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CIENCIA Y ENFERMERIA XII (2): 15-22, 2006 ISSN 0717-2079

POR UMA PRÁXIS DE ENFERMAGEM CRIATIVA E REFLEXIVA*


POR UNA PRÁXIS DE ENFERMERIA CREATIVA Y REFLEXIVA

TOWARDS A CREATIVE AND REFLECTIVE NURSING PRACTICE

PEDRO PAULO SCREMIN MARTINS**, MARTA LENISE DO PRADO***


e KENYA SCHMIDT REIBNITZ****

RESUMO

Ensaio teórico, com base nas idéias de Vazquez (1977), acerca da práxis de enfermagem –entendida enquanto
práxis social específica no âmbito das práxis de saúde. Discute o significado da práxis e seus diferentes níveis,
buscando compreender a práxis de Enfermagem como uma forma específica, identificando os seus elementos
constitutivos. Argumenta em favor de uma práxis criativa e reflexiva de Enfermagem, reconhecendo que esta se
configura numa articulação teórico-prática, fundada no conhecimento científico; práxis social específica que se
constitui pela relação entre diversos atores sociais. Desta relação depende seu compromisso com a saúde do ser
humano e da coletividade, com a preservação da vida; relação historicamente determinada –embora também
determinante– pelo processo de produção em saúde, inserida numa relação mais ampla do respectivo modo de
produção da vida em sociedade, por sua vez, principal determinante do processo de viver humano.
Descritores: Enfermagem, Filosofia em Enfermagem, Etica.

RESUMEN

El artículo es un ejercicio teórico, con base en Vázquez (1977), a cerca de la praxis de enfermería –comprendida
como una praxis social específica en el ámbito de las praxis de salud. Discute el significado de la praxis y sus
distintos niveles, con la finalidad de comprender la praxis de Enfermería como una forma específica, identifican-
do sus elementos constitutivos. Argumenta a favor de una praxis creativa y reflexiva de Enfermería, reconocien-
do que ésta se configura en una articulación teórico-práctica, fundada en el conocimiento científico; praxis
social específica que se constituye por la relación entre los diversos actores sociales. De esta relación depende su
compromiso con la salud del ser humano y de la colectividad, con la preservación de la vida; relación histórica-
mente determinada –aunque también determinante– por el proceso de producción en salud, insertada en una
relación más amplia del modo de producción de la vida en la sociedad, a su vez, principal determinante del
proceso del vivir humano.
Palabras claves: Enfermería, filosofía en enfermería, ética.

ABSTRACT

This article is a theoretical exercise concerning the practice of nursing –intended as a specific social practice
within the environment of health care practices. It discusses the significance of practices on their different levels,

* Texto baseado em MARTINS, P.P.S. Atendimento pré-hospitalar: atribuição e responsabilidade de quem? Uma reflexão
crítica a partir do serviço do corpo de bombeiros e das políticas de saúde “para” o Brasil à luz da filosofia da práxis. Dissertação
(Mestrado em Enfermagem) - Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Catarina, 2004.
** Enfermeiro. Mestre em Enfermagem e Especialista em Enfermagem de Emergência e Terapia Intensiva. E-mail:
ppsm29@hotmail.com
*** Enfermeira, Doctora em Filosofia da Enfermagem. Docente del Programa de Postgrado en Enfermería de la
Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: mpradop@nfr.ufsc.br
**** Enfermeira, Doctora em Enfermagem. Docente del Programa de Postgrado en Enfermería de la Universidade Fede-
ral de Santa Catarina. E-mail: kenya@nfr.ufsc.br.

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looking to comprehend Nursing practice as a specific form, identifying its constructive elements. This article
argues in favor of a creative and reflective nursing practice, recognizing that such a practice is constructed within
a theoretical-practical articulation, founded upon scientific knowledge; a specific social practice that is consti-
tuted by the relationship between diverse social actors. Our commitment to human and collective health and the
preservation of life depends upon this relationship. It is a relationship historically determined –though also
determining– through the process of production in health, inserted into a more ample relationship from the
respective mode of society’s life production, which, on its own is a principal determinant of the process of
human living.
Keywords: Nursing, Philosophy nursing, Ethics.
Fecha de recepción: 06/12/05. Fecha aceptación: 18/10/06.

