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História
Resumo
1
O Professor Luis Filipe Bantim de Assumpção é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, da UERJ, e
atualmente é membro do núcleo de pesquisa Atrium, da UFRJ. O mesmo publicou, recentemente, o artigo “O Prínceps
Augusto e as relações políticas com a sociedade espartana”, publicado no livro Caesar Augustus – entre práticas e
representações, organizado pelo Prof. Carlos Eduardo da Costa Campos, em homenagem aos dois mil anos da morte do
Imperador Otávio Augusto. Contato: lbantim@yahoo.com.br
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A
o interagirmos com os se faz presente em diversos níveis do nosso
acontecimentos históricos do conhecimento, sejam eles acadêmicos ou não.
século XX, verificamos uma Através do contato com as fontes
aproximação do regime nazista com a primárias percebemos que inúmeros indícios
2 3
rememoração do habitus dos esparciatas . foram omitidos no processo de construção do
Tal projeto político-cultural acabou conhecimento histórico sobre a pólis de
estigmatizando a pólis de Esparta, junto à Esparta. Com isso, o contato com os vestígios
historiografia francesa e anglo-americana. do passado é imprescindível para um trabalho
Após a Segunda Guerra Mundial, com a historiográfico adequado, haja vista a
derrota da Alemanha, parte dos intelectuais possibilidade de minimizarmos generalismos
europeus consolidaram a ideia de que Esparta
e apresentarmos uma proposta alternativa para
seria “violenta e conservadora”, tal como o estudo da sociedade espartana. Assim, nos
foram compreendidas as práticas do regime indagamos através do discurso das fontes
nazista. Entretanto, no interior dessas primárias: a belicosidade e a violência física4
argumentações modernas não podemos deixar dos reis espartanos e dos esparciatas eram os
de enfatizar que o contexto social foi únicos mecanismos que os mesmos
determinante para a maneira como os dispunham para manter a coesão social na
esparciatas e os seus reis (basileus) foram Lacedemônia?
representados no modo de pensamento
Para que possamos corresponder à
Ocidental. Contudo, como historiadores
proposta deste artigo acerca da violência
somos levados a romper o senso comum que
simbólica dos esparciatas, temos que
2
Pierre Bourdieu definiu o habitus como um sistema priorizar a análise das relações de poder que
de disposições duráveis e transponíveis, que atua como
princípio gerador e organizador de práticas (em geral), se desenvolveram no interior da região5 dos
de representações e de modos de pensamento que são
objetivamente adaptados as pretensões do segmento
4
social hegemônico, de um território. BOURDIEU, A violência física poderia ser estendida a diversos
Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. tipos de práticas, as quais pressupõem a intervenção
Petrópolis: Editora Vozes, 2009.p.87. física direta de um sujeito sobre outro – ou de um
3
Os esparciatas eram os cidadãos da pólis de Esparta. grupo sobre outro – por meio da coerção, no intuito de
No entanto, para que um espartano pudesse ser se impor obediência, ordens e valores.
5
reconhecido como esparciata, o mesmo deveria ter Através dos estudos de Rogério Haesbart e Marcos
perpassado por um processo de formação educacional Aurélio Saquet, podemos afirmar que a região seria um
comum (paidéia), ser filho de pai e mãe espartano, ter espaço físico-geográfico de amplas proporções sendo
alcançado os trinta anos de idade, servir no exército politicamente delimitado em conformidade com os
como hoplita, ingressar em uma das mesas de repasto interesses dos grupos sociais que residem em seu
coletivo (sissítia) e ter recursos suficientes para arcar interior. HAESBAERT, Rogério. Identidades
com as despesas dessas refeições, além do dever de Territoriais. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA,
gerar filhos para a sua pólis. Caso um desses critérios Roberto Lobato (org.). Manifestações da Cultura no
não fosse cumprido o esparciata poderia perder a sua Espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.p.179;
cidadania. SAQUET, Marcos Aurélio. Os Tempos e os Territórios
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suas “Leis”, Platão pontuou que os jovens Isócrates podemos citar o discurso de
esparciatas que estavam prestes a concluírem Plutarco, ao enfatizar que o rei Euriponte teria
a sua formação perpassavam pela Criptéia diminuído o rigor político para com o demos
(PLATÃO, Leis, I, 633b). Complementando da Lacedemônia, de tal maneira que pudesse
os dizeres de Platão, o discurso tardio de angariar o seu apoio (PLUTARCO, Vida de
Plutarco expôs que durante a Criptéia os Licurgo, 2.2). Desse modo, verificamos em
jovens de melhor reputação eram enviados alguns fragmentos da literatura clássica, que a
aos campos com um punhal e o mínimo de relação dos esparciatas e os seus governantes
víveres, e ao cair da noite desciam as estradas frente aos periecos e os hilotas teria seguido
e matavam o máximo de hilotas que um viés de imposição, vinculado à violência
pudessem (PLUTARCO, Vida de Licurgo, física. Contudo, se os basileus e esparciatas
28.2). Com isso, verificamos que parte dos tivessem se utilizado exclusivamente da força
discursos clássicos representaram as relações para controlarem grupos sociais tão amplos,
dos esparciatas com os hilotas, por meio da como que estes não se mobilizaram e se
violência física. opuseram a autoridade política de Esparta?
