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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

DISSECANDO “CONTRA ERATÓSTENES” DE LÍSIAS À LUZ DO


MODELO DE CÓRAX E DO LIVRO I DA REPÚBLICA DE
PLATÃO

Gustavo Adolfo Machado Cunha Lunz


Graduando em Filosofia da UFRJ

Resumo: O presente artigo trata de identificar as partes do discurso judiciário “Contra


Eratóstenes” proferido por Lísias, à luz do modelo retórico estabelecido por Córax.
Localizada temporalmente a ocasião em que foi proferido e articulado com outros fatos
da história de Atenas, algumas conexões entre o texto e os Livros I e II da República de
Platão são traçadas, servindo-se de hipótese levantada por Jacob Howland.
Palavras chave: Lísias. Córax. República. Platão. Jacob Howland.
Abstract: This paper search to identify the parts of the judiciary speech “Against
Eratosthenes” uttered by Lysias, observing the rhetorical model established by Corax.
After pointing the moment of the utterance, some connections between the text and Books
I and II of the Plato’s Republic are traced, making use of the hypothesis raised by Jacob
Howland in another work.
Keywords: Lysias. Corax. Republic. Plato. Jacob Howland.

1- Objetivos
O objetivo do presente trabalho é a análise do texto retórico referido no título, do
ponto de vista de sua estrutura, inserido que está em modelo mais primitivo dos discursos
judiciais, com referências pontuais e inevitáveis ao Livro I da “República” de Platão. Para
tanto, lança-se mão de alguns textos clássicos imprescindíveis (a própria “República” e
algo da “Retórica” de Aristóteles, ainda que como velada referência) além da valiosa
bibliografia secundária sugerida: artigo de Jacob Howland e capítulo escrito por López
Eire na “Historia de la Literatura Griega”.

Em nome de desejável síntese, deixar-se-á de tratar com extremada profundidade


cada uma das múltiplas passagens em que os textos da Antiguidade estão em interlocução.
Cuidar em demasia de detalhes dos textos acabaria por comprometer uma correta
delimitação da estrutura do discurso “Contra Eratóstenes”, de acordo com o que seriam
os preceitos de Córax, parecendo este um norte mais interessante e adequado.

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2- Localização Temporal do Discurso “Contra Eratóstenes” e umas poucas notas


biográficas acerca de seu autor, Lísias

“Contra Eratóstenes” é um discurso de acusação e, portanto, uma categoría,


proferido por ocasião da restauração democrática ateniense após a Tirania dos 30, período
particularmente traumático 1. Acredita-se assim que tenha sido proferido por volta dos
anos 404/403 a.C. Eratóstenes inscrevia-se no número dos trinta déspotas derrubados pela
renovada democracia, e dentre os diversos crimes que Lísias lhe atribui, tem-se como
principal o assassínio de Polemarco, seu irmão, interlocutor de Sócrates no Livro I da
“República”.

Lísias2, por sua vez, é considerado o maior dos logógrafos3. Meteco siracusano
em Atenas, teria estudado Retórica em Turi com Tísias, discípulo de Córax (a quem
tradicionalmente atribui-se a invenção da técnica). Embora tenha obtido a devolução de
boa parte da fortuna familiar arrebatada pelos tiranos e pelo próprio estado ateniense, teve
na logografia valiosa fonte de renda.

“Contra Eratóstenes” foi o único discurso proferido pelo próprio Lísias no breve
período após a restauração democrática em que decreto de Trasíbulo conferiu-lhe a
cidadania. Ao que se sabe, teria sido esse o único discurso proferido por ele mesmo diante
dos atenienses. Com a invalidação do decreto, ele volta à condição de estrangeiro e tem
na escrita dos discursos sua atividade política possível, indireta e, lembremos, rentável.
Essa busca de ganho é retratada e bastante explorada por Platão quando se refere a Lísias.

