocidade
(se é que chegou até o limite), enquanto
ele se recostava no banco do passageiro,
sentindo o álcool em seu sistema. Haven
pediu licença por um minuto enquanto
Carmine trancava tudo e acionava o
alarme das portas e janelas.
Ele caminhou até a cozinha, guardou
sua arma no gabinete superior e pegou a
garrafa de Grey Goose no freezer.
Encostando-se mais uma vez no balcão,
tomou um gole e fechou os olhos,
saboreando a queimação na garganta.
Um minuto depois, ouviu Haven se
aproximar e abriu os olhos, deparando-se
com ela à porta do cômodo.
– O que você gostaria de fazer, tesoro?
Ela não disse nada, apenas caminhou
em sua direção depois de já ter se livrado
dos sapatos no meio do caminho. Ele
tomou mais um trago, e ela parou, pegou a
garrafa da mão do rapaz e, depois de
hesitar por um instante, deliberadamente
levou o vasilhame até os lábios e o
entornou. A garota fez uma careta quando
a bebida alcançou sua boca. Pelo olhar
em seu rosto, engolir aquilo foi bastante
doloroso.
Esticando a mão por trás de Carmine,
ela despejou o conteúdo da garrafa dentro
da pia, bem devagar, mantendo os olhos
fixos no rapaz o tempo todo.
Carmine se sentiu em pânico por um
segundo. Sentiu-se congelado e o
estômago foi parar na boca enquanto
ouvia a bebida escorrendo pelo ralo da
pia. Mesmo assim, se controlou,
recusando-se a perder o controle. Ele
poderia tê-la impedido… se precisasse.
Mas aquilo não era o fim do mundo.
Havia coisas mais importantes na vida e
ele não precisava de vodca para seguir
adiante. Aquele pensamento passou por
sua cabeça e ele desejava muito acreditar
naquilo.
Haven então agarrou a gravata do
namorado e o nó começou a se soltar. Ele
não impôs qualquer resistência, tampouco
se fez de difícil quando ela o puxou para
fora da cozinha e o levou em direção à
escada. No fim, ela o soltou, mas, de
modo obediente, o namorado continuou a
segui-la, sem dizer uma única palavra.
Seus pés pesavam como se estivessem
presos em blocos de concreto; ele estava
exausto, física e mentalmente, mas só
pensava em atender aos desejos dela.
Ele fechou a porta do quarto assim que
entraram. O som do clique da maçaneta
ecoou em meio ao silêncio que pairava
no ar. Olhou-a, observando-a através do
brilho do luar que passava pela janela.
Ela abriu o zíper e deixou que o vestido
caísse no chão. A pressão que ele trazia
no peito, assim como a queimação que
afeta os viciados, diminuíram um pouco
quando ela se virou e o olhou.
– Lembra-se da primeira vez em que
fizemos amor? – ela perguntou em voz
baixa.
– É claro que me lembro.
– Naquele dia, você me admirou e me
valorizou – ela disse. – Na verdade,
pensando bem, você sempre me admirou
e me cultuou. Sempre foi tão atencioso e
fez eu me sentir amada, mas nunca tive a
chance de fazer o mesmo por você. Digo
que amo você o tempo todo, e de fato…
Eu te amo… Eu te amo tanto, Carmine…
Mas acho que nunca mostro a você o
suficiente.
– Mas você…
Ela ergueu a mão para silenciá-lo antes
que o rapaz fizesse qualquer objeção.
– Apenas cale-se, ok? Por que sempre
tem que dizer alguma coisa?
Ele entortou uma sobrancelha ao olhá-
la, e um riso de surpresa escapou de seus
lábios no momento em que sinalizou para
que ela prosseguisse. Ela parecia bem
ousada.
– Nunca demonstro a você o suficiente
– ela repetiu. – Você faz tanto por mim,
enfrenta tantas coisas na vida e precisa
receber amor também. Você merece ser
admirado e cultuado.
Carmine permaneceu na frente da
porta, sem se arriscar a mover um único
músculo. Ele prendeu a respiração
quando Haven terminou de se despir
diante dele, ficando completamente nua.
Ele a olhou da cabeça aos pés,
saboreando cada milímetro de sua
estrutura pequena e percorrendo cada
uma de suas curvas suaves. As cicatrizes
brilhavam sob a luz da lua, formando
padrões intrincados que escondiam
inúmeras histórias, algumas das quais
somente ele conhecia. Aqueles eram
segredos que ela havia lhe contado e que
o jovem levaria consigo para o túmulo,
independentemente de quando
acontecesse.
Ela deu um passo à frente, pegando
novamente na gravata e, dessa vez,
desfazendo o nó e atirando-a para o lado.
De um jeito lento e cuidadoso,
desabotoou a camisa dele, que continuou
imóvel, lutando com todas as forças para
não estender a mão e acariciar a pele da
namorada. Haven tirou a camisa do rapaz
e deslizou seus dedos pelo abdome antes
de alcançar o cinto da calça, sem jamais
desviar o olhar.
Ele lambeu os lábios e sua boca de
repente ficou seca. Os músculos de seu
corpo se tornaram cada vez mais rígidos.
O coração do garoto batia de um jeito
acelerado enquanto suas calças caíam ao
chão e ela delicadamente abaixava a
cueca até seus tornozelos. Ele sentiu um
frio na espinha e estremeceu ao sentir a
força da ereção. Seu pau se ergueu e
enrijeceu mais do que em qualquer outra
ocasião.
– Caralho – ele sussurrou, recostando-
se contra a porta no momento em que
Haven se colocou de joelhos. Numa
enorme demonstração de carinho, ela
abriu a boca e envolveu o órgão de
Carmine, aquecendo-o enquanto o resto
do corpo nu do rapaz se arrepiava por
completo. – Ah… Meu Deus.
Ele sabia que não conseguiria resistir
por muito tempo, não seria capaz mesmo
que quisesse. À medida que ela o
chupava, escorregava sua língua pelo pau
rígido, movimentando o órgão com
firmeza, ele sentia a pressão se acumular
em suas entranhas. Ele queria poder
avisá-la, mas as palavras simplesmente
não vinham. Tudo o que conseguiu fazer
foi suplicar e sentir a forte explosão no
momento em que segurou firme a cabeça
dela e ejaculou em sua garganta.
Então, depois que terminou, ela se
ergueu e continuou massageando o
membro, que mais uma vez se enrijeceu e
cresceu em suas mãos. Ela beijou o peito
dele e em seguida alcançou seu pescoço,
que respondeu inclinando-se na direção
dela e capturando seus lábios.
O restante das roupas que ele usava
foram descartadas no chão antes que a
moça o puxasse para a cama e o fizesse
deitar. Ela não hesitou nem por um
instante, apenas escalou seu corpo e se
sentou sobre ele, que a preencheu de
maneira profunda e por completo. Seus
corpos se uniram num só, e a sensação
era ao mesmo tempo inebriante e
deliciosamente sufocante.
Ele manteve as pernas afastadas,
observando os movimentos dela e
saboreando a paixão que irradiava do
corpo da jovem. Conseguia sentir toda a
devoção de Haven, assim como todo o
desespero e todo o desejo que ela
abrigava; ele era capaz de gozar com sua
necessidade, sua lascívia e seu amor. Era
possível perceber tudo aquilo em cada
movimento de seus lábios, na dinâmica
de seus corpos que se moviam na mais
plena sintonia, enquanto ele enterrava seu
pau o mais fundo que podia.
Concentrava-se na voz dela, em seus
gemidos profundos, nas repetidas vezes
em que pronunciava seu nome de um jeito
rouco, até que o orgasmo a fizesse
estremecer.
O fato é que a cada suspiro ela o
deixava mais enlouquecido; cada golpe o
levava mais ao limite. Ele queria
desesperadamente poder virá-la de costas
para a cama e penetrá-la, com força, com
fome, deliciando-se a cada milímetro
conquistado e reclamando para si mesmo
a posse daquele corpo. Mas não fez isso.
Ele não podia. Mais tarde haveria tempo
suficiente para aquilo. Agora era o
momento dela. Tudo o que ele tinha de
fazer era obedecer às regras que ela
impusera naquele jogo.
E aquele era um jogo no qual ele se
sentia exultante em disputar. As
sensações que se formavam dentro dele
provocaram algo especial, uma euforia
vagamente familiar; o prazer de todos os
prazeres se infiltrava em cada uma de
suas células, tomando todo o seu corpo
até que ele se sentisse flutuando no ar.
E dessa vez tudo aquilo aconteceu sem
qualquer dependência em relação àquela
merda chamada Molly.
Capítulo 45
Enquanto a noite prosseguia, ambos
permaneceram deitados lado a lado na
cama. A cabeça de Haven estava apoiada
no peito nu de Carmine. Os cabelos da
moça estavam despenteados e formavam
nós. Carmine afagava as costas dela
enquanto os dedos da jovem exploravam
a trilha de pelos que descia abaixo do
umbigo do namorado.
– Eu te amo – ela suspirou. – Você é a
melhor coisa que já aconteceu para mim.
A melhor coisa que já acontecera
para ela. Aquilo fez Carmine se sentir
exatamente o oposto do que vinha se
sentindo, quando via a si mesmo como um
desgraçado. A convicção nas palavras de
Haven fez com que ele realmente
quisesse acreditar naquilo, mesmo
achando que ela merecia mais para sua
vida, talvez, apenas talvez, ele fosse o
suficiente para aquela jovem.
Ela caiu no sono antes mesmo que ele
encontrasse as palavras certas para
compartilhar aquele sentimento. Em
segundos, o quarto silencioso foi tomado
pelo ressonar suave da garota. Carmine
ficou ali, abraçando-a com carinho.
Entretanto, apesar de sua exaustão. o
rapaz não conseguia pregar os olhos. Sua
mente parecia trabalhar a trezentos
quilômetros por segundo; uma sensação
estranha insistia em permanecer, e não
conseguia se livrar daquilo, que invadiu
seu corpo, incomodando e alfinetando-lhe
a pele. Carmine estava no limite. Estava
em alerta e qualquer barulho intensificava
ainda mais sua paranoia. Algo estava
errado e ele podia sentir.
Com cuidado para não acordar a
namorada, ele tirou o braço que estava
sob o corpo dela e lentamente saiu da
cama, dirigindo-se em silêncio à janela
do quarto. Em seguida, deslizou algumas
faixas da persiana e olhou para fora. Já
eram quase três horas da manhã. O céu
estava muito escuro e a cidade, tranquila.
Mesmo assim observou a rua, em busca
de qualquer sinal de problema, ficando
tenso ao pousar os olhos sobre um carro
estacionado na frente de sua casa.
Tratava-se de um Chevy Camaro escuro,
vagamente familiar.
O rapaz se afastou da janela e olhou
para Haven brevemente antes de sair do
quarto. O instinto assumiu o controle e
cada um de seus movimentos tornou-se
calmo e calculado. Ele vestiu suas calças,
desceu as escadas, pegou sua arma e saiu
pela porta dos fundos, dando a volta pelo
lado e alcançando o Camaro por trás,
olhando para a placa.
No instante em que viu as letras JK,
sentiu a adrenalina fluir em seu corpo.
Mantendo-se protegido pelas sombras,
observou o carro por alguns instantes. O
sujeito estava sozinho no banco do
motorista e, estranhamente, não estava
concentrado na casa de Carmine, mas
cada vez que um par de faróis brilhava no
final da rua, ele observava com olhos de
falcão até que o veículo passasse. Estava
à espera de alguma coisa, mas Carmine
não sabia exatamente do quê, até que os
faróis de um automóvel surgiram no
começo da rua. O homem se abaixou
quando a Mercedes preta cruzou ao seu
lado e estacionou no quarteirão seguinte.
Corrado.
Carmine não tinha certeza do que
deveria fazer, dividido entre reagir e
alertar Corrado, mas não teve muito
tempo para pesar as opções. O motorista
abriu a porta do carro e desembarcou,
mantendo a cabeça baixa e caminhando
rumo ao próximo quarteirão. Sem pensar
duas vezes, Carmine o seguiu, evitando a
luz dos postes de energia e mantendo-se o
mais próximo possível. O sujeito
diminuiu o passo ao chegar à casa de
Corrado e parou para avaliar a melhor
maneira de invadi-la. A luz da sala estava
acesa. Carmine podia ver sombras se
movendo do lado de dentro, e também
ouvia os risos de Celia que saíam por
uma janela semiaberta.
O homem se abaixou ao lado da casa e
Carmine hesitou, respirando fundo e
pegando sua arma antes de seguir na
direção dele. O sujeito havia quase
chegado ao jardim de trás quando ouviu
os passos do garoto. Ele se virou
surpreso, mas já era tarde para reagir.
Carmine o empurrou para a lateral da
casa, e pressionou a arma contra a
têmpora do homem.
– Se fizer um movimento, estouro sua
cabeça.
Ele xingou e acenou negativamente
com a cabeça enquanto Carmine o
revistava, retirando tudo de dentro dos
bolsos do sujeito. Encontrou uma arma
em seu casaco e se certificou de que o
pino de segurança estivesse ativado antes
de enfiá-la na cintura.
Pegando a carteira do homem, Carmine
a abriu e olhou para a carteira de
motorista.
– Oisin Quinn. Que raio de nome é
esse?
– Não me machuque – implorou o
sujeito. – Não estou procurando encrenca.
– O caralho que não está – retrucou
Carmine. – Ninguém perambula por este
bairro com uma arma se não estiver à
procura de encrenca.
– Juro que é apenas um engano!
– O que é um engano?
– Isso!
– E o que diabos é isso? – perguntou
Carmine, puxando-o da parede e o
empurrando na direção do jardim na parte
de trás. O homem tropeçou mas conseguiu
se equilibrar e, depois de hesitar por um
segundo, saiu correndo pelo quintal.
Por um milésimo de segundo, Carmine
ficou paralisado, sem acreditar naquilo.
Ele havia acabado de tirar a mão do
sujeito, que conseguiu escapar. Quão
estúpido ele deveria ser?
