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1 Este trabalho é fruto da pesquisa O medo como prazer estético: o Horror, o Sublime e o Grotesco na nar-
rativa ficcional brasileira (E-26/200.739/2015), desenvolvida durante o período de Iniciação Científica
(01/04/2015 a 31/03/2017), sob subsídio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Esta-
do do Rio de Janeiro (FAPERJ).
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uimarães Rosa, ao dizer que “[o] sertão aceita todos os nomes: aqui é Gerais,
lá é o Chapadão, lá acolá é a caatinga” ou que “o sertão está em toda a parte”
(Rosa, 1994: 4), diverge daquilo que seria o ponto de vista clássico da geografia e
revela-nos também a impossibilidade de se descrever o sertão brasileiro objetivamente.
Não são apenas as características do meio natural – o clima, o relevo, a vegetação etc. –
que o determinam, tampouco o faz a ação da mão humana. Inexiste, pois, um espaço
geograficamente delimitado, cujas atribuições naturais permitam sua classificação
como um local consistentemente sertanejo: “[o] sertão é sem lugar” (Rosa, 1994: 500).
Deve-se considerar, contudo, que há a prevalência de certos elementos naturais
associados a sua identificação, como a predominância do ritmo rural coordenado pela
dinâmica da natureza, ao qual o homem se subordina. A intervenção humana sobre a
superfície da terra pouco se relacionaria, assim, com a categorização “sertão”: as atividades
produtivas ali praticadas e as suas consequências não seriam fatores que qualificariam,
peremptoriamente, o ambiente sertanejo. Nas palavras de Moraes (2003: 2):
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a elite urbana enxergava o sertão de forma similar à visão dos colonizadores europeus
da época, que viam as colônias como uma área de riquezas potenciais, cuja exploração
era dificultada pela presença dos nativos, considerados inferiores e bárbaros.
A partir dessa cisão entre o espaço da cidade e o do sertão, Albertina Vicentini
(1997) explica, em O regionalismo de Hugo de Carvalho Ramos, duas tendências
de pensamento no mundo intelectual brasileiro da República Velha que ratificam
a observação de Needell: (i) uma ancorada na visão evolucionista de Euclides da
Cunha, em que o sertão, entendido como um espaço bárbaro e marcado por um
atraso natural, precisaria passar por um processo de “evolução” e de desenvolvimento;
e (ii) outra, sustentada pelas ideias eugênicas de Monteiro Lobato, que apontava para
a “correção” do sertão, eliminando suas características, que envergonhavam a nação.
Essas duas visões apontam para o fato de que o sertão deveria ser superado
por meio de sua colonização ou eliminação. Inúmeras narrativas descreveram-
no, portanto, como o “além-Brasil”, o habitat do Outro, visto sob a perspectiva
do homem letrado, europeizado das cidades brasileiras. Temos, pois, o choque
cultural característico do Gótico Colonial, porém, em vez de se tratar do atrito entre
colonizadores europeus e povos de continentes dominados, tem-se o confronto entre
os valores urbanos e os rurais/sertanejos.
A mentalidade neocolonial presente nos grandes centros urbanos brasileiros
julgava, portanto, o sertão como um espaço pertencente a um tempo de atraso e
primitivismo. Sua representação em vários textos do regionalismo confirma as
considerações de que ele e seus habitantes constituíam empecilhos ao Brasil da Belle
Époque.
Afonso Arinos, com o conto “Feiticeira” (1921, publicação póstuma), Bernardo
Guimarães, com a narrativa “Jupira” (1872), e Coelho Neto, com o livro Sertão (1896),
são exemplos de escritores que expuseram o sertão sob o viés do Gótico Colonial,
principalmente aquele no qual o nativo e sua cultura − nesse caso, o sertanejo −
configuram-se como uma ameaça ao Brasil europeizado das grandes cidades. Para
isso, narraram eventos brutais e hediondos – sobrenaturais ou não –, em que a própria
natureza do sertão açoita sua população, que, por ser mestiça e negra, era considerada
degenerada e inferior.
Tomemos os contos “Praga” (1890) e “Os velhos” (1896)2, de Coelho Neto, como
demonstração do modo como a narrativa ficcional brasileira do final do XIX descrevia
as terras sertanejas a partir da lente do homem letrado citadino, caracterizando o que
entendemos serem as marcas do Gótico Colonial na literatura sertanista do Brasil.