Assim é que, em “Fedro”, Lísias só se expressará através de uma carta de amor


(em verdade, um discurso anti-erótico). Ele não fala propriamente, expressa-se por
escrito. Na “República”, como veremos, seu silêncio é eloquente diante da descrição

1
A Tirania dos Trinta foi um governo oligárquico de Atenas composto por trinta magistrados chamados
tiranos, que sucedeu a democracia ateniense ao final da Guerra do Peloponeso, conflito armado entre Atenas
e Esparta vencido por esta última e que se travou entre 431 e 404 a.C.. O regime durou menos de um ano,
em 404 a.C.. Mais do que as vidas perdidas na guerra, Atenas viu centenas de seus cidadãos condenados à
morte pelo novo regime. Milhares exilaram-se à época, esvaziando a outrora pujante cidade grega.
2
De acordo com Dionisio de Halicarnassos e biografia atribuída a Plutarco, Lísias nasceu em 459 AC de
acordo com a tradição de que teria alcançado e até ultrapassado a idade de 80 anos. A data é obtida
flagrantemente pela contagem decrescente da fundação de Turi (444 AC), ante a tradição de que Lísias teria
lá chegado com a idade de 15 anos. Críticos modernos geralmente fixam tal data em 445 AC e determinam
a ida a Turi por volta de 430 AC. Sua obra é bastante extensa e diversos discursos nos foram deixados.
Debra Nails, The People of Plato (Hackett, 2002), p. 190, e S.C. Todd, "Lysias," in Oxford Classical
Dictionary 3rd ed. (1996).
3
Logógrafos eram pessoas que escreviam os discursos a serem lidos perante a assembleia pelos clientes.
As acusações e defesas não podiam ser empreendidas por terceiros, mas pela própria parte em litigio.

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negativa de justiça (mais do que indicar o que é a justiça, ficamos diante de várias coisas
que ela não pode ser). Como bem destaca Howland 4, é interessante que na obra platônica
a voz de Lísias só assim se possa ouvir. Foi mesmo indiretamente que ele se fez ouvir
durante sua vida.

Esses são os dados biográficos de Lísias. Outros aspectos de sua personalidade,


crenças e intenções que merecem destaque estão imbricados nas conexões do discurso e
da obra platônica. Interessantes que são, devem ser abordados no momento próprio. Mais
importante que datas propriamente, é perceber a sucessão dos eventos em jogo na relação
entre os fatos históricos, o discurso proferido, a composição da “República” e data
dramática escolhida por Platão para seu desenrolar. O diagrama abaixo é importante para
a percepção das implicações dos textos.

Platão escreve
Data a República
Tirania Restauração
dramática da
dos 30 democrática Lísias
Retórica de República Derrota de Retórica de
profere"Contra
Córax Atenas Aristóteles
Eratóstenes"

3- Algumas notas acerca das origens da Retórica

Localizado temporalmente o discurso, naturalmente deveria passar a tratar de suas


partes componentes e articulação do conteúdo. No entanto, parece imprescindível que
sejam lançadas algumas notas sobre as origens da retórica e como ele se insere no seu
desenvolvimento.

Sem fazer grandes digressões, López Eire5 assinala que a oratória parece a
evolução natural daquilo que liga ao pensamento mágico, a uma mântica da palavra que
seria capaz de atingir diretamente o alvo da referência e modificar a realidade em
obediência aos desígnios do operador.

Na Antiguidade, palavras são presságios, agouros e também instrumentos da


realização da vontade daquele que as profere. Se ruins, precisam ser esconjuradas,

4
“Plato’s Reply do Lysias: Republic I and II and Against Eratosthenes”, Jacob Howland, in The American
Journal of Philology, Vol. 125, No. 2 (Summer, 2004), pp. 179-208, Published by: The Johns Hopkins
University Press. Stable URL: ttp://www.jstor.org/stable/1562196.
5
“La oratória”, López Eire; Capítulo XVII em Historia de la Literatura Griega”, coordenado por Juan
Antonio López Férez – Madrid, Ediciones Catedra, 1988.