ENFERMAGEM: UMA FORMA práxis que tem sua origem no cuidado ao ser
ESPECÍFICA DE PRÁXIS? humano (Silva, 1989); mas que, em decorrên-
cia do modo de produção e do elevado nível
Pensar a Enfermagem como práxis é um exer- de desenvolvimento tecnológico e científico
cício instigante que nos faz refletir sobre o seu da sociedade contemporânea, tal centralidade
sentido e como se pode ascender a níveis em de atuação no cuidado direto ao ser humano,
que predominem a criatividade e a reflexão; passa a ser permeada por uma diversidade de
contribui para a compreensão, numa outra formas de organização das atividades e do
perspectiva, da relação entre teoria e prática. processo prático em saúde. Em virtude des-
Neste artigo, faremos esta reflexão a partir das tas mudanças e/ou transformações sociais
idéias de Vazquez (1977), expressas em sua ocorridas ao longo da história da humanida-
Filosofia da Práxis. de, foram sendo incorporadas outras carac-
No interior da práxis social, como na his- terísticas, entendidas por Silva (1989), como
tórica, se inter-relacionam diversas formas de cuidado indireto. Em virtude disso, se consi-
práxis, dentre as quais “o trabalho, a arte, a derarmos que toda forma de práxis social tem
política, a medicina, a educação, etc.” (Vázquez, em comum o ser humano como matéria ou
1977). A partir deste entendimento, acrescen- objeto sobre o qual age o sujeito –quer se tra-
tamos a Enfermagem enquanto práxis social te da sociedade, quer se trate de indivíduos
específica. Ou seja, a Enfermagem é uma das concretos– e que a Enfermagem é uma forma
formas de práxis situada no âmbito das práxis específica de práxis social, cabe-nos questio-
de saúde, as quais compõem um conjunto de nar: o que há de específico na práxis de En-
ações no processo saúde-doença, voltadas a fermagem que a torna uma expressão parti-
satisfazer determinadas necessidades huma- cular da práxis social total? Qual a importân-
nas. “... as formas específicas de práxis, nada cia de se conhecer as especificidades desta
mais são do que formas concretas, particula- práxis?
res, de uma práxis total humana, graças à qual Fazendo uma analogia da práxis de Enfer-
o homem como ser social e consciente hu- magem com as principais formas de práxis em
maniza os objetos e se humaniza a si próprio” torno das quais o autor (Vázquez, 1977) dis-
(Vázquez, 1977). corre sua obra, podemos dizer que, diferen-
Ao aprofundar os estudos sobre a filosofia temente da práxis produtiva que é uma rela-
da práxis, foi possível realizar algumas abs- ção do homem (sujeito) com a natureza (ob-
trações que provocaram a elaboração de idéi- jeto), na práxis de Enfermagem –enquanto
as para a compreensão da práxis de Enferma- práxis social específica– o ser humano é su-
gem, como práxis social específica. Uma jeito e objeto da ação. Por sua vez, se o ser

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humano define-se essencialmente como ser Elementos constitutivos da práxis