A adrenalina fluiu pelo corpo do rapaz
e ele apontou a arma. Entretanto, preferiu
correr atrás do sujeito e conseguiu
apanhá-lo, atirando-o no gramado pouco
antes da cerca. Em pânico, o sujeito se
debateu e tentou lutar com Carmine,
dando-lhe um soco no lado direito da
mandíbula. O rapaz sentiu a dor, que o
deixou no limite.
Tudo bem, se o sujeito queria brigar,
era exatamente isso o que Carmine faria.
Ergueu o braço que segurava a arma e
deu um golpe no rosto do homem,
descontando por meio daquela pancada
toda uma existência de agressividade,
desapontamento, ódio, vergonha e
coração partido. Carmine não o conhecia,
mas não importava, pois, naquele
momento, toda a dor que sentia presa no
peito escoou de uma só vez ao espancá-
lo.
Depois que o homem já estava imóvel,
Carmine o levantou e o empurrou pelo
jardim, forçando-o a ficar de joelhos
diante da porta dos fundos de Corrado.
– Fique parado, seu filho da puta –
ordenou o garoto, dando-lhe um chute na
lateral do corpo por mera frustração. Sua
mandíbula doía. O jovem mal conseguia
respirar e havia sangue em suas mãos.
– Fico feliz que tenha decidido não
atirar nele.
Aquela voz pegou Carmine de
surpresa. Ele olhou para cima e deparou
com Corrado de pé à porta, imóvel
enquanto assistia ao embate.
– Mas que porra? Há quanto tempo
estava aí?
– O bastante.
– E não podia ter me ajudado? –
retrucou o rapaz, irritado pelo fato de
Corrado ter apenas observado toda a
ação.
– Você parecia ter tudo sob controle –
ele disse. – Além disso, foi bem
divertido observar.
Carmine o encarou.
– Divertido? Não há nada de divertido
nisso tudo!
– Discordo.
– Bem, você está errado – retrucou
Carmine, levando a mão à cintura em
busca da arma do sujeito. O jovem voltou
a xingar ao perceber que ela já não estava
ali e olhou ao redor, percebendo que
havia caído durante a luta. Ele a pegou e
ergueu para que Corrado a visse. – Ele
podia ter me matado.
Corrado soltou um riso seco.
– Está exagerando. Você o controlou
todo o tempo, sem nenhum problema.
– Você não podia ter certeza de que
isso aconteceria.
– Sim, eu podia. Ele não fez o dever de
casa se estacionou o carro na frente da
sua casa.
– Como sabe…? – Carmine parou,
estreitando os olhos no momento em que
a ficha caiu. – Espere, você sabia que ele
estava lá?
– Claro que sabia – respondeu
Corrado. – Ele não foi nem um pouquinho
discreto, Carmine. Até você reparou nele.
– Puta que pariu – resmungou, irritado.
– Então eu fiz tudo isso por nada?
– Eu não diria que tenha sido por nada
– respondeu Corrado, sorrindo e se
divertindo. – Como eu já disse, foi bem
divertido assistir.
Carmine acenou negativamente com a
cabeça enquanto o sujeito ainda estava de
joelhos ali, chorando com a cabeça baixa.
– Mas, afinal, quem é esse tal de Oisin
Quinn?
– Então é esse o nome dele? –
perguntou Corrado ao pegar nas mãos a
carteira de motorista do homem. –
Imagino que tenha sido enviado pelos
irlandeses. Estou correto?
O sujeito choramingou.
– Por favor! Eu sinto muito, só… Por
favor!
– Não implore – retrucou Corrado. –
Apenas me diga quem o mandou aqui.
– Eu não sei – ele disse. – Eles me
pagaram.
– Quem pagou?
– Um cara. Ele disse que seria muito
fácil!
Corrado agachou ao lado do homem e
o segurou pelo ombro. Carmine já
conseguia identificar sinais de fúria no
tio e deu um passo para trás. Uma coisa
que Corrado detestava era ser
subestimado.
– Sabe quem eu sou?
– Sim. Bem, não. Digo, eles me deram
o seu endereço e disseram onde eu
poderia encontrá-lo esta noite. Eles
disseram que seria fácil, só entrar e sair.
Carmine acenou negativamente com a
cabeça, estupefato diante de tamanha
idiotice, embora uma parte dele ainda
estivesse no limite.
– Eu odeio ser o portador dessa
notícia, mas alguém o queria morto –
disse Corrado ao sujeito. – Eles sabiam
que jamais sairia vivo daqui… de minhas
mãos. Não se manda um João Ninguém
atrás do Chefe da La Cosa Nostra. Eu o
vi no momento em que entrou naquele
restaurante.
As sobrancelhas de Carmine franziram
no momento em que ele começou a pensar
no encontro, em busca de qualquer sinal
de que Corrado estivesse tenso. Tudo
retornou à sua mente até a última frase
que lhe fora dita por Corrado.
– Seu filho da puta, você sabia que
isso iria acontecer!
Corrado sorriu levemente, como se
sentisse orgulho por tudo aquilo.
Estúpido. Em vez de responder à
afirmação do sobrinho, simplesmente fez
um gesto para que ele fosse embora.
– Volte para casa, Carmine. Eu mesmo
cuidarei disso.
Carmine reclamou consigo mesmo e
seguiu as ordens do tio, ouvindo o sujeito
gritar enquanto contornava a casa. De
repente, o choro foi interrompido por um
som curto e abafado, como de uma
bombinha que estourasse no chão. Um
único tiro com um silenciador, ele
pensou naquele instante. Era óbvio que
ele não iria voltar para descobrir.
Correndo de volta para casa, Carmine
torcia para que ninguém o tivesse visto.
A casa estava silenciosa e tudo parecia
quieto. Entrando na cozinha, lavou as
mãos antes de guardar a arma em
segurança. A garrafa de vodca vazia
ainda estava no balcão, atraindo Carmine.
Depois de tudo que acontecera, ele bem
que poderia tomar um gole.
Você não precisa disso, ele pensou
consigo mesmo. Você está vivo. Está com
a sua garota e não precisa de mais nada!
Ele seguiu para o andar superior e se
deparou com a porta do quarto aberta. Na
cama só restavam lençóis e cobertores
desarrumados. Não havia sinal de Haven
em lugar algum. Em silêncio, saiu no
corredor e percebeu uma luz fraca vindo
de um outro quarto. Ele fez uma pausa na
porta e a viu sentada diante da tela com
um pequeno pincel na mão. Haven estava
usando a cueca preta de Carmine e uma
camiseta branca que sobrava por todos os
lados e praticamente a engolia.
Ela estava trabalhando na pintura da
árvore novamente. A folha de maconha
havia desaparecido como que por
milagre, escondida sob nuvens pesadas
de uma tempestade. Carmine deu alguns
passos até ela, sorrindo ao ver aquilo.
– Estou surpreso que esteja acordada.
– Ah, bem, a empresa de segurança
ligou e me acordou – respondeu Haven. –
Aparentemente alguém saiu pela porta
dos fundos e esqueceu de desativar o
alarme. Por sorte, consegui chegar a
tempo antes que eles alertassem a polícia.
– Mas que merda! – Isso teria sido
desastroso. – Por favor, me desculpe.
– Tudo bem – ela respondeu. – Eu te
dei cobertura.
Carmine riu ao ver o jeito como ela
falou, com seu tom divertido, mas não
tinha dúvidas de que ela estava falando
sério. De fato, ela lhe dava cobertura. Em
tudo o que precisasse e a qualquer
momento ela sempre estaria ali ao lado
dele, pronta para fazer o que ele pedisse.
Ela não era apenas um sistema de apoio,
uma espécie de colete salva-vidas que o
protegia na forte corrente de um rio
furioso, ela era tudo o que mais
importava para ele. Sem ela, Carmine
certamente se afogaria.
Haven se virou e suas sobrancelhas
franziram ao olhar para Carmine.
– Mas, afinal, o que é que você estava
fazendo lá fora? Você está imundo!
O garoto olhou para baixo, reparando
na terra e na grama que cobriam seus
jeans. Deu de ombros enquanto ela
apenas riu, esticando a mão para retirar
uma folha dos cabelos despenteados do
namorado. Então, percebeu quão maluco
parecia diante dela: descalço, sem
camisa e coberto de sujeira.
– Eu só tive que cuidar de umas
merdas, tesoro.
– Parece que andou disputando uma
partida de futebol.
– Digamos que eu me sinta como se
estivesse disputando uma partida de
futebol – ele murmurou, esfregando sua
mandíbula. – Bem, foi isso ou alguém me
deu uma surra.
– Então é isso o que faz à noite quando
desaparece? Vai a um clube de luta
clandestino e secreto?
– Não posso lhe dizer, tesoro. Conhece
as regras – ele respondeu, rindo. – Mas,
de qualquer modo, a pintura está ótima!
– É, eu descobri o que estava faltando
– ela disse, colocando o pincel no
recipiente de água antes de apontar para
duas figuras sombreadas sobre os galhos.
– Nós.
Carmine sorriu, colocando os braços
ao redor dela e beijando a nuca da
namorada.
– Bem, agora está mesmo perfeito. Sei
que às vezes é difícil ver o que está bem
diante do seu nariz. Eu mesmo já fodi
com tudo algumas vezes ao não perceber
o que deveria ser óbvio.
– Por exemplo…?
– Como o que você disse antes, sobre
ter alguém ao seu lado que o compreenda
– ele respondeu. – Você está certa. Isso é
importante. Quando a deixei em Durante,
pensei que estivesse vindo para cá para
ficar com pessoas iguais a mim, que
vivem a mesma vida que eu, mas eu
estava errado. Essa gente não entende.
Eles não conseguem. Talvez eles saibam
de tudo pelo que passei, mas não fazem
ideia de como é senti-lo, de como é
perder sua mãe para essa vida, de como é
ter sua infância roubada, de como é ter
que pagar pelos erros dos outros. Eles
não compreendem, mas você… Você
compreende. Você é a única pessoa que
sempre compreendeu. Achei que
ficaríamos bem longe um do outro, mas
eu estava redondamente enganado. Não
preciso de muita coisa, Haven, mas de
uma coisa eu tenho certeza: eu preciso de
você.
– Também preciso de você, sabia? –
ela disse. – Você me faz sentir segura.
Ele sorriu, beijando o topo da cabeça
da jovem. Há uns vinte minutos ele
encarara a morte, lidando com um sujeito
que provavelmente não hesitaria em
matá-lo, e mesmo assim ela ainda se
sentia segura ao lado dele. Ela acreditava
nele. Ela o amava.
E ele a amava… Mais que qualquer
outra coisa no mundo. Ela se entregara a
ele novamente. Todas as barreiras que
havia entre ambos desabaram, todas as
perguntas não respondidas, toda a
preocupação, tudo se resolvera no
momento em que eles ficaram juntos outra
vez.
– Haven – ele disse. – Se eu pudesse
ter qualquer coisa nesse mundo, sei
exatamente o que eu pediria agora.
Ela se afastou por um instante e o
olhou com genuína curiosidade.
– E o que seria?
Carmine deu um passo para trás,
levando a mão atrás do pescoço para
puxar a corrente de ouro. Em seguida,
abriu o fecho, retirou de lá a pequena
aliança e a olhou por um momento na
palma de sua mão antes de se ajoelhar
diante dela.
– Se eu pudesse ter qualquer coisa
nesse mundo, seria você como minha
esposa.
Foi como se todo o ar do quarto fosse
instantaneamente sugado. Ela o olhou em
choque e o coração dele disparou
enquanto esperava que ela dissesse
alguma coisa… Qualquer coisa.
Depois de um momento, lágrimas
haviam se formado nos cantos de seus
olhos e uma delas escorreu sobre o rosto
da garota. Ele a secou rapidamente no
momento em que ela sorriu. Aquela visão
o tranquilizou, pois era a única resposta
de que precisava.
– Você não pediria para ter sua
liberdade de volta em vez disso? – ela
perguntou em voz baixa.
Ele negou com a cabeça.
– Ela não significaria nada sem você.
Capítulo 46
– Isso é completamente desnecessário
– resmungou Haven, olhando para fora da
janela escura do carro. Os prédios
passavam num ritmo regular enquanto
eles seguiam pelas ruas de Chicago, o
cenário exterior mais parecia uma
mancha na escuridão.
– O senhor DeMarco discorda,
madame – disse educadamente uma voz
oriunda do banco do motorista.
– Ah, e me chamar de madame também
é totalmente desnecessário – ela
completou, olhando para frente e
reparando que ele a enxergava pelo
retrovisor, com um ar de nervosismo no
rosto. Era óbvio que ele era novo no
emprego e não queria estragar a primeira
chance de se provar eficiente.
– Sinto muito, madame – ele respondeu
com a voz baixa, evitando o olhar dela.
Ela sorriu de um jeito suave ao mirar
fora da janela, sem deixar de perceber a
ironia de toda aquela situação. Ela estava
surpresa com o modo como tudo havia
mudado; a vida deles tinha se
transformado de uma maneira que jamais
teriam imaginado no início. Haven com
frequência pensava em tudo o que
acontecera para que chegassem àquele
ponto, sentindo-se curiosa sobre como as
coisas poderiam ter terminado se as
circunstâncias tivessem sido diferentes.
Ela sabia que não fazia o menor sentido
pensar naquilo, já que era impossível
alterar o passado, mas para ela era
impossível não imaginar.
E independentemente do número de
vezes que pensasse sobre o assunto, tudo
se resumia a um único evento que dera
início a tudo aquilo: o assassinato de seus
avós.
Avós. Ela duvidava que um dia se
acostumaria a dizer aquela palavra.
Nunca considerara a existência de uma
família além de sua mãe. Carmine se
ofereceu para explicar o que sabia a
respeito, comprometendo-se a ser mais
aberto com ela no futuro, mas, no fim,
fora Corrado quem lhe dissera toda a
verdade. Ele narrou fatos que ouvira
sobre o tipo de pessoas que eles haviam
sido: uma família forte e cheia de
orgulho. Corrado também disse que os
avós de Haven ficaram muito felizes com
o nascimento da filha. Era assustador
ouvir sobre o início da vida de sua mãe e
saber o quanto ela havia sido querida…
O quanto tinha sido amada.
– Madame? – Haven olhou novamente
para o motorista e percebeu que ele a
estava observando. – Houve um acidente
na rodovia 41 que bloqueou o trânsito em
direção ao norte. Tive de pegar um
desvio, mas só irá demorar alguns
minutos a mais.