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“levadas pelo vento”, para que sejam impedidas de impressionar as referências reais. No
pensamento primitivo, não são etiquetas, mas as própria coisas referidas que estão em
jogo no discurso.

Palavras embelezadas poderiam impressionar a vontade dos deuses (era esse, entre
outros, o poder/função dos poetas), mas logo percebeu-se, eram capazes também de
produzir “pathos” na assistência e de algo mais: o convencimento dos ouvintes.
Interessante perceber como a boa condução do discurso é apreciada e necessária até
mesmo em regimes tirânicos, disso sendo exemplo diversas passagens da “Ilíada”. Longe
de se fechar em copas, o rei tem o costume de ouvir seus nobres conselheiros, guerreiros
tão tenazes e belicosos como igualmente eloquentes.

As referências que sustentam essa linha evolutiva são conhecidas nossas:


Empédocles, exaltando o papel dos poetas; Homero, referindo os conselhos dos reis; e
Górgias, com seu “Elogio de Helena”, num mais recente exemplo de como já era
apreciada a habilidade de construir discursos despidos da forma de poemas.

Ao siracusano Córax é atribuída a invenção da oratória. A verossimilhança é tida


como elemento imprescindível de um discurso destinado a convencer, ao contrário do
singelamente verdadeiro. Importa mais ser crível que real6.

Segundo seu modelo, um discurso deveria ser formado de quatro partes (proêmio,
narração, testemunhas, epílogo) e, como dito, ser capaz de convencer. Manuais e volumes
de discursos hipotéticos surgidos após (provavelmente os paradigmas de Lísias)
certamente seguiram esse modelo. A propósito, o ensino de retórica dava-se também por
manuais que estabeleciam as regras a serem seguidas e por coleções de exemplos, alguns
baseados em casos reais e outros aparentemente em meras hipóteses.

4- Qual o modelo seguir, o de Córax ou o de Aristóteles?

6
López Eire refere anedota atribuída a Córax segundo teria ele perguntado seus alunos como deveriam agir
dois homens em litígio, quem deveria ser verdadeiro perante o tribunal, sendo a vítima homem forte e
covarde e o agressor homem franzino e destemido. Após ouvir as respostas, teria advertido que nenhum
dos dois deveria ser fiel aos fatos. Para convencer os juízes, o homem forte deveria narrar que o agressor
estava acompanhado de outras pessoas que lhe aplicaram uma surra, enquanto o homem franzino mas
agressivo deveria sustentar sua fragilidade e incapacidade de bater em oponente mais forte. Importante seria
convencer… López Eire, op. cit., pg. 744.

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Constata-se facilmente que o modelo estabelecido por Córax é bastante


simplificado em relação àquele de Aristóteles em sua “Retórica” 7. Certamente Aristóteles
estabeleceu seu perfil de discurso judicial a partir da observação de discursos havidos
mais recentemente, já distantes daquilo primitivamente preconizado por Córax e
observado numa Atenas que se abria às inovações literárias da Jônia após sair-se vitoriosa
nas guerras médicas.

O modelo do Livro III da “Retórica” dividindo o epílogo em quatro partes serviria


mal para o exemplo tão longínquo. Toma-se assim uma organização simples contendo
proêmio, narrativa, testemunhas, epílogo, o que permitirá ágil e eficiente visão do texto.

5- Anatomia do discurso objeto de análise. Proêmio, Narrativa, Testemunhos e


Epílogo

“Contra Eratóstenes” é um discurso acusatório contra um tirano que prendeu,


roubou e finalmente determinou a morte de Polemarco por cicuta. Considerada a
gravidade da conduta, a pena que lhe é prevista, sabemos que se trata de uma “graphé”,
acusação escrita (categoría, por oposição às analogias, discursos defensivos).