21
simbólicos por meio da violência simbólica
Embora também tenhamos citado Plutarco, devemos
pontuar que o mesmo teria seguido uma tradição direcionada aos demais lacedemônios.
literária a qual se fundamentou, em certa medida, nos
escritos do período Clássico, fazendo com que o autor Como definiu o sociólogo Pierre
– por vezes – se utilizasse do discurso político dos
autores atenienses oriundos dos séculos V e IV a.C.. Bourdieu, o poder simbólico seria um “poder
Do mesmo modo, embora Aristóteles tenha sido
inserido no discurso ateniense, o mesmo provinha da invisível” que, por meio dos símbolos e
Macedônia, e o fato de ter sido educado em Atenas e
por Esparta ter se manifestado contra o projeto práticas, possibilita a um grupo de sujeitos
expansionista de Filipe II, o mesmo disforizou as
instituições político-sociais espartanas. exercer a sua autoridade como “natural” e
22
Segundo Algirdas Greimas e Joseph Courtés o ato de “necessária”23. Por sua vez, o poder
disforizar reside na valorização de um micro-universo
semântico, cujo propósito seria desqualificar práticas
políticas, culturais e sociais de um dado grupo de
23
sujeitos. GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Trad.:
Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A.,
1987.p.130. 1989.p.07-10.
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simbólico se utiliza de meios para garantir a violência simbólica não se fundamente no uso
sua efetividade não se restringindo a coerção da força física, o seu “método de coerção” se
física, embora esta não deva ser negada. Com instaura nas práticas das pessoas tornando
isso, podemos afirmar que um segmento inevitável a sua reprodução, a ampliação da
social hegemônico ao se utilizar do poder força simbólica e o acúmulo de poder
simbólico condiciona o emprego da força simbólico pelos segmentos sociais dirigentes
simbólica, a qual legitima a sua autoridade de um território27. Seguindo esse viés,
político-cultural a partir da violência podemos aplicá-lo a sociedade de Esparta e as
simbólica que é incutida nos demais grupos interações políticas, sociais, culturais e
de um território24. Nos dizeres de Bourdieu, a econômicas que esta mantinha com os demais
força simbólica seria uma forma de poder que habitantes da Lacedemônia. Desta maneira,
se exerce diretamente sobre os sujeitos, sem o podemos supor que os esparciatas e os seus
apelo a coação física25. basileus ao se utilizarem de um conjunto de
práticas político-culturais, puderam ampliar e
Por ser o “mundo físico”
preservar o seu poder simbólico entre os
simbolicamente estruturado, as práticas
lacedemônios. Sendo assim, o poder
político-culturais acabam submetendo os
simbólico dos governantes garantiu o uso da
sujeitos a força simbólica do habitus
força simbólica, que ao ser empregada
hegemônico de um território. Dessa maneira,
promovia a violência simbólica junto a
os grupos marginalizados ao se encontrarem
periecos e hilotas, legitimando o habitus
sob a influência de uma força simbólica
hegemônico de Esparta na Lacedemônia e
acabam reproduzindo elementos do habitus
assim minimizando o uso da violência física.
