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DISCIPLINA
LITERATURA INFANTO-JUVENIL
Organizadora:
Josebel Akel Fares
Belém
2018
2
APRESENTAÇÃO
Caríssimos discentes,
O material que agora recebem faz parte da disciplina Literatura Infantil e Juvenil, que
desenvolveremos presencialmente em uma semana. Nele temos o plano de ensino e alguns dos
textos com os quais trabalharemos na disciplina.
A disciplina estuda a formação do leitor e aponta para a diversidade da produção literária
dirigida à infância e ao jovem. Então, organizamos o conteúdo em três secções: A Voz e a
Literatura; A Literatura Infantil e Juvenil; O Leitor e o Livro. A primeira parte foca os textos orais a
partir do entendimento de que essa literatura é a primeira da criança e a fonte de origem dos
demais textos literários. Na segunda parte, enfatizaremos os conceitos fundamentais, gêneros e a
inter-relação da literatura com outras linguagens. Na última parte, o estudo se voltará às questões
relativas às instituições educativas e ao processo de formação de leitura.
A metodologia de trabalho se dará de forma teórico-prática. O estudo teórico tomará por
base os textos apresentados nesta brochura e de outros suplementares. Os artigos-ensaios
constantes neste material são frutos de pesquisa de professores da disciplina da UEPA, bem
como de estudos antológicos de professores de outras Universidades brasileiras.
Assim, em Scherazade ou do Poder da palavra, Adélia Menezes, a partir da protagonista d’
As mil e uma noites, discute a força da palavra oral em diferentes civilizações. Em Saberes
poéticos em signos verbais: espaços de leitura e de escrita, estudo o assunto a partir da pesquisa
em história oral Memória de Belém de Antigamente. O artigo Era uma vez uma história, de
Renilda Bastos, apresenta os contos de fada. Histórias e imagens de Joséa Fares faz um passeio
na história da imagem no texto infantil. Em A escolarização da literatura infantil e juvenil, Magda
Soares aponta como a literatura é tratada na escola. Aliado a estes e outros textos teóricos, a
disciplina analisará livros infantis, bem como o texto em outros suporte como cds, dvds. Por outro
lado, pretendemos desenvolver experiências de construção de textos verbais e de imagens pelos
alunos.
Diariamente, avaliaremos as atividades desenvolvidas e, se necessário, reprogramaremos
o roteiro previsto de forma a tornar as aulas bem produtivas e criativas, com vista a ação-reflexão-
ação sobre o fazer docente-discente de cada participante.
Então, mãos á obra e bom trabalho pra nós!
Belém, novembro de 2012
Profª Josebel Akel Fares
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I – IDENTIFICAÇÃO
CURSO: PEDAGOGIA
DISCIPLINA: LITERATURA INFANTO-JUVENIL
CH: 80
II – EMENTA
O texto literário infantil e juvenil como importante instrumento de formação de leitores. As formas
de expressão da Literatura Infanto-Juvenil. A importância da leitura de textos literários para o
desenvolvimento do senso crítico e formação da dimensão estética do sujeito.
III – OBJETIVOS
Contribuir para a discussão da necessidade da formação do leitor desde a infância, a partir de
textos literários infantis e juvenis e teóricos, que reflitam sobre a situação da leitura no Brasil e que
provoquem no aluno a fruição poética.
IV – CONTEÚDOS
Unidade I
A Voz e a Literatura
1.1. Memória, tradição e esquecimento;
1.2. Narrador e performance;
1.3.Oralidade, leitura e escritura.
Unidade II
A Literatura Infantil e Juvenil
1.1. Literatura Infantil: história, características e conceituação.
1.2. Os gêneros literários: prosa poética, poesia;
1.3. O texto e a imagem
1.4. Literatura infantil e outras formas de expressão
Unidade III
O Leitor e o Livro
3.1- A Literatura Infantil e a Educação
3.2-A Literatura Infantil e a formação de leitores
3.3- Espaços de leitura
V – METODOLOGIA
As aulas terão o caráter teórico-prático, por meio de sessões de leitura de textos teóricos e infantis
e juvenis, de filmes e de audição de músicas; rodas de histórias, aulas expositivas, seminários,
experiências de pesquisa de campo, elaboração de textos e livros artesanais. Todos os trabalhos
poderão ser desenvolvidos individualmente e em grupo.
VI – RECURSOS
- Didáticos: livros infantis e juvenis; cd de música, filmes; cdroom, (resp: docente e discente);
Coletânea de texto da disciplina (resp: Parfor/Uepa). Para projeção: datashow, computador com
entrada para cd/dvd, caixa de som (responsável: Parfor/ Uepa); Para atividades de elaboração e
confecção de livros artesanais: papéis diversos; canetas coloridas; revistas, cola, tesoura
(responsáveis: alunos e, se possível, Parfor/ Uepa ).
VII – AVALIAÇÃO
A avaliação terá um caráter processual, ao final de cada unidade. Serão feitas individualmente e
em grupo, a partir dos trabalhos práticos desenvolvidos e da produção escrita concernente aos
textos lidos em sala ou em casa: fichamentos, resenhas, artigos.
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TEXTO I
1
In MENEZES, Adélia Bezerra de. II – Scherazade ou do poder da palavra. In: MENEZES, Adélia Bezerra
de. Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1993. p. 39-56
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que continha outros 98 anéis. Conta que esses anéis Foram dos homens que já a tinham
possuído. “Com os dois de agora, diz ela, completo uma centena”. “Uma centena de amantes,
malgrado a vigilância ciumenta e a precaução do gênio, que me quer só para si”. Ele se esmerava
em encerrá-la numa caixa no fundo do mar, mas ela não deixava de enganá-lo... “Vede que,
quando uma mulher tem um desejo, não há marido que possa impedir sua execução.” – dizendo
isso, ela senta e coloca de novo a cabeça do gênio, que continuava a dormir, tranquilamente em
seu colo.
Os dois irmãos voltam pelo caminho de onde tinham vindo, comentando que nada no
mundo ultrapassava a malícia das mulheres, e que, nesse assunto, até aquele gênio de poderes
sobrenaturais era mais infeliz do que eles. Convencidos da perfídia feminina, decidem retornar
cada um para o seu reino. O Sultão Schariar formula um plano, que lhe permitiria manter sua
honra inviolavelmente preservada, sem que fosse obrigado a prescindir de mulher: consistia em
dormir a cada noite com uma virgem, e no dia seguinte, ao acordar, mandar matá-la, pelo seu
grão-vizir. E escolheria uma nova para a noite seguinte, e assim por diante. A cada dia, uma
jovem casada e morta. E o início dessa prática trouxe à cidade a mais intensa das desolações.
Ora, o grão-vizir, que devia ao Sultão a mais cega obediência e que, malgrado sua
vontade, a cada noite apresentava ao Sultão uma nova virgem, e a cada manhã, malgrado sua
repugnância era obrigado a matá-la, tinha duas filhas: Scherazade e Dinerzade. É assim que,
textualmente é apresentada Scherazade, na versão de Galland:
... tinha uma coragem maior do que se teria de esperar do seu sexo, e um espírito de uma
admirável penetração. Tinha muita leitura e uma memória tão prodigiosa, que nada lhe escapava,
de tudo que ela havia lido. Aplicara-se com todo sucesso ao estudo da filosofia e da medicina, e
das belas-artes; e fazia versos melhores que os mais célebres poetas de seu tempo. Além disso,
era provida de uma grande beleza, e uma muito sólida virtude coroava todas essas belas
qualidades. (G. I, 35)
Desejo pôr um termo a essa barbárie que o Sultão exerce sobre as famílias desta cidade. Quero
dissipar o temor que tantas mães têm de perder suas filhas de uma maneira tão terrível. (...) Se eu
perecer, minha morte será gloriosa; se tiver êxito, prestarei um serviço importante à minha pátria.
E combina com a irmã seu plano: Dinerzade deveria deitar-se no quarto nupcial (sob
pretexto de que, ainda uma vez, elas pudessem passar uma noite próximas), e uma hora antes do
romper do dia, deveria acordar Scherazade e solicitar-lhe que contasse uma de suas histórias. É o
que se passa: nessa noite, depois de ter dormido com o Sultão, que a desvirgina, Scherazade é
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despertada pela irmã, que lhe pede uma história – talvez pela última vez. Depois de obtida a
permissão do Sultão, Scherazade começa a narrar. E no auge do suspense, quando a ação esta
para ser definida, e a curiosidade do seu real ouvinte aguçada, vendo que a aurora se anunciava,
suspende sua narrativa:
Scherazade, nesta passagem, percebendo que era dia e sabendo que o Sultão se levantava bem
cedo para fazer suas preces e ir gerir seus negócios de Estado, parou de falar. (G. I, 46)
Diante da observação da irmã, de que essa história era maravilhosa, Scherazade lhe
afirma que a continuação seria mais maravilhosa ainda e que, se o Sultão quisesse deixá-la viver
mais um dia, que lhe desse permissão para acabá-la na noite seguinte. Scherazade ganha um dia
de vida. Na segunda noite, quando a irmã a acorda, Scherazade “satisfaz a curiosidade do
Sultão”; acaba a história iniciada e começa uma nova, interrompida no auge do suspense, ao
romper a aurora. E assim, noite após noite, o Sultão declara desejar ouvir a história iniciada na
véspera, e a deixa viver por mais um dia. Não há garantia, nem Scherazade a pede: ela
consegue, à prestação, dia a dia, ganhar um dia de vida. Ela aceita assumir o risco absoluto:
arrisca perder a vida, para recuperar ao Sultão uma imagem feminina, perdida pela infidelidade.
Há algo de épico no seu gesto: uma mulher que, através da Palavra, salva a raça feminina.
E quando chega a milésima primeira noite, o Sultão se rende:
1001 noites tinham transcorrido nesses inocentes divertimentos; elas tinham mesmo ajudado
muito a diminuir as prevenções iradas do Sultão contra a fidelidade das mulheres; seu espírito
tinha-se abrandado; ele estava convencido do mérito e da sabedoria de Scherazade; lembrava-se
da coragem com a qual ela se tinha exposto voluntariamente a tornar-se sua esposa, sem
apreensão quanto à morte a que se sabia destinada no dia seguinte.
...
E diz o Sultão: “Bem vejo, amável Scherazade, que sois inesgotável em vossas narrativas; há
muito me divertis; pacificaste minha cólera, e eu renuncio de bom grado em vosso favor à lei cruel
que eu me tinha imposto... Desejo que sejais considerada como a libertadora de todas as moças
que deveriam ser imoladas ao meu justo ressentimento. (G. III, 439)
2
Utilizo aqui basicamente o texto de Antoine Galland (1717),em edição Garnier/ Flammarion, Paris, 1965, recorrendo
também por vezes, ao texto de Mardrus (1899), publicado por Robert/ Laffont, Paris, 1985.
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Memória, Mnemosyne, é uma deusa, filha de Urano e de Gaia, irmã de Chronos e de Okeanos – a
memória, filha do céu e da terra, irmã do tempo e do Mar: todas, metáforas de infinitude...
E a Memória é para os gregos a mãe das Musas, mãe das divindades responsáveis pela
inspiração. ''Mnemosyne'' preside à função poética.
Essa deusa feminina tem tudo a ver com Scherazade. Mnemosyne revela as ligações
obscuras entre o “rememorar” e o “inventar”: a musa inspiradora da invenção poética é, ela
própria, filha da Memória. Sherazade, a contadeira de histórias, não era apenas uma espécie de
repositório vivo das histórias de seu povo, não apenas aquela que “transmitia” histórias contadas
por outros; na sua caracterização inicial, fora-nos dito que ela também escrevia “versos melhores
que os dos mais célebres poetas seu tempo”. Ela também criava.
E assim, noite após noite, Scherazade vai, com a ajuda da Memória, conduzindo adiante
o fio de suas histórias: vai tecendo as narrativas. Não é um fio linear: é uma teia, uma trama. Infin-
dável, infinita. Uma história dará margem a uma outra história que, embutida dentro dela
desembocará numa terceira, que contém em si o germe de uma quarta etc., etc. Na acepção do
último tradutor ocidental das 1001 Noites, Khavam, Scherazade é “La Tisserande .desNuits” – a
tecelã das noites.
Evidentemente, essa trama, essa rede narrativa eram frutos da astúcia de Scherazade:
serviam para enredar o Sultão. Essa trama narrativa (trama quer dizer também procedimento
ardiloso!) no limite significava... tramoia: a astúcia, velha arma dos fracos contra os fortes. E arma
feminina, muitas vezes.
Scherazade, a astuciosa, é a mulher que tece narrativas intermináveis, e que nesse fio
prende o seu homem, e vence seu poder. E nessa linha de astúcias, e de fios, e de tramas, há
toda uma tradição (é verdade que de outra cultura, mais uma vez, a grega) de mulheres
fiandeiras3. Penso sobretudo em Penélope, de quem já se disse que é tão astuciosa quanto seu
marido, o astuto Ulisses, tecendo infindavelmente o manto com o qual afastará os pretendentes à
sua mão, enquanto espera a volta do seu homem. Mas há também Aracnê, que desafia a deusa
Atena na arte da tapeçaria e acaba transformada em aranha; e Ariadne, que com seu fio ajuda
Teseu a vencer o Labirinto; e há as Parcas, que tecem a trama dos destinos humanos: a
tecelagem é uma arte feminina. Num estudo sobre a Feminilidade, Freud tece uma engenhosa
explicação: a técnica de traçar e tecer – apanágio das invenções femininas – teria como “motivo
inconsciente” o pudor4.
Scherazade e Penélope, astuciosas e fiéis. Trata-se, aqui, do mesmo tema da fidelidade.