Ela olhou para o relógio, quase sem
conseguir ver o horário na escuridão:
22h15. Tudo bem.
– Peço desculpas pelo inconveniente.
– Tudo bem – ela disse. – E, por favor,
me chame de Haven.
Ela mais uma vez se voltou para a
janela e continuou assim pelo resto do
trajeto.
O motorista não voltou a falar com ela
até que estacionasse a limusine diante de
uma enorme casa branca. Ele saiu e olhou
para os lados com cautela antes de abrir a
porta para a garota, que saiu do
automóvel.
– Obrigada.
– Não há de quê, madame.
Ela negou com a cabeça,
compreendendo que não fazia sentido
corrigi-lo novamente e tirou algum
dinheiro da bolsa. Ele tentou recusar a
gorjeta, dizendo que era uma honra
transportá-la, mas ela revirou os olhos e
enfiou o dinheiro no bolso do casaco do
homem.
A casa estava escura e silenciosa. Não
havia ninguém ali. Haven imediatamente
chutou os sapatos para o lado assim que
entrou e, em seguida, foi até a cozinha.
Pegou um copo do armário e o encheu de
água. Encostando-se no balcão, ela tomou
um gole enquanto seus olhos observavam
o cômodo. Havia pedaços de papel-
toalha sobre o balcão, além de algumas
xícaras fora do lugar. Os pratos
definitivamente não haviam sido lavados
durante o dia. Parte do balcão estava
coberto por migalhas de pão e havia
também um pote de geleia ao lado da pia.
A tampa não estava fixada e uma faca
repousava ao lado do recipiente. Algo
grudento também havia sido derrubado no
chão, que precisava desesperadamente
ser limpo.
Ela soltou um suspiro e desviou os
olhos da bagunça, fixando-se no
calendário na parede. Parecia caótico,
repleto de coisas escritas à mão, com
dias riscados, mas nada parecia saltar
tanto aos olhos que uma data no final.
29 DE JUNHO
Aquela data estava circulada em
vermelho e Haven sorriu ao ver a palavra
escrita claramente no espaço: casamento.
Já havia se passado um ano desde que os
dois se reencontraram e em apenas cinco
dias sua união se tornaria oficial.
Casamento. Ainda era difícil acreditar
que haviam chegado tão longe. Não fora
um caminho fácil, uma vez que não
podiam se esconder numa bolha, como
fora o caso em Durante. Precisavam fazer
parte daquele mundo; tinham de se
integrar nele e descobrir a melhor
maneira de se encaixarem. Aquilo às
vezes era motivo de conflitos entre os
dois, que tentavam buscar o equilíbrio
entre a vida do casal e suas vidas
pessoais. Mas não era impossível ajeitar
a situação. Discordavam em relação a
detalhes, do tipo como se manterem
seguros e, embora às vezes ela achasse
aquilo absurdo, tolerava muito do que
Carmine desejava. Ela jamais se
acostumaria com os seguranças ou
serviços de limusine, mas sabia que era
um preço baixo a pagar para garantir que
Carmine ficasse tranquilo. Afinal,
tranquilidade era um luxo ao qual o rapaz
raramente tinha acesso.
Haven tomou mais um gole antes de
colocar o copo no balcão. Começou a se
afastar, mas hesitou por um instante,
voltou e pegou o copo, colocou-o na
máquina de lavar e reuniu os pratos que
ficaram espalhados pela cozinha. O chão
grudento até poderia esperar até o dia
seguinte, mas, apesar de todas as
mudanças, certos hábitos permaneciam os
mesmos.
Como dissera Corrado certa vez:
Cambiano i suonatori ma la musica è
sempre quella.
Carmine respirou fundo para se
tranquilizar, inalando o cheiro de queijo
oleoso e pepperoni apimentado. Seu
estômago se contorcia e ele não
conseguia definir se era fome ou apenas
seus nervos em frangalhos.
Ele entrou na pizzaria lotada e
localizou Corrado sentado sozinho a uma
mesa na lateral. O olhar de Carmine
permaneceu focado no piso brilhante e
quadriculado ao se aproximar do tio,
ignorando o olhar intenso que recebera
do caixa.
– Olá, Corrado – Carmine o
cumprimentou. – Digo, ah, olá, senhor.
Corrado não se preocupou em olhar
para cima. Apenas empurrou com o pé a
cadeira à sua frente e pegou uma fatia de
pizza da caixa sobre a mesa. O cheiro de
cebola era forte, assim como o da
pimenta e o da linguiça.
O estômago de Carmine ficou ainda
mais revirado. Eram definitivamente seus
nervos.
Ele se sentou e tentou evitar o cheiro
da pizza, respirando pela boca. Nenhum
dos dois abriu a boca enquanto Corrado
comia, sentado de modo casual como se
não tivesse de se preocupar com nada na
vida. Depois que terminou, fechou a caixa
vazia e se recostou, cruzando os braços
sobre o peito.
– Sou todo ouvidos.
– Eu… Bem, quero dizer, nós…
– Nós?
– Haven e eu – esclareceu o jovem. –
Nós queríamos saber se…
– Por que ela não está aqui? –
perguntou Corrado, interrompendo-o. –
Se ela tem um problema, é plenamente
capaz de vir conversar comigo
pessoalmente.
– Ela tinha um compromisso na escola
esta noite – disse Carmine, suspirando. –
Mas, de qualquer modo, não se trata de
um problema. É mais um favor.
– Você me liga e diz que é importante.
Tão importante que eu interrompo meu
próprio jantar para ouvi-lo e agora você
me diz que precisa de um favor?
– É, é isso.
– É melhor que seja importante, então.
Carmine respirou fundo, encolhendo-se
ao sentir o cheiro da comida e em seguida
forçou as palavras a saírem de sua boca,
antes que perdesse a coragem.
– Bem, você sabe que nós nos
casaremos em breve…
– É óbvio que eu sei – retrucou
Corrado. – Recebi um convite e me
planejei para comparecer. Ainda sou um
convidado, certo?
– Certo.
– Muito bem, então. Não há problema.
Já me certifiquei de que sua agenda
ficasse livre neste fim de semana, assim
não teria nenhum problema para …
consumar o casamento.
Carmine franziu o nariz diante das
palavras do tio.
– Não é isso.
– Então do que se trata? Estou ficando
impaciente.
– Gostaríamos de saber se você
concordaria em entregar Haven.
Corrado o encarou do outro lado da
mesa, imóvel e sem sequer piscar, como
se não tivesse escutado bem o que
Carmine lhe dissera. Mas escutara e,
depois de um minuto, ele acenou
negativamente a cabeça como se tentasse
processar aquelas palavras.
– Entregar Haven?
– É, você sabe, levá-la até o altar na
igreja.
– Sei o que quer dizer, Carmine.
– O pai dela, bem… você sabe. Eu
pediria ao meu pai, mas… você também
sabe.
Corrado matara ambos e, embora
nenhum dos dois tivesse expressado em
palavras, pensaram a mesma coisa.
– Muito bem – ele disse. – Eu a levarei
até o altar.
Os olhos de Carmine se arregalaram.
Ele estava esperando um não retumbante.
– Caralho, você está falando sério?
– Cuidado com a língua!
Carmine ficou pálido.
– Quero dizer, ah… Então você a
levará mesmo até o altar?
– Sim!
Carmine sorriu aliviado, mas aquilo
não ajudava a acalmar seu nervosismo. O
simples fato de estar a um quarteirão
daquela pizzaria já o deixava
desconfortável e tenso.
– Você está incomodado com alguma
coisa? Não para quieto – disse Corrado.
– Estava tão nervoso assim só para me
pedir isso?
– Não – respondeu o jovem. – Bem, eu
estava. Mas esse não é o meu problema.
– Então qual é?
Carmine encarou o tio, atônito pelo
fato de ele parecer tão confortável.
– Não o incomoda em nada estar aqui?
– E por que me incomodaria? –
retrucou Corrado, confuso. – Sempre
como aqui. O tempo todo.
– Sim, mas… – o rapaz se inclinou na
direção da mesa e sussurrou. – E os
filhos dele?
Corrado também havia matado os dois
filhos do proprietário.
Os olhos de Corrado desviaram para o
homem atrás da caixa registradora.
Virando o corpo, Carmine encarou o dono
do lugar, John Tarullo, com cautela. Ele
mal reconhecia o sujeito, afinal, só o vira
em sua infância, quando jantava ali com
os pais. Entretanto, ele sabia que John
salvara a vida dele naquela noite de
outubro. Carmine devia muito a ele; sua
própria vida, para ser mais preciso. No
entanto, o garoto mal conseguia encarar o
homem já envelhecido.
Ele se transformara na porra de um
lembrete ambulante e falante de tudo de
ruim que Carmine tivera de enfrentar ao
longo dos anos.
Sentindo a atenção, ou talvez por mera
coincidência, John escolheu aquele
momento para olhar para os dois homens.
A expressão dele parecia firme, era um
relacionamento estritamente comercial,
mas Carmine conseguia sentir a profunda
tristeza nos olhos escuros do velho.
– Fiz o que tive de fazer – retrucou
Corrado. – Se eu os tivesse deixado
vivos, se tivesse permitido que
continuassem naquele rumo, minha
família teria sido prejudicada. Portanto, a
resposta é não, isso não me incomoda.
Agora, perder um de vocês? Isso poderia
me incomodar.
Corrado se levantou e seguiu em
direção à porta, acenando educadamente
para Tarullo antes de sair do restaurante.
Depois de tomar um banho e vestir-se
de modo confortável, Haven desceu a
escada e viu a luz da cozinha acesa.
Carmine estava parado na frente da
geladeira com a porta escancarada,
olhando para dentro depois de chegar de
onde quer que estivesse enquanto ela
estudava. A coisa era simples: ela não
perguntava e ele não dizia.
– Não consegue encontrar nada? – ela
perguntou.
– Não – ele respondeu, observando o
cardápio do restaurante delivery que
estava preso à porta com ímãs de
geladeira.
– Posso preparar alguma coisa – ela se
ofereceu. – Já deve estar cansado de
comer todo dia as mesmas coisas.
Ele deu uma risadinha travessa e
franziu as sobrancelhas de um jeito
sugestivo.
– Bem, isso depende do que eu como.
– Seu pervertido – ela podia sentir o
calor subindo pelas bochechas, sabendo
que era inútil tentar disfarçar.
– É, mas você adora isso – ele disse
num tom de brincadeira.
– Adoro – ela disse, não vendo nenhum
sentido em negá-lo. Afinal, Carmine a
conhecia muito bem.
O garoto deu risada e se virou,
concentrando-se novamente no cardápio.
– Vou pedir comida chinesa. Já está
tarde e você não precisa perder tempo
cozinhando, principalmente considerando
que já limpou a cozinha uma vez. Não
pense que não reparei. Eu podia ter
limpado, sabia? Aliás, eu teria feito isso.
– Sei disso – ela disse com franqueza.
Carmine jamais fazia certas coisas, como
lavar roupa ou varrer o chão, mas ele era
muito bom em limpar a bagunça que fazia.
Não que ele gostasse, mas o fazia por ela.
– Não me custou nada.
– Bem, obrigado, então.
Ele pegou o telefone sem fio na parede
e discou rapidamente o número.
– Sim, preciso de uma entrega. O nome
é Carmine DeMarco – ele disse logo que
atenderam, fazendo uma pausa enquanto
checavam os dados. – Sim, sou eu
mesmo. Quero rolinhos de porco mu shu,
um filé ao molho Mongólia, frango xadrez
e duas porções de sopa de wonton. Sei
lá, grande? Ah, e alguns rolinhos-
primavera. Quantos vêm numa porção?
Dois? Só isso? Isso é um roubo.
Carmine olhou para Haven e ergueu as
sobrancelhas.
– Esqueci de alguma coisa?
– Não.
– Sim, é só isso. Ah, e não se esqueça
dos biscoitos da sorte – ele disse ao
telefone, franzindo o cenho. – Como
assim vocês não têm biscoitos da sorte?
É um restaurante chinês, não é? Vocês têm
que entregar biscoitos da sorte. O quê?
Não, não me importa se eles estão em
falta. Não me venha com essa conversa
fiada, ok? Quero meus biscoitos da sorte.
Trate de dar um jeito.
Ele encerrou a chamada, batendo com
o telefone no balcão e assustando Haven.
Então, abriu a porta do freezer e olhou
para dentro. Haven soube na hora o que
ele estava procurando. Na verdade, ele
agira a partir do impulso e da frustração,
encarando o lugar vazio em que a vodca
costumava ficar. Logo, bateu a porta do
freezer e voltou a abrir a geladeira.
Haven pegou a lata de Coca-Cola da
mão dele e, num ato de carinho, esfregou
as costas do rapaz.
– Ei, a falta de biscoitos da sorte não é
um problema tão sério – ela disse,
empurrando-o para o lado para apanhar
um copo no armário. Carmine se encostou
ao balcão e a viu enquanto colocava
cerejas no refrigerante. – Você nem come
esses biscoitos. Sempre diz que eles têm
gosto de papelão.
– É verdade, mas você gosta – ele
respondeu. O jovem parecia nervoso e
agitado, esfregando a palma das mãos nas
próprias calças. – Você gosta deles.
Ela sorriu de um jeito suave,
entregando-lhe o refrigerante.
– Bem, muito obrigada por você pensar
em mim, mas aquilo foi desnecessário.
Do mesmo modo como enviar aquela
limusine até a escola para me buscar.
– Tá, talvez os biscoitos não sejam
mesmo necessários, mas a limusine foi
necessária, sim – ele retrucou, bebendo
um gole do refrigerante. – Não queria que
voltasse a pé.
– Tudo bem, mas eu poderia ter pegado
um ônibus – ela respondeu. – Gosto de
andar de ônibus. Nunca pude ir para a
escola de ônibus. Isso torna as coisas
mais divertidas e autênticas.
Ele olhou para a namorada com um
ponto de interrogação.
– Você não voltaria para casa de
ônibus.
– E por que não? Não é um problema
para mim.
