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Introdução
A pressa do dia-a-dia, o valor social das novidades e a tecnificação do modo de vida urbano
não permitem ao velho formas de expressão e de satisfação adequados às suas necessidades
assim como falta lugar e tempo apropriados para interagir. Fica, o mesmo, à margem da
sociabilidade corrente no lar e na cidade. No lar, não raro é considerado como um estorvo,
mesmo quando a condição de estabilidade econômica e social dos demais membros da
família derivam de seu esforço. Sua renda pode constituir-se fonte importante de provimento
do domicílio, na forma de aposentadoria ou resultante do patrimônio que gerou; seus
serviços domésticos podem ser úteis no trato das rotinas da casa, como cuidador regular dos
bens e das crianças; e, no entanto, o desprestígio persiste. É corrente a representação do
velho como um fardo que a família moderna carrega, sendo socialmente aceitável descartá-
lo da convivência diária tão logo não esteja apto às funções supra, as últimas que restam
quando os papéis ativos na cidade também lhe são negados e o território adquire uma
dinâmica apartadora lastreada nas novidades.
Não haver lugar para o velho na cidade não implica, contudo, que este território seja
agradável à fruição dos demais. Embora sua reinvenção quotidiana, a cidade que descarta os
antigos do lugar também descarta os mais pobres, as crianças, o meio ambiente natural,
introduzindo uma paisagem tecnologizada que mal acoberta os aspectos decompósitos e
degradados da vida social dos que lá se inserem.
No Brasil, as cidades são sistemas com baixa reflexividade, isto é, seus processos e fixos são
passíveis de produzir riscos aos cidadãos sem que haja vontade política de reconhecê-los e
reduzi-los na medida das necessidades coletivas. Sabe-se que danos à saúde por poluição
atmosférica decorrem da comodidade dos veículos movidos a combustão fóssil, mas há uma
indisposição para discutir abertamente essas correlações e assumir-se decisões em torno de
outras alternativas de locomoção. Este é um dos exemplos de que as condutas cotidianas na
cidade orbitam num individualismo desintegrador de um projeto social mais saudável.
A memória tem um valor intrínseco como experiência coletiva. É ela quem confere sentido às
relações sociais e ao território que historicamente tais relações produzem.
O sujeito privilegiado para portá-la é o velho. O mundo dos velhos é o da memória, através
da qual se reconhece, se identifica:
(...) somos aquilo que lembramos (...) a nossa riqueza são as lembranças que conservamos
e não deixamos apagar e das quais somos o único guardião. (...)se o mundo do futuro se
abre para a imaginação, mas não nos pertence mais, o mundo do passado é aquele no qual,
recorrendo a nossas lembranças, podemos buscar refúgio dentro de nós mesmos, debruçar-
nos sobre nós mesmos e nele reconstruir nossa identidade. (Bobbio, 1997, p. 30 e 54).
A memória não conta apenas a história do indivíduo, mas de seu grupo. Produz elos entre os
significados do presente e do passado para o coletivo de sua convivência. Muito da afirmação
social do velho reside em que possa dizer ao grupo sobre os porquês de processos
temporalmente extensos, cujas influências se faz sentir mas cujos significados fogem à
compreensão imediata dos mais novos do lugar. Uma vez que o diga, dá às imagens, às
representações e aos valores do passado condições de submeterem-se a um novo crivo no
qual o grupo encontra razões diferentes para preservá-los ou transformá-los.
A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado
para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva
sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (Le Goff, 1996, p. 477).
À medida em que a memória escrita acrescentou-se à memória oral, tornou-se mais difícil
aceitar aqueles a quem cabia, pela repetição, guardar os valores e a trajetória do grupo. A
relação com a realidade passou a se constituir menos das impressões sensoriais sobre os
acontecimentos importantes para manter a coesão do grupo e mais de formulações
racionalizadas a forjar instrumentalmente às conformações políticas de um poder
distanciado. As imagens que cabiam na memória oral tornaram-se distintas daquelas que os
documentos oficiais passaram a suscitar. Sujeitos, propósitos e temporalidades diferentes
movem ambas as memórias, a oral e a escrita. A consciência do tempo e do grupo já não
compete ao ente vivo mas ao instrumento, que pode transcedê-lo.
A memória coletiva possibilita, por um lado, integrar indivíduos e, por outro, evocar traços e
problemas da memória histórica ou da memória social.
Os laços de convivência familiares, escolares, profissionais são alguns dos quais a memória
passa como corrente, compondo significados e condutas comuns e/ou complementares. É
um fator unificador na medida em que é o grupo quem lhe dá suporte, as lembranças se
afirmando umas nas outras, formando um sistema (Bosi,1994), embora cada memória
individual seja um ponto de vista sobre a memória coletiva, prenhe de elementos adquiridos
durante a experiência de vida do indivíduo (Halbwachs,1990). Assim, para que lembranças
possam ser rememoradas e reconhecidas, é preciso que essa rememoração se opere a partir
de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no espírito do indivíduo quanto no
do coletivo com o qual interage “(...)porque elas passam incessantemente desses para
aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma
mesma sociedade” (Halbwachs, 1990, p. 34).
O velho, como depositário privilegiado da memória coletiva, tem uma importante função
social ao trazer à tona memórias esquecidas ou não conhecidas, que correm em paralelo à
memória oficial e escrita, podendo, com isso, ampliar a compreensão do conteúdo das
últimas. Se a memória pode ser representativa de um grupo social, fonte legítima de
informação e reconstrução dos acontecimentos que repercutem na história de dada
sociedade, pode revelar aspectos desconhecidos de eventos conhecidos bem como aspectos
desconhecidos de eventos igualmente ignorados. O desconhecimento faz da memória uma
fonte histórica diferente de todas as outras, e o velho seu informante privilegiado por “poder
contar não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo
e o que agora pensa que fez” (Portelli, 1997, p. 31), trazendo perspectivas diferentes sobre
um mesmo evento.