Não nos podemos esquecer de que, na história de Scherazade, é a fidelidade que está em jogo: o
desígnio cruel que o Sultão se havia imposto, de que sua mulher por uma noite fosse morta ao
3
Cf. Gilbert Lescault, Figurées, Défigurées (Petit Vocabulaire de laFéminitéReprésentée, Union Générale d’Editions,
Paris, 1977), em que, no vocábulo “Fileuses” são elencadas várias mulheres mitológicas que lidam com o fio.
Agradeço a indicação desse autor a Sonia Rezende.
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Freud, “A Feminilidade”, Conferência XXXIII das Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, 1933, vol.
XXII das Obras Completas. Imago, p 162. A referência a esse ensaio foi sugerida pela leitura de Gilbert Lescault:
Figurées, Défigurées, op. cit.
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romper da aurora não tem outro objetivo senão preservar, ainda que ao preço da morte, a
fidelidade feminina. E ao mesmo tempo, como veremos mais adiante, tal decisão impedia-o de
amar, vedava ao Sultão o amor: matando a mulher com quem dormia a cada noite, impedia-se de
relacionar-se em continuidade, de estabelecer vínculos.
Penélope, Scherazade. Uma tece infindavelmente o manto, dia após dia, no meio dos
príncipes, e sua fidelidade é condição para o reencontro; outra tece infindavelmente, noite após
noite, a teia de sua narrativa: sempre em suspense, sempre na terminada. Terminá-la, seria a
morte. Penélope: a fidelidade por um fio. Scherazade: a vida por um fio. A falta de término, em
ambas, é uma metáfora do infinito. Em ambos o casos, na tecelagem que praticam, é a fidelidade
que está em questão. No caso de Penélope, a trama feita e desfeita é seu ardil, para afastar os
pretendentes reservar-se para a volta de Ulisses. No caso de Scherazade, a construção de sua
teia narrativa não apenas ardil para ganhar mais um dia de vida, mas seu fio narrativo refaz, ponto
a ponto, os farrapos do coração do Sultão, dilacerado pela traição feminina. Scherazade tece o
tecido de suas histórias, conduz o fio da narrativa. A trama da narrativa não é um fio: é uma teia,
com todas as suas ramificações, e nessa rede ela enreda o Sultão. Não é por acaso que ela é a
imagem mesma da sedução. Penélope.
... de dia, tecia uma grande tela e de noite desfazia a sua obra à luz das tochas. Foi assim que,
durante três anos, ela soube esconder sua astúcia e enganar os Aqueus (Odisseia, cap. XXIV).
Penélope, Scherazade: uma tece de dia, outra tece de noite. Três anos:
aproximadamente 1001 noites. Fidelidade e sedução articuladas. Em ambas, uma mulher vence o
poder masculino.
Qual é, exatamente, a astúcia de Scherazade?
A primeira resposta é que Sherazade não apenas joga com a imperiosa necessidade de
ficção que habita o coração de cada homem, mas teria inventado também a técnica do suspense:
inicia uma narrativa, aguça a curiosidade de seu ouvinte e... não a satisfaz – naquela noite. O
desenlace seria narrado na próxima noite, se o Sultão lhe concedesse mais um dia. Aos poucos,
vão sendo introduzidas referências às reações do Sultão, e, especificamente, à sua curiosidade.
Assim, termina, por exemplo, a noite XXXIII:
Sherazade preparava-se para prosseguir seu conto; mas, percebendo que era dia, interrompeu
sua narrativa. A qualidade dos novos personagens que a sultana acabava de introduzir em cena
tendo aguçado a curiosidade Schariar, e deixando-o na espera de algum acontecimento singular,
o príncipe esperou a noite seguinte com impaciência (G. I, 25).
Ou então:
O Sultão, persuadido de que a história que Scherazade tinha a contar seria o desenlace das
precedentes disse consigo mesmo: ‘É preciso que eu me conceda o prazer completo. Levantou-se
e resolveu deixar viver ainda este dia a sultana (G. I, 216).
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de força na sua boca. Mas seu irmão, o invejoso e insolente Cassim, se esquece da palavra certa,
e tenta outras, que não têm, no entanto, a força mobilizadora da palavra mágica. Da palavra
transformadora, que remove rochedos. Ele consegue penetrar na gruta dos ladrões, mas depois
não consegue sair:
... acontece que ele se esquecera da palavra necessária (...) e, em lugar de “Sésamo”, diz: “abre-
te Cevada”; e espanta-se ao ver que a porta, longe de se abrir, permanece fechada. Nomeia
vários outros nomes de grãos, diferentes daquele que era necessário, e a porta não se abre (G. III,
247).
Ele se esquecera da palavra certa, da boa palavra. E acaba perecendo às mãos dos
ladrões, que o pilham preso dentro da gruta.
Pois bem, há algo de mágico na palavra, na história do rei Schariar e da bela
Scherazade, que consegue demover seu coração de pedra. A tentação de um paralelo com a
Psicanálise é bastante grande: essa situação extraordinária em que a Palavra (aquela que é
preferida pelo paciente, e aquela que é ouvida por ele) é palavra eficaz: provoca alterações,
transforma aquele que a recebe. Restaura-se aqui o poder arcaico e mágico da Palavra.
O poeta, o mago e o psicanalista: aqueles que constroem coisas com a palavra, que
alteram a realidade, modificam a essência profunda do ser. E ao lado poeta, do mago e do
psicanalista, a mãe, que conta histórias, a mulher.
A mulher contadeira de histórias: sua influência foi reconhecida por todos aqueles que,
desde a Antiguidade, se preocuparam com o problema da eficácia da Palavra, da força
transformadora da palavra:
Por conseguinte, teremos de começar pela vigilância sobre os criadores de fábulas, para
aceitarmos as boas e rejeitarmos as ruins. Em seguida, recomendaremos às mães que contem a
seus filhos somente as que lhes indicarmos e procurem amoldar por meio delas as almas das
crianças com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo (República, Livro II, 377
b).
5
“Narrar e Curar”, Folhetim, São Paulo, 1 de setembro de 1985.
6
“Erzaehlung und Heilung”, GesammelteSchriften, IV, SuhrkampVerlag, p. 430.
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exercendo junto a ele um longo processo terapêutico, analítico, pontuado, a cada manhã, pela
interrupção com que ela o remetia á vida real. Ao fim das 1001 noites, o Sultão se declara
“curado”, abandona o “sintoma” e se dá alta:
“Vós pacificastes minha cólera, e eu renuncio de bom grado e, vosso favor, à lei cruel que eu me
tinha imposto”.
7
Cf. capítulo “L’EfficacitéSymbolique”, AnthropologieStructurale, Paris, Plon, 1958, p. 211 e ss.
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noite 602, o rei Schariar ouça da boca da rainha a sua própria história?”, pergunta-se Jorge Luís
Borges8 extasiado.
Scherazade apresenta a Schariar o nível mítico: apresenta-lhe à consciência conflitos
que o traumatizaram, bloqueando sua capacidade afetiva, de tal maneira que ele possa lidar com
eles. É por isso que ela não expurga de suas narrativas as histórias de adultérios e traições
femininas, não omite casos em que as mulheres enganam a seus maridos; ela não faz ao rei uma
narrativa “ad usumdelphini”; é notável a ausência de censura moral nas suas histórias.
Trata-se aqui, como na psicanálise (e na cura xamanística), de propiciar uma
transformação interior, consistindo numa reorganização estrutural da personalidade: trata-se de
recuperar a capacidade amorosa do Sultão. Pois bem, Scherazade, como na transferência,
propicia ao Sultão que reviva com ela uma experiência afetiva continuada e para isso ela
precisava de tempo (a saber: 1001 noites – o tempo de uma terapia?) e assim resgata sua
capacidade afetiva.
Falei em paralelo com a Psicanálise. Mas trata-se aqui de um paralelismo que,
evidentemente, não exclui as diferenças. Pois há nas 1001 Noites, como aparece em Platão,
como sugere W. Benjamin, uma ligação entre a fala e o gesto, entre a voz e a carícia. Não nos
podemos esquecer de que as narrativas de Scherazade se seguiam às suas noites de amor com
o Sultão e são suas histórias que lhe facultam a possibilidade de dormir próxima noite com ele. É
a narrativa que possibilita o encontro futuro. Já se disse que se Scherazade tivesse oferecido ao
Sultão só o seu corpo, ela teria sido executada, logo após a primeira noite: foi o que, todas as
suas antecessoras fizeram, e todas pereceram. E Scherazade salva não apenas a si própria e a
todas as mulheres em idade de casar do seu povo: ela salva também o Sultão: ela o cura de sua
ira patológica e assassina, e possibilita a ele uma descendência. A persistir no seu plano cruel e
ginecida, o Sultão se privaria para sempre de amar, e de filhos. Scherazade oferece a ele o tempo
e, junto com as suas histórias, a História; oferece a ele o tempo, e, junto com ele, as coisas todas
que dele precisam para se engendrarem: os filhos, a duração do afeto, a permanência de
vínculos, o longo processo (analítico) de uma cura. Scherazade oferece ao Sultão um discurso
vivo.
Scherazade ou do Poder da Palavra. A sultana era uma contadeira de histórias, não em
primeira linha uma escritora: ela as contava de viva voz. Aquelas 1001 noites eram marcadas pela
cálida proximidade da mulher, da mulher na sua inarredável corporeidade. Não podemos
esquecer da carga corporal que a Palavra falada carrega. Na narrativa oral, a Palavra é corpo:
modulada pela voz humana, e portanto carregada de marcas corporais; carregada de valor
significante. Que é a voz humana senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos
dos orgãos da fala, carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso:
8
Cf. J. L. Borges “Los Traductores de las 1001 Noches, in Historia de laEternidad, Emecé Editores, Buenos Aires,
1953.
15
ligação de sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca dimensão
sensorial.
“No princípio era a Ação”, diz o Fausto de Goethe. Mas entre a Ação e a Palavra, nas
1001 Noites a escolha está feita. “No princípio era o Verbo”, parecem dizer-nos elas, retomando o
início do texto do mais visionário dos Evangelistas. No entanto, esse texto não para aí: “... e o
Verbo se fez carne”: restaura-se, assim, a dialética sema/ soma, inscrita no cerne da Palavra – a
Palavra é também, inapelavelmente, corpo. (1987)
TEXTO 2
SABERES POÉTICOS EM SIGNOS VERBAIS:
espaços de leitura e de escrita9
Josebel Akel Fares
LEITURAS DA VOZ
Antes, bem antes, de se apostar o adjetivo infantil ao termo literatura, as crianças já liam,
seja por meio de um texto vindo da voz, seja por um vindo da letra. Todos que estudam a matéria
sabem essa história. Em tempo anterior ao advento da chamada literatura infantil, a criança era
9
In FARES, Josebel Akel Memórias de Belém de Antigamente. Belém: Eduepa, 2010. Retirei do texto a
última parte referente às cartas, por não fazer parte do programa da disciplina.
16
10
Na primeira citação de cada um dos intérpretes da pesquisa será indicado o nome completo, nas
seguintes o prenome, com o ano da entrevista, conforme já se explicou na primeira parte deste livro, item
referente aos intérpretes.
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Pode-se, em muitos casos, descrever esses traços como o que em etnologia chama-se mais
frequentemente motivos; em história literária, temas. Eu preferiria colocar que a noção de tradição
só tem sentido em relação a uma forma. Se há transmissão de um “tema”, de um “motivo”, eu
falaria disso como de uma configuração imaginária não aleatória, um conjunto ordenado e (ao
menos virtualmente) organizado de sugestões representativas, afetivas, prospectivas. A
organização, tratando-se de poesia, não pode ser manifestada ao nível discursivo. Na outra
extremidade do espectro dos possíveis, a marca tradicional se definirá como uma concreção de
elementos linguísticos debilmente semantizada. A tradição funciona assim como um repertório
de paradigmas e virtualidades relacionais. Donde, através dos textos que ela gera, uma
profusão de associações de toda espécie. (ZUMTHOR, 1997, p.23/24, grifo da autora)
Os dez narradores11 ouvidos no Projeto, apesar de não terem sido escolhidos por suas
habilidades na arte de contar histórias, mas pelo desejo de cada um de narrar a cidade, ao
expressarem as memórias sobre a Belém de outrora registram as mitopoéticas como parte dos
seus cotidianos. As narrativas trazem as marcas míticas eivadas da experiência pessoal,
contextual, que implicam em permanências e movências provocadas por associações de ordens
diversas, como ensina Zumthor.
Todos os intérpretes portadores de uma oralidade ou vocalidade mista, que é aquela que
procede da existência de uma cultura possuidora de uma escritura, ou que o escrito é parcial,
externo. Zumthor (1993) expõe também sobre uma vocalidade primária e imediata, pertinentes às
sociedades desprovidas dos sistemas de simbolizações gráficas, ou nos grupos sociais isolados e
analfabetos e sobre a oralidade segunda, oriunda de uma cultura letrada, em que toda expressão
é marcada pela escrita. Estas duas não dizem respeito aos intérpretes em estudo.
11
No capítulo inicial deste livro, explicitou-se que os entrevistados serão tratados como intérpretes,
narradores, contadores, sujeitos. A preferência pelo termo intérprete diz respeito à escolha teórica de
Zumthor, como base da leitura.
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ouvi-las e alguns se revelaram contadores envolventes. Eles confessam que em toda comunidade
alguém assume a função de repassar experiências através da voz e os narradores podem ser os
pais, os avós, uma tia, um vizinho, a professora, e essas figuras, em geral, são partes do grupo do
afeto do ouvinte.
Joana do Espírito Santo (2004) lembra o pai e o tempo de contar: Ah, o papai [contava]. Às
vezes, as pessoas ficavam conversando, se juntava na boca da noite pra conversar e contavam
histórias. YolinaHerreira (2004) afirma que na família dela sempre teve alguém com a função de
narradora que era ou a vovó, ou uma tia, às vezes, a professora mesmo que contava histórias.