hegemônico, o que contribui para a sua
própria “dominação”. Esse controle Para materializarmos os nossos
estabelecido pelo poder simbólico e garantido apontamentos, façamos uma análise sobre os
pela força simbólica pode ser identificado segmentos sociais lacedemônios. No que
como a violência simbólica26. Logo, a concerne ao poder simbólico dos esparciatas
violência simbólica estaria além da e dos seus governantes podemos tomar o
consciência dos sujeitos e se manifestaria discurso mítico como um dos principais
através de sugestões, injunções, seduções, mecanismos voltados para a legitimação do
ameaças, censuras e ordens. Ainda que a habitus hegemônico desses homens, diante de
periecos e hilotas. Embora os basileus e os
24
BOURDIEU, Pierre. Masculine Domination. Trans.: esparciatas tenham sido identificados como
Richard Nice. California: Stanford University Press,
2001.p.38.
os segmentos dirigentes da Lacedemônia, os
25
Ibidem, p.38-39.
26 27
Ibidem, p.38-41. Idem.
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32
Esta interpretação se encontra na publicação do Prof.
Brunhara intitulada “O fragmento 2W de Tirteu e a
30
MALKIN, Irad. Myth and Territory in the Spartan poética da Eunomia”. BRUNHARA, Rafael. O
Mediterranean. Cambridge: Cambridge University Fragmento 2W de Tirteu e a poética da Eunomia.
Press, 1994. p.35-38. Classica (Brasil), 24. 1/2, 2011. p.148.
31 33
O conceito de modo de pensamento pode ser A identidade étnica seria uma representação calcada
definido como um conjunto de ideias e crenças em pressupostos políticos-culturais, cujo objetivo seria
partilhadas por um grupo social, no interior de um configurar os espaços geográficos com base no
território. Entretanto, devemos nos atentar que esta interesse do grupo social hegemônico, e no princípio de
conceituação é fluída, sendo passível de adaptação de diferenciação étnico que este estabelece para com os
acordo com o contexto histórico e social. BOURDIEU, demais. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico.
Pierre. O Senso Prático. Trad.: Maria Ferreira. Trad.: Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand
Petrópolis: Editora Vozes, 2009. pp. 90-91. Brasil S.A., 1989.p.112-115.
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linhas gerais, não existe um consenso acerca recebido parte da sua identidade étnica pela
da maneira como a categoria dos periecos associação direta e a lealdade que mantiveram
acabou emergindo na Lacedemônia, bem com os esparciatas.
como sobre a motivação destes sujeitos em se Contudo, como nos informou Nigel
manterem leais aos esparciatas e aos seus Kennell, no período Clássico não haveria uma
basileus. distinção cultural e linguística entre periecos,
O geógrafo Estrabão, ao citar um esparciatas e basileus37. Tal comentário nos
fragmento do “historiador” Éforo de Cime, se permite afirmar que devido à constante
fundamentou no “retorno dos heráclidas” para interação e preponderância cultural que os
o Peloponeso, como um mecanismo para segmentos dirigentes exerciam sobre os
explicar a organização social da periecos, os mesmos acabaram interiorizando
Lacedemônia. Estrabão comentou que após os a cultura dos esparciatas e dos basileus,
heráclidas se estabelecerem no poder político podendo ser esse um caso de violência
lacedemônio, os mesmos expulsaram os simbólica.
aqueus (nativos da região) para a Jônia, e Sendo assim, o fato dos periecos terem
solicitaram que estrangeiros povoassem a sido submetidos por um longo período de
região da Lacedemônia, tendo como tempo acarretou na sobreposição de sua
privilégio a igualdade de direitos políticos. matriz cultural em benefício do habitus dos
Tais sujeitos eram identificados como esparciatas. Por sua vez, devemos nos atentar
36
periecos , pois passaram a viver nos que, para os periecos, poderia ter sido
arredores do centro de poder da Lacedemônia, vantajoso aderir aos valores dos grupos
ou seja, Esparta. Nas palavras de Estrabão, no hegemônicos da Lacedemônia. Afinal, ao se
reinado de Agis I, os periecos perderam a sua identificarem como lacedemônios, os periecos
igualdade político-social junto aos criavam laços de reciprocidade para com os
esparciatas e se tornaram tributários dos demais grupos que se arrogavam como
mesmos e de seus basileus (ESTRABÃO, “herdeiros de Lacedemón”, o que poderia
Geografia, VIII, 5.4). O discurso de Estrabão garantir-lhes proteção a inimigos externos. Do
nos permite endossar a perspectiva levantada mesmo modo, a liberdade que os periecos
por Jonathan Hall, na qual os periecos teriam detinham em seus territórios lhes garantia a
possibilidade de desenvolverem diversos tipos
JENSEN, Pernille (Ed.). Further Studies in the Ancient de atividade econômica. Por sua vez, a pólis
Greek Polis. Stuttgart: F. Steiner, 2000. p.87.