– É um problema, sim – ele retrucou,
elevando o tom de voz. – O ponto de
ônibus não é perto de casa, então você
ainda teria de caminhar no escuro.
– Mas são apenas alguns quarteirões –
ela respondeu, tentando tranquilizá-lo. –
Aliás, nem demoraria tanto se eu cortasse
pela viela…
Haven interrompeu a frase
imediatamente ao perceber o que havia
dito. Carmine ficou petrificado, seu corpo
rígido e tenso. O ponto de ônibus ficava
próximo ao velho teatro, a apenas alguns
quarteirões do local onde ocorrera o
recital de Carmine em outubro de 1996.
Aquela era a mesma viela que ele pegara
com sua mãe naquela noite e um lugar de
onde ele jamais se aproximara desde
então.
– Tudo bem – ela respondeu. As
chances de algo acontecer a ela eram
mínimas, porém, mais uma vez ela
preferia manter a paz de espírito de
Carmine. – Não usarei o ônibus de noite,
mas ainda quero usá-lo durante o dia.
– Você é a única pessoa do mundo que
conheço que prefere transporte público –
ele resmungou, sem se mostrar muito feliz
com a decisão dela, mas também sem
discordar.
– Apenas não vejo razão para dirigir
quando não preciso – ela explicou. –
Além do mais, limusines são muito
chamativas. Gosto de me misturar com as
pessoas e você mandar um carro daquele
tamanho para me apanhar na escola não
ajuda muito. Se o motorista se atrasar e
você não quiser que eu pegue um ônibus,
posso chamar um táxi.
Carmine deu uma risada seca.
– Tá, e sou eu o teimoso, né?
– E você é mesmo teimoso – ela
retrucou. – Quer saber? Acho que está
sendo superprotetor.
Ele ficou em silêncio por um instante
antes que seus lábios se abrissem num
sorriso.
– Ah, quanto a isso não tenha dúvidas:
tenho planos bastante “superprotetores”
em relação a você esta noite.
– Ah, meu Deus – ela resmungou,
acenando negativamente com a cabeça e
olhando noutra direção.
Ele deu risada da reação da jovem
antes de suspirar, resignado.
– Nada de táxis, mas tudo bem, vou
mandar buscá-la com carros menos
chamativos. Eles têm carros que não são
tão sofisticados. Se eu achar que devo
enviar um carro, mandarei um deles. De
outro modo, tudo bem, acho que pode
usar o ônibus.
– Obrigada – ela disse, sorrindo. –
Você é muito bom para mim, sabia?
Ele revirou os olhos e começou a
responder, mas foi interrompido pelo
telefone. Sem hesitar, ela saiu da cozinha.
No mesmo instante, houve uma batida
na porta. Carmine reapareceu e saiu para
ver quem era. Curiosa, Haven voltou à
cozinha para olhar pela janela. As
sobrancelhas dela franziram quando viu
Carmine de pé no primeiro degrau da
varanda com dois homens; ela não
reconheceu nenhum dos dois. Todos
pareciam tensos e o diálogo era sério
entre eles. Negócios, ela presumiu. Em
geral, o coração dela acelerava sempre
que o via em situações de trabalho, uma
sensação de medo surgia dentro dela.
De repente, Carmine se virou em sua
direção e a expressão dele ficou tensa
quando os olhos deles se encontraram.
Ela se afastou, sem querer irritá-lo, mas
viu quando um carro parou na calçada.
Os dois homens se afastaram e Carmine
abriu a porta, indo direto ao escritório
quando viu o entregador se aproximar
com a comida.
Antes que o rapaz pudesse bater,
Carmine retornou com sua carteira e
abriu a porta da frente.
– São US$47,75.
– Caralho, isso é caro demais –
Carmine resmungou. Haven caminhou até
a porta da cozinha e parou, observando
enquanto ele conferia a carteira. Ele
retirou uma nota de US$50 e entregou-a
ao rapaz, hesitando antes de pegar outra
nota de US$5 e dá-la como gorjeta. Ela
sorriu quando o viu dar o dinheiro ao
jovem antes de pegar as sacolas de
comida e fechar a porta.
– Você não deveria ser tão
bisbilhoteira – ele disse ao vê-la de pé
atrás dele.
– Não estava sendo bisbilhoteira,
apenas curiosa.
– É a mesma merda – ele resmungou,
antes de acrescentar. – Apenas seja
cuidadosa, ok? Sabe que essas porras me
deixam nervoso.
Haven pegou um refrigerante na
geladeira e também a Coca-Cola com
cereja para Carmine, seguindo-o até a
sala de estar. Os dois se sentaram e
jantaram, conversando de modo casual e
assistindo à TV. Depois que já estavam
satisfeitos, Carmine colocou as
embalagens de lado. Em seguida, puxou
um saco branco e o abriu. Riu ao
derrubar o conteúdo na mesa de centro.
Haven ficou chocada ao ver uma dúzia de
biscoitos da sorte. Ao ler a embalagem,
eles perceberam que, embora tivesse
feito o pedido no Satay, os biscoitos
foram obtidos no Ming Choy.
– Você os deixou tão assustados que
arrumaram biscoitos da sorte em outro
restaurante.
– É, acho que a gorjeta deveria ter sido
maior, né? – ele disse, sem conseguir
disfarçar o divertimento. Então pegou um
dos biscoitos e o atirou contra ela, antes
de pegar um para si. Abriu o pacotinho,
retirou o biscoito de dentro e puxou o
papel.
– “O mais importante na vida é jamais
deixar de questionar” – ele leu, atirando
o papelzinho fora e pegando outro
biscoito. – Isso é pura baboseira.
Ela riu e puxou o papelzinho do seu
biscoito.
– “Seus sonhos se tornarão realidade
quando menos esperar” – ela disse, lendo
o que estava escrito e mordendo o
biscoito. Carmine fez uma careta. – Meus
sonhos já se realizaram: família, amigos,
escola, casamento. Não poderia pedir
mais nada.
– Ainda não está casada, tesoro.
– Eu sei – ela sorriu ao olhar para a
tirinha de papel. – Amanhã.
– É, amanhã – ele concordou.

Na tarde seguinte, Haven estava de pé


diante de um espelho antigo, surpresa ao
olhar para seu reflexo.
Seus cabelos estavam encaracolados e
a parte da frente puxada para trás e presa
com uma tiara dourada que mantinha o
véu no lugar certo. Seu vestido branco
era bem simples, longo, com um ombro
só e uma pequena cauda. Ela usava um
par de sapatos de salto alto. Não era nada
extravagante, mas não havia dúvidas de
que ela estava lindíssima. Exatamente
como havia sonhado ao longo de toda sua
vida.
Lágrimas inundavam os seus olhos e os
pensamentos insistiam em recair sobre a
mãe. Haven sentia muito sua falta e
gostaria demais que ela estivesse ali,
imaginando como ela se sentiria
orgulhosa naquele instante. Era tudo o
que Miranda sempre desejara para a
filha, tudo o que dissera a Haven que ela
encontraria no mundo. Daquela vez ela
duvidara da mãe, pensando que seria
impossível, mas agora tudo aquilo estava
prestes a se tornar real.
A porta atrás de Haven se abriu, ela se
virou e viu Corrado. Ela se virou
rapidamente, nervosa, enquanto ele se
colocou ao seu lado diante do espelho e
permaneceu em silêncio por um momento;
aquilo não ajudou em nada a tranquilizá-
la.
– Principessa della Mafia – ele disse
enfim, com a voz calma. – Quando
Vincent me disse pela primeira vez quem
você era, eu disse a ele que não
conseguia acreditar, que você não parecia
uma de nós.
Haven estava muito nervosa, e seu
coração batia tão acelerado que chegava
a machucar.
– Mas vejo perfeitamente agora – ele
disse, contemplando o reflexo dela no
espelho e esboçando um sorriso no canto
dos lábios. – Não sei como fui incapaz de
perceber antes.
A declaração dele pegou Haven de
surpresa, deixando-a boquiaberta. Ele
pigarreou, sentindo-se ainda
desconfortável em demonstrar qualquer
sinal remoto de afeição.
– Eu lhe darei um momento.
Então, saiu sem dizer uma única
palavra. Os olhos de Haven voltaram a se
encher de lágrimas quando ouviu o som
do piano; ela mais uma vez pensou em
sua mãe. Lembrou-se de quando a viu
pela última vez em Blackburn, e também
das últimas palavras que dissera: que
sempre estaria com ela, em seu coração;
que o mundo se tornaria um lugar melhor
com a jovem fazendo parte dele. Miranda
queria que sua filha vivesse sua vida,
fosse feliz e perseguisse os próprios
sonhos e, naquele dia, ela sabia
exatamente qual seria seu destino:
Carmine.
– Obrigada, mamãe – sussurrou Haven
no quarto vazio, olhando pela última vez
seu reflexo antes de pegar o buquê de
rosas brancas. Ela se uniu a Corrado no
corredor e pegou em seu braço assim que
ele o ofereceu.
Ele levou Haven até a porta da igreja e
ambos fizeram uma pausa no início do
corredor, para que ela tivesse um
momento para se preparar. Sua visão
ficou turva e ela se sentiu um pouco tonta.
A imagem à sua frente a deixou
estupefata. Os bancos estavam
completamente lotados. Ela não conhecia
muitas daquelas pessoas, e todos se
colocaram de pé no momento em que eles
entraram. Ela estava ciente de que muitos
não estavam ali por causa dela. Eram
membros da organização e suas famílias,
mas aquilo não importava. Todos vieram
por Carmine, e também por respeito ao
homem de pé ao lado dela.
Haven olhou para a parte da frente da
igreja e seus olhos se fixaram em
Carmine. Ele parecia congelado, e seu
rosto, maravilhado. Haven não conseguiu
segurar as lágrimas e algumas delas
acabaram escorrendo pelo rosto no
momento em que começaram a caminhar
pelo corredor central.
Corrado soltou a mão de Haven
quando ambos chegaram ao altar,
assentindo para Carmine antes de se unir
à esposa no primeiro banco. A música
parou e o padre fez uma pequena prece,
que foi seguida por uma movimentação
geral quando todos os convidados se
sentaram. Haven entregou seu buquê a
Tess enquanto Carmine olhava para ela,
fascinado. A felicidade irradiava do
rapaz em forma de ondas. Ela o mediu da
cabeça aos pés, algo que sempre fazia ao
encontrá-lo… Sempre em busca de
ferimentos, para se certificar de que ele
estivesse intacto. Ela riu quando seus
olhos se depararam com os pés do noivo.
– Nikes? – ela sussurrou. – O que
houve com seus sapatos?
Ele fez uma careta.
– Eu me esqueci deles.
As lágrimas da garota continuaram a
transbordar e ele rapidamente passou a
mão no rosto dela enquanto o padre
Alberto se dirigia a eles.
– Carmine e Haven, vocês estão aqui
por livre e espontânea vontade e sem
qualquer impedimento para que se
entreguem um ao outro em matrimônio?
– Sim – ambos responderam ao mesmo
tempo.
– Vocês prometem honrar e respeitar
um ao outro como marido e mulher para o
resto de suas vidas?
– Sim – eles disseram, sem ter que
pensar nem por um segundo.
– Isso não faz parte da cerimônia
tradicional, mas a noiva e o noivo me
pediram a oportunidade de falar e a
igreja concordou em garantir a eles essa
chance.
O padre olhou para o casal e Haven
limpou a garganta, tentando se livrar do
nó que se formara ali.
– A primeira vez que você me pediu
que me casasse com você, Carmine, foi
há três anos. Você disse que não
precisaria ser naquele dia, nem no dia
seguinte, nem mesmo naquele ano. Você
só queria que eu jurasse que me casaria
com você quando estivesse pronta. Eu
disse que sim, é claro, e fui
absolutamente sincera. Éramos jovens e
talvez bastante ingênuos, imaginando que
tudo seria tão simples. Entretanto, uma
coisa da qual jamais duvidei é de que
havíamos nascido um para o outro.
Haven fez uma pausa e secou mais
lágrimas que se formaram em seus olhos.
– Na primeira vez que o vi, não soube
bem o que pensar. Você era diferente de
todos que eu já havia conhecido. As
coisas que você fazia me assustavam e
tudo o que eu queria era ficar bem longe
de você, mas eu não podia. Eu me sentia
atraída por você. Você me dava
esperança. Você acreditava em mim e me
ajudou, mas, acima de tudo, você me
amou. A mim. De todas as pessoas neste
mundo, você escolheu a mim. Eu já
estava acostumada a ser negligenciada, a
ser invisível, mas você me viu. Eu não
seria a pessoa que sou hoje sem você. Eu
o amo, Carmine Marcello DeMarco, e
quero te dizer que agora estou pronta.
Estou pronta para passar o resto de minha
vida ao seu lado.
– Sempre – ele sussurrou, engasgando
ao dizer aquela palavra. Ele tentava
manter a compostura e a firmeza diante de
tantas pessoas.
– Sempre – Haven a repetiu com a
força de cada célula de seu corpo. Com
toda a segurança que trazia em si. Ele
agora pertencia a ela, e para sempre.
Então foi a vez de Carmine.
– Tenho certeza de que se lembra do
nosso primeiro encontro. Foi de
madrugada, na cozinha da minha casa na
Carolina do Norte. E sei que se recorda
do desastre em que aquilo acabou se
transformando – disse Carmine. – Eu não
esperava que alguém estivesse ali.
Derrubei meu suco de laranja e você
começou a limpar o chão, tentando ajudar
e eu… Ah, bem… Você sabe o que eu fiz.
Haven sorriu de um jeito triste ao se
lembrar. Na época, ele era um jovem tão
raivoso… Parecia que internamente
estava partido em pedaços. Carmine
ainda ostentava alguns ferimentos
profundos e algumas cicatrizes da época
em que se sentiu destruído, mas, apesar
disso, estava agora conseguindo se
manter firme. E era isso o que de fato
importava.
– O que você não sabe, Haven, é que
quando nós nos ajoelhamos como dois
idiotas naquela poça de suco, a única
coisa em que eu conseguia pensar era em
como você era linda. Como você é linda.
Você estava assustada e confusa, e sei que
não ajudei em nada, mas, lá no fundo,
você era apenas linda, Haven. Você
ganhou o meu coração desde a primeira
vez em que coloquei os olhos em você.