Florinda Cunha (2004) revela a presença dos empregados da casa dos pais, como os narradores
das experiências vividas:
Por incrível que pareça, nossos próprios empregados, que sentavam e contavam, até o modo
deles, como era na terra deles, é o sítio deles, tudo eles contavam, era muito bonito e ia deixando
a gente com gosto pra saber das coisas, pela cultura deles e por saber.
Osvaldino (2004) comenta que a narradora de sua infância era a avó, conta da ambiência
noturna do espaço público e do privado. Recorda a Belém da luz de lamparinas, candeeiros,
lampião:
Tinha lá nas ruas, naquele tempo a população era pequena, eles dormiam cedo, não tinha luz, era
lamparina, ou candeeiro, ou então lampião. O lampião tinha que trocar o carbureto. Nós tínhamos
em casa. Era uma luz boa, não tinha luz elétrica no interior e aqui em Belém tinha, mas era
deficiente, só ia melhorar de dez horas da noite, é. E ela [a avó] contava muita história. Fazia roda
pra contar história.
Na ausência de avós, Terezinha Monfredo (2004) revela que os mais velhos embalaram as
histórias marajoaras de sua infância. Ela ouvia através da voz da irmã mais velha, da mãe e da
tia:
Como eu não conheci meus avós, eu só conheci o meu avô materno, os outros eu não conheci,
então, as tias contavam também muita história, a mamãezinha, a mãe contava história pros filhos
e, às vezes, repetiam a mesma história, sabe? Eu lembro que, às vezes, a minha irmã mais velha,
ela era como uma mãe pra mim, ainda é, ainda é viva [...] Então, essa minha irmã mais velha, ela
queria me mandar, queria me governar, sabe? Às vezes ela era assim. Mas, ela contava histórias
pra mim e ela lia, eu não sabia ler, eu ainda era pequena.
E ela me contava história assim que eu lembro, que tinha um bicho, que tinha língua de fogo, olho
de não sei o quê. E quando chegava a noite, eu me lembrava da história que ela me contava e
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não dormia, aí eu inventava que tava com dor no ouvido, tava com dor assim, que era pra virem e
estar perto de mim.
Maria José da Silva Amaral (2004), Joana e Osvaldino também relatam sobre repertórios
que têm a supremacia de conhecidas personagens do lendário amazônico: matintaperera, botos,
cobras encantadas. Assim, Joana assegura que
contavam histórias das pessoas que viram lobisomem, história das pessoas que viram
matintaperera, contavam histórias dos espíritos encantados que se tornam pessoas pra aparecer
pra outras pessoas, contavam história do boto, contavam muita história que eu não lembro agora.
Maria José conta sobre o repasse da tradição da matinta em Baião - local onde tem uma
escola de matinta perera - suas experiências familiares e justifica que apesar da chuva do enterro
de sua mãe, ela não era uma entidade encantada.
Eu ouvia historia de matintaperera, é que se vai virar mocinha, quando estão mocinhas novas vão
lá pra Baião, diz que lá é que é a escola de aprender a ser matinta pereira, assim eu ouço falar,
é que as moças aprendem a assoviar que nem a matintaperera, de noite elas aparecem trepada
nos muros, nessas casas que só tem meia parede, elas trepam.
É o que contam, né, mas assim que eu não acredito, mas isso de dizer que quando a mãe da
gente morre e chega a hora do enterro chove, eu acho que é saudade de Deus para os filhos.
Ainda mais, quando deixa pequeno, como a mamãe deixou,um de peito com 6 meses, eu com 4
anos e minha irmã com 2 - essa que mora pra Pedreira - , teve 4 filhos, ainda ganhou mais um
recém-nascido... e nunca fez nada pra matar os filhos, pra tirar do ventre (grifos da autora).
Osvaldino ouviu da avó muitas histórias, duas das quais viu ou participou. Na primeira
aparece um processo metamórfico: os botos são pessoas que morreram afogadas.
Agora tem uma coisa que eu vi com meus olhos, isso eu vi. A aparição de botos. Dizia minha avó
que aquilo eram pessoas, que morriam afogadas, e virava boto. Porque tinha boto macho e boto
fêmea. Então, aparecia nas pontes, trapiches, no interior, [que] tinha muito pra poder atracar as
canoas e abastecer. Meu avô tinha naquela época um comércio, um comércio menor que era pra
abastecer as pequenas embarcações que iam pro rio acima.
Então, eles a noite, tempo de luar bonito, parece dia, eles iam lavar as pontes, lavando,
escovando a ponte [...], jogando água, água caindo pelas frestas da ponte. [...] Então, eu ouvi
aquele barulho, aí eu bati na minha mãe e disse assim:
- Mãe tão lavando a ponte.
Aí ela disse assim, ela dizia pra mim:
- Não vai olhar não, é visagem.
Mas eu era abelhudo, fui olhar pela fechadura e ela falou:
- Vai deitar!
E, eu vi eles lavando, tudo bem vestido. Naquele tempo, o luxo era chapéu de palhinha com cinta
preta ao lado e um lacinho. É a moda e o sapato era preto e branco, sapato de luxo.
Porque dizem os antigos, que as pessoas que morriam afogadas em desastres marítimos viravam
boto, viravam gente encantado e eu acreditei nisso e vi.
- Existiu que eu vi, eu era garoto, mas eu vi, enorme. Mas não é chifre não, são as presas dela
que cresceram muito e ficaram assim, parece um elefante, só que em elefante é marfim e cresce
para baixo e na cobra é pra cima. A cor é meio azulada.
Numa ocasião minha avó, minha avó era uma cabocla do interior e meu avô, o marido dela, era
turco naturalizado brasileiro. Veio pra cá muito jovem, então, eu tinha até a foto dele... Então,
minha avó disse assim:
-“Vamos lá no algodoal” - [que] é a plantação de algodão.
[...] Então, a gente tinha um barquinho, só pra duas pessoas: eu e ela. E minha avó era mulher
que era magrinha, mas gostava de uma cana que só, beber. Então, naquele tempo as cachaças
eram puras, azuladas, gostosas mesmo. E ela botava o rifle a tira-colo de dois canos, botava os
cartuchos, fechava, botava na costa e a gente ia devagar.
Mas teve um dia que nós saímos pra o algodoal e ela disse: “Pára! Pára! Pára!”, na canoinha.
Aí eu perguntei: “O que foi vovó?”
E ela disse: “volta, volta, volta!”
E eu voltei, e eu falei: “O que foi que houve, esqueceu de alguma coisa?”
[...] “O que foi vó?”
Ela disse assim: “Olha o que vai lá!“
Aí vinha riscando o rio, o chifre.
Aí ela disse: “Sabe o que é aquilo? É a cobra que vai descendo rio abaixo.
E eu disse: “Aquilo é o chifre?”
-“É cobra de chifre, se nós formos pra lá, as ondas que ela provoca afunda a canoa, de tão grande
que ela é. Ela pode até dar uma abocanhada e comer a gente”.
Então, tinha essa cobra, tinha aqui na Boca da Laura, aqui no rio que vai até Mosqueiro, chama
Boca da Laura. Ela vive ali na saída do rio. Essa cobra tá viva até hoje e na Vigia também tem
uma só. (Osvaldino)
Os textos que circulam através da voz nos rios, nas matas, nas estradas, retratam o
cotidiano das comunidades amazônicas e se comparam àqueles ditos nas praças ou nas feiras
pelos aedos clássicos, ou nos serões medievais pelos vassalos, ou ainda mais tarde pelas classes
mais populares. No caso das populações mais pobres, na maioria das vezes, essas narrativas são
uma das poucas formas de convívio com o poético. Um estético envolto em magia e em sangue
marcado pelo difícil cotidiano. Lembra-se aqui do relato inscrito no capítulo Histórias que os
camponeses contam: o significado de Mamãe Gansa, de “O Grande Massacre dos Gatos”, em
que Robert Darnton (1986, p.21-93), a partir de um exemplo de um conto narrado “em torno às
lareiras, nas cabanas dos camponeses, durante as longas noites de inverno, na França do século
XVIII”, recupera por meio das diferentes versões a história das mentalidades:
Apesar de ocasionais toques de fantasia, portanto, os contos permanecem enraizados no mundo
real. Quase sempre acontecem dentro de dois contextos básicos, que correspondem ao cenário
dual da vida dos camponeses nos tempos do Antigo Regime: por um lado, a casa e aldeia; por
outro, a estrada aberta. A oposição entre aldeia e estrada percorre os contos, exatamente como
se fazia sentir nas vidas dos camponeses, em toda parte, na França do século XVIII (DARNTON,
1986, p. 54).
A literatura rege-se, entre outras características, pela metáfora e pela ficção, mas, como se
vê, por mais que a princípio possa parecer contraditório, o texto literário retrata uma época, um
espaço, uma forma de pensar o mundo. Daí a importância dos repertórios literários, oral ou
escrito, para a história cultural, entre outras ciências, e o processo de reconstrução identitária,
seja nos tempos imemoriais, em espaços distantes ou em Belém do século XXI.
De volta às histórias da leitura versus literatura, um dos referenciais desse estudo, se diz
que, em relação ao texto escrito, as obras clássicas alcançavam os ouvidos das crianças e dos
jovens pela voz dos preceptores, profissional que trabalhava na educação das crianças da
nobreza. Assim, durante muito tempo, como se disse, não havia a separação de mundos por faixa
etária de leitores. Lembram-se das adaptações de Charles Perrault (Paris-1628/1703)? Conta-se
que ele escuta as histórias da babá de seu filho e as adapta ao gosto dos salões para ridicularizar
a corte francesa:
Charles Perrault entra na História Literária Universal, não como poeta clássico (eleito para a
Academia Francesa em 1671), mas como autor de uma literatura popular, desvalorizada pela
estética de seu tempo e que, apesar disso, se transforma em um dos maiores sucessos da
literatura para infância. Escrito num momento em que ainda não existia o gênero Literatura infantil,
“Os contos da Mãe Gansa”, com o tempo, se divulgam como leitura para crianças e se
imortalizando. (COELHO, 1982, p.233-4).
Então, como observam os teóricos da literatura infantil e juvenil, essa história ainda tem
poucos capítulos. Somente no século XVIII, a criança passa a ser considerada diferente do adulto
e, então, é apartada do mundo dos mais velhos e se cria um universo com características
diferentes e especiais, que preparasse a infância para a fase da maturidade (CUNHA, 1987, p.19).
Anteriormente, os preceptores orientavam as crianças da nobreza, eram os responsáveis pela
educação, agora, com a ascensão da burguesia, novamente, a Pedagogia toma assento na
preparação do futuro dos cidadãos e literatura é também chamada para educar:
É neste contexto que surge a literatura infantil; seu aparecimento, porém, tem características
próprias, pois decorre da ascensão da família burguesa, do novo status concedido à infância na
sociedade e da organização da escola [...] por sua vez sua emergência deveu-se antes de tudo à
sua associação com a pedagogia, já que as histórias eram elaboradas para se converter em
instrumento dela. Por tal razão, careceu de imediato de um estatuto artístico, sendo-lhe negado a
partir de então um reconhecimento em termos de valor estético, isto é, a oportunidade de fazer
parte do reduto seleto da literatura (ZILBERMAN, 1982, p.3-4).
Daí o porquê de a literatura infantil e juvenil inicialmente ser mais uma cartilha para ensinar
normas de comportamento, boas maneiras e moralidade, do que literatura propriamente dita. No
Brasil, para exemplificar, Olavo Bilac (R.J, 1865 - 1918), em Ao leitor e no Prefácio da 1ª edição
de “Poesias Infantis”, explica o caráter pedagógico dos poemas ali publicados. As normas do
manual são arroladas: amor à Pátria e ao trabalho, devoção à família, respeito aos amimais,
eliminação do maravilhoso, entre outros.
É um livro em que não há os animais que falam, nem fadas que protegem ou perseguem crianças,
nem feiticeiras que entram pelos buracos das fechaduras; há uma descrição da natureza, cenas
de família, hinos ao trabalho, à fé, ao dever; alusões ligeiras à história da pátria, pequenos contos
em que a bondade é louvada e premiada [...]
O autor deste livro destinado às escolas primárias do Brasil, não quis fazer uma obra de arte: quis
dar às crianças alguns versos simples e naturais, sem dificuldades de linguagem de métrica, mas,
ao mesmo tempo, sem a exagerada futilidade com que costumam ser feitos os livros do mesmo
gênero.
22
O que o autor deseja é que se reconheça neste pequeno volume, não o trabalho de um artista,
mas a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a educação moral das crianças de
seu país (BILAC, 1952, p 9,10).
Esse quadro só se modifica com o modernismo e é introduzido por Monteiro Lobato (SP,
1882/1948), considerado o iniciador de uma literatura que considera a criança na sua forma mais
plena, independente do mundo dos adultos. O Sítio do Picapau Amarelo rompe com os cerzidos
apertados do pretenso texto infantil, desamarra os nós e elabora outros mais frouxos, desatável
pelos leitores.
Os detalhes dessa história da literatura infantil escrita, que serve como introdução a
análise da leitura das letras não será aqui esmiuçada, por não ser objeto específico do capítulo.
Mesmo assim, importa que até hoje, alguns reconhecem a existência do gênero, outros refutam a
idéia. Independente da aceitação do rótulo, todos sabemos que, muitas vezes, as faixas etárias,
entre outros fatores, induzem determinados tipos de leituras e as preferências do leitor, deste
modo salto para a voz dos intérpretes para analisar o que se lia na Belém dos anos 50.
China, o Oriente, o Japão, Afeganistão, essas coisas assim, queria saber a cultura deles, eu não
sei, era uma coisa que eu tinha, entendeu? Eu já não tinha um saber como eu já tenho agora, né?
[...]