prático e, através da práxis, produz, forma ou em geral
transforma a si mesmo, sem dúvida, tal pro-
cesso ocorre com certa singularidade na práxis Para conhecer a particularidade de uma práxis
social e por conseguinte na práxis de Enfer- específica é preciso delimitar os elementos
magem, tendo em vista que, ambos, sujeito e constitutivos da práxis em geral, assim como,
objeto da práxis são dotados de consciência, desvelar seus sentidos.
vontade e sensibilidade e aspiram realizar suas Os elementos constitutivos, como particu-
intenções, perseguindo seus próprios objeti- laridade da práxis específica, por um lado, só
vos no âmbito de uma sociedade que é um adquirem sentido em sua relação com a tota-
complexo de práxis específicas, uma totalida- lidade, por outro, só realizam este sentido para
de prático-social, permeada de contradições. esta mesma totalidade dando conta do que lhe
Se o ser humano na práxis social é sujeito e é particular, do que lhe é específico. Em ou-
objeto, significa dizer que, na condição de tras palavras, numa práxis específica –seus
objeto pode envolver-se conscientemente no sujeitos– precisam conhecer e exercer o que
exercício da práxis –mesmo sem dominar os lhe é específico para realizar o sentido da res-
instrumentos da práxis–, bem como, na con- pectiva prática e contribuir com a totalidade
dição de sujeito, ter a intenção de transfor- da práxis transformadora. Assim, o verdadei-
mar uma certa realidade, tornando-a mais ro sentido só pode ser buscado na relação
humana. Para Ribeiro (2001): entre o particular –forma específica– e o ge-
ral –práxis total humana– (Ribeiro, 2001).
... admitir a condição [humana] não só de Para compreender este sentido particular
agente, mas também de matéria-prima e de de uma forma específica de práxis, é preciso
instrumento, não equivale a admitir que o ser
humano seja tomado como qualquer outra um exercício de abstração da realidade, ou
matéria inerte e que assim possa ser subme- melhor, da práxis social total e, ao fazê-lo é
tido ao sabor dos caprichos e das necessida- possível distinguir que a totalidade constitui-
des apenas dos outros seres humanos. se de vários elementos que envolvem e estão
envolvidos pela atividade humana, dentre es-
Em suma, na condição de objeto da práxis tes: sujeito, objeto, instrumentos, finalidades
de Enfermagem –assim como em toda práxis e produto da práxis, voltados à realização de
social–, o ser humano pode, de um lado, ade- um significado comum a todas formas de
rir conscientemente ao projeto prático trans- práxis.
formador e tornar-se realmente objeto-sujei- O sujeito da práxis, ou agente, é um ser prá-
to da respectiva práxis, ou, de outro lado, ne- tico (teórico-prático), dotado de consciência,
gar esta práxis tornando-se efetivamente su- sensibilidade, vontade de criar e produzir para
jeito de uma antipráxis que, ao contrário da satisfazer suas necessidades humanas, “do es-
práxis, tem objetivos que aspiram a conser- tômago à fantasia” (Marx, 1996). Este ser, é,
vação ou a manutenção de um determinado em razão, o ser humano; e sua “atividade pro-
estado de coisas desumanizadas e desumani- priamente humana só se verifica quando os
zantes. Por isso, apontamos para uma práxis atos dirigidos a um objeto para transformá-
de Enfermagem concretizada numa relação lo se iniciam com um resultado ideal, ou fi-
entre sujeitos, que adiram a um projeto trans- nalidade, e terminam com um resultado ou
formador, considerando que, na posição de produto efetivo, real” (Vázquez, 1977). Por-
objeto da práxis o ser humano também é su- tanto, a práxis, como atividade propriamente
jeito, ou seja, é ativo. humana, diferentemente das atividades bio-

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lógicas ou instintivas – da qual o homem tam- cesso prático; é a matéria-prima transforma-


bém pode ser sujeito – que não transcendam da, levando-se em conta que a finalidade ori-
de seu nível meramente natural, é determi- ginal (ideal) sofre modificações, às vezes ra-
nante (Vázquez, 1977). Sua atividade propri- dicais, no decorrer do processo prático.
amente humana é dotada de um caráter cons- Um outro elemento ainda convém ser des-
ciente, intencional, haja vista que, as finalida- tacado –tal sua importância– que é, os ins-
des são determinadas por necessidades huma- trumentos da práxis. Estes podem ser “os re-
nas que precisam ser satisfeitas (Ribeiro, cursos, construídos ou não pelos próprios se-
2001). A práxis então, se distingue radical- res humanos, dos quais lançam mão para,
mente de qualquer outra atividade situada transformando a matéria prima verem trans-
num nível meramente natural, porque implica formadas em produtos as finalidades que di-
na intervenção da consciência, através da qual rigiram esta atividade transformadora” (Ri-
o produto existe duas vezes – e em tempo di- beiro, 2001). Porém, pode ocorrer uma diver-
ferentes: como resultado ideal e como produto sidade na natureza dos instrumentos como
real. ocorre na matéria-prima e no produto, e não
A finalidade da práxis se caracteriza em obstante, deles dependem, também, a adequa-
“virtude dessa antecipação do resultado que ção da práxis à finalidades.
se deseja obter...” (Vázquez, 1977). Como afir- Embora a apresentação destes elementos
ma, Martins (2004), pareça linear, a práxis, por ser atividade hu-
mana adequada a finalidades, é movimento
a atividade humana é, por conseguinte a ati- constante, e seus elementos constitutivos se
vidade que se desenvolve de acordo com fi- apresentam, realmente, num movimento di-
nalidades, e essas só existem através do ho- nâmico de relativa dependência e autonomia
mem, como produtos de sua consciência.
Toda ação verdadeiramente humana requer entre si. Nesta dinâmica que constitui a práxis,
certa consciência de uma finalidade que se enquanto atividade humana consciente,
sujeita ao curso da própria atividade. A fina-
lidade, por sua vez, é expressão de certa ativi- (...) algo que em uma circunstância aparece
dade do sujeito em face da realidade. como matéria-prima ou produto, em outra
pode aparecer como instrumento e vice-ver-
A rigor, o sujeito da práxis, dirige seus atos sa; algo que em determinada circunstância
a determinados objetos para transformá-los aparece como produto, em outra pode apa-
recer como matéria-prima; algo que aparece
de acordo com finalidades –atos que se inici- como agente (ser-humano), em outra pode
am com a antecipação, consciente e ideal do aparecer, a um só tempo, como agente, ins-
resultado real. trumento e/o matéria prima (Ribeiro, 2001).
Cada forma específica de práxis tem seu
objeto particular. Tais objetos, ou matéria-pri- Em face disso, se consideramos que o ho-
ma sobre o qual o ser humano exerce sua ação, mem “[...] ao atuar [...] sobre a Natureza ex-
pode ter natureza diversa: corpo físico, ser terna a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao
vivo, vivência psíquica, grupo, relação ou ins- mesmo tempo, sua própia natureza (Marx,
tituição social (Vázquez, 1977). Na práxis es- 1996), devemos salientar um aspecto funda-
pecífica, a natureza da matéria sobre a qual o mental da dinâmica dos elementos constitu-
ser humano exerce a ação para operar uma tivos da práxis: “o ser humano é sempre a um
transformação, deve ser especificada, deter- só tempo, agente e produto de sua ação, por-
minada, conhecida em sua essência. O pro- tanto, da atividade propriamente humana”
duto da práxis é o resultado real, adequado (Ribeiro, 2001). A premissa é valida para toda
intencionalmente pelo ideal, por sua vez su- práxis específica, e por isso o sujeito de uma
bordinado às intempéries no decorrer do pro- determinada prática, ao agir sobre seu objeto