Lembro-me de que naquela mesma manhã
eu me peguei imaginando que você iria
complicar minha vida – ele fez uma pausa
e riu para si mesmo. – E complicou
mesmo. Tudo o que sabia, tudo em que
acreditava… desapareceu pela janela.
Você me virou do avesso e me fez sentir
vivo novamente. Você salvou minha vida,
mesmo que eu não percebesse na época
que ela precisasse ser salva. Pensei que
estivesse bem, que não necessitasse de
ninguém, mas eu estava errado, porque
preciso. Preciso muito de você, caralh…
Os olhos de Haven se arregalaram e o
padre Alberto prendeu a respiração ao
ouvir aquela última palavra. Percebendo
o que começara a pronunciar, Carmine
parou de falar e pensou: merda, eu
acabei de dizer um palavrão em pleno
altar e na cara do padre.
Haven sabia o que ele iria dizer antes
que a palavra escapasse completamente e
colocou a mão em seus lábios antes que
mais alguém escutasse. Ele olhou para ela
com cautela e pânico, mas Haven apenas
sorriu suavemente, demonstrando ao
noivo que não havia ficado incomodada.
Ele relaxou, sentindo-se aliviado. Então,
quando ela retirou a mão de sua boca,
automaticamente se inclinou para a frente
e a beijou. Ela retribuiu o beijo, abrindo
os lábios e soltando um gemido no
momento em que a língua dele encontrou
a dela.
– Ainda não, cara – sussurrou
Dominic, pegando no braço de Carmine e
puxando-o levemente. – Você está
atropelando as coisas.
O padre limpou a garganta e Carmine
soltou um suspiro exasperado.
– Desculpe, padre.
– Gostaria de terminar? – perguntou o
padre.
– Ah… Não – respondeu Carmine,
acenando negativamente a cabeça. – Acho
que já disse o suficiente.
– Muito bem, uma vez que é a intenção
de ambos se unirem em matrimônio, unam
as mãos direitas e declarem seus votos
perante Deus e Sua Igreja – disse o
padre, ansioso para terminar logo aquela
cerimônia. Carmine pegou a mão de
Haven, entrelaçando seus dedos nos dela
e apertando-os levemente.
– Carmine, você aceita Haven como
sua esposa e promete ser fiel a ela nos
momentos bons e ruins, na saúde e na
doença, amando-a e respeitando-a
durante todos os dias de sua vida?
– Sim.
– Haven, você aceita Carmine como
seu esposo e promete ser fiel a ele nos
momentos bons e ruins, na saúde e na
doença, amando-o e respeitando-o
durante todos os dias de sua vida?
– Sim.
– Ambos declararam sua intenção
perante a Igreja. Que Deus em sua
bondade fortaleça a decisão do casal e os
abençoe. E o que Deus uniu, nenhum
homem poderá separar.
Depois de ouvirem as palavras do
padre, eles trocaram alianças. A mão de
Haven tremia enquanto Carmine
deslizava a aliança de ouro em seu dedo,
aquela que a jovem sabia ter pertencido à
mãe dele. Tomada pela emoção, ela olhou
para o noivo no momento em que o
sacerdote os declarou marido e mulher.
– Agora você a beija – disse Dominic,
cutucando Carmine. Haven ergueu a
cabeça novamente e percebeu quando
Carmine olhou para o irmão antes de se
concentrar nela, com o rosto iluminado
pelo mais puro amor. Ele gentilmente
colocou a mão sob o queixo da esposa e
se inclinou para frente; os olhos dela se
fecharam e seus lábios se encontraram.
O beijo dele foi doce, mas carregado
de paixão… Uma paixão que, aliás, ela
estava determinada a sentir pelo resto de
sua vida.
Capítulo 47
– Apenas mais algumas.
Carmine tentou parar de se contorcer,
mas aquele terno o estava deixando
sufocado. Parecia que estavam parados
ali a horas, enquanto o fotógrafo tirava
um milhão de fotos, colocando-os em
todas as posições imagináveis para
garantir o melhor ângulo. O garoto fez o
que pôde para manter os olhos na câmera,
mas sua atenção era constantemente
atraída pela linda mulher ao seu lado.
– Relaxe – disse Haven em voz baixa,
sentindo o desconforto do marido.
– Estou tentando – ele murmurou.
– Todos sorrindo! – gritou o fotógrafo.
Carmine atendeu ao pedido, torcendo
para encerrar aquilo, então o profissional
tirou uma série de fotos de uma só vez. –
Pronto, isso foi para finalizar.
Carmine suspirou aliviado e
imediatamente soltou a gravata.
– Essa merda levou uma eternidade.
– Ah… Não foi assim tão ruim – disse
Haven, rindo. – Foram apenas uns vinte
minutos.
Carmine a pegou pelos quadris e ela
soltou um gritinho quando ele a puxou na
direção de seu corpo.
– Está redondamente enganada, Haven
DeMarco. Foi assim tão ruim, porque
durante esses vinte minutos eu não pude
fazer isto.
Ele se inclinou sobre ela e a beijou
profundamente. Tess soltou um grunhido e
se virou.
– Eu não quero ver isso.
– Então pare de olhar, caralho – ele
retrucou, afastando-se de Haven somente
o tempo suficiente para pronunciar
aquelas palavras e depois retomando o
beijo apaixonado.
– Bem, estamos entrando – disse
Dominic, dando um tapinha nas costas do
irmão. – Olha lá, hein. Não deixem todos
esperando por muito tempo.
Ambos ficaram de pé do lado de fora
por alguns instantes, se beijando,
enquanto todos os convidados entravam
no Luna Rossa para a recepção. Por fim,
ela se afastou do marido, tentando
recobrar o fôlego e com as bochechas
coradas.
– Talvez devêssemos entrar.
– Ah, eles que vão se foder – ele
retrucou, deixando uma trilha de beijos
desde o rosto da jovem até o pescoço. –
Vamos dar o fora daqui.
– Não podemos simplesmente dar o
fora, Carmine – ela disse. – Essas
pessoas estão aqui por nossa causa.
– E daí? – ele sussurrou. Ela riu,
afastando-se dele e o rapaz suspirou. –
Tá bom, você está certa. Precisamos
entrar.
– Não reclame – ela disse, agarrando a
mão dele. – Vai ser bem divertido.
– Claro, mas acho que nos
divertiríamos muito mais se estivéssemos
sozinhos nesse momento.
– Talvez – ela retrucou. – Mas haverá
muito tempo depois para isso.
– Ah, e eu mal posso esperar pelo
depois.
Haven começou a caminhar em direção
à porta, puxando-o pelo braço, e o garoto
só se moveu depois de resmungar. Eles se
depararam com aplausos no momento em
que pisaram no salão. Haven enrubesceu
e abaixou a cabeça; Carmine deu risada à
medida que os dois seguiam em direção à
mesa principal que fora preparada para
os noivos. Ela agradeceu a todos
enquanto ocupavam seus lugares e
aguardavam que o jantar fosse servido.
Os pratos foram colocados diante deles e,
em seguida, os garçons serviram os copos
com o conteúdo de garrafas de vidro
verdes. Carmine acenou a cabeça no
momento em que um líquido borbulhante
foi despejado em seu copo. Ele pegou o
copo e o levou até o nariz, fazendo uma
careta ao sentir o cheiro. Dominic, que
estava sentado bem ao lado, soltou uma
risada e balançou levemente a bebida que
trazia na mão.
– Nunca imaginei que um dia estaria no
casamento do meu brother e bebendo
suco de uva com gás – ele disse,
acenando negativamente a cabeça.
– Também temos chá de jasmim com
gás – completou Haven –, além de outros
tipos de refrigerantes que imitam vinho.
Eles até se parecem com champanhe, mas
não têm álcool.
Carmine suspirou fundo e colocou o
copo na mesa sem beber, e também sem
apreciar o rumo que aquela conversa
estava tomando. Para os convidados,
Corrado oferecera um open bar. Aquele
fora seu presente para o casal, mas
Carmine ainda estava proibido de se
aproximar de bebidas alcoólicas no Luna
Rossa.
A discussão foi encerrada assim que
todos receberam seus pratos. Carmine
pegou seu garfo e começou a mexer na
comida, mas sentiu o estômago
embrulhar. As palmas das mãos estavam
suadas e suas pernas logo começaram a
tremer debaixo da mesa. Ele se sentia
visivelmente desconfortável.
A compulsão pela bebida ainda o
perseguia. Ele sentia falta do álcool e seu
organismo parecia gritar por pelo menos
um gole para se manter saciado. Ele
quase podia sentir a queimação na
garganta, precisando de um pouco
daquele calor em seu peito só para
reviver os velhos tempos… Só o
suficiente para protegê-lo de um ataque
de pânico.
Mas ele sabia muito bem, e por
experiência própria, que aquilo não
funcionava em seu caso. Embora seu
corpo pedisse apenas por um gole, aquilo
jamais se revelava o suficiente, e então
ele não conseguiria mais parar. Um gole
se transformava em dois e quando se
dava conta a garrafa já estava vazia, o
que, por sua vez, o fazia acordar no dia
seguinte com uma dor de cabeça
insuportável, um chefe extremamente
irritado e nenhuma lembrança do que
acontecera na noite anterior.
Com certeza, não desejava passar por
tudo aquilo mais uma vez.
Haven esticou o braço sob a mesa e
segurou a coxa do marido, forçando-o a
parar. Ele a observou com cautela e a
jovem sorriu, sem qualquer sinal de
irritação em seu rosto. Em geral, ela
conseguia perceber quando ele estava em
conflito.
– Você está bem? – perguntou.
– Sim, eu ficarei bem – ele respondeu.
A tensão começou a se dissipar no
momento em que ele olhou para a esposa.
O rosto dela brilhava, e ao perceber a
felicidade nos olhos dela, o peito dele se
encheu não apenas de emoção, mas de
expectativa de que ela vislumbrasse o
mesmo brilho no rosto dele. Ela
significava tudo para Carmine. Seu amor
por ela era mais forte que qualquer outra
coisa, mais potente que qualquer bebida
ou droga. Ela representava seu mundo,
sua vida complicada e, agora, era sua
mulher.
Sua esposa… Quem teria imaginado
que Carmine DeMarco um dia tivesse
uma esposa?
– Você deveria jantar – ela disse em
voz baixa, com o olhar mais travesso ao
voltar-se para o prato ainda cheio. –
Precisará de energia mais tarde.
Ele rosnou ao ouvir a insinuação e
começou a cortar a fatia de carne em seu
prato. Parecia ser de origem suína, mas
ele não tinha certeza. Celia se
responsabilizara pelo bufê, uma vez que
nem ele nem Haven se importavam muito
com as formalidades desse tipo de
recepção. Para ele, bastaria pedir umas
pizzas e deixar que cada um ali se
servisse, porém, isso certamente não
funcionaria com o grupo ao qual
pertenciam.
– Não se preocupe, Haven. Terei toda
a energia do mundo para você.
– Ah, mas eu não estou preocupada –
ela disse, antes de levar uma garfada à
boca. – Mas você deveria estar.
Ele riu quando ela começou a mastigar,
já se sentindo bem melhor. A tremedeira
em geral era passageira, embora os
pensamentos que envolviam o vício se
mantivessem arraigados em sua mente.
Carmine estava tomando refrigerante
quando Dominic ficou de pé e bateu com
o garfo em sua taça, atraindo a atenção de
todos.
– Bem, acho que todos aqui sabem
quem eu sou, mas, de qualquer modo, meu
nome é Dominic. Sou o irmão mais velho,
e também mais esperto, de Carmine,
embora ele jamais tenha admitido. Ele,
entretanto, teve o bom senso de admitir
que eu fosse a pessoa ideal para ser seu
padrinho e, como tal, é minha
responsabilidade me colocar de pé e
tentar deixá-lo o mais envergonhado
possível. Há tantas coisas que eu poderia
dizer a respeito de Carmine, tantas
palavras que poderiam ser usadas para
descrevê-lo que é quase impossível saber
por onde começar. Ele é teimoso,
imprudente, enjoado, temperamental,
instável, rápido em julgar as situações e
mais rápido ainda para reagir. Também o
considero um sujeito muito feio, mas essa
é apenas uma opinião pessoal.
– Vá se foder – Carmine retrucou em
voz baixa, passando a mão nos cabelos.
– Ah, eu esqueci de mencionar que ele
tem a boca suja, algo que todos vocês
puderam testemunhar esta noite. É bem
provável que o padre ainda esteja
exorcizando a igreja – ele disse com bom
humor. – Porém existem algumas
características menos conhecidas de
Carmine: ele é um ferrenho defensor e
protetor das pessoas que ama, e também é
extremamente determinado em relação
àquilo em que acredita. Com frequência,
passa a imagem de um indivíduo egoísta,
entretanto, é bem provável que ele seja a
pessoa mais abnegada que eu conheça.
– E aqui temos Haven, que com certeza
deve ser a pessoa mais paciente do
universo para conseguir lidar com
Carmine. Aliás, no início, os dois
pareciam ser completamente opostos: de
um lado, a menina tímida e ingênua, que a
tudo experimentava pela primeira vez; do
outro, o cara rabugento, descuidado e que
parecia estar de saco cheio de tudo. Não
acho que nenhum de nós pudesse ter
previsto que duas pessoas tão diferentes
em tudo seriam capazes de se encontrar e
chegar a um meio-termo, mas foi
exatamente o que aconteceu. Eles
conseguiram oferecer equilíbrio um ou
outro e, juntos, foram capazes de
encontrar o amor. Sei que parece brega,
como citar uma frase de algum filme da
Julia Roberts ou algo do tipo, mas é a
mais pura verdade: o que existe entre eles
é raro.
Carmine olhou para Haven e ela sorriu,
estendendo a mão sob a mesa para pegar
a dele enquanto Dominic continuava.