Porque, outra coisa, eu nunca tive vergonha de não conhecer uma coisa e não ir olhar no
dicionário o que significava, ou com uma pessoa mais esclarecida do que eu que a gente conhece,
né?Como aqui eu tenho uma pessoa excelente é a Terezinha Monfredo, é mora aqui, é uma
pessoa, fala com a gente e dá gosto de falar, compreendeu? E eu pergunto muita coisa a ela e ela
me explica, entendeu? E pra outros que tem um melhor conhecimento do que eu, compreendeu?
Eu não tenho vergonha.
Eu estudei em São Benedito, em frente a Santa Casa, e tanto como lá no São Benedito e no
colégio Santo Afonso, a gente estudava, por exemplo: história, uma comparação, história, tinha
História do Brasil, História Geral, então estudava ali e eles marcavam, sem exagero nenhum, por
exemplo: descobrimento da América, eles marcavam ali, iam passando uma, duas, quando você
23
via já tava umas dez páginas pra você, você tinha que decorar. E o pior, decoreba mesmo, que eu
nunca gostei disso, fui professora, nunca achei que isso tava certo, sempre achei que isso tava
errado.
Eu tinha uma professora que, lá no [...] São Benedito, era professora [...], ela era muito nervosa,
muito rígida, então ela não consentia, tinha que fazer a pontuação, pode uma pessoa dessa? Ela
tomava nota: “_ Diga aí Terezinha, a gente, não, agora é uma pausa pequena, uma pausa rápida,
você demorou”. Aí a pontuação, sabe? Você já tinha que começar tudo de novo, ela era muito
rígida, ninguém podia conseguir as palavras, tudo que estava lá, eu achava ela muito má.
Gostava de ler o jornal para saber dos casos acontecidos, né? O jornal... só isso que eu lia. Folha
do Norte é a principal, ainda existe, não existe a Folha do Norte? A Província... (Sales, 2004).
A Folha do Norte e A Província do Pará, citados nos testemunhos, são jornais fundados no
Pará ainda no final do século XIX. A Província do Pará, em 1876, durante o ciclo da borracha,
pertenceu ao intendente Antônio Lemos. Fez parte do grupo dos Diários Associados, de Assis
Chateaubriand, depois passou para a CEJUP (1997), de Gengis Freire, e foi novamente vendido
em 2001, quando fechou suas portas definitivamente. Em alguns períodos, teve circulação
descontinuada. Já a Folha do Norte, fundada em 1896, por Enéas Martins e Cipriano Santos,
aparece como opositor de Antônio Lemos. Ambos não deixavam de tomar posição política, que,
muitas vezes, terminava em retaliações e intrigas.
A imprensa brasileira, bem como a de alguns outros países, sempre esteve ligada a grupos
de poder e, por isso, porta-voz de interesses políticos e econômicos. No caso do Pará, Tembra
(2007) cita os dois jornais supra referidos para comprovar esses interesses, que caminham junto
com a história da imprensa paraense.
A longa história dos jornais paraenses contrasta com a das revistas locais. Desconhece-
se produções regionais aos moldes de “O Cruzeiro” e a “Manchete”12, de circulação nacional,
12
“O Cruzeiro foi a principal revistailustradabrasileira do século XX. Fundada por Carlos Malheiro Dias, começou a ser
publicada em 10 de novembro de 1928 pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand. Foi importante na introdução
de novos meios gráficos e visuais na imprensa brasileira, citando entre suas inovações o fotojornalismo e a inauguração
das duplas repórter-fotógrafo, a mais famosa sendo formada por David Nasser e Jean Manzon que, nos anos 40 e 50,
fizeram reportagens de grande repercussão” (http://pt.wikipedia.org/ – acesso agosto 2009).
“A revista Manchete surgiu na década de 50, sendo considerada a segunda maior revista brasileira de sua época.
Empregando uma concepção moderna, a revista tinha como fonte de inspiração a ilustrada parisiense “Paris Match” e
utilizava, como principal forma de linguagem, o fotojornalismo. A Manchete atingiu rápido sucesso e em poucas
semanas chegou a ser a revista semanal de circulação nacional mais vendida do país, destituindo a renomada e, até
então, hegemônica “O Cruzeiro”. (http://www.traca.com.br - acesso em agosto 2009).
24
citadas nas entrevistas. Essas se constituem marcas fundamentais de leitura dos intérpretes.
Algumas revistas femininas também são citadas.
Eu gostava muito de ler a Veja, Manchete, Cruzeiro, Doméstica também; eu lia todas essas
coisas. A Doméstica era mais pra senhoras, mas tinha algumas coisas que me interessavam. E eu
fui me aperfeiçoando aí, lendo, depois eu me casei, a minha esposa era formada na Escola
Normal... (Osvaldino, 2004)
Gostava de ler muito, eu lia livros de, de coisas de amor. Não, eu nunca me casei, namorei, mas
não deu pra casar [risos] Livro de história, era. Tinha história de romance, estas histórias eu
gostava de ler, depois fui me empregar e abandonei tudo. (Raimunda, 2004)
Então, a educação feminina passa pelas leituras de revistas informativas, mas também das
fotonovelas, dos acervos da coleção “Bibliotecas das moças”, também conhecida como “literatura
cor-de-rosa”, escritos por M.Delly. Como as sabrinas, as júlias, as biancas de hoje, essas leituras
conduziam as mulheres ao desejo do altar, da boa e dedicada esposa e mãe, representações do
papel da mulher tradicional, que, além dessas condições, ainda podia alçar à condição de
professora. Histórias de amor com final feliz, vividos em países distantes, sempre fizeram
sucesso entre as mulheres, seja em forma de romance, conto, quadrinho.
As fotonovelas sempre foram consideradas subgênero literário, narrativa marginal em
formato de revistas de quadrinho, com pequenos textos e fotografias. Em cada quadro, o texto
verbal é bem pequeno e, muitas vezes, apenas funciona como reforço ao que já está expresso na
imagem. O conteúdo traz histórias de costumes e de amor, sem muita profundidade psicológica,
uma vez que era direcionada ao público feminino, considerado de pouca exigência e formação e
de baixo poder econômico, e ainda tinha “como finalidade a transmissão dos princípios éticos,
13
Revista Vida Doméstica circulou entre os anos 1930 a 1950, impressa em papel de qualidade, rica em fotografia de
pessoas e de fatos comuns da vida familiar dos leitores, além de muita propaganda, atualidades, moda masculina e
feminina, política, curiosidades, arte.
25
Ah, lia, lia, lia revistas. Lia fotonovelas também. Eu lia muito, até depois de casada, eu lia muito
Capricho (risos), não sei se ainda existe. Só que me disseram que depois de um tempo mudou,
não era mais aquelas histórias lindas que contavam, né? (Terezinha, 2004)
Mocinhas, bandidos, personagens, roteiros, atores, não faziam parte da produção cultural
brasileira, esse mercado editorial era grande e todo importado. Galucho (2008) atribui a
disseminação das fotonovelas ao cinema. Entende-se que a leitura da literatura de imagem
comece seu processo de expansão. E, diferente da ideologia vigente de que às mulheres era
dado o supérfluo, admite-se uma leitura para além das letras, um olhar para as imagens, para
fotografia que começa a se desenvolver e experimentar novas formas.
Mais tarde a fotonovela torna-se independente do cinema e caracteriza-se pelas suas intrigas
sentimentais (a heroína é quase sempre uma rapariga de origem modesta que sonha com um
amor cheio de obstáculos e dificuldades mas no final consegue o seu objectivo), as personagens
não demonstram um grande desenvolvimento psicológico e são sempre estereotipadas (os bons
são sempre bons e os maus arrependem-se no final ou sofrem as consequências), predomina o
imaginário exótico, e, mais tarde o “suspense” e o sexo, os temas variam entre problemas
afectivos, sociais, a procura de sucesso numa carreira, a justiça na sociedade, a ascensão social,
a marginalidade, etc. (GALUCHO, 2008).
As leitoras dos romances de M. Delly também vivem seus contos de fadas, como nas
fotonovelas. As intérpretes da pesquisa discorrem sobre títulos dos romances preferidos,
reconhecem a escritura de gênero e fase etária, falam sobre a questão do volume dos livros, os
maniqueísmos, dos sonhos provocados. Cunha (1999), que defende tese sobre as “Armadilhas
da Sedução: os romances de M. Delly”, esclarece sobre algumas questões, como:
a. Os romances publicados na coleção Biblioteca das moças, pela Companhia Editora Nacional
(SP) e distribuídos por todo Brasil, eram estrangeiros:
Ambientados na França, os romances de M. Delly foram muito populares junto a jovens brasileiras
de classe média, entre as décadas de 1930 a 1960. Ainda hoje muitas pessoas se referem a M.
Delly, como Madame Delly. Trata-se, no entanto, do pseudônimo de um casal de irmãos
franceses, católicos fervorosos que se chamavam Frédéric Henri Petitjean de La Rosiére (1870-
1949) e Jeanne- Marie HenriquettePetijean de La Rosiére (1875-1947) (CUNHA, 1999, p. 17).
Ah, muito, eu adorava ler romances, eu olhava, eu lia muito é M. Delly, M. Delly, escrito por M.
Delly. Os romances de M. Delly eram livros, eram uns romances próprios pra jovens, pra moças,
romances mesmo de amores, muito lindo (Terezinha, 2004).
b.. Como nos contos de fadas, em geral, as personagens fazem parte da nobreza e da pobreza:
normalmente o herói, nobre e rico, e a heroína, plebeia e pobre. E nos enredos, depois da intriga,
terminam com o final feliz. Yolinda compara o desenlace dos romances com as mocinhas do
cinema.
Então, a gente ficava sonhando, nós, a gentemocinha, eunão fui namoradeira, não fui, eu gostava
muito de brincar, de dançar e tudo e tal e eu vim namorarsó já com 17 anos, maisoumenos isso.
26
Porque hojeemdiamenino de doze anosjá sabe o que é namoro e eunão sabia disso, era
despertava porque a genteviafilmes de amor e esseromance de M. Delly, querdizer, ficava toda
romântica, querendo sentiraquiloque a mocinha do romance, ou a mocinha do filme me
sentia no cinema, fazia, e eraisto(Yolinda, 2004) .
d. Os repertórios incluíam títulos clássicos e entre os mais vendidos, segundo Cunha, estão
Magali (10ª ed, em 1956), Freirinha (6ª ed.,1947), Mitsi (8ª ed., 1960). Terezinha não esquece
outro título:
Eu li vários, vários, mas um que eu li, que eu gravei bem foi O Último Beijo, muito lindo este
romance, mas era romance, não era pequenininho que você lê e acabou não, romances de M.
Delly eram romances grandes e mesmo, fazia volume, né? E esse, esse O Último Beijo era o
maior romance de M. Delly, era muito demorado pra gente ler, mas como eu gostava de ler, toda
hora eu pegava pra ver se acabava ( rs) (Terezinha, 2004).
Referências
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magia e técnica, arte e política. 6 ed. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993. I volume.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura Infantil: história teoria e análise: das origens orientais ao Brasil
de hoje. 2 ed. São Paulo: Quíron/ Global, 1982.
CUNHA, Antonieta. Literatura Infantil: teoria e prática. 6 ed. São Paulo: Ática, 1987
CUNHA, Maria Tereza Santos. Armadilhas da Sedução: os romances de M. Delly. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
DARNTON, Robert. O Grande Massacre de Gatos e outros episódios da História Cultural Francesa. Trad.
de Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FERREIRA, Paulo Roberto. Mais de 180 anos de imprensa na Amazônia. JORNAL DA REDE ALCAR. Ano
5, N. 55 - 30 de junho de 2005
GALUCHO, Isabel. Fotonovela.<<http://www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm>>
14
O pássaro é uma espécie de teatro popular, assemelhado aos dramalhões muito comuns nas óperas,
divido em quadros inter-relacionados ou não entre si. Os personagens, que ora cantam e ora recitam seus
papéis, são acompanhados de música de acordo com o momento da ação dramática; a dança também é
elemento constante. Costuma-se chamar à manifestação de brincadeira, aos atores de brincantes, e ao
texto de comédia, apesar de que o espetáculo tenda mais à tragédia. A brincadeira é denominada de
pássaro, mas, muitas vezes, os cordões são de bicho ou de feras e entre os rouxinóis, tem-tens, tucanos,
tangarás, uirapurus, beija-flores, já apareceram leões, quatis, macacos, tucunarés...
27
TEMBRA, Nelson. Salvemos a Amazônia. Tudo como antes (Postado em 04/06/2006). http: //
forum.jus.uol.com.br/4851/salvemos-a-amazonia
_____ . Defesa da Verdade ou de interesses comerciais? (Publicado em 7/02/2007 (8:28).
http://www.portalitaguai.com.br/article1439.html/Anonymous
ZUMTHOR, Paul.A Letra e a Voz: a “literatura” medieval. Trad. de Jerusa Pires Ferreira e Amálio
Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
_____. Tradição e Esquecimento. Trad. de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Hucitec,
1997.
_____. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat, Maria Inês de
Almeida. São Paulo: Hucitec; Educ, 1997.
ZILBERMAN, Regina. O estatuto da literatura Infantil. In: ZILBERMAN, Regina MAGALHÃES, Lígia
Cadermatori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.
TEXTO 3
ERA UMA VEZ UMA HISTÓRIA
Renilda Rodrigues Bastos
A História conta que a primeira narrativa recriada por Perrault, “A Marquesa de Salusses”
ou “Paciência de Grisélidis”, considerada o marco inicial dos tão famosos contos, ocorreu por
causa de uma briga de Perrault com alguns acadêmicos franceses, principalmente Boileau e
Racine. Essa briga ficou conhecida como a Querelle entre lesAnciens et lesModernes que foi
desencadeada por ele mesmo ao ler, numa sessão da Academia Francesa, o poema “O Século
de Luis, O Grande” contra os seus opositores. A leitura provocou enorme confusão, e a crise se
instalou. Boileau e Racine eram considerados “antigos” e Perrault “moderno”. E foi justamente
para justificar sua posição de moderno que ele buscou num conto folclórico francês a matéria para
escrever a narrativa que iniciou sua verdadeira história como escritor e imortal.