36
O termo perieco seria uma junção do prefixo peri de Esparta seria um mercado consumidor
(“ao redor de”) e oikos (“casa, habitação,
propriedade”), ou seja, eles seriam aqueles sujeitos que
habitavam as redondezas do centro de poder político da 37
KENNELL, Nigel. Spartans – A new history.
Lacedemônia. Oxford: Wiley-Blackwell, 2010. p.89.
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lhes garantiria uma relativa proeminência em perspectiva, o uso da guerra, ou até mesmo da
suas comunidades42. Desse modo, verificamos violência física, teria sido a primeira medida
que os esparciatas e os seus basileus teriam para subordinar um grupo de sujeitos e torna-
incutido o seu habitus junto às práticas los tributários da pólis espartana. Logo, o
culturais dos periecos, como um mecanismo discurso de Tirteu estaria estabelecendo que a
para ampliar o seu poder político na conquista militar tornava legítima a
Lacedemônia. Contudo, observamos que para autoridade dos basileus e dos esparciatas
as elites periecas seria vantajoso aderir aos sobre parte da região da Messênia, bem como
valores e práticas dos segmentos o ato de rechaçar os revoltosos messênios.
hegemônicos, pois isso lhes garantiria uma O trecho de Tirteu nos permite
ampla proeminência local, assim como conjeturar que os habitantes de Esparta
privilégios junto ao centro de poder político conquistaram uma parte da região da
que era Esparta. Messênia por uma questão de necessidades de
Por fim, temos a categoria dos hilotas terras para plantio, o que nos infere sobre um
e a maneira como os seus membros se possível aumento populacional na
relacionavam com a pólis de Esparta. A Lacedemônia. Entretanto, qual seria a matriz
condição dos hilotas seria ainda mais dos hilotas da região entre o Parnon e o
controversa que a dos periecos, tendo em Taigeto? Mais uma vez, Estrabão nos
vista que foram submetidos em condições auxiliou, pois o mesmo declarou que o
distintas. Ao nos remetermos a Tirteu, basileu Agis I ao submeter os assentamentos
teríamos a tentativa de submeter parte dos ao redor de Esparta acabou escravizando os
habitantes da região da Messênia, na habitantes da planície de Helos, pois estes
“Segunda Guerra da Messênia” (TIRTEU, teriam se revoltado (ESTRABÃO, VIII, 5.4).
Frag.5W). Ao comentar sobre as medidas do Mediante os indícios literários da
rei Teopompo, duas gerações anteriores ao Antiguidade, notamos que os hilotas foram
seu período, Tirteu estaria apresentando aos oriundos de um processo gradativo de
seus contemporâneos as possíveis motivações submissão que ocorreu a partir do Período
para combater “messênios revoltosos”, no Arcaico. Contudo, o discurso dos pensadores
século VII a.C.. Sugerimos que os messênios antigos nos permite afirmar que não havia
do discurso de Tirteu foram representados uma identidade étnica entre os hilotas,
como descendentes dos homens submetidos aspecto este que teria inviabilizado um
por Teopompo. Seguindo por essa levante sistematizado contra a autoridade dos
42
SHIPLEY, Graham. Perioecic Society. In: WHITBY,
basileus e dos esparciatas na Lacedemônia.
Michael. Sparta. Edinburgh: Edinburgh University
Press, 2002.p.187.
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51
RUSCH, Scott M. Sparta at War: Strategy, Tactics, and Campaigns, 550-362 BC. London: Frontline Books,
2011.p.06.
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52
Convém ressaltar que este mapa não engloba o assentamento de Amicleia, que se encontrava 5 km ao sul do centro de
poder político de Esparta. Fonte: RUSCH, Scott M. Sparta at War: Strategy, Tactics, and Campaigns, 550-362 BC.
London: Frontline Books, 2011.p.05.