No geral, o valor social do velho, e o exercício de sua cidadania, está depositado na inserção
num espaço formal de trabalho. Fora desse, está inserido em relações unilaterais e
estigmatizantes, nas quais o velho já teria cumprido seu papel. A aposentadoria efetivaria a
substituição do velho pelo novo, a experiência de toda uma existência tida como algo
plenamente absorvida pelo grupo em idade ativa; ou melhor, sua memória seria vista como
um arsenal de informação prescindível, portanto, uma memória descartada. A ruptura das
relações econômicas desqualifica as relações extra-econômicas e há uma progressiva
marginalização do velho e, portanto, de um conjunto de direitos de cidadania deste sujeito.
Daí, porque muitos são os velhos que insistem em permanecer no exercício de seu trabalho,
para não perder a sua identidade, perante o outro, como sujeito capaz. A aposentadoria, que
secundariza as relações do jovem com o velho, é um processo de silenciamento progressivo
da memória coletiva de que ele é guardador. E isso leva a uma morte de aspectos da vida
coletiva do qual o grupo não se dá conta.
Ao ver uma paisagem que o rodeia ser modificada, o velho, para quem essa paisagem era
parte de seu universo e cujas lembranças se ligavam a essas imagens, agora perdidas, sente
que parte de si mesmo está se perdendo também e lamenta ter vivido tanto tempo para ver
isso acontecer.
(...) perder seu lugar no recanto de tal rua, à sombra daquele muro, ou daquela igreja, seria
perder o apoio de uma tradição que as ampara, isto é, sua única razão de ser. (Halbwachs,
1990, p. 138).
Ao abordar os vínculos de antigos moradores com o seu lugar, Bosi (1994) identificava as
perdas simbólicas associadas às paredes ruídas, aos jardins cimentados. Não seria a tristeza
do indivíduo a mudar o rumo das perdas, mas a força de suas relações:
(...) só o grupo pode resistir e recompor traços de sua vida passada (...) Quando não há
essa resistência coletiva, os indivíduos se dispersam e são lançados ao longe, as raízes
partidas (Bosi, 1994, p. 452).
A recuperação desse passado, dessas paisagens destruídas, por meio das lembranças
partilhadas desses indivíduos, faz deles novamente um grupo, cria a resistência necessária
para manterem-se juntos, coesos, vivos. O vínculo social é, pois, o que dá significado às
casas, às praças, e é o que as podem reconstruir. Se os vínculos se vão, todo o resto que se
mantenha perde sentido e o que se desmaterializou não mais é refeito. A resistência do
grupo, mantendo viva a memória das paisagens, dá persistência ao lugar. O espaço ocupado
pelo um grupo fica demarcado. Mesmo apagando-se as marcas, ficam os rastros. A memória
do grupo permanece. A memória só morre quando o grupo desaparece. O espaço recebeu as
marcas do grupo e o grupo também está marcado pelo espaço que ocupou. Somente o grupo
conhece bem as trilhas que esse espaço possui, porque suas trilhas são as trilhas de sua
vida, ambas intrinsecamente ligadas.
O recurso da memória pode trazer, para os fóruns ambientais, por exemplo, uma outra
tradução dos acontecimentos do lugar bem como dos valores subjacentes, lançando luzes
sobre o que se julgava esclarecido, ou abrindo caminhos onde se julgava ter alcançado o fim
da estrada. Através da memória, a narrativa do evento passa a conter a fala de um sujeito
que o vivenciou e carrega experiências e transformações pessoais e de seu grupo social.
Os espaços têm sido modificados com rapidez e de forma cada vez mais impactante. Para os
mais jovens, acostumados com mudanças rápidas, com o corre-corre do dia a dia, essas
modificações por vezes passam desapercebidas e a ligação dos mesmos com o território é
ainda frágil. As narrativas que contemplam um recorte temporal longo podem, por
ilustração, elucidar quem são os sujeitos e quais as ações que resultaram na perda da
biodiversidade de um manancial local, descortinando os processos sociais que
transformaram-no, de um abrigo à vida, em um esgoto a céu aberto. A promoção de tais
narrativas através de novos espaços decisórios, como os das chamadas novas
institucionalidades em torno da questão ambiental - comitês de bacia, conselhos municipais
de meio ambiente e outros - pode fomentar nos novos do lugar ânimo para assumirem o
protagonismo para a mudança qualitativa da paisagem em deterioração. A ruína deixa de ter
a forma de algo que sempre foi para ser algo que é pela cumplicidade dos cidadãos; logo, ,
as narrativas podem fazer cessar tais cumplicidades e ser um sopro de reflexividade para o
fazer citadino.
Um fato acontecido, quando relembrado, sempre traz consigo toda a carga de mudanças
pessoais pelas quais o velho passou e, por conseguinte, o seu grupo social. (...)
na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com
imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho”
“(...), o ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual está
maduro, a religiosa função de unir o começo ao fim, de tranqüilizar as águas revoltas do
presente alargando suas margens. (Bosi, 1994, pp. 55, 82)
Conclusões
O velho tem a função social de lembrar. Isso se dá não pelo fato de tornar-se incapaz de
exercer outras funções, mas, sobretudo, por poder voltar seu olhar para trás, lá onde estão
suas percepções e reflexões sobre o vivido individual e coletivo. O ato de rememorar exige
lucidez, uma grande atividade de reconhecimento e capacidade de não confundir o presente
com o passado, de saber confrontar as lembranças com as imagens atuais.
Referências Bibliográficas