Dessa forma, a narrativa escrita que conhecemos como contos de fadas “nasceu”, devido
a algumas idéias não consensuais entre acadêmicos franceses, fato que levou a se instalar uma
crise entre “antigos” e “modernos”.
A “Querelle” impulsionou Perrault a escrever seus contos, principalmente porque queria
reiterar suas idéias de “moderno” defendendo os seguintes pontos: a reação contra a autoridade
dos clássicos da antigüidade greco-romana transformou-se em modelo exclusivo de arte desde o
Renascimento; a exigência de uma Literatura que usasse o maravilhoso cristão ao invés da
mitologia clássica pagã; o Francês deveria ser superior ao Latim; nos salões da época, as leituras
eram os “romances preciosos”, a matéria desses romances estava mais próxima da “desordem”
do pensamento popular, do que das normas clássicas. A mulher como chave principal desses
romances, além disso havia uma sobrinha de Perrault , Mlle. L’Hériter que defendia os direitos
intelectuais das mulheres, pois
tão ponderável se revelava a produção literária feminina e atuação de várias mulheres na área da
cultura, que suscitaram muitas obras de ataque, de grandes escritores como Molière, que
combateu ou as ridicularizou em sua comédia ‘Ëcoles de Femmes, LesPrecieusesRidicules e
LesFemmesSavantes’ (COELHO, 1982.p, 233).
É, mais ou menos, consenso entre pessoas que pesquisam a obra de Perrault, que foram
esses os motivos que o levaram escrever seu primeiro conto “A Marquesa de Salusses” ou
“Paciência de Grisélidis”, em versos, para combater Boileau que iria apresentar na Academia uma
sátira contra as mulheres. E também comum dizer que esse conto já existia nos primeiros
manuscritos de escritores italianos, mas precisamente no Decameron de Bocaccio e no
Pentameron de Basile.
Perrault, por conta da “Querelle”, continuou escrevendo, e o seu segundo conto, também
em versos, “Desejos Ridículos”, foi baseado num antigo conto da tradição oral francesa, que fazia
parte de um antigo “fabliaux”15. “Desejos Ridículos” na época não fez sucesso, por isso foi
15
“conto em verso no qual, em tom trivial, são narradas uma ou diversas aventuras jocosas ou exemplares, uma e outra
ou uma ou outra”. (JODOGNE, 1985, p.28)
29
cultivado e divulgado que foi em França do Rei Luis XIV e “seus ministros de ‘caras’ coberta de
pó de arroz e perucas brancas”.
Talvez por causa do contexto cultural francês, em ascensão, é que Perrault tenha se
tornado tão famoso, verdadeiramente um imortal acadêmico, que a História da Literatura registrou
como criador da Literatura Infantil, afinal era sua Pátria que ditava as regras para o resto da
Europa e do mundo.
Perrault foi considerado o autor mais popular de seu tempo, porém não podemos omitir
nessas considerações, a importância de algumas mulheres que se destacaram ao escrever contos
de fadas que também eram lidos na corte, como por exemplo: Madame D’Aulnoy que publica oito
volumes de contos maravilhosos, entre esses contos existem alguns célebres como O Pássaro
Azul, A Princesa dos Cabelos de Ouro e outros tantos, desafiando, tal qual Perrault, o
racionalismo clássico e o modelo dos antigos “greco-latinos”. Outras mulheres como Madame de
Beaumont e Madame de Murat também deram a sua contribuição no lançamento da “moda das
fadas”. O termo tão conhecido “Contos de Fadas” saiu de um livro de Mme. D’Aulnoy, publicado
em 1698, que tinha o nome de “Contes de Feés”.
O termo se generalizou na França, mesmo que nem todos os contos tragam a personagem
fada, como é o caso da maioria dos contos de Perrault. O nome de um livro para nomear um
gênero, que na verdade, deve ter separado o conto oral popular maravilhoso, que continua a
correr na boca do povo, das pessoas simples, camponesas, daqueles que eram escritos por
autores representantes da burguesia ou da aristocracia. Em outras palavras, para distinguir o que
vinha do povo, de sua forma de contar e o que se transformou em escrita.
Para Zack Zipes apud Canton (1994, p.34) crítico norte americano, os Contos de Fadas
“nasceram” dos Contos de Magia que, por sua vez, eram narrativas que possuíam uma função
utópica e emancipatória, pois eram criadas oralmente por pessoas comuns para compensar as
injustiças de seu dia a dia. Entretanto, em seu desenvolvimento histórico, os contos do povo foram
apropriados e transformados por escritores burgueses e aristocratas dos séculos XVI, XVII, XVIII,
e com a expansão das publicações os contos de magia transmitidos oralmente se tornaram um
novo gênero literário: o conto de fadas.
Esse pensamento vai ao encontro do que diz Robert Darnton (1996): os Contos de Fadas
são retratos de uma época tão difícil em que era comum fazer como a mãe de “Petit Poucet” ao
ter tantos filhos quanto Deus queria, não ter como alimentá-los, entregando-os à própria sorte:
Abandonando seus filhos na floresta, os pais do Pequeno Polegar tentavam enfrentar um
problema que acabrunhou os camponeses muitas vezes, nos séculos XVI e XVII - o problema da
sobrevivência no período de desastre demográfico. (DARNTON, 1996, p. 47).
Isto quer dizer que o cotidiano cruel dos povos, contado por eles como forma de aliviar
suas dores e sonhar uma vida melhor, foi transformado em contos escritos e legitimados como
leitura das altas rodas da corte. No decorrer do tempo, esses contos foram influenciando a
tradição oral de muitos povos.
Os irmãos Grimm
31
Ora, todas as convergências que repontam nos KinderUndHausmarchën, nos autorizam a admitir,
no século XIX, a obra dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm como uma das fontes responsáveis pelo
surgimento da ciência do folclore no Brasil, com inegável influência na própria dinâmica do
folclore, na parte que diz respeito ao enriquecimento e difusão da literatura popular e da literatura
oral.
Não é possível negar a influência desses irmãos em nossa cultura, como Brandão (1995,
p.65) afirma ainda:
32
os irmãos Grimm foram os grandes responsáveis pelo preenchimento das horas de lazer da
sociedade brasileira, desde o primeiro quartel do século passado, quando o Brasil de torna
independente e busca inaugurar literatura própria, sob os influxos do romantismo. Especialmente
da sociedade imperial. De fato Dona Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro I, era austríaca e
trouxe com ela da Europa, uma plêiade de artistas e professores, que não deixariam de influenciar
nos meios culturais do Rio de Janeiro. (...) Assim, nos serões da corte, como em muitos serões
familiares das províncias, não será improvável o preenchimento de horas de lazer com a leitura do
KinderUndHausmarchën, fosse no original, fosse em traduções ou adaptações. Talvez mesmo lido
e recontado para um círculo de ouvintes.
Por conta de afirmações como essas, é que podemos observar quantas migrações
sofrem os contos de fadas, quem conta o que leu aumenta um ponto ou suprime, transforma. Daí,
Brandão (1995) ter razão em afirmar a influência que os contos dos Grimm tiveram em nosso
país, afinal as narrativas dos dois irmãos foram traduzidas e adaptadas reiteradamente até hoje,
muito mais do que qualquer outro autor. Os irmãos Grimm queriam muito mais que escrever para
a infância, tinham também uma cristalina intenção acadêmica de estudar a cultura de seu povo.
Como é possível perceber, os contos de Grimm assim como os de Perrault, são produtos
(re)escritos, moldados por valores socioculturais do contexto em que viviam seus autores, filtrados
pela visão que aqueles tinham de mundo, uma criação artística que teve como inspiração a cultura
popular, mas que reflete a formação e os valores pessoais, como toda obra literária. Mas não
podemos esquecer que os motivos centrais e universais dos contos permaneceram. As vivências
dos irmãos, as marcações de suas épocas estão presentes como códigos secundários, já que
suas interferências não chegaram à estrutura profunda dos contos, ou seja, os códigos principais
permaneceram e chegaram até nós.
Abrir um diálogo com esses autores é uma forma de entender o laço que o une o
passado ao presente, pois eles deixaram os seus olhares sobre o tempo em que viveram ao
(re)criarem, a partir do que ouviram da boca do povo ou do que leram. Por causa deles, tradição
francesa e a alemã foram transformando-se em um dos mais importantes testemunhos culturais
do Ocidente. Assim, sempre que uma pessoa lê ou conta uma história de fadas; encena para o
teatro um conto de fadas; narra uma história em discos; recria para o Ballet passos baseados nos
contos de fadas, estará abrindo um diálogo com o passado, estará dialogando com Perrault,
Grimm, Andersen portanto com tradições remotas que hoje distanciadas de seu contexto,
continuam influenciando outros contextos.
Hans Christian Andersen (1805/1875)
Se Perrault e outros escritores burgueses ou aristocratas contribuíram para difusão dos
contos de fadas escritos, não dá deixar de citar um dos maiores escritores de Contos de Fadas
que não era burguês nem aristocrata, mas que transitava por esta tradição oral mesclada com a
escrita da qual fazia parte, como pessoa do povo e contador de suas histórias, também como
criador de seus próprios contos,
Hans Christian Andersen, criador de histórias cujo contexto sócio-cultural histórico no qual
vivia está sempre presente em sua obra. Andersen era gente simples, do povo, poeta, contador de
33
histórias, artista de circo que sofreu todas as injustiças possíveis como outras pessoas de sua
classe, mas que, após muita luta, teve seus dias de glória.
Foi um célebre poeta e contador de histórias que nasceu na Dinamarca, totalmente em
sintonia com os ideais românticos que exaltavam valores populares, Andersen acaba por se
revelar uma das vozes simples e singelas que ainda hoje vive nas forças das emoções do coração
das crianças (Novaes, 1991).
Seus contos mais divulgados são os seguintes: O patinho feio, Os sapatinhos vermelhos, A
rainha das neves, O rouxinol e o imperador, O soldadinho de chumbo, A Pastora e o limpador de
chaminés, A pequena vendedora de fósforos, Pequetita, Os cisnes selvagens, A roupa nova do
imperador, O companheiro de viagem, O homem da neve e tantos outros contos, são mais ou
menos 160 contos.
Andersen também adaptou contos populares, como é o caso de a A princesa e grão de
ervilha, além de outros que ele contava para crianças. Nesse sentido não devemos esquecer que
Andersen era um artista popular, um improvisador que percorria aldeias de sua pátria contando
histórias. Ou seja, Andersen dos três artistas mais importantes dos contos de fadas, foi, talvez, o
que viveu melhor as duas possibilidades de criação: além de compilar e contar as histórias já
existentes em sua cultura, ele criou os seus próprios contos de acordo com os ideais de sua
época, sem deixar de inovar e propor novas formas de imagens construídas pelos seus
maravilhosos contos de fadas.
Para nós, ele deixou um sem número de contos que também podem ser encontrados na
tradição oral paraense, como é o caso de O Patinho Feio, Mindinha e outros que encontrei em
versão paraense. “Andersen é o próprio povo”.
O interesse desses comentários era para contextualizar Perrault. E sobre ele há ainda
muito que contar, mas não dá para falar de contos de fadas e omitir nomes tão importantes, como
os de Andersen e o dos irmãos Grimm porque, por caminhos diferentes, eles tiveram e continuam
tendo uma importância enorme na divulgação dos Contos de Fadas, e suas palavras continuam
criando novas palavras, nesse ir e vir complexo do oral/ escrito de transmissão cultural que atinge
o jeito de contar. Suas narrativas ou suas (re)criações vão se transformando, revestindo-se de
novas palavras.
As narrativas (re)criadas pela escrita, assim como aquelas de onde estas se originaram,
vão sendo “contaminadas” de acordo com o contexto sócio-histórico cultural, além de guardarem
situações narrativas ancestrais que se articulam perfeitamente em novos contextos onde os
contos são (re) escritos ou contados oralmente.
Com certeza, os contos escritos por Perrault foram muito difundidos via Literatura Infantil e
devem ter influenciado novas criações narrativas e, principalmente, devem ter enchido várias
páginas de livros que circularam no Brasil, como afirma Ferreira, (1995,p. 47):
Editoras como a Vecchi e a Quaresma, entre outras, fizeram circular suas coletâneas de livros
infantis de estórias como as da Carochinha e da Baratinha, das Mil e Uma Noites, bem como de
34
outros autores famosos, por destino e linguagens, difundidos por modas ou depositados por
afinidade no imaginário tradicional.
Além das coleções presentes na citação, outras tiveram penetração no imaginário popular,
como é o caso de “Histórias da Avozinha” e “Historias do Arco da Velha”, que tratam de contos
traduzidos e adaptados de Perrault e, principalmente, dos irmãos Grimm.
Nossos Contos da “Carochinha”
Houve no Brasil um tempo em era moda adaptar e traduzir contos maravilhosos europeus,
isto ocorreu a partir de Figueiredo Pimentel (1869/1914),primeiro autor brasileiro de livro infantil,
com as coletâneas já citadas e que tiveram uma penetração enorme no imaginário brasileiro.
Muitos contos europeus foram traduzidos por Monteiro Lobato (1882/1948)escritor e
pesquisador do folclore brasileiro, inventariou a cultura popular dando sua contribuição para a
divulgação de contos populares, como ele diz em cartas para Godofredo Rangel, reunidas em
“Barca de Gleyre”. A partir da década de 30, o “nosso folclore” entra para a Literatura Infantil numa
alusão à oralidade e à presença do negro nas histórias. No entanto, tais narrativas não eram tão
brasileiras como alguns diziam, e sim adaptações de contos europeus Monteiro Lobato sabia
disso e informa em “Histórias de Tia Nastácia”, livro escrito em 1936. No mesmo ano José Lins do
Rego escreve “Histórias de Velha Totônia” e ainda, em 36, outra coletânea é escrita por Osvaldo
Orico, “Contos da Mãe Preta e Histórias de Pai João”.