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–utilizando-se de conhecimentos específicos ciência, a prática de cuidados, transforma-se


(instrumentos) por ele produzido ou adap- –sem, contudo, deixar de coexistir– em pro-
tado (traduzidos)– com a finalidade de suprir fissão, institucionalizada. Mediante esta trans-
determinadas necessidades humanas, sofre formação, convém destacar que a ciência passa
reflexos na sua individualidade e sociabilida- a exercer forte influência na prática de cuida-
de, na sua forma de pensar e de agir, que tam- dos e, em se tratando de prática de Enferma-
bém são específicos. gem profissional, ela não se utiliza de qual-
quer conhecimento como instrumento, mas
sim do conhecimento científico. Os sujeitos
Elementos constitutivos da práxis desta práxis passam a agir e desenvolver-se
de enfermagem com base no conhecimento científico, distan-
ciando-se do cuidado comum que permane-
Precisamos então, fazer uma “tradução” dos ce inerente ao ser humano em sua vivência
elementos constitutivos apresentados sobre a em grupos sociais, especialmente o familiar.
práxis em geral para a práxis de Enfermagem, A prática de Enfermagem, então, passa a ca-
delimitando suas especificidades a fim de des- racterizar-se pela construção de um corpo de
velar quais dos elementos a tornam uma ex- conhecimento próprio, traduzido das ciênci-
pressão particular da práxis em geral. as naturais e sociais –o qual seus agentes têm
O primeiro indício de que a totalidade prá- de necessariamente apreender para poder agir
tico-social –que inclui todas as formas de dentro de um padrão determinado por nor-
práxis– e, por sua vez, a práxis social se de- mas legais e morais. Diante desta realidade,
compõe em formas específicas de práxis, re- podemos dizer que, dentre os instrumentos,
fere-se ao objeto sobre o qual o sujeito age existe um que tem se convertido num elemen-
para transformá-lo, que “... pode mudar, dan- to essencial nesta distinção: o conhecimento
do lugar a diversas formas de práxis” (Vázquez, científico. Este, sem dúvidas é um dos princi-
1977). Entretanto, é possível também, que o pais instrumentos que o sujeito da práxis usa
objeto da práxis seja o mesmo para diferen- para adequar suas finalidades e, portanto, o
tes formas de práxis. Por exemplo, é possível elemento constitutivo fundamental que pos-
considerar a madeira como sendo matéria- sibilita galgar o mais elevado nível de práxis.
prima tanto da “práxis produtiva”, isto é, da O conhecimento científico tem particula-
“relação material e transformadora que o ho- ridades que remetem, ou são úteis, a deter-
mem estabelece –mediante seu trabalho– com minadas práticas. Ou seja, o conhecimento
a natureza” e da “práxis artística”, isto é, “a pro- científico sobre o uso do estetoscópio é o ins-
dução ou criação de obras de arte” (Vázquez, trumento através do qual o sujeito direciona
1977). Ou seja, a madeira ora aparece como sua atividade que é atender uma determina-
objeto da práxis do operário de uma indús- da necessidade humana. Enquanto instru-
tria de móveis, ora como objeto sobre o qual mento da práxis, apesar de ter particularida-
age o artista para esculpir sua obra. Logo, a des ou especificidades que se voltam a deter-
matéria-prima ou objeto, não é suficiente para minadas práxis, por si só, também não define
determinar a especificidade de uma práxis. a práxis se, seu uso não estiver adequado a
Os instrumentos, de um modo geral, tam- finalidades específicas.
bém não são suficientes. Por exemplo, na A questão que se coloca então, é: qual dos
práxis de saúde, um estetoscópio pode ser ins- elementos constitutivos da práxis se altera –
trumento da práxis tanto do enfermeiro, nas diferentes práticas– e, ao alterar-se, de-
quanto do médico e por isso, não as define. termina uma forma específica de práxis? Se-
Todavia, com o advento da sociedade moder- gundo o Vázquez (1977), o que altera é a na-
na (capitalista), através da qual se consolida a tureza da necessidade humana a qual deter-