3. A vingança materna
A trama de “Praga” desenvolve-se num pequeno povoado sertanejo, Santa Eulália,
onde uma doença se espalha por entre a população. Ao descrever a localidade, o
narrador não somente enfatiza a presença do passado colonial, representando o espaço
2 As narrativas “Praga”, publicada pelo Correio Paulistano (21/01/1890) e pela Revista Ilustrada (28/06/1890),
e “Os velhos”, publicada em folhetim a partir de 5 de julho de 1896 na Gazeta de Notícias, compuseram,
juntamente com outros cinco contos de Coelho Neto, o livro Sertão, lançado em 1896.
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A aparição está em busca de vingança, perseguindo seu filho, que foge por uma
floresta labiríntica. No desfecho da narrativa, Raimundo morre da mesma maneira
que sua mãe, afogado no pântano do sertão – um epílogo plenamente condizente com
as narrativas da tradição gótica, em que o passado retorna para assombrar o presente.
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4. Um sertão enfermo
A narrativa “Os velhos” conta, por sua vez, a história de vida do casal Romana e
Thomé Saíra, que viviam numa colina distante do povoado. Observa-se, como ocorre
em “Praga”, o mesmo procedimento de estabelecer excluídos entre os excluídos. O
isolamento das duas personagens duplica a exclusão produzida pelo próprio sertão,
tornando-as vítimas potenciais dos efeitos de se viver para além das fronteiras
civilizatórias – um tema recorrente na retórica discursiva do Gótico Colonial.
Romana conhecia “a virtude das ervas e o valor das rezas [...] para todos os
males, desde o quebranto das crianças até para ajudar a morrer” (Coelho Neto, [1896]:
233), constituindo-se como a típica figura da curandeira. Já Thomé Saíra, crescido nos
sertões, era um desbravador e trabalhador, arquétipo do sertanejo, que nada temia
salvo eventos sobrenaturais: “[h]omem d’alma ingênua, [...] Thomé Saíra respeitava,
com terror supersticioso, todas as abusões” (Coelho Neto, [1896]:234).
Como em “Praga”, explora-se também a temática das enfermidades no interior
do Brasil, já que ambas as personagens eram doentes: Romana tinha erisipela, e
Thomé, catalepsia, patologia que deixa os músculos rijos, fazendo com que o doente
aparente estar morto. A mórbida condição cataléptica, por si só, é um tópos gótico,
tendo servido de motivo para narrativas de Allan Poe e de Álvares de Azevedo. É,
principalmente, ela que provoca as angústias e o medo nas personagens. Thomé
teve sua primeira crise na porta de casa, deixando sua esposa atônita ao presenciar o
espetáculo grotesco da doença (Coelho Neto, [1896]: 240):
Thomé Saíra, d’olhos opacos, não dava sinal de vida: o coração parecia
parado, as extremidades esfriavam, a pele ia-se-lhe tornando lívida e baça
e enrugava, as órbitas cavavam-se, as maçãs tornavam-se mais e mais
salientes e a boca, entreaberta, deixava ver os dentes cerrados, negros do
sarro do fumo e aguçados como os das feras.
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Adão aceita ajudar o casal apenas em troca de favores sexuais de Romana. Ela,
a princípio, não rejeita a proposta, mas, ao retornar a casa e ver o marido recuperado,
volta atrás no acordo. O feiticeiro roga, então, uma praga contra os cônjuges, que, ao
longo da narrativa, sofrem com o flagelo da doença de Thomé.
Depois desse evento, o narrador passa a focalizar os medos de Saíra, que associava
seu sofrimento à culpa por ter ferido gravemente outra personagem, Silvino Peba. O
maior terror de Thomé consistia, contudo, em ser enterrado vivo. Ele insistia com a
esposa para que, caso tivesse outra crise cataléptica, ela esperasse por sua recuperação.
O sertanejo, de um homem ativo e trabalhador, transforma-se drasticamente: o receio
da doença aumenta, tornando-o paranoico e limitado aos cuidados de Romana. Uma
consequência imediata é a transformação que se opera nas terras do casal, que se
arruínam ao passo que a natureza selvagem retoma os campos cultivados.
Uma nova crise cataléptica, por fim, acontece. Romana, atendendo à instrução
de Thomé, aguardou por semanas o restabelecimento da saúde do companheiro, o
que não ocorreu. A casa exalava cheiro pútrido, que a curandeira não desconfiava
vir do corpo já em decomposição do marido. Foi somente ao trocar a roupa de cama,
onde jazia o moribundo, que Romana, espantando um enxame de moscas, se deu
conta de que o corpo do marido apodrecia (Coelho Neto, [1896]: 288-289):
[...]
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