Antes de Figueiredo Pimentel, Silvio Romero, em Contos Populares do Brasil (1889) em
que havia a preocupação de resgatar o folclore brasileiro, sua formação de historiador e crítico
literário o levou pelos caminhos da recolha de narrativas da tradição oral, e delas retirou as
ferramentas para suas classificações e comparações. A maioria destas narrativas foi coligida em
Sergipe, sua cidade Natal, algumas em Pernambuco, e outras do Rio de Janeiro onde residiu
também.
Em “Histórias de Tia Nastácia”, Lobato “se inspira” na cultura popular e na coletânea de
Silvio Romero, para contar histórias da tradição oral. Mediatizadas pela escrita, essas histórias
também estiveram presentes na televisão quando a Globo adaptou e produziu o “Sítio do Pica
Pau Amarelo”. Publicou ainda “Saci Pererê”, além de ter trazido para alguns de seus livros
escritos para a infância, como é o caso de “Reinações de Narizinho” só para exemplificar,
personagens dos contos de fadas europeus para o “Sítio”. Assim, as personagens dos dois
universos contracenam, criando novas histórias.
Câmara Cascudo (1986) recolheu e publicou “Contos Tradicionais do Brasil” mostrando as
variadas formas de conto popular que circulavam no Brasil de sua época e que até hoje circulam.
E um estudo sobre o conto onde ele mostra sua famosa classificação. Essa coletânea recolhida
da tradição oral brasileira deve ter influenciado a própria tradição de onde foi recolhida. Cascudo
(1988, p. 317), em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, nos informa o seguinte sobre o conto de
“fadas”:
35
[...] a fonte divulgadora teria sido Charles Perrault, Fées, de rápida expansão pela Europa na
segunda metade do século XVII. De Fata, fatum destino. As fadas fadam, predestinando:
“Fademos manas, fademos! ...” Denunciando o conto popular de recriação letrada. As fadas
brasileiras foram trazidas pelos portugueses, com vivos matizes das mouras encantadas,
premiando o herói com amor e riquezas infindáveis. Não existiam na literatura oral africana, de
fonte autêntica, naturalmente ausente nas memórias indígenas.
As histórias escritas por Perrault que faziam parte do imaginário francês seja porque algum
viajante já tivesse lido ou escutado histórias italianas, na pátria de autores mais antigos que o
escritor francês, seja como diz Darnton (1986) serem essas histórias inventadas a partir das
dores do povo, o é fato que para nós se trata de um universo de criação popular (re)criado por
Perrault, pelos Grimm, traduzido e adaptado no Brasil por Pimentel e por Lobato principalmente.
Os dois últimos pesquisados por Cascudo (1984) tem a ver com circuito impresso/ oral em que o
papel das edições das coletâneas de contos é muito importante na difusão e penetração dos
mesmos no imaginário brasileiro e que estão presentes na tradição paraenses.
Era uma vez, assim começa um conto de fadas, trata-se de uma forma canônica que situa
o ouvinte e/ou leitor num lugar especial para onde esse tipo de conto tem o privilégio de o levar. O
lugar é um mundo imaginário em que se pode permanecer até o e foram felizes para sempre. O
contador é o artista que preenche esses dois pontos invariantes. Assim conhecemos um conto de
fadas, algumas vezes como sinônimo de enganação, outras como “objeto museológico”.
No entanto, ao contrário do que algumas pessoas possam pensar, esses contos fazem
parte do patrimônio da memória coletiva da maioria das tradições dos mais variados países.
Moram no imaginário dos homens desde as mais antigas civilizações e tomaram a forma literária
que hoje conhecemos a partir de escritores como Perrault, um dos mais importantes e
representativos do gênero “Conto de Fadas”.
Segundo Zumthor (1997, p,51) o conto de Fadas “se constitui um indício e talvez a prova
da existência, na tradição francesa de um ‘gênero’ tido como particular...” A identidade desse
“gênero” tinha uma razão de ser no contexto cultural em que “nasceu”. Uma forma que os
franceses encontraram para ditar para o mundo mais uma “moda” a partir do advento do conto
folclórico compilado por escritores clássicos como Perrault e outros escritores franceses. Antes de
Perrault, Straparola (Le paicevolinotti, 1550) e Basile (Pentameron, 1634) já haviam feito registros
de contos populares italianos, mas que não tiveram a mesma divulgação e nem o estrondoso
sucesso dos contos franceses.
O conto é um gênero “no qual transitam formas do imaginário com aspecto ao mesmo
tempo constante, instável e evolutivo...”(Zumthor,1997.p,53). Muitas pesquisas sobre o conto
foram realizadas, ocorrendo um movimento de coleta e publicação de contos, que eram estudados
por temas, funções, dependendo da escola a qual pertencesse o pesquisador.
Assim é possível encontrar trabalhos, com as mais variadas propostas, que atingem certos
aspectos dos contos, mas que, segundo alguns pesquisadores, deixam a desejar em outros. Há
pesquisas feitas à luz da Antropologia, do Folclore, da Semiologia, da Psicanálise, do
36
16
Estou usando deste do início o termo conto de fadas, em virtude, de ser uma marca da produção escrita desse tipo
de conto, principalmente por se tratar das “matrizes impressas” de Perrault.
37
AARN’ES, Anti e THOMPSON, Stith. The types of the folktale: a classification and blibliografhy. Helsinki:
Indiana – University, 1961.
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________A Letra e a Voz: a literatura medieval. Tradução: Amalio Ribeiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo:
Cia das Letras,1993.
TEXTO 4
HISTÓRIAS E IMAGENS17
Joséa Fares (UEPA)
Não há dúvida de que as narrativas, sejam quais forem suas formas de transmissão e
configuração, acompanham o ser humano. As primeiras imagens nas cavernas pré-históricas
“interpretam o mundo material e mental dos homens” (OSTROWER, 1983, p. 298) e contam como
os grupos viviam seu cotidiano. Nas comunidades indígenas, o pajé concentrava a sabedoria de
um grupo não só por ter domínio dos princípios mágico-científicos, mas por ser o portador e
17
Este texto foi elaborado para a disciplina Formas de Expressão e Comunicação Artística, do curso de
Licenciatura em Pedagogia da Universidade Aberta do Brasil, em convenio com a Universidade do Estado
do Pará.
39
transmissor das histórias do mundo. Atualmente, as programações das redes televisivas, os CDs,
os computadores e outros meios de eletrônicos substituem em parte a fala dos narradores que por
tantos séculos modelaram nossas histórias.
O século XVII marca o aparecimento oficial da literatura da literatura infantil escrita. Os
narradores, antes anônimos, começam a ser conhecidos por suas características literárias.
Charles Perrault, um dos inauguradores da literatura infantil, adaptou contos medievais partindo
de temáticas populares, criando detalhes que satisfaziam a classe dominante e tinham o propósito
moralizante que nada tem haver com a camada popular que gerou os contos, mas com interesses
pedagógicos.
As primeiras ilustrações dos livros de Perrault foram realizadas pelo artista Gustave Doré
(1832 – 1883). Doré realizava os desenhos para que depois os artífices reproduzissem em uma
matriz em madeira ou metal. Desta forma, as primeiras ilustrações estavam circunscritas à
linguagem da gravura.
As primeiras ilustrações descrevem fragmentos dos textos. A cena não nos fornece dados a
mais daqueles contido nas palavras. O tratamento dado às imagens é realista/idealista, ou seja,
os objetos e pessoas representados têm a aparência física tal qual se apresenta, “não há intenção
de enfatizar as formas acima dos limites de configuração. O artista sintetiza os aspectos
individuais de um fenômeno em favor de uma generalização” (OSTROWER apud CUNHA, 2009).
da sala. A leitura que fizemos desta imagem é imediata e encerra-se nela mesma: tanto
composição quanto tratamento dado a imagem não nos possibilita outras leituras da cena.
No Brasil, em 1921, Monteiro Lobato introduz na literatura infantil ilustrações de artistas
nacionais. Além de criar muitas histórias, Lobato também adapta Andersen, Grimm, Perrault, entre
outros. Para Fanny Abramovich (1997, p. 28), Lobato reinventou o idioma, maravilhando e
espantando as crianças ao fazer conviver a fantasia com a realidade.Também foi ele o primeiro
“escritor sensível quanto à questão da ilustração nos livros infantis. Lobato preocupou-se com o
projeto gráfico de seus livros e com as ilustrações de seu miolo tendo chamado Voltolino e outros
artistas para dar vida aos seus livros”(BRANDÃO, 1995, p. 5)
As ilustrações dos livros de Lobato são mais simples, sob o ponto de vista gráfico, que as
ilustrações do Doré. O mérito destas primeiras ilustrações não se atém às ousadias gráfico-
artísticas, mas ao processo que se inicia de descolonização da imagem da literatura infantil
brasileira dirigida às crianças. Se antes as crianças tinham acesso às imagens estrangeiras, surge
Lobato, Voltolino, Belmonte e outros artistas com outra concepção visual distanciada dos modelos
europeus.
Mesmo havendo mudanças na forma de representação, o sentido e o uso das imagens na
literatura infantil continuavam sendo o mesmo: elucidar, exemplificar ou reforçar o texto literário.
Na década de 70, com o chamado ‘boom’ da literatura infantil, as histórias passam a abordar
outras temáticas mais próximas do cotidiano da criança. As ilustrações tomam outro rumo,
aproximando–se da linguagem gráfico-plástica das crianças, recuperando algumas características
gráficas, como o uso da cor, traçado, perspectiva, composição, etc. O mundo infantil passa a ter
uma identidade com um mercado específico de bens destinado a supri-lo e satisfazê-lo. Com isso,
há uma tendência de mudanças nos projetos gráficos dos livros infantis, a imagem começa a ter
tanta importância quanto o texto.
Ana Lúcia Brandão aponta a década de 80 como o marco da ilustração no mercado editorial
brasileiro e exemplifica algumas técnicas de ilustração.
É neste momento que percebemos que as editoras reconhecem que a infância vive da
visualidade dominada pelos meios de comunicação de massa. Esse momento foi um dos
41
2. Colagem
42
Um Jeito Bom de Brincar. Texto: Elias José. Ilustração:Sônia Magalhães e Bia Sampaio
3. Computação gráfica/apropriação
diagramação, (distribuição de texto e ilustração), encadernação (capa dura, brochura e etc.), tipo
de impressão (tipografia, ofsete, etc), número de cores de impressão etc.
A ilustração é um dos elementos do projeto gráfico. O livro pode não ser ilustrado, mas tem
sempre um projeto gráfico.
Um mau projeto gráfico pode empobrecer uma ilustração e/ou um bom texto: páginas muito
cheias, margens acanhadas, ilustrações mal colocadas, falta ou excesso de espaços vazios,
desalinhamentos... coisas desse tipo tiram o conforto da leitura e podem no mínimo deixar o leitor
com aquela sensação de “está bom, mas...” Um bom projeto, ao contrário, cria um ambiente
harmonioso para a ilustração e para o texto, sem priorizar nenhum deles e, ao mesmo tempo,
valoriza-os, deixando “falar” de forma bonita e agradável.
1 - Diagramação:
Seguindo as orientações do projeto gráfico, é feito o protótipo do livro. Com o número de páginas,
o texto disposto nelas, os espaços para ilustração reservados, os títulos nos seus lugares, enfim,
faz-se um modelo do que se pretende como resultado final.
2 -Técnica:
O uso de técnicas diferentes do livro infantil enriquece o universo visual da criança, estimula sua
percepção, sua apreciação estética e sua própria criação plástica.Alguns ilustradores têm uma
técnica preferida, explorando suas possibilidades nas várias obras que ilustram. Outros procuram
variá-las, cuidando para que os livros não fiquem com a mesma aparência. Veja o exemplo:
Flicts, Ziraldo:
“Flicts” é a história de uma cor à procura do seu lugar no mundo. Correndo o mundo, Flicts
procura um lugar - para brincar ou trabalhar – entre os lápis de cor, no parque, no jardim, no arco-
íris, nas bandeiras, nos países mais bonitos, nos mais distantes, nos mais antigos, no mar, no
semáforo...Cansado de procurar neste mundo, que não tinha lugar para ele, Flicts acaba por
encontrar seu lugar na lua.
“Flicts”, livro, em que o texto conta e as imagens ilustram. Nele, as imagens sozinhas não
contam a história. Porém, em vários momentos, parece que é o texto que ilustra as imagens.
Como a ilustração de página dupla em que aparece um círculo vermelho sobre fundo preto,
cortado na margem inferior por uma estreita faixa roxa.
O texto comenta:
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O poeta José Paulo Paes diz que “poesia é brincar com as palavras”. Nesta brincadeira
com a palavra o poeta pode brincar de maneiras diferentes:
Sonoridade
Um dos recursos poéticos mais comuns no jogo sonoro é a rima, ou seja, a semelhança sonora no
final das palavras:
belo dia movimentado
acontece rápido
como desenho animado.(Ulisses Tavares)
Outro recurso poético usado no jogo da sonoridade é a aliteração, isto é, a repetição de
consoantes com o mesmo som, como exemplo, o poema “Roda na rua” de Cecília Meireles:
Roda na rua
Roda na rua
a roda do carro.
Roda na rua
a roda das danças.
A roda na rua
roda de barro
Na roda da rua
rodavam crianças.
O carro, na rua.
Ritmo
“O ritmo está presente no poema, nos versos e nas próprias palavras. Toda palavra tem um ritmo
que resulta da alternância de sílabas fortes (tônicas) e fracas (átonas). O verso combina ritmos de
cada palavra, formando uma nova estrutura rítmica” (CAMARGO,1995).