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mina a atividade do ser humano sobre o ob- necessidade humana a ser suprida, também é
jeto. Ou seja, se “o objeto da atividade prática específica.
é a natureza, a sociedade ou os homens reais, Vimos que, na esfera das práxis sociais, o
a finalidade desta atividade é a transforma- objeto das práxis sociais específicas é sempre
ção real, objetiva, do mundo natural ou soci- o ser humano (individual ou social) em to-
al para satisfazer determinada necessidade hu- das as suas dimensões e que, por outro lado,
mana” (Vázquez, 1977) (grifo nosso). Em o instrumento do conhecimento científico,
outros termos, o que determina a práxis es- modifica-se consideravelmente, tomando di-
pecífica é a natureza da necessidade humana ferentes formas ou adaptações, de acordo com
que ela satisfaz. Por exemplo, o uso do este- a necessidade humana que determina a fina-
toscópio, bem como, o conhecimento cientí- lidade e, por conseguinte a especificidade da
fico que o reveste, é específico da práxis de práxis. Quando se trata da práxis de Enfer-
Enfermagem quando a sua finalidade é o de magem profissional, aquela pela qual seus
prover cuidado de Enfermagem. Da mesma agentes passam por um preparo formal, fun-
forma remete-se à práxis médica, quando a dado no conhecimento científico –e por isso
finalidade é atender uma necessidade de cura/ supera a Enfermagem tradicional, leiga– a
tratamento de uma doença1. A natureza da necessidade humana a ser suprida pode ser
necessidade humana definida como cuidado de Enfermagem. Como
toda práxis é historicamente determinada, na
determina a finalidade imediata (particular) sociedade contemporânea o atendimento da
através da qual se realiza concretamente o sig- necessidade humana de cuidado, pela Enfer-
nificado mais geral e fundamental da práxis magem –de acordo com o estágio atual do
para o ser humano, pela mediação da reali-
zação do significado específico. A mudança conhecimento científico–, pode se dar de for-
da necessidade determina, desse modo, a ma direta (cuidado direto) ou indiretamente
mudança da natureza da finalidade imediata (cuidado indireto) (Silva, 1989). Em vista dis-
(Ribeiro, 2001) (grifo da autora). so, a finalidade imediata da práxis de Enfer-
magem é determinada diretamente pela sa-
Assim, o objeto, a necessidade humana e, tisfação das necessidades humanas de cuida-
conseqüentemente a finalidade, acabam por do. Seu objeto, o homem, não se caracteriza
impor mudanças nos instrumentos (Ribeiro, apenas como um corpo biológico, mas sim,
2001), que se tornam cada vez mais específi- como um corpo dotado de consciência e in-
cos. serido numa trama de relações sociais; em
Não obstante, certas ressalvas cabem ao suma, é síntese dos processos biológicos, psí-
conhecimento científico. Este se torna um quicos, sociais e históricos. Mesmo confor-
instrumento específico quando a finalidade mando certa unicidade/ individualidade, cada
imediata da práxis está determinada; quando qual contém na sua essência a característica
está voltado a operar sobre determinada ne- de ser humano, o que faz com que o homem
cessidade humana. Conseqüentemente, o co- carregue consigo a eterna necessidade de cui-
nhecimento científico, enquanto instrumen- dado –no processo de viver saudável, de ado-
to essencial da práxis, deve ser tão específico ecer e de morrer–, que por sua vez requer uma
quanto a respectiva práxis específica que fun- prática para satisfazê-la. Nesses termos, a
damenta, tendo em vista que, a natureza da práxis de Enfermagem está imediatamente
determinada pela finalidade de satisfação da
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Mesmo com especificidades adequadas à finalidades, necessidade humana de cuidado –que todo ser
não deixa de ter pontos em comum, haja vista que, neste humano tem, desde os primórdios da sua exis-
exemplo, é sempre instrumento da práxis mais geral: aten- tência– que, por sua vez,
der uma necessidade de saúde.