Trata-se de um discurso de vingança – pura e retributiva – aliada à expressa


ameaça de que o acusado poderia voltar a tripudiar sobre a polis caso se ficasse livre da
pena capital. Magnificamente composto e proferido, teria levado às alturas a fama de
Lísias, apesar do insucesso da empreitada de punição do réu. As boas relações do acusado
com o partido democrata garantiram-lhe a benevolência dos cidadãos reunidos em
assembleia.

É forçoso lembrar do processo contra Sócrates, como podem ter pesado para sua
condenação suas relações pessoais e conhecida influência sobre os mais destacados dos
tiranos (Crítias e Alcebíades). Naquela democracia restaurada, havia espécie de anistia
negociada. Esses processos se valiam de pequenas brechas na cláusula de perdão

7
“O epílogo compõem-se de quatro partes. A primeira consiste em predispor o auditório a nosso favor e
contra nosso opositor; a segunda parte cumpre a função de amplificar ou atenuar o que foi dito; à terceira
cabe a função de estimular as paixões do auditório; finalmente, a quarta consiste em fazer uma
recapitulação.” Aristóteles, “Retórica”, 1419b, tradução de Edson Bini – São Paulo, EDIPRO, 2011, pg.
288.

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estabelecida quando do armistício que sucedeu a vitória dos democráticos sobre o Regime
dos 30.

É curto o proêmio do discurso e impressiona o paralelismo que se pode encontrar


com a “Apologia”8. Ambos os oradores fazem referência à sua pouca prática na defesa de
causas perante o tribunal, brandem com a verdade, fidedignidade aos fatos desde seu
início. Seguindo aquilo que indicou Córax, o proêmio, assim como todo o resto do
discurso, pretende apelar à emoção de uma cidade recentemente dilacerada por uma
custosa derrota militar e por um sanguinário período de perseguições internas. É
pertinente a reprodução9:

Difícil não me parece, senhores juízes começar este libelo; sim, terminá-lo.
São em tão grande número e de tamanho vulto os crimes dos Trinta, que nem
mentido se poderiam assacar mais terríveis que os reais, nem, querendo dizer
a verdade, referir todos; por força, ou havia de se cansar o acusador, ou de se
esgotar o tempo. Vai-nos acontecer o contrário do que ocorria até hoje. Antes,
cumpria aos acusadores demonstrar a razão do ódio votado aos réus; hoje, é
mister indagar dos réus a razão do ódio à pátria, que os acoroçoa a cometer tais
crimes contra ela. Não digo isso por me faltarem pessoalmente razões de ódio
e desgraças; todos nós temos de sobra motivos de ordem particular e de ordem
pública para exacerbação. Quanto a mim, senhores juízes, jamais advoguei
uma causa, própria ou alheia; se estou acusando esse indivíduo, fui
constrangido a isso pelas circunstâncias; por isso, muitas vezes me vejo
assaltado de profundo desalento, temeroso de, por inexperiência, apresentar,
em meu nome e no de meu irmão, uma acusação não proporcionada ao crime
e ineficiente. Tentarei, não obstante, pôr-vos ao corrente de tudo desde o início,
com a possível concisão.

A partir daí, Lísias inicia a narrativa de como sua família veio a se mudar para
Atenas e como foi vítima da perseguição dos Trinta (passos 4 e seguintes).

Como apontado por Howland 10, Lísias trata de caracterizar Eratóstenes e os


demais integrantes do grupo dos trinta com os seguintes traços próprios do tirano:

8
“Mas uma coisa vos peço Atenienses, e insisto neste ponto: se me ouvirdes defender-me com as mesmas
palavras que costumo usar, quer na praça pública, junto aos balcões dos mercadores, onde muitos de vós
me tendes escutado, quer noutros lugares, não vos admireis nem protesteis por causa disto. É que minha
situação é a seguinte: pela primeira vez compareço perante um tribunal, depois de setenta anos de idade.
Encontro-me, por isso, alheio de todo o gênero de linguagem aqui empregado...” “Apologia”, Platão, 17c,
17d. “Apologia de Sócrates. Críton.”, tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa, Edições 70, 2007.
9
“Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas liminares de Jaime
Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968, pg. 23. A edição compulsada para a elaboração do trabalho se
ressente da falta de referencias aos passos, orações do grego original. Para não tornar cansativa a leitura,
deixar-se-á de copia-lo quando for necessário referir outras partes relevantes do discurso, inserindo
remissões às marcações encontradas na cópia em espanhol encontrada em
http://pt.scribd.com/doc/89096162/Lisias-Contra-Eratostenes-Alma-Mater. O proêmio corresponde aos
passos 1 a 3.
10
Howland, op. cit..

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- moviam-se sob a máscara da justiça, como se a cidade livrassem de grande


ameaça;
- serviam-se da autoridade pública para benefício privado, pessoal;
- querendo enriquecer a qualquer custo, para isso cometiam todos crimes pelos
quais ficaram conhecidos, despojando preferencialmente metecos ricos de seus
bens, sem expediente para defesa, sem qualquer “due process of law”, formal e
muito menos material;
- não temiam aos deuses (outra referência comum ao julgamento de Sócrates);
- não respeitavam os serviços fúnebres nem mesmo os limites da vida privada
(querela de Antígona...);
É ali que Lísias, sempre incluindo Eratóstenes no conjunto dos Trinta, relata a
prisão de certo número de metecos ricos juntamente com dois pobres, apenas no interesse
de travestir sua injustiça e cobiça sobre seus bens. A justificar seus atos, a suposta ameaça
que representariam para Atenas. O martírio de Polemarco é retratado com detalhes: como
foi preso por Eratóstenes pessoalmente na rua e levado para casa onde foi despojado de
seus bens, inclusive joias pessoais da esposa; como os bens que lhes eram tirados para
reforço do erário, resultaram no enriquecimento pessoal dos tiranos; como foi-lhe
ordenado tomar cicuta sem prévio julgamento nem mesmo um lençol e travesseiro
mortuário para o enterro.

Mais que isso, o orador relata que casamentos foram impedidos por ordem dos
tiranos; que, fingindo acreditar, juravam pelos deuses garantir liberdade a quem os
subornassem e ainda assim descumpriam sua palavra (é apenas com sua habilidade e sorte
que Lísias escapa da morte certa, apesar de haver pago mais do que o combinado para
livrar-se da execução). Tais fatos rapidamente disparados constituem a narrativa.

De interesse que Lísias interrogue o réu, que, em sua defesa, afirma que cometeu
esses atos por temor de morte nas mãos dos demais tiranos. Após desmascarar o acusado
e afirmar que os mortos, que o morto Polemarco clama por vingança, o acusador diz que
não precisaria prosseguir por já haver demonstrado a necessidade da condenação de
Eratóstenes à morte, aí encerrando-se a narrativa (passos 37/42).

A parte seguinte é concernente à oitiva de testemunhos. O texto que chegou à


contemporaneidade não dispõe de nada acerca do conteúdo dos depoimentos. A cada
testemunha ouvida, seguem-se comentários do próprio Lísias a secundar ou contrastar as

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versões e circunstâncias que surgiam acerca da conduta do acusado. É o terceiro e extenso


momento do discurso judiciário, que vai do passo 43 ao passo 89.

O discurso é mesmo judiciário, pouco jurídico, por se amoldar mais à uma práxis
judicial, com a formalidade da administração da justiça, pouco ou nada se preocupando
com a indicação das leis violadas. Ressoa óbvio que o julgamento é político. Não há aqui
uma causa cível onde se discute entrega de mercadorias, termos concretos de um contrato
entre partes, mas a violação indistinta de uma série de regras, costumes que não precisam
ser escritos para impor-se como cogentes.