Ritmo
Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco
Na pia
a menina escova os dentes
escova os dentes
No arroio
a lavadeira bate a roupa
bate a roupa
bate a roupa
Ritmo Visual
Elementos que compõe a linguagem gráfica: linha, ponto textura, volume, luz, etc, estes
elementos se articulam para construção de espaços gráficos. Na poesia, o ritmo resulta, dentre
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outras coisas, da repetição e/ou alternância de sons, silabas, expressões, etc. De forma
semelhante o ritmo visual resulta da repetição/alternância de elementos visuais como, linhas,
formas e cores.
Estrutura linear.
A estrutura linear é o resultado de repetição de linhas, procedimento utilizado por Eleonora
Affonso ao ilustrar “O chão e o pão” de Cecília Meireles.
O poema apresenta, de forma sintética, a semeadura do trigo, a feitura do pão até chegar na
mão de quem vai comê-lo, concluindo com a recomendação de que não se deve jogar o pão no
chão. O texto valoriza a sonoridade e o ritmo das palavras.A ilustração representa hastes de trigo
que se inclinam de cima para baixo, sugerindo um trigal balançando com o vento.Assim como o
poema valoriza a estrutura sonoro-ritmica, a ilustração valoriza a estrutura rítmica das linhas.
Estrutura formal
A estrutura formal resulta da repetição de formas. Como exemplo, temos a capa do livro “Boi da
cara preta”, de Sergio Caparelli, ilustrado por Caulos que representa a cabeça de um boi com uma
flor na boca.
48
Assim temos uma forma oval que se repete nos olhos, nas narinas, nas orelhas e na corola
da flor. Nos chifres, outra forma se repete, de um lado o chifre é uma lua crescente. Num olho há
um brilho com forma de uma pequena estrela, no outro o brilho tem a forma de uma estrela quase
do tamanho do olho. O boi é azul, os chifres amarelos. O fundo é azul. O ilustrador sugere que o
boi da cara preta do título do livro – que lembra uma cantiga infantil – é a personificação da
noite.O ritmo visual aqui é resultado da repetição de formas.
Estrutura cromática
A estrutura cromática resulta da repetição de cores, como nos apresenta Helena Alexandrino ao
ilustrar “Acolchoadas trilhas”, de Roseana Murray. O ritmo visual aqui é resultado da repetição e
alternância de formas e cores, combinando a estrutura formal e cromática.
49
ESTILOS DE REPRESENTAÇÃO
O ilustrador pode ter diversas atitudes em relação ao que vai representar. (Duas edições de “Arca
de Noé”, de Vinicius de Moraes, uma ilustrada por Antônio Bandeira e a outra por Marie Louise
Nery, cada ilustrador com sua forma de representar).
Descrição
Ênfase na função descritiva, como Regina Rennó faz ao ilustrar “Lua nova”, de Wania Amarante.
A ilustração representa uma menina com uma camiseta azul com um veleiro estampado em cinza
claro. A menina tem um colar com um pingente em forma de lua crescente. A metáfora da lua
como “joia brilhante” é visualizada pela ilustração através de uma joia com forma de lua.
Lua Nova
Moda é um caso sério
Um dia se usa colar de pedra,
No outro um fiozinho de prata,
Tal aquela jóia brilhante
Que se deita radiante
No estojo azul-marinho do céu
Rabiscação
Ênfase na gestualidade do desenho. O traço não quer ser apenas contorno de uma forma, mas o
registro de um movimento, um risco, um rabisco, uma pincelada, como Rubens Matuck faz em
“Olha o bicho”, de José Paulo Paes. Exemplo:
Abstração
A ênfase na geometrização ou na rabiscação conduzem a um progressivo afastamento do objeto,
podendo chegar à abstração, como “Flicts”, de Ziraldo, ou “Raul” de Bartolomeu Campos Queiros
com programação visual de Mário Cafieiro.
51
Referências
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53
TEXTO 5
A ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL18
Magda Soares
Comecemos por analisar o tema desta exposição: que relações existem entre o processo de
escolarização e a literatura infantil? Sob que perspectivas podem essas relações ser analisadas?
Numa primeira perspectiva, podem-se interpretar as relações entre escolarização, de um
lado, e literatura infantil, de outro, como sendo a apropriação, pela escola, da literatura infantil:
nesta perspectiva, analisa-se o processo pela qual a escola toma para si a literatura infantil,
escolariza-a, didatiza-a, pedagogiza-a, para atender a seus próprios fins – faz dela uma literatura
escolarizada.
Uma segunda perspectiva sob a qual podem ser consideradas as relações entre
escolarização, de um lado, e literatura infantil, de outro, é interpretá-las como a produção, para a
escola, de uma literatura destinada a crianças: nesta perspectiva, analisa-se o processo pelo qual
uma literatura é produzida para a escola, para os objetivos da escola, para ser consumida na
escola, pela clientela escolar – busca-se literatizar a escolarização infantil.
Uma e outra dessas duas perspectivas suscitam a questão, tão debatida e nunca resolvida,
do conceito de literatura infantil: quer se pense em uma literatização da escolarização infantil, ou
seja, quer se considere a literatura infantil como produzida independentemente da escola, que
dela se apropria, quer se considere a literatura infantil como literatura produzida para a escola, o
que caracteriza uma determinada literatura como infantil?
À primeira perspectiva está subjacente o conceito de que há uma literatura que é destinada
a, ou que interessa a crianças, da qual a escola lança mão para incorporá-las às suas atividades
de ensino e aprendizagem, às suas intenções educativas. Não cabe aqui discutir se literatura
infantil é uma literatura destinada acrianças ou uma literatura que interessa a crianças, mas vale a
pena recordar a questão que Carlos Drummond de Andrade tão bem formulou já no início dos
anos 40, e que ainda hoje permanece irrespondida:
O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência duvidosa. Haverá música infantil? Pintura
infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento para o espírito da criança ou do
jovem e se dirige ao espírito do adulto? Qual o bom livro para crianças, que não seja lido com interesse pelo
homem feito? Qual o livro de viagens ou aventuras, destinados a adultos, que não possa ser dado à criança,
desde que vazado em linguagem simples e isento de matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de
linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte, estranho ao
homem, e reclamando uma literatura também à parte? Ou será a literatura infantil algo de mutilado, de
reduzido, de desvitalizado – porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a imitação da infância é a
própria infância? (Carlos Drummond de Andrade, Literatura Infantil, em Confissões de Minas)
18
InMARTINS, Aracy Alves etHeliana Maria Brina Brandão, Maria Zélia Versiani Machado (organizadoras).
A escolarização da leitura literária – O jogo do livro infantil. Belo Horizonte: Autêntica, 1999 (p.17-48).
54
sendo a apropriação, pela escola, para atender a seus fins específicos, de uma literatura
destinada à criança, ou que interessa à criança.
No quadro dessa opção, comecemos por discutir o termo escolarização.
Escolarização
O termo escolarizaçãoé, e geral, tomado em sentido pejorativo, depreciativo, quando
utilizado em relação a conhecimentos, saberes, produções culturais; não há conotação pejorativa
em “escolarização da criança”, em “criança escolarizada”, ao contrário, há uma conotação
positiva; mas há conotação pejorativa em “escolarização do conhecimento”, ou “da arte”, ou “da
literatura”, como há conotação pejorativa nas expressões adjetivadas “conhecimento
escolarizado”, “arte escolarizada”, “literatura escolarizada”. No entanto, em tese, não é correta ou
justa a atribuição dessa conotação pejorativa aos termos “escolarização” e “escolarizado”, nessas
expressões.
Não há como ter escola sem ter escolarização de conhecimentos, saberes, artes: o
surgimento da escola está indissociavelmente ligado à constituição de “saberes escolares”, que se
corporificam e se formalizam e currículos, matérias e disciplinas, programas, metodologias, tudo
isso exigido pela invenção, responsável pela criação da escola, de um espaçode ensino e de um
tempo de aprendizagem.
A diferença fundamental entre o aprendizado corporativo medieval e o aprendizado
escolar que se difundiu no mundo ocidental, a partir sobretudo do século XVI, foi uma revolução
do espaço de ensino: locais dispersos mantidos por professores isolados e independentes foram
substituídos por um prédio único abrigando várias salas de aula; como consequência e exigência
dessa invenção de um espaço de ensino, uma outra “invenção” surge, um tempo de ensino:
reunidos os alunos num mesmo espaço, a idéia de sistematizar o seu tempo se impunha, idéia
que se materializou numa organização e planejamento das atividades, numa divisão e graduação
do conhecimento, numa definição de modos de ensinar coletivamente. É assim que surgem os
graus escolares, as séries, as classes, os currículos, as matérias e disciplinas, os programas, as
metodologias, os manuais e os textos – enfim, aquilo que constitui até hoje a essência da escola.
Assim, a escola é uma instituição em que o fluxo das tarefas e das ações é ordenado
através de procedimentos formalizados de ensino e de organização dos alunos em categorias
(idade, grau, série, tipo de problema, etc.), categorias que determinam um tratamento escolar
específico (horários, natureza e volume de trabalho, lugares de trabalho, saberes a aprender,
competências a adquirir, modos de ensinar e de aprender, processos de avaliação e de seleção,
etc.). É a esse inevitável processo – ordenação de tarefas e ações, procedimentos formalizados
de ensino, tratamento peculiar dos saberes pela seleção, e consequente exclusão, de conteúdos,
pela ordenação e sequenciação desses conteúdos, pelo modo de ensinar e de fazer aprender
esses conteúdos – é a esse processo que se chama escolarização, processo inevitável, porque é
da essência mesma da escola, é o processo que a institui e que a constitui.
56
Portanto, não há como evitar que a literatura, qualquer literatura, não só a literatura infantil
e juvenil, ao se tornar “saber escolar”, se escolarize, e não se pode atribuir, em tese, como dito
anteriormente, conotação pejorativa a essa escolarização, inevitável e necessária; não se pode
criticá-la ou negá-la, porque isso significaria negar a própria escola.
Disse em tese porque, na prática, na realidade escolar essa escolarização acaba por
adquirir, sim, sentido negativo, pela maneira como ela tem se realizado, no quotidiano da escola.
Ou seja: o que se procura criticar, o que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a
inadequada, a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua deturpação,
falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma didatização mal
compreendidas que, ao transformar o literário e escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o. (É
preciso lembrar que essa escolarização inadequada pode ocorrer não só com a literatura, mas
também com outros conhecimentos, quando transformados em saberes escolares).
Esta exposição poderia, assim, discutir a inevitável e necessária escolarização da
literatura infantil e juvenil, e como fazê-la de forma adequada; na verdade, toda a bibliografia
prescritiva sobre a literatura na escola é uma bibliografia sobre como promover uma escolarização
adequada da literatura: como se deve ensinar literatura, como se deve trabalhar com o texto
literário, como se deve incentivar e orientar a leitura de livros.
Mas não é essa a discussão que se pretende desenvolver aqui; o que se pretende é
discutir como a literatura infantil tem sido inadequadamente escolarizada, erroneamente
escolarizada; discutindo isso, implicitamente se estará apontando como ela poderia ser
adequadamente escolarizada. Sendo assim, o tema desta exposição deveria, talvez, ganhar um
adjetivo, e tornar-se: A inadequada escolarização da literatura infantil.
Antes, porém, de desenvolver assim o tema, é necessário lembrar as principais instâncias
de escolarização da literatura infantil e, assim, contextualizar aquela que será aqui privilegiada.
Instâncias de escolarização da literatura infantil
São três as principais instâncias de escolarização da literatura em geral, e particularmente
da literatura infantil: a biblioteca escolar; a leitura e estudo de livros de literatura, em geral
determinada e orientada por professores de Português; a leitura e estudo de textos, em geral
componente básico de aulas de Português. Esta última instância é que será aqui privilegiada,
mas, para contextualizá-la, é importante desenvolver algumas considerações sobre as outras
duas.
A biblioteca como instância de escolarização da literatura
Na biblioteca, escolariza-se a literatura infantil (aliás, a literatura em geral) através de
diferentes estratégias.
A primeira estratégia é a próprio estabelecimento de um local escolar de guarda da e de
acesso à literatura4, um local escolar a que se atribui um estatuto simbólico que constrói uma
certa relação escolar com o livro, fundadora da relação posterior do aluno com a instituição social
57
não escolar “biblioteca” (biblioteca pública, ou biblioteca de instituição não escolar, ou mesmo
biblioteca particular).
Uma segunda estratégia é a organização do espaço e do tempo de acesso aos livros e de
leitura – onde se pode ou se deve ler (na própria biblioteca escolar? em que lugar da biblioteca?),
quando e durante quanto tempo se pode ler (durante a “aula de biblioteca”? quando se pode ir à
biblioteca buscar um livro? Quanto tempo se pode ficar com o livro?).
Uma outra estratégia é a seleção dos livros – quais livros a biblioteca oferece à leitura, que
livros exclui ou “esconde”, que livros expõe mais abertamente.
Há ainda as estratégias de socialização da leitura: quem indica ou orienta a escolha do livro
a ler – a professora? a bibliotecária? que créditos definem a orientação seletiva de leitura para
uma série ou outra, para meninos ou para meninas? a orientação seletiva para tipos e gêneros de
leituras, de autores?
Também a determinação de rituais de leitura constitui estratégia de escolarização da
literatura no âmbito da biblioteca – desde as fichas que é preciso preencher e respeitar, até como
se deve ler (em silêncio, sem escrever no livro, passando as páginas de certa maneira, não
dobrando o livro, etc.) e em que posição se deve ler (sentado adequadamente, segurando o livro
de certa maneira, etc.)
A leitura de livros como instância de escolarização da literatura
A leitura e estudo dos livros de literatura – a segunda instância mencionada – escolariza a
literatura também por diferentes estratégias.