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[...] significa a garantia direta da continuida- processo prático. É desta relação social que
de da vida do grupo, da espécie homo. [...] Os depende seu compromisso com a saúde do ser
homens [...] sempre precisaram de cuidados, humano e da coletividade, em suma, com a
porque cuidar, tomar conta, é um ato de vida
que tem primeiro, e antes de tudo, como fim, preservação da vida; relação esta, historica-
permitir à vida continuar, desenvolver-se, e mente determinada –embora também deter-
assim lutar contra a morte: morte do indiví- minante– pelo processo de produção em saú-
duo, morte do grupo, morte da espécie de inserida numa relação mais ampla do res-
(Backes, 2000). pectivo modo de produção da vida em socie-
dade, por sua vez, principal determinante do
Logo, a prática de cuidados é inerente ao processo saúde-doença.
ser humano, pois, o acompanha desde o mo- O desenvolvimento da práxis de Enferma-
mento em que se fez homem. Uma prática gem –institucionalizada– na sociedade mo-
que, como qualquer outra, exige conhecimen- derna passou por diferentes estágios ou perí-
to, pois este é o instrumento fundamental de odos, atingindo diferentes níveis de práxis
toda forma de práxis; da ação dos sujeitos so- (Backes, 2000). Por conseguinte, a importân-
bre determinado objeto para transformá-lo. cia de se conhecer as particularidades das práxis
específicas reside no fato de que, é condição
(...) a prática como atividade objetiva e trans-
formadora da realidade natural e social (...)
fundamental para concretizar as possibilida-
implica um certo grau de conhecimento da des –objetivas e subjetiva– de transitar níveis
realidade que transforma e das necessidades elevados de criação, reflexão e efetivamente
que satisfaz (Vázquez, 1977). atingir uma autêntica consciência da práxis.
Em outros termos, toda e qualquer forma es-
A práxis de Enfermagem, por sua vez, re- pecífica de práxis, precisa de um lado relacio-
quer conhecimento científico. nar-se com a totalidade prático-social e por
Convém salientar apenas que, mesmo ten- outro conhecer e exercer o que lhe é específi-
do este entendimento da finalidade imediata co, particular; condição sem a qual não é pos-
à qual a prática de Enfermagem se subordina sível elevar-se ao mais alto grau de criação e
e que lhe confere significado específico, parti- reflexão e contribuir, no seio da práxis total,
cular, não é possível ignorar ou, ainda que seja, com a humanização do ser humano, adqui-
esquecer que esta atividade humana, como rindo e realizando, deste modo, seu sentido e
todas outras, é determinada pela finalidade significado de práxis específica.
mais geral, universal e, portanto, de caráter Os instrumentos permitiram ao homem
mediato de satisfação da necessidade de todo alterar a natureza, a si mesmo e a se tornar
ser humano de se produzir ser humano (Ri- homem, passando por diferentes estágios e
beiro, 2001). alcançando distintos níveis de práxis; os ins-
trumentos são a ‘extensão da mão’: instru-
mento original do homem (Vázquez, 1977)
RUMO À PRÁXIS CRIATIVA que, por seu vínculo com a consciência per-
E REFLEXIVA DE ENFERMAGEM mite o homem criar outros instrumentos.
Dentre estes, possivelmente, o conhecimento
Diante do exposto, podemos concluir que a científico seja o mais importante, dinâmico e
Enfermagem, de um modo geral, configura- em constante evolução. Entretanto, tal como
se numa articulação teórico-prática e funda- a mão, que serve de um lado, por exemplo, para
da no conhecimento científico; uma práxis acariciar/aproximar os homens e, de outro,
social específica que se constitui pela relação para brigar, o conhecimento científico tam-
entre diversos atores sociais envolvidos no bém pode ter finalidades opostas a depender