– Não sei se todos aqui sabem disso,
mas ainda no ensino médio meu
irmãozinho aqui era um ótimo jogador de
futebol – ele disse. – Não quero parecer
clichê, mas algo que aprendi com o meu
casamento é que relacionamentos são
bem parecidos a partidas de futebol, e de
várias maneiras. Trata-se de um esporte
de equipe e, para alcançar o sucesso, é
preciso trabalhar juntos. Sempre haverá
altos e baixos, jogadas perfeitas e
decisões ruins, mas se estiver prestes a
entrar em campo, é preciso estar
preparado para o jogo. Grandes erros o
colocam no banco e, dependendo da
merda que você tiver feito, isso poderá
até lhe custar uma fortuna antes que possa
retornar ao campo. Sempre haverá rivais
pela frente, pessoas tentando derrubá-lo e
tirá-lo do jogo, mas, se tiver sorte,
acabará com uma bela aliança no dedo
para compensar o trabalho duro. Mas isso
não acaba aí, vocês sabem. Na verdade é
nesse momento que a luta começa, porque
pelo resto de sua vida você terá de
provar a todos que você, em meio a tantas
outras pessoas, mereceu receber aquela
aliança.
Dominic fez uma pausa, como se
falasse consigo mesmo.
– Mas esses não são os principais
elementos na comparação entre
relacionamentos e futebol. A despeito do
que você fizer e do que acontecer, o
objetivo de ambos é marcar tantos gols
quanto for possível. Sem gols, tudo será
apenas uma grande perda de tempo.
Carmine deu risada no momento em
que Tess ergueu o guardanapo para
Dominic. Ele sorriu e atirou um beijinho
para ela antes de voltar a falar.
– Acho que devo terminar. Minha
digníssima esposa já está acenando a
bandeira amarela – ele brincou, erguendo
o copo. – E já que é assim, em nome de
minha esposa, Tess, e também em meu
nome, gostaria de fazer um brinde ao
casal: a Carmine, que não poderia ter
escolhido melhor, e a Haven, que,
francamente, não poderia ter escolhido
pior.
Todos ergueram seus copos e
brindaram no momento em que Carmine e
Haven se beijaram. Nesse momento, o DJ
interrompeu, anunciando a primeira dança
do casal. Haven entrou em pânico quando
o marido tirou o casaco. Ela hesitou por
um momento antes de se levantar e deixar
que ele a levasse até o centro da pista.
Ele sabia que ela não se sentia
confortável em ser o centro das atenções,
mas a jovem tentou ao máximo não
permitir que seu nervosismo se tornasse
visível.
Ele a puxou na direção dele quando a
música “18th Floor Balcony” começou a
tocar. Carmine colocou as mãos no
quadril de Haven e ambos começaram a
dançar ao ritmo da melodia. Ela, por sua
vez, colocou os braços ao redor dos
ombros dele e logo começou a brincar
com os cachos que se formavam no
pescoço do rapaz, enquanto fixava seus
olhos nos dele. Ele podia ver as lágrimas
que ela lutava para segurar; os olhos dela
brilhavam sob a luz.
– Eu te amo – ele disse em voz baixa.
– Sei que ama – ela retrucou, abrindo
um sorriso. – E eu também te amo.
– Sinto muito por estragar a cerimônia.
– Não seja bobo. Você não estragou
nada.
– Soltei um palavrão na cara do padre
Alberto, Haven – ele disse. – Quebrei o
terceiro mandamento. Ou talvez tenha
sido o segundo…
– Foi o terceiro – ela disse. – E quer
saber? Não foi algo tão grave assim.
Afinal, esse não foi o primeiro
mandamento que você quebrou e tenho
certeza de que tampouco será o último.
– Isso deveria me fazer sentir melhor?
– ele perguntou, rindo quando ergueu os
ombros de modo casual. – Bom, pelo
menos foi só esse que eu quebrei de pé no
meio de uma igreja.
– Verdade, mas podia ter sido pior –
ela retrucou. – Pelo menos você
conseguiu passar a cerimônia inteira sem
usar o verbo “foder” uma única vez.
– Só pela segunda vez em toda a minha
vida – ele murmurou.
– Exatamente, portanto você deveria se
sentir orgulhoso. É um grande feito para
você.
– Engraçadinha – ele disse com
sarcasmo. – Mas eu bem que queria ter
feito a merda toda direito.
– Você fez – ela insistiu. – Digamos
que você tenha sido absolutamente você
mesmo, Carmine. E eu não teria aceitado
que fosse de qualquer outra forma.
A música terminou e todos seguiram
para a pista de dança. Dominic
imediatamente puxou Haven para que ela
dançasse com ele, e Dia, sem a menor
hesitação, tomou seu lugar à frente de
Carmine, curtindo com o amigo as duas
músicas seguintes. Na terceira, o garoto
puxou sua esposa de volta e ambos
dançaram juntos até a hora de cortar o
bolo. O evento se transformou num
completo desastre, à medida que todos
começaram a atirar porções do glacê uns
nos outros. No final, havia mais bolo na
cara das pessoas que em seus estômagos,
mas todos riram e se divertiram.
Depois que se limparam da melhor
maneira possível, Carmine se sentou e
Haven se preparou para atirar o buquê.
Dominic se sentou ao lado de Carmine,
ainda com o prato de bolo na mão.
– Sério, cara, um casamento católico?
– perguntou Dominic com a boca cheia. –
Você pelo menos se confessou antes da
cerimônia? Aposto que isso levou horas.
Carmine lhe deu um cutucão e fez com
que o bolo caísse do garfo do irmão.
– Nós discutimos a possibilidade de
fugir para nos casar, mas… não parecia
certo. Ela sonhou com algo assim a vida
inteira. Eu não poderia permitir que a
lembrança do dia mais importante da vida
dela se resumisse a um cover de Elvis
gordo.
– É, faz sentido – disse Dominic. –
Mas imaginei que vocês fossem se casar
como o papai e a mamãe… Com uma
cerimônia pequena e íntima.
– Também pensamos nisso – retrucou
Carmine. – Mas a ideia de fazermos um
casamento grandioso foi minha. Nada em
relação a nós é tradicional e eu queria
que pelo menos o casamento fosse.
Queria que tivéssemos pelo menos essa
lembrança, para que pudéssemos dizer
que fizemos tudo certo. E, para ser bem
honesto, queria que todo mundo
testemunhasse esse momento. Ela passou
a vida escondida, achando que as pessoas
sentiam vergonha dela e que não merecia
nada. Eu queria que ela fosse vista por
todos.
Dominic sorriu, achando algo
engraçado. Carmine passou a mão pelos
cabelos de um jeito ansioso.
– Tá, eu sei que provavelmente isso
soa bastante estúpido…
– Não, isso soa apenas, eu sei lá…
Doce? Acho que quase tão doce como o
próprio bolo.
De repente, alguém limpou a garganta
logo atrás de Carmine. Ele se virou e
ficou petrificado ao ver Corrado. Ele não
ouviu quando o tio se aproximou, o que
não era nenhuma surpresa, considerando
que o homem tinha o dom de chegar sem
ser notado.
– Senhor?
– Preciso vê-lo em meu escritório,
Carmine – ele disse, com o tom de voz
tão frio quanto a expressão em seu rosto.
Ele parecia rígido e tenso.
– Agora? – o jovem perguntou sem
acreditar. – Não pode esperar?
– Não.
Corrado seguiu na direção do
escritório, deixando Carmine nervoso
sentado ao lado do irmão. Ele balançou a
cadeira algumas vezes, tentando adiar ao
máximo aquele encontro, antes de se
levantar e ir atrás do tio. Ao chegar ao
escritório, viu Corrado sentado atrás de
sua mesa. Carmine entrou e fechou a
porta.
Ele esperou que Corrado o mandasse
se sentar, o que não aconteceu.
– As palavras de um homem significam
tanto quanto o sangue que corre em suas
veias – disse Corrado. – Esta é uma velha
expressão siciliana que seu avô
costumava usar. Suas palavras são a sua
redenção. O que um homem diz, aquilo
pelo qual ele jura, pesa tanto quanto ele
próprio e suas ações.
Carmine continuou encarando o tio e se
mantendo firme, apesar do caos que
sentia internamente. Viu quando seu tio
abriu uma gaveta e tirou de dentro dela
dois objetos: uma pistola pequena calibre
.22 e uma grande faca serrilhada, com
uma lâmina de uns quinze centímetros.
Colocou ambos sobre a escrivaninha e
fechou a gaveta.
– Há dois anos você deu a sua palavra
– ele continuou. – Em troca de ajuda,
abriu mão de sua liberdade. Prometeu
lealdade e fidelidade, algo que levo
muito a sério. Quando me entreguei a essa
vida, há várias décadas, eu sabia que
valeria enquanto eu respirasse. Alguns
homens recebem isso de mão beijada,
como Vincent, mas, no meu caso,
Carmine, tive de lutar muito para provar
meu valor. Antonio DeMarco me
transformou em quem sou hoje. Ele me
fez provar a ele minha dedicação, provar
que eu queria fazer parte disso, e foi
exatamente o que eu fiz. Gosto de pensar
que é o motivo por eu ainda estar vivo,
enquanto seu pai já não está entre nós.
Um riso leve escapou dos lábios de
Corrado. Para Carmine, aquilo soou
como uma mescla de divertimento e
cinismo.
– Levou apenas alguns meses para que
seu avô me desse a mão de sua única
filha em casamento, mas foram anos até
que ele confiasse em mim a ponto de
permitir que eu entrasse na organização.
Porque, para homens como nós, ela vem
em primeiro lugar. La Cosa Nostra
precede a família, os amigos e qualquer
outra coisa.
Pegando a faca sobre a escrivaninha,
Corrado olhou intensamente para o
objeto, deslizando os dedos com cuidado
pela lâmina afiada.
– Antes de nós lhe darmos as boas-
vindas, primeiro é preciso que sangre por
nós. Nos dias de hoje trata-se apenas de
um pequeno furo no dedo indicador;
somente uma gota de sangue num pedaço
de papel. É indolor, não deixa cicatrizes,
nenhuma marca que identifique a pessoa
como um homem de honra. Mas na minha
época a coisa era bem real. Sabia disso,
Carmine?
O jovem engoliu em seco, tentando
aplacar a dor que sentia na garganta.
– Sim, senhor.
– Então você derramou seu sangue para
Salvatore?
– Não – respondeu o rapaz. – Tudo o
que ele queria era a minha palavra.
Corrado continuou a olhar para a faca.
– Dê-me sua mão.
Por um segundo, Carmine ficou pálido
e assustado; mesmo assim, ele não
demonstrou qualquer hesitação em seus
passos, sabendo que não poderia fazê-lo.
Estendeu o braço direito para Corrado,
que o segurou com firmeza e puxou o
jovem com violência, colocando a mão
dele sobre a mesa.
– As palavras de um homem significam
tanto quanto o sangue que corre em suas
veias – repetiu Corrado. – Sal queria
apenas sua palavra, mas eu exijo seu
sangue.
Carmine fechou os olhos ao sentir a
lâmina da faca em sua pele. Cerrando os
dentes, ele se forçou a permanecer calado
enquanto a faca serrilhada cortava sua
carne. Lentamente Corrado abriu um talho
na palma direita do rapaz, que sentiu uma
dor indescritível e uma queimação no
momento em que o corte se abriu.
Quando Corrado terminou, Carmine
abriu os olhos novamente e relaxou, mas
o fato é que ele não esperou o suficiente.
Corrado pegou a mão dele com ainda
mais força e violentamente a fechou,
cerrando o punho do rapaz. Uma dor
insuportável se espalhou pelo braço de
Carmine e ele não conseguiu mais segurar
o gemido que forçou caminho pelo seu
peito e escapou de sua boca. Lágrimas de
agonia se formaram nos olhos do jovem,
mas nenhuma delas chegou a escorrer
pela face.
– Você me pediu para que eu levasse
Haven até o altar, e eu concordei – disse
Corrado, ainda segurando a mão de
Carmine. – Porém, da minha parte, eu não
estava me referindo somente a
acompanhá-la pelo corredor da igreja.
Você a quer? Você a ama? Você se dispôs
a sangrar por ela, e agora… ela é sua.
Corrado então o empurrou para longe
da escrivaninha, sentou-se, pegou um
pedaço de pano e limpou cuidadosamente
o sangue de sua faca. Carmine levou a
mão ferida até o peito, mantendo-a
fechada.
Depois que a faca estava brilhando,
Corrado a recolocou na gaveta.
– Agora, eu estou lhe entregando a
garota, mas saiba que não poderá ter a
organização – Corrado continuou. – Você
jamais se provará digno de tal juramento,
e nada do que você faça mudará meu
modo de pensar a esse respeito. Você
jamais será um homem de honra. Não foi
talhado para essa vida, portanto, eu me
recuso terminantemente a, um dia,
entregar-lhe o comando da organização,
como Vincent o recebeu das mãos de seu
avô.
Carmine continuou encarando o tio à
medida que aquelas palavras pouco a
pouco entravam em sua cabeça. Ele não
fazia ideia do que responder. Ele sequer
sabia se deveria responder. As palavras
de Corrado não pareceram cruéis,
tampouco havia qualquer sinal de raiva
em sua voz. Elas foram pronunciadas sem
qualquer emoção e de maneira casual. A
coisa era simples: Carmine jamais seria
um deles, e aquilo era um fato.
– No que me diz respeito, sua dívida
pessoal com La Cosa Nostra está quitada
– completou Corrado. – O que significa
que você não nos deve mais nada.
Carmine piscou os olhos rapidamente.
– Isso quer dizer que…
Corrado acenou a mão com certo
desprezo.
– Quer dizer que você está livre para
ir.
Livre. Aquela palavra ecoou na mente
de Carmine com tamanho fervor que ele
até se esqueceu do corte profundo e
latejante em sua mão.
– Ir para onde?
– Para onde você quiser, oras bolas –
retrucou o tio. – Mas sugiro que você
pergunte a Haven antes de decidir. Algo
me diz que ela não o perdoaria com a
mesma facilidade na segunda vez.
Completamente atônito e boquiaberto,
tudo o que Carmine conseguiu fazer foi
piscar e acenar a cabeça, concordando
com o tio.
Corrado levantou-se mais uma vez e
deu a volta na mesa para encarar seu
sobrinho. Pegando o braço do rapaz,
abriu a mão ferida e pressionou o pedaço
de pano contra a ferida. O sangramento
diminuíra, mas a dor ainda era muito
forte. Depois de limpar o ferimento,
Corrado o cobriu com uma bandagem.