Voltando ao discurso propriamente dito, percebe-se a transição dos comentários


aos últimos dos depoimentos para a introdução do epílogo no momento em que se
conclama os juízes a manifestarem sua visão dos fatos tomando o partido das vítimas e
da cidade pela condenação à morte do réu ou a se alinharem aos tiranos no caso de sua
absolvição (passos 90/91).

Longo também se mostra o epílogo quando comparado ao proêmio. Seguindo o


que orienta Córax11, novamente o tom emotivo é realçado para crescente reclame de
condenação e vingança das vítimas injustamente ceifadas pelos tiranos. A multidão dos
delitos é novamente apontada, assim como no início do discurso, numa retomada de sua
ideia geral. Assim como ali se fez, é válida a transcrição dos últimos passos do texto, que
falam por si só e demonstram tais assertivas:

Não quero, porém falar do que aconteceria, se nem posso referir quanto
fizeram os Trinta; não bastaria para isso um ou dois acusadores; é tarefa para
muitos. Contudo, ponto todo meu ardor em lastimar os templos e objetos de
culto, por eles vendidos ou maculados por sua presença; a cidade, por eles
apequenada; os arsenais, por eles destruídos, e os mortos; como a estes não
pudestes amparar em vida, defendei a sua causa na morte. Eles, imagino, estão
ouvindo a nossa voz e vos conhecerão pelo voto que derdes; por quantos de
vós absolverdes os Trinta, eles considerarão condenados à morte e, por quantos
punirdes esses indivíduos, eles se considerarão vingados.
Concluo aqui meu libelo. Vós ouvistes, vistes, sofrestes; ele está em vossas
mãos; julgai-o.12

11
Os detalhes da arte do discurso e sua divisão em quatro partes teriam sido reunidas em uma obra por seu
discípulo Tísias. O proemio é destinada a conseguir a atenção dos membros do júri e captar sua
benevolência. A narração o momento adequado a expor fatos com claridade e concisão. A demonstração o
momento de trazer as provas e fazer considerações sobre os fatos expostos no momento precedente. E
finalmente o epílogo o momento em que se faria uma síntese da demanda, das provas produzidas e quando
se procura provocar a emoção dos julgadores. López Eire, op. cit., pg. 744.
12
“Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas liminares de Jaime
Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968, pg. 37. O trecho corresponde aos passos 99 e 100.

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7- Interlocução com a “República”

Na seção precedente, foram identificadas as partes componentes do libelo de


Lísias. Em instigante artigo, Jacob Howland trata de contrapor o conteúdo do discurso
com numerosas passagens dos Livros I e II da “República” que parecem trazer evidentes
considerações de Platão acerca de Lísias e da arte que manejava com maestria, além da
conhecida desconstrução do discurso anti-erótico em “Fedro”.

Tudo está a indicar que Platão carregou mesmo nas tintas, a ponto de ser desleal
com a tragédia que se abateu sobre a família dos ricos estrangeiros que se radicaram em
Atenas. Talvez tenha passado ao largo da singeleza de uma “não-carta de amor”, vã
tentativa de ocultar o indisfarçável. Inveja da arte? Ciúmes do sucesso obtido pelos
retóricos? Em certa medida, parece que sim.

Rememorando Polemarco na “República”, temos que todo o esforço do Sócrates


é o da desconstrução da sentença de Simônides papagaiada pelo rapaz que se quedará
vítima dos trinta tiranos13. Antes disso tem-se Céfalo afirmando que sua riqueza
auxiliava-o com a Justiça. O terrível destino de Polemarco (“herdeiro do discurso
paterno”14), de todos conhecido por ocasião da escrita da “República” desmente o velho,
numa ironia do destino que beira o mau gosto, caso inteiramente inventada.

Há ainda uma passagem em que ele se levanta levando um travesseiro, cioso de


seus deveres e orgulhoso de sua riqueza. É essa riqueza que atrairá a desgraça sobre seu
filho Polemarco, a quem nem mesmo um travesseiro mortuário será permitido. Há muitas
outras passagens significativas no texto de Howland, a quem se remete a leitura.