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do uso que se faça dele. Por isso, o ser huma- do natural e social para fazer dele um mundo
no precisa ter domínio sobre os instrumen- mais humano e conseqüentemente reproduzir-
tos da práxis para usá-los de acordo com suas se como ser humano, o produto da prática de
finalidades que, essencialmente, visam à trans- Enfermagem não pode ter outro caráter que
formação para humanização do mundo na- não seja o universal e igualitário. A práxis de
tural e social. Enfermagem tem como finalidade, antes de
Sendo assim, concluímos pela necessida- tudo, garantir um atendimento com qualida-
de da práxis de Enfermagem –como todas as de à saúde de pessoas; suprir necessidades
outras– priorizar o domínio do conhecimen- humanas de cuidado (Martins, 2004). Galgar
to científico, importante instrumento da níveis em que predominem os níveis da cria-
práxis. Mas não somente isto. Precisamos ter ção e reflexão, significa atender com maior
consciência da práxis de Enfermagem para qualidade tais necessidades, alcançando uma
que o conhecimento científico, quando espe- práxis com maior grau de transformação do
cífico desta práxis, seja adequado à sua finali- seu objeto, tendo no horizonte a humaniza-
dade imediata, ou seja, de satisfazer necessi- ção do ser humano. Esta práxis, elevada ao
dades humanas de cuidado. E, para isso, é pre- mais alto grau de consciência filosófica, onde
ciso a formação de profissionais que saibam se encontra o nível criador e reflexivo, é con-
pensar, capazes de cultivar o pensamento dição necessária para fazer deste mundo um
complexo, para o qual a contribuição da filo- mundo mais humano.
sofia é fundamental (Reibnitz & Prado, 2003).
A consciência da finalidade da práxis de
Enfermagem, em adição ao domínio do co- REFERÊNCIAS
nhecimento científico, é condição fundamen-
Backes, V.M.S. (2000). Estilos de pensamento e práxis
tal para o exercício de uma práxis criativa e
na enfermagem: a contribuição do estágio pré–
reflexiva. Certamente, já atingimos um está- profissional. Ijuí (RS): UNIJUÍ.
gio de desenvolvimento no qual estão madu- Martins, P. P. S. (2004). Atendimento pré–hospita-
ras as premissas teóricas necessárias para que lar: atribuição e responsabilidade de quem? Uma
possamos assumir a consciência filosófica da reflexão crítica a partir do serviço do corpo de
práxis de Enfermagem e elevá-la. Elevar a bombeiros e das políticas de saúde “para” o Bra-
sil à luz da filosofia da práxis. Dissertação de
consciência filosófica da práxis significa que Mestrado em Enfermagem não publicada, Pro-
os homens precisam esclarecer teoricamente grama de Pós-Graduação em Enfermagem, Uni-
sua prática social, para regular consciente- versidade Federal de Santa Catarina.
mente suas ações como sujeitos da história Marx, K. (1996). O capital: Crítica da economia po-
(Vasquez, 1977). E para que essas ações se re- lítica. São Paulo: Nova Cultural.
vistam de um caráter criador, é necessário tam- Reibnitz, K.S., Prado, M. L. (2003). Formação do
profissional crítico-criativo: a investigação como
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consciência das possibilidades objetivas e sub- Texto Contexto Enferm., 12, 26-33.
jetivas do homem como ser prático, ou seja, Ribeiro, M.L. S. (2001). Educação escolar: que prá-
uma autêntica consciência da práxis. Consi- tica é essa. Campinas (SP): Autores Associados.
derando que a saúde é condição sem à qual o Silva, G.B.S. (1989). Enfermagem profissional: Aná-
ser humano não pode suprir sua necessidade lise crítica. São Paulo: Cortez.
Vázquez, A.S. (1977). Filosofia da práxis. Rio de Ja-
humana de transformar criativamente o mun- neiro: Paz e Terra.

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