– Agora caia fora daqui. Saia.
Carmine se virou para sair, mas parou.
Aquelas palavras lavaram sua alma,
confortando a dor que sentia dentro de si.
Sair.
– Não quero fugir de mais nada –
Haven lhe dissera no passado. – …Quero
poder deixar os problemas pra lá […] e
passear em algum lugar junto com você,
de mãos dadas.
Sem pensar duas vezes, Carmine se
atirou contra Corrado, abraçando o tio
com firmeza. Corrado permaneceu imóvel
ao ser pego de surpresa com aquela
demonstração de afeto. O contato físico
se desfez em questão de segundos.
– Posso te perguntar uma coisa, tio
Corrado? – disse Carmine ao chegar à
porta.
– Sim.
Carmine fez um gesto na direção da
pistola calibre .22 sobre a mesa.
– E aquela arma, em que situação ela
seria usada?
A resposta foi imediata.
– No caso de você hesitar.
Carmine franziu o cenho.
– Você teria mesmo atirado em mim
caso eu hesitasse? – perguntou, pausando
por uns dois segundos antes de acenar
negativamente a cabeça, sem dar ao tio a
chance de responder. – Sabe de uma
coisa? Não responda. Eu não quero saber
a porra da resposta.
O jovem abriu a porta do escritório e
saiu, deixando Corrado para trás em meio
a gargalhadas.

Corrado sentou-se novamente depois


que o sobrinho saiu e ficou olhando para
a pistola, que, aliás, sequer estava
carregada.
Recolocou a arma na gaveta e, ao fazê-
lo, acidentalmente empurrou a fita VHS
que também estava ali. Ele havia quase se
esquecido de sua existência, mas não das
palavras ali contidas. Corrado ainda
conseguia ouvir a voz de Frankie e se
lembrar de seu rosto hesitante enquanto
relatava os fatos.

Na primavera de 1973, Carlo ofereceu


a Ivan Volkov trinta mil dólares para
que matasse o cunhado de Salvatore.
Mas o russo não fora o primeiro a ser
procurado para o trabalho. Seamus
O’Bannon já havia sido consultado, mas
não queria ter nada a ver com a morte
de toda uma família.
Carlo e eu… nós conversamos com
Ivan. Não achávamos que ele fosse
realmente fazer o serviço e estávamos
certos. Quando ele apareceu na casa,
viu que Federica e a bebê estavam lá.
Ele então foi embora, talvez para
retornar depois com um novo plano.
Carlo, porém, achava que já havíamos
ido longe demais para recuar.
Ele os matou. Matou os dois. Em
seguida, se dirigiu ao quarto da criança.
Ela estava dormindo, e ele apontou a
arma para a cabecinha dela. Eu não
pude permitir que ele o fizesse. Eu a
peguei no colo, em vez disso. Eu sabia
que não deveria haver nenhuma
testemunha, mas que tipo de testemunha
seria um bebê?
Então eu a levei para Sal, e tudo o
que ele disse foi: “Não me importa o
que vai acontecer com essa criança,
desde que não tenha nunca mais de
olhar para a cara dela”. Entretanto, tive
de encarar aquele rosto, e também de
olhar para o rosto da filha dela, mas
não consigo mais fazer isso. Toda vez
que as vejo sinto toda a culpa retornar.
Quero me livrar de ambas. Quero não
ter mais de olhar para as duas, nunca
mais, mas algo me impede de dar um fim
nisso todas as vezes que tento.
Se elas desaparecerem, ninguém
jamais saberá quem elas são. Ninguém
nunca saberá o que fizemos… O que ele
fez. Mas elas são a prova. E, um dia, de
algum modo, essa história irá assombrá-
lo. E acho que ele também sabe disso.
Então, imagino que eu serei o
próximo a morrer.
Corrado saiu do escritório alguns
minutos mais tarde, fazendo uma pausa ao
chegar no piso principal do clube. O
lugar ainda estava lotado; os convidados
estavam dançando, se divertindo e
bebendo. Metade sequer reparou que os
noivos haviam ido embora, preocupados
demais com os próprios umbigos para
olhar ao redor.
Aquilo era algo ao qual Corrado se
acostumara a ver nas pessoas: egoísmo.
Elas pensavam somente em si mesmas e
em seus desejos; o ego daqueles
indivíduos era grande demais para que
eles enxergassem algo além de si
mesmos. O próprio Corrado não era
inocente daquele pecado. Por muitos
anos, vira tudo em preto e branco. As
coisas tinham de ser do jeito dele ou
simplesmente não ser de jeito algum,
afinal, o jeito dele sempre estava certo.
Contudo, em algum momento durante o
caminho algo mudou. Talvez sua própria
quase-morte tivesse causado aquilo, ou
quem sabe a morte que ele causara a
alguém. O fato é que um dia ele abriu os
olhos e finalmente percebeu as camadas
de cinza que se formavam entre o branco
e o preto. Foi algo sutil, mas sensível, e
depois que ele o viu tornou-se impossível
deixar de enxergá-lo.
Os outros, entretanto, jamais
perceberiam. Eles nunca
compreenderiam. Todos pareciam
androides, montados em série, com cada
peça em seu devido lugar; não havia
naquelas pessoas consciência, remorso
ou culpa. Com o tempo eles deixaram de
ver as coisas que realmente importavam.
E, sem perceber, o mesmo acontecera a
Corrado.
Ele caminhou pelo clube e pegou uma
rosa vermelha de caule longo de um dos
vasos decorativos. Segurando-a na mão,
ele seguiu na direção da esposa e a
entregou a ela.
– Para você, belissima.
Celia arregalou os olhos e pegou a
rosa das mãos dele.
– Uau, e o que foi que eu fiz para
merecer isso?
– Nada – ele respondeu. Em seguida,
Corrado fez uma careta e completou. – E
tudo.
Um sorriso surgiu no rosto dela quando
pegou no braço do marido, levando-o até
o centro da pista de dança. Ele fez apenas
um movimento para o DJ e o tom vibrante
do baixo foi substituído pela versão de
Sinatra para Luna Rossa.
Corrado segurou os quadris da esposa
com firmeza e a puxou para perto dele.
Celia colocou os braços ao redor do
pescoço do marido, segurando a rosa nas
costas dele. Eles dançaram ao ritmo da
música, com os olhos fixos um no outro.
– Então, Carmine e Haven saíram
daqui como um relâmpago – ela disse.
– É mesmo?
– Sim. Carmine parecia estar
machucado. Eu perguntei o que havia
acontecido, mas ele disse que não
precisava me preocupar. Parecia tão
feliz, apesar disso. Eu diria até mesmo
que estava em êxtase.
– Ah…
– Você sabe alguma coisa sobre isso?
– Talvez.
Ela continuou encarando o marido; seu
rosto repleto de dúvidas e, seus olhos, de
perguntas. Mas ela não o questionaria e
ele bem sabia disso. Ele apreciava o
autocontrole de sua esposa. Mas, daquela
vez, achou que ela merecia uma resposta.
Inclinando-se para frente ele a beijou
suavemente, borrando os próprios lábios
secos com o batom vermelho de Celia.
Ela riu, limpando a boca do marido com
a mão, e ele sussurrou em seu ouvido.
– Eu não fiz nada além de dar uma
ajudinha a ele.
Capítulo 48
Mais tarde naquela mesma noite, um
chamado para um incêndio de grandes
proporções foi feito na central de
emergências. Os caminhões de bombeiro
se deslocaram rapidamente para o
endereço, tentando combater as labaredas
que engoliam o prédio, mas sem sucesso.
O fogo destruiu completamente o famoso
clube Luna Rossa.
A fumaça escura ainda podia ser vista
do outro lado da cidade mesmo ao
amanhecer, mas Corrado nem se deu
conta. Ele permaneceu em casa, mais
precisamente no quarto, com os braços
fortes ao redor de sua esposa. Pela
primeira vez em muitos anos ele e Celia
haviam dormido até mais tarde.
Somente quando a polícia bateu à porta
dos Moretti, Corrado ficou sabendo o que
ocorrera: a obra de toda a sua vida havia
sido totalmente destruída, roubada dele
por incendiários. A polícia prometeu
investigar o caso com cuidado, mas
Corrado não precisava disso. Ele soube
no mesmo instante quem havia ordenado
o trabalho.
Enfim, depois de tanto tempo, os
irlandeses haviam conseguido sua tão
desejada revanche. Se o comando da
organização estivesse nas mãos de outra
pessoa, uma guerra sem precedentes teria
eclodido em Chicago, demolindo a
Cidade dos Ventos enquanto as diferentes
facções caçavam uma à outra,
determinadas a aniquilar o adversário.
Mas Corrado era mais esperto que isso.
Depois de alguns trabalhos mal
executados e de uma tentativa de
assassinato frustrada contra o chefe da
Cosa Nostra, a rixa entre italianos e
irlandeses terminou rapidamente com um
verdadeiro massacre em um clube de
jogos comandado por O’Bannon. Um
grande número de homens invadiu o local
numa tarde, desarmando e matando todos
os jogadores, um por um. Os irlandeses
jamais ficaram sabendo o que os atingira.
Para evitar problemas e, talvez para
dar o troco na mesma moeda, os homens
de Corrado atearam fogo no prédio antes
de escaparem.
A mídia batizou o atentado de
Massacre do Dia de São Valentino II,
embora dessa vez o fato tivesse ocorrido
no outono. No dia seguinte, a manchete na
primeira página do jornal dizia: SUPOSTO
CHEFÃO DA MÁFIA LEVADO PARA
INTERROGATÓRIO. Todavia, já no dia
seguinte outra manchete: ASSASSINO DE AÇO
SE LIVRA MAIS UMA VEZ. Todo mundo sabia
que Corrado estava por trás daquilo, mas
seu álibi era sólido como uma rocha, algo
do qual ninguém poderia duvidar: ele e a
esposa estavam justamente se reunindo
com os engenheiros e finalizando os
planos para a reconstrução do Luna
Rossa.
Aliás, aqueles não eram os únicos
planos em andamento. Enquanto tudo isso
acontecia, Haven e Carmine estavam do
outro lado do país, em total segurança, na
pequena cidade fantasma de Blackburn,
no local onde no passado existia o rancho
dos Antonelli, o mesmo que Corrado
destruíra de propósito. A estrutura de uma
nova construção já era visível. Idealizada
e desenhada a partir do zero, o prédio um
dia abrigaria o primeiro centro oficial
Safe Haven.
– Ao todo, quero construir 33 centros
iguais a esse – Haven teria dito. – Um
lugar para pessoas como eu, ao qual elas
possam recorrer para recomeçarem suas
vidas. Quando conseguirem escapar,
quero que elas tenham um lugar para ir.
Quero que saibam que não estarão
sozinhas.
Dez anos depois
Epílogo
Era possível escutar o barulho das
folhas secas e dos galhos se quebrando
conforme a pequena garotinha corria por
entre as árvores. Com os pés descalços e
sujos, ela pisava no solo frio. A grama
fazia cócegas ao se infiltrar por entre os
dedinhos dos pés, mas ela se mantinha
séria e não ousava rir.
Não, o riso seria totalmente
inapropriado. Principalmente ali e, em
especial, naquele momento.
Mantendo a cabeça baixa e os olhos
fixos no chão irregular, ela seguia por
uma trilha que serpenteava por entre as
árvores. Era possível ouvir os passos
pesados que a seguiam e também sentir o
par de olhos que a fustigavam por trás.
Aquilo deixava seus músculos tensos e a
menina cerrava os pequenos punhos
enquanto corria. Com grande
regularidade, seu corpinho frágil
ostentava pequenos cortes e arranhões, e
os mais recentes adornavam as palmas de
suas mãos. Elas queimavam. A pele
estava marcada e gotas de sangue
pingavam da superfície suja.
– Ai!
Ela gritou, finalmente se livrando das
árvores, alcançando uma grande clareira
e se deparando com os últimos raios de
sol que brilhavam sobre aquela região da
Carolina do Norte. Seus pés de repente se
moveram ainda mais rápido, levando-a
para longe da proteção da floresta, mas
ela não foi rápida o suficiente.
Uma mão pesada agarrou seu ombro
por trás, interrompendo imediatamente
seus movimentos.
– Ora, ora, ora, aonde acha que está
indo, garotinha?
– Uh-ho.
A menina ergueu os ombros o mais que
conseguiu. Aonde estava indo? Não
sabia. Não era como se fosse realmente
capaz de escapar dele.
Ele soltou um riso seco diante da
boquinha calada.
– Querida, olhe quem eu encontrei.
A mulher se virou sem sair do lugar
onde estava no jardim, com o rosto em
pânico e as mãos colocadas sobre a
barriga. Era como se carregasse uma
melancia debaixo da blusa rosa. A
garotinha, entretanto, sabia que se tratava
de um bebê. Seu pai já havia lhe contado.
Um irmãozinho cujo nome seria Nicholas,
mas, secretamente, ela esperava que eles
fossem bonzinhos e lhe dessem uma
irmãzinha em vez de um irmãozinho.
Mas “bonzinhos” não era exatamente a
palavra que a menina usaria para
descrever os dois. Não, eles não estavam
nem um pouquinho felizes com a
jovenzinha naquele momento. E, quer
saber, seria mesmo um irmão e pronto.
– Eca! – disse a mãe soltando um
profundo suspiro que ecoou por toda a
clareira, deixando a todos aliviados. –
Onde ela estava?
– Na floresta – ele respondeu, ainda
mantendo-a presa pelo ombro. – Estava
escalando a porra de uma árvore gigante,
como sempre. E, pra variar um pouco,
também despencou de cima da merda.
Tem sorte de não ter quebrado o pescoço,
essa danadinha.
A mulher acenou com a cabeça,
exasperada.
– Bem, mas não posso dizer que esteja
surpresa, não é? Afinal, ela é sua filha.
Em poucos segundos, a mão pesada
desapareceu do ombro da menina. O pai
deu a volta por trás dela carregando nas
mãos um par de Nikes cor-de-rosa e
seguiu em direção à casa, parando apenas
para dar um beijo na esposa.