No entanto, considerando a busca incessante da justiça que atravessa a


“República” de Platão, não é esse o aspecto fundamental de aproximação de seu texto
com a categoría15 de Lísias. Há um contraste maior e mais fundamental, atinente à visão
da vítima e do querelante acerca de tal valor fundamental. Assim como Lísias coloca na

13
“Fala então, disse eu, já que és quem vai herdar nossa discussão... Quanto ao que disse Simonides sobre
a justiça, em que achas que ele está certo? – Em dizer que é justo devolver a cada um o que lhe é devido,
disse ele. Quando diz isso, parece-me, ele tem razão”. “República”, Platão, 331e. “A República”, tradução
de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins Fontes, 2006, pg. 9.
14
“República”, Platão, 331d. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo,
Martins Fontes, 2006, pg. 8.
15
Diz-se categoría do discurso judiciário de acusação. Apologia o discurso de defesa, como o proferido
por Sócrates por ocasião de seu julgamento em Atenas.

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boca do morto Polemarco o clamor da vingança, Platão faz dele o interlocutor harmonioso
com Sócrates (após certa discussão, é claro), no sentido de que a justiça não se compraz
com essa mesma vingança.

Lembremos que, no Livro I, Polemarco afinal concorda com Sócrates que o


homem justo não faz o mal sequer aos inimigos16. A justiça é a virtude humana e não tem
o condão de piorar os homens, mas de melhorá-los. O mal proporcionado ao inimigo teria
o efeito de piorá-lo e não poderia ser assim dela oriundo.

Ora, Platão faz isso manipulando habilmente a data dramática para antes da
perseguição a Polemarco e assim parece desmontar a verossimilhança da acusação, ao
passo que também coloca Lísias silente na mesma cena. O Livro I da “República” parece
dizer: Polemarco jamais clamaria por vingança, Lísias sabe disso, esteve lá e mente ou
muito pior: não compreendeu que a justiça não se faz com o retribuir mal com mais mal.

Por que não entendeu nada? Por força de sua equivocada trajetória em contraste
com o caminho filosófico tomado por Polemarco. Tornando-se logógrafo/retórico parece
ter desprezado a efetiva busca verdade para privilegiar a lucratividade de sua atividade.

Há mais e, aqui, voltamos a referir o diálogo “Fedro”. Lísias é aquele que não ama
(ou que diz que não ama; é aquele que se envergonha de amar) e por isso seria incapaz de
voltar-se para o mais alto 17. Se não ama é incapaz de alcançar o conhecimento, diria
Platão. Mais que isso, estabelece seu foco na vantagem que possa tirar de tudo o que faz,
inclusive nas relações amorosas. Platão parece querer retratá-lo no “Fedro” como um
prostituidor/prostituído que não merece crédito.

É forte a assertiva, mas se voltarmos à “República” tendo tudo isso em mente,


percebemos como as indiretas (nem tanto) referências a Lísias têm como alvo primário o
papel da retórica e sua incapacidade de proporcionar ao homem um efetivo bem. A

16
“Mas, com a justiça, os homens justos são capazes de tornar os outros injustos? Ou, falado de maneira
mais geral, com a virtude os bons são capazes de tornar maus os outros? – Mas é impossível! – Não é, creio,
tarefa do calor o tornar frio, mas o seu contrário. (...) – Ah! Não é tarefa do homem justo, Polemarco,
prejudicar nem o amigo nem a nenhum outro, mas o do seu contrário, o homem injusto. – Parece-me
Sócrates verdade o que dizes. – Ah, Se alguém afirma que é justo devolver a cada um o que lhe é devido, e
se para ele isso significa que aos inimigos, da parte do homem justo, o devido é causar-lhes prejuízo, mas
aos amigos prestar ajuda, não seria sábio quem o diz, pois sua afirmação não é verdadeira”. “República”,
Platão, 335d/335e. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins
Fontes, 2006, pg. 16.
17
“Sabes em que situação me encontro, como penso que já te falei nas vantagens para ambos de realizarmos
isso. Tenho que minhas pretensões não poderão frustrar-se , justamente por eu não pertencer ao número de
teus apaixonados...”. “Fedro”, Platão, 231A. “Fedro” tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Ed. UFPA,
2011.

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comparação do papel e efeito da culinária com o objetivo e efeitos da Medicina para


enaltecer a última e relegar à primeira o papel de apenas seduzir os sentidos, possui óbvio
correlato entre a retórica e a Filosofia 18.

A retórica operada por Lísias teria o mesmo papel da culinária, só que dirigida à
alma. Seduz mas não beneficia. Lísias é alguém incapaz de proporcionar benefício à alma
dos ouvintes com sua arte. Apenas seduz, sem propiciar conhecimento, ao contrário do
filósofo.

8- Conclusões

Diante das considerações acima estabelecidas, pode-se concluir que:

1. a categoría de Lísias insere-se na tradição retórica da Antiguidade Clássica


seguindo uma conformação mais arcaica ditada por Córax, sendo facilmente
identificáveis suas quatro partes (proêmio – 1/3; narrativa 4/42; testemunhos –
43/89; epílogo 90/100);
2. seguindo essa tradição que tem origens no pensamento mágico e no poder que se
atribuía (e ainda se atribui) ao simples proferir de palavras, Lísias buscou construir
seu discurso explorando a carga emotiva dos fatos tratados e a verossimilhança de
seus argumentos com o fim de produzir “pathos” na assembleia e obter seu
convencimento.
3. numerosas são as referências ao discurso de Lísias nos Livros I e II da “República”
e no “Fedro” de Platão, que nunca lhe disponibiliza o uso da palavra por voz
própria em sua obra.
4. a manipulação da data dramática da “República” foi conscientemente operada por
Platão para desconstituir toda a verossimilhança do argumento emocional inserto
na categoría de Lísias.
5. o esforço de Platão, mais do que se dirigir a desmistificar a fama do logógrafo
irmão de Polemarco, está centrado na disputa entre a Filosofia e a Retórica pelo
papel de arte capaz de alcançar efetivo conhecimento e acessar a Verdade.

“18 “República”, Platão, 332c. “A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo,
Martins Fontes, 2006, pg. 10.

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Revista Aproximação – 2º semestre de 2013 – Nº 6

Bibliografia

“Retórica”, Aristóteles; tradução, textos adicionais e notas de Edson Bini – São Paulo,
EDIPRO, 2011.

“Contra Eratóstenes” em “Eloquência Grega e Latina”; tradução, introdução e notas


liminares de Jaime Bruna – São Paulo, Editora Cultrix, 1968.

“La oratória”, López Eire; Capítulo XVII em Historia de la Literatura Griega”,


coordenado por Juan Antonio López Férez – Madrid, Ediciones Catedra, 1988.

“Plato’s Reply do Lysias: Republic I and II and Against Eratosthenes”, Jacob Howland,
in The American Journal of Philology, Vol. 125, No. 2 (Summer, 2004), pp. 179-208,
Published by: The Johns Hopkins University Press. Stable URL:
ttp://www.jstor.org/stable/1562196.

“Contra Eratóstenes, El que fué de los Treinta, que pronunció el propio Lisias”, tradução
espanhola de autoria desconhecida, encontrada em
http://pt.scribd.com/doc/89096162/Lisias-Contra-Eratostenes-Alma-Mater, acesso em 25
de novembro de 2012.

“A República”, tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado – São Paulo, Martins
Fontes, 2006.

“Apologia de Sócrates. Críton”, tradução de Manuel de Oliveira Pulquério, Lisboa,


Edições 70, 2007.

“Fedro”, Platão, tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Ed. UFPA, 2011.

Recebido: 02/2013
Aprovado: 06/2013

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