A menina havia descartado os tênis no
meio da floresta enquanto corria pela
trilha. Ela preferia os pés descalços, e
não conseguia suportar a ideia de se
sentir restrita, limitada. Ela gostava de
ser livre, correr, pular, brincar, escalar
árvores, mesmo que seu pai já lhe tivesse
alertado de todos os perigos.
Os três costumavam visitar Durante
todos os verões, desde que a criança era
apenas um bebê, embora ela própria não
se recordasse dos primeiros anos. Em
geral, o tio Dominic e a tia Tess também
estavam lá com seu primo Vinnie, mas
daquela vez o casal havia levado o
menino para um acampamento de futebol,
então só viriam depois.
Quem também estava em Durante
naquela ocasião era tia Dia, junto de sua
nova namorada. Elas sempre costumavam
visitá-los nessa época, mas daquela vez
estavam hospedadas na casa de outra
família. Portanto, até que os demais
chegassem, seriam apenas os três na
grande casa antiga de três andares: o pai,
a mãe e a menina.
A garotinha achava legal não ter de
dividir nada com ninguém, mas a falta de
caos coletivo só fazia com que ela se
metesse em mais enrascadas sozinha.
Mesmo depois que o pai a soltou, a
menina continuou parada no mesmo lugar
no jardim, esperando enquanto a mãe se
aproximava. Ela girava a ponta do pé na
terra, escavando um buraquinho e
tentando se distrair, mas não conseguiu
segurar o riso que escapou de seus lábios
naquele momento.
– Ops.
– O que é tão engraçado? – perguntou
sua mãe, agachando-se diante da menina.
Ela deu de ombros de novo, com a
cabeça ainda baixa, e sussurrou:
– Isso faz cócegas, mamãe.
O fato é que Maura Miranda DeMarco
somente podia ser descrita como um
pequeno furacão; uma bola de pura
energia que não podia ser domesticada.
Ela era pequena, menor que as demais
garotinhas de sete anos, o que não a
impedia de nada. Ela conseguia pular
qualquer cerca, escalar qualquer
obstáculo e resolver qualquer problema
do seu jeito. Era uma combinação
perfeita dos pais: abrigava, ao mesmo
tempo, a personalidade ousada do pai e o
exterior forte de sua mãe. Ela realmente
se provou uma força da natureza, desde o
dia em que nasceu.
Sua aparência, entretanto, contradizia
seu jeito fogoso e temperamental. Os
cachos longos de cabelos escuros, uma
característica da mãe, emolduravam
aquele rostinho ornamentado por um
lindo par de grandes olhos verdes, algo
que herdara do pai. A pele da garotinha
era bem clara e suas bochechas estavam
sempre rosadas. O narizinho ostentava
sardas. Ela mais parecia uma boneca de
porcelana, frágil e vulnerável, quando na
verdade não era nada daquilo. A menina
era durona como pregos de aço. Se
perguntasse ao pai, ele diria que ela viera
ao mundo berrando e nunca parara desde
então.
Geralmente arrojada e irrefreável,
Maura se mostrou estranhamente quieta
ao ficar de pé à frente de sua mãe.
Esticando a mão, a mãe pegou as
mãozinhas de Maura e as abriu, olhando
para os arranhões. Sem dizer uma
palavra, ela levou a menina para dentro
de casa, diretamente para a cozinha,
colocando-a sentada no balcão e lavando
os ferimentos na pia.
– Você sabe muito bem que não deve
desaparecer dentro da floresta desse jeito
– disse a mãe, cuidando das mãos da
filha. – Precisamos saber onde você está
todo o tempo.
– Eu esqueci – disse a garotinha. – Não
fiz de propósito.
– Eu sei, mas tem que se lembrar
sempre – disse a mãe, suspirando. – Não
é seguro desaparecer assim.
“Não é seguro” parecia ser a frase
favorita dos pais.
– Sinto muito. Sinto muito, muito,
muito e muito – disse Maura, arregalando
os olhos. – Sinto muito mesmo, mamãe.
Um sorriso se abriu no rosto de Haven.
– Acredito em você, meu docinho.
Ambas ouviram alguém pigarrear atrás
delas. O pai estava de pé na porta da
cozinha, apoiado no batente e com os
braços cruzados sobre o peito.
– Não sei se acredito muito em você –
disse Carmine. – Afinal, acho que a
senhorita não disse a palavra “muito” o
número de vezes suficiente.
– Muito, papai! – repetiu Maura,
acenando com a cabeça com tanta força
que quase caiu do balcão. – Muito e
muito vezes vinte e nove centenas de
milhares de milhão.
– E quanto dá tudo isso? – perguntou
Carmine.
Maura abriu a boca para responder,
mas, em dúvida, ficou em silêncio. Então
ela olhou para a mãe em busca de uma
resposta.
– Mamãe?
Haven caiu na risada.
– É muito!
– É muito – concordou Maura,
voltando-se para Carmine. – É muito
muito, papai.
Haven pediu licença enquanto Carmine
caminhou até o balcão e parou diante de
Maura. Ela o olhou com seus grandes
olhos verdes, mostrando-se hesitante e
com uma pitadinha de medo.
Ela achou que estivesse em apuros.
– Sabe de uma coisa? Você assustou
sua mãe – ele disse. – Ela detesta quando
a perde de vista. Tem medo de que você
desapareça de verdade.
– Para sempre? – perguntou Maura. –
Como aquelas pessoas que a mamãe fala
que ninguém vê nunca mais?
Carmine assentiu.
– Ela tem medo de perder você.
Maura olhou para o pai e franziu a
testa enquanto processava aquelas
palavras.
– E para onde eu iria se
desaparecesse?
– Eu não sei – ele respondeu. – Mas a
gente não a veria nunca mais.
– E eu nunca mais veria você e a
mamãe?
– Não.
– Não quero desaparecer, papai.
Carmine deu risada.
– Nós também não, meu amor.
– Mas por que isso acontece com as
pessoas? – ela perguntou. – Por que elas
desaparecem? E por que a gente não as
encontra?
– Elas estão escondidas – ele
respondeu. – E às vezes para sempre,
mas, de vez em quando, depois de alguns
anos, alguém finalmente as vê e
transforma o objetivo de salvá-las em sua
própria missão de vida.
– Como a mamãe! – ela disse, com o
rostinho iluminado por ter conseguido
juntar as peças. – A vovó Maura salvou a
mamãe, certo? É disso que está falando?
– É disso sim – ele disse. – E, antes
disso, seu avô já havia salvado sua avó.
A expressão iluminada voltou a se
dissipar.
– Mas daí eles desapareceram de
novo.
– Eles morreram – explicou Carmine. –
Isso é diferente. Nós sabemos onde eles
estão.
– Onde?
Ele soltou um suspiro.
– Eu não sei. No céu, eu acho? Mas
eles também estão aqui com a gente. É
isso que quero dizer. Nós os trazemos
conosco em nossos corações.
– E eles estão com a vovó Miranda?
– Sim. Eles estão todos juntos lá no
céu, fazendo, sei lá, qualquer porra que
as pessoas façam por lá.
Os olhos de Maura ficaram
arregalados e a boquinha se abriu num
“O”, tamanho seu choque.
– Papai, você agora está devendo
dinheiro para o pote de palavras feias!
Quatro moedas de vinte e cinco centavos.
Ele franziu a testa.
– Como assim quatro moedas? Como
chegou a esse número?
– Você acabou de dizer um palavrão! E
lá fora você disse dois! São quatro
moedas.
– O caralho, baixinha. Foram só três.
Maura sorriu e sussurrou.
– Este foi o quarto, papai.
Ele a agarrou ao perceber que ela
havia lhe passado a perna e começou a
fazer cócegas na menina. Ela começou a
rir, preenchendo a cozinha com aquele
som delicioso e inocente. Ela agarrou as
mãos dele e começou a bater as
perninhas, quase acertando a virilha do
pai. Então, ele a agarrou mais forte,
puxando-a do balcão e balançando-a
antes de colocá-la novamente de pé no
chão.
Pegando as mãozinhas dela, ele a levou
até o lado de fora e a colocou sobre a
grande árvore que ficava num dos cantos
da casa.
– Sua mãe costumava subir nessa
árvore, sabia?
Os olhos da menina ficaram
arregalados de novo.
– Jura mesmo?
– Juro! – ele disse. – Ela subia e
descia com muita facilidade.
Carmine pegou Maura e a colocou na
árvore. Ela segurou no galho mais
próximo e subiu ainda mais alto, se
soltando dos braços do pai. A menina
escalou até o alto, sem medo algum, e
sentou-se no tronco mais grosso. Carmine
ficou parado no mesmo lugar, olhando e
esperando, mas dando à filha espaço
suficiente para explorar sozinha.
Conforme escurecia, vaga-lumes
começaram a aparecer no jardim. Ela
pegou um deles e começou a rir.
– Papai, talvez seja a mesma coisa –
ela disse, soltando o inseto. – Talvez as
pessoas que desaparecem sejam como a
vovó Maura, a vovó Miranda e o vovô
Vincent. Se eu desaparecesse ainda
estaria no seu coração, certo?
– Sim.
– Então é a mesma coisa.
– Não, não é a mesma coisa – Carmine
insistiu. – Eles se foram e eu sei disso.
Sei que eles jamais retornarão. Mas seu
lugar é aqui, comigo e sua mãe. Nunca se
esqueça disso. Se você desaparecesse, eu
viraria a porra desse mundo do avesso
até encontrá-la.
Maura o olhou de um jeito curioso,
pensando nas palavras do pai. Depois de
alguns instantes, ela pareceu satisfeita e
começou a descer da árvore. Sentada em
um galho mais baixo, olhou firme para
Carmine e disse:
– São cinco agora, papai – ela disse. –
Agora são cinco palavrões.
Agradecimentos
À minha mãe, que olhou para mim
quando terminei o primeiro livro –
Sempre – e, com um olhar sério, me
disse: “É melhor que Corrado Moretti
não morra!” Este livro (em especial a
primeira linha) é dedicada a você.
Gostaria que estivesse aqui conosco para
que pudesse lê-lo. Sinto muito a sua falta.
Como é possível agradecer às pessoas
que impactaram tanto a sua vida? Acho
que pagaria uma rodada de bebidas para
todos se pudesse (Grey Goose, é claro.
Carmine insistiria nisso). Tudo isso não
teria se tornado possível sem VOCÊS, os
leitores. De todos os livros no mundo,
fico extremamente grata que tenham se
arriscado e escolhido justamente o meu
para ler.
Minha família é extraordinária, cada
um deles. Agradeço aos meus filhos, por
se mostrarem tão compreensivos e bem-
comportados; ao meu pai, por seu apoio e
entusiasmo constantes; ao meu irmão e à
família dele, por sempre estarem lá para
me ajudar; às minhas tias e aos meus tios,
primos e avós, que prefiro fazer de conta
que nunca leem as cenas de sexo. Amo
todos vocês.
Tantas pessoas têm estado ao meu lado
desde o início dessa jornada. Em
especial Traci Blackwood, que revisou
incansavelmente minhas palavras,
encarando personagens que usavam
relógios invisíveis e ficavam parados
como estátuas. Nunca poderei agradecê-
la o suficiente. A Sarah Anderson, que
passou um número incontável de horas ao
meu lado, escrevendo e, de algum modo,
conseguiu dar conta da minha “síndrome
de dedos tortos”, sempre que escrevia
“Bao Soret” ao invés de “Boa sorte” (é,
funciona… #TeamLoki).
A todos os meus amigos do Twitter e
ao meu fã-clube, tanto os mais antigos
como os novos, que toleram minhas
reclamações incessantes e meus posts
cheios de erros. Eu demoraria a vida
inteira para citar todos os nomes, mas
vocês sabem de quem estou falando.
Vocês me veem do jeito que sou e mesmo
assim continuam perto de mim. Deveriam
ser todos santificados (ou talvez
internados num hospício, não tenho
certeza). Nunca deixem que ninguém
diminua o valor do que vocês amam.
Leiam, escrevam suas próprias fan
fiction, montem barracas para esperar
por premières e participem de
conferências. Façam aquilo que deixe
VOCÊS felizes, independentemente do
que os outros digam. Suas paixões jamais
deveriam ser uma fonte de embaraço.
Agite sua faixa com orgulho. A vida é
curta demais para toda essa negatividade.
Agradeço a meu agente rock star,
Frank Weimann, e a todas as pessoas na
Literary Group International, por se
arriscarem com o livro Sempre (e
comigo). A Lion Shirdan, por acreditar
em minhas palavras. E às maravilhosas
pessoas da Simon & Schuster/Pocket
Books (em especial à minha querida
editora, Kiele Raymond)… publicar com
vocês foi um sonho que se tornou
realidade. Sinto-me eternamente honrada
por fazer parte da família S&S.
Um agradecimento especial a Nicky
Bullard, o melhor “assistente” a
participar de uma tarde de autógrafos.
Você olhou para mim no primeiro ano da
faculdade e pensou: “Não estou muito
seguro em relação a essa vaca”. Sinto-me
eternamente grata por você enxergar além
do meu vestido azul-turquesa curtíssimo
e, depois de uma década, ainda ser meu
melhor amigo. Como conseguimos
aguentar tanto tempo?
Aos blogues do livro que estão por aí,
em especial o Bookish Temptations,
Maryse’s Book Blog, Aestas Book Blog,
THESUBCLUB books, Forever 17 Books
e a todos que deram apoio ao meu
trabalho ao longo do caminho (sei que
estou esquecendo alguns de vocês).
Vocês, blogueiros, são vitais e
absolutamente indispensáveis e queridos.
Os livros podem ser o coração de tudo,
mas vocês são sem dúvida o sangue que
dá vida a eles. Nunca parem de ler.
Por último, tenho de fazer um
reconhecimento especial às
aproximadamente 27 milhões de pessoas
que se encontram em regime de
escravidão moderna. O tráfico humano é
um problema real. Algo que nós, como
membros da sociedade, não podemos
tolerar. Todos deveriam ser livres para
viver suas próprias vidas e tomar suas
próprias decisões. Se meus comentários e
meus livros tiverem sido capazes de abrir
os olhos de uma única pessoa para essa
questão, então já me considero uma
mulher bem-sucedida.

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