Em primeiro lugar, a leitura é determinada e orientada, como já foi dito, por professores, e
geral os de Português, portanto, configura-se como tarefa ou dever escolar, sejam quais forem as
estratégias para mascarar esse caráter de tarefa ou dever – jamais a leitura dos livros no contexto
escolar, seja ela imposta ou solicitada ou sugerida pelo professor, seja o livro a ser lido indicado
pelo professor ou escolhido pelo aluno, jamais ela será aquele “ler para ler” que caracteriza
essencialmente a leitura por lazer, por prazer, que se faz fora das paredes da escola, se se quer
fazer e quando se pode fazer.
Além disso, a leitura é sempre avaliada, por mais que se mascarem também as formas de
avaliação – que se dê uma prova, que se peça preenchimento de ficha, que se promova trabalho
em grupo, seminário, júri simulado, enfim, que se use seja qual for a estratégia, das muitas que a
bibliografia de uma pedagogia renovadora vem sugerindo, sempre a leitura feita terá de ser
demostrada, comprovada, porque a situação é escolar, e é da essência da escola avaliar (o
simples fato de se estar sempre discutindo que é preciso não avaliar explicitamente, de se criarem
estratégias as mais engenhosas para verificar se a leitura foi feita, e bem feita, evidencia como a
leitura é escolarizada). Lembre-se que, fora da escola, nunca temos de demonstrar, comprovar
que lemos, e que lemos bem, um livro.
Com esses breves comentários sobre essas duas instâncias de escolarização da literatura
– a biblioteca escolar e a leitura de livros – o que se quer deixar claro é que a literatura é sempre e
58
inevitavelmente escolarizada, quando dela se apropria a escola; o que se pode distinguir entre
uma escolarização adequada da literatura - aquela que conduza mais eficazmente às práticas de
leitura que ocorrem no contexto social e às atitudes e valores que correspondem ao ideal de leitor
que se quer formar – é uma escolarização inadequada, errônea, prejudicial da literatura – aquela
que antes afasta que aproxima de práticas sociais de leitura, aquela que desenvolve resistência
ou aversão à leitura.
Assim, é contraditória e até absurda a afirmação de que “é preciso desescolarizar a
literatura na escola” (como tornar não escolar algo que ocorre na escola, que se desenvolve na
escola?) ou a “acusação” de que a leitura e o leitor são escolarizados na e pela (como não
escolarizar na escola? Como pode a escola não escolarizar?). O que, sim, se pode afirmar é que
é preciso escolarizar adequadamente a literatura (como, aliás, qualquer outro conhecimento).
O mesmo se pode dizer com relação à terceira instância de escolarização da literatura: a
leitura e o estudo de textos, e geral componente básico das aulas de Português, instância
privilegiada na discussão que se faz neste texto.
infantil está quase totalmente ausente; o gênero epistolar, a biografia, o diário, as memórias,
gêneros que têm presença significativa na literatura infantil, estão também quase totalmente
ausentes.
Dos textos narrativos se tratará adiante, ao discutir a desestruturação a que é submetida a
narrativa nos livros didáticos; cabe aqui apontar o tratamento que neles é dado à poesia, quase
sempre descaracterizada: ou se insiste apenas em seus aspectos informais – conceito de estrofe,
verso, rima, ou, o que é mais frequente, se usa o poema para fins ortográficos ou gramaticais.
Vejam-se dois exemplos (os grifos são meus):
Mvnac, dsv,dckjsd
literatura infantil brasileira, em prosa e verso, é bastante rica e diversificada. O resultado será ou
tem sido aquele mesmo que ocorreu com gerações anteriores, já que parece ser antiga esta
característica da escolarização da literatura: quem, entre aqueles que frequentaram a escola nos
anos 50 e 60, não se lembra de Visita à casa paterna, de Luís Guimarães Jr., de As pombas, de
Raimundo Correia, de Ouvir estrelas, de Olavo Bilac, de Um apólogo, de Machado de Assis?
Uma seleção limitada de autores e obras resulta em uma escolarização inadequada,
sobretudo porque se forma o conceito de que literatura são certos autores e certos textos, a tal
ponto que se pode vir a considerar como uma deficiência da escolarização o desconhecimento,
pela criança, daqueles autores e obras que a escola privilegia...quando talvez o que se devesse
pretender seria não o conhecimento de certos autores e obras, mas a compreensão do literário e
o gosto pela leitura literária (voltando às gerações que frequentaram a escola nos anos 50 e 60: é
considerado “falta de cultura” o desconhecimento, por aqueles pertencentes a essas gerações, de
“Ora direis, ouvir estrelas...certo perdeste o senso...”, mas não se considera “falta de cultura” a
insensibilidade para o literário e o “desgosto” pela leitura literária).
Um outro aspecto que revela a inadequada escolarização da literatura infantil é que,
excetuados os autores e obras recorrentemente utilizados, porque amplamente conhecidos, como
dito acima, verifica-se a ausência de critérios apropriados para a seleção de autores e textos; na
verdade, ou se lança mão de obras e autores muito conhecidos, ou de autores pouco
representativos e obras de pouca qualidade. É muito comum, por exemplo, a inclusão de textos do
próprio autor do livro didático, veja-se, por exemplo, a escolarização – inadequada – da poesia,
pela apresentação à criança do seguinte poema:
Pare! Atenção!
O Joãozinho é distraído.
Em nada presta atenção.
Mas Totó, o seu amigo,
É um excelente cão.
Em livros didáticos encontram-se, em geral, como textos para a leitura, fragmentos de textos
maiores, já que é preciso que as atividades de desenvolvimento de habilidades de leitura tenham
por objeto textos curtos, para que possam ser analisados estudados em profundidade no tempo
limitado imposto pelos currículos e horários escolares – esta é mais uma das características
(exigências?) da inevitável escolarização da literatura. Entretanto, ao selecionar o fragmento de
um texto, este tem de constituir-se, ele também, como texto, isto é: uma unidade de linguagem,
tanto do ponto de vista semântico – uma unidade percebida pelo leitor como um todo significativo
e coerente – quando do ponto de vista formal – uma unidade e que haja integração dos
elementos, que seja percebida como um todo coeso.
Para escapar à dificuldade desta tarefa, muitas vezes são forjados “textos”, na verdade,
pseudotextos: o próprio autor do livro didático produz o “texto”, e em geral o faz não propriamente
como o objetivo de desenvolver atividades de leitura, mas de ensinar sobre a língua – ensino de
gramática, de ortografia; eis um exemplo:
A jibóia e a girafa
Desnecessário comentar a falta de coerência deste pretenso “texto”: uma jibóia, por
gigante que seja, jamais poderia engolir uma girafa...jibóia com medo de injeção?! E por que a
tigela de jiló? E onde estão as “trovas” que a jibóia se pôs a cantar? e a absoluta falta de sentido
das trovas que não são trovas...
Nem se trata de exploração de nonsense, ou se jogo lúdico com as palavras: na verdade,
o objetivo foi apenas juntar palavras em que aparecem as letras j e grepresentando o mesmo
fonema – para não restar dúvida, as sílabas que o “texto” perseguia são destacadas no fim dele.
Apresenta-se esse “ajuntamento” de palavras ao aluno como se fosse um texto narrativo, levando-
62
O castelo encantado
Eu sou um mágico. Moro num castelo encantado. Os homens grandes não sabem de nada. Só as crianças é
que conhecem o segredo....
Quando um homem passa pela minha casa, o que vê é uma casa como as outras: com portas, janelas, telhado
vermelho, sacada de ferro...
Só as crianças é que enxergam o meu castelo encantado. Com torres de açúcar e chocolate. Pontes que
sobem e descem, puxadas ou empurradas por anõezinhos barrigudos vestidos de verde. Os trincos das
portas, vocês pensam que são de metal? Nada disso. São de marmelada, de goiabada, de cocada.
Quando um homem grande entra na minha casa, tem de toda a escada, degrau por degrau. Quando uma
criança entra no meu castelo, é a escada que sobre com ela.
VERÍSSIMO. Érico. “Rosa Maria no castelo encantado”. Em: Gente e bichos.
63
Como se vê, os “textos” são apenas o início das histórias, a exposição– no primeiro
exemplo, a apresentação da personagem central, menina bonita do laço de fita; no segundo
exemplo, a apresentação de um dos personagens, o mágico, e, sobretudo, do cenário em que se
passará a história. Uma primeira consequência dessa fragmentação inadequada, que apresenta
apenas a exposição que precede os acontecimentos, é que a criança, que te internalizada em si a
“linguagem universal da narrativa”, cuja estrutura conhece bem, das histórias que conta e ouve, há
de se perguntar: e depois? O que aconteceu? E, não obtendo respostas a essas perguntas, irá
construindo um conceito inadequado do texto, de narrativa, de leitura literária. Uma segunda
consequência, estreitamente ligada à primeira, é que se desfigura o sentido da obra dos autores:
no caso do livro de Ana Maria Machado, os parágrafos iniciais só ganham significado em função
da história que se desenvolve entre a menina e o coelho branco, e que tem por tema as
diferenças de cor; no caso do conto de Érico Veríssimo, a cumplicidade que os parágrafos iniciais
buscam criar entre o autor-mágico e o leitor-criança só se explica no desenvolvimento da
narrativa. Acrescente-se que os livros didáticos nem mesmo lançam mão de estratégias para
compensar a fragmentação que impõem à história, como por exemplo: levar a criança a imaginar
o que acontecerá em seguida, anunciar e apresentar a continuidade da história nos textos
seguintes...
Ainda mais frustrante inadequada é a fragmentação que, indo um pouco além da exposição,
apenas anuncia a complicação, como a seguinte “texto” de um livro didático, que apresenta os
parágrafos iniciais de uma das histórias do livro de Ruth Rocha Pedrinho pintor e outras histórias:
Mas há, nos livros didáticos, formas mais desastrosas de fragmentação de narrativas. Nos
exemplos anteriores, porque se tomam parágrafos iniciais de uma história, pelo menos
contextualiza-se a ação e apresentam-se os personagens; nos exemplos apresentados a seguir,
toma-se um fragmento do meio da história: falta a exposição, e apenas se enuncia a complicação.
A mesma Ruth Rocha é de novo penalizada em outro livro didático, em que se propõe à criança,
como um “texto”, o seguinte fragmento do livro Procurando firme:
Procurando firme
Mas a princesa estava desapontada! Aquele não era príncipe que ela
estava esperando! Até que ele não era feio, tinha umas roupas bem
bonitas, sinal que deveria ser meio riquinho, mas era meio grosso, tinha
um jeitão de quem achava que estava abafando, muito convencido!
A princesa torceu o nariz.
O pai e a mãe da princesa ficaram muito espantados, ainda quiseram
consertar as coisas, disfarçar o nariz torto da princesa, é que eles estavam
achando o príncipe bem jeitoso... Afinal ele era o príncipe da Petrolândia,
um lugar que tinha muito óleo fedorento e que todo mundo achava que um
dia ia valer muito dinheiro...
ROCHA, Ruth. Procurando firme, RJ: Nova Fronteira, 1984, p. 17.
Observe-se que o “texto” se inicia com um mas! Esta conjunção introduz uma sentença que
contraria algo que terá sido dita em sentença anterior: o quê? E menciona-se a princesa, não uma
princesa; portanto, um personagem que já foi apresentado: de que princesa se fala? E mais:
Aquele não era o príncipe que ela estava esperando! Qual é o referente para o anafórico aquele?
E por que, desde quando, para quê, a princesa estava esperando um príncipe? E depois, o que
aconteceu? A princesa terá aceitado o príncipe ou não? E por que o texto se chama Procurando
firme? Perguntas que a criança se fará, fará à professora, ou terá de se conformar com a falta de
sentido das coisas que na escola são dadas a ler... E pode sentir-se autorizada a escrever assim,
ela também.
Veja-se outro exemplo, de um outro livro didático:
O sapo Batista
No dia seguinte... seguinte a qual? os bichos... que bichos? Quem estava lá era osapo
vozeirão... que sapo é este? E por que era chamado de vozeirão? E depois, o que aconteceu? O
que fizeram os bichos? O que fez o vermelho e encabulado sapo Batista?
Mais um exemplo. O fragmento abaixo, apresentado à criança como um “texto” de leitura,
começa por mencionar o personagem O Júnior, que não se sabe quem é. Será um menino? Só
por inferência, ao longo da leitura, poderá o aluno descobrir quem é Júnior:
65
Esta história foi retirada do livro Por que não? De Ruth Rocha.
De novo, o fragmento retirado de livro de Ruth Rocha, o que confirma o que foi dito
anteriormente: a recorrência, nos livros didáticos para as quatro primeiras séries, dos mesmos
autores (esclareça-se que os fragmentos de obras de Ruth Rocha citados até aqui foram retirados
de diferentes livros didáticos). O “texto” apresenta a história já em curso; sem conhecer seu início,
o aluno há de pensar, até certa altura dele, que Júnior é um menino; ao longo da leitura é que
poderá inferir que Júnior é um passarinho, um bicudo, que resolveu aprender a ser pombo-
correio... e que comunica isso a outros bicudos (Seus irmãos? Seus amigos? Seu bando?). Se as
questões sobre o texto propostas aos alunos procurassem leva-los a fazer essas inferências e
recuperar o não-dito, talvez se justificasse a narrativa sem início (e também sem fim), mas não é
isso que acontece, como se verá mais adiante.
Cabe ainda uma observação sobre o título do “texto”, que apenas repete o título do livro de
onde foi tirado (o mesmo recurso é utilizado nos exemplos apresentados anteriormente – é a
forma usual, nos livros didáticos, de dar títulos aos fragmentos retirados de livros de literatura
infantil): nem sempre o título do livro é um título adequado para o fragmento escolhido (como já se
observou anteriormente, com referência ao fragmento retirado do livro Procurando firme), e é
também só por meio de inferências que se pode encontrar justificativa para que este “texto” se
denomine Por que não? (por que um bicudo não pode ser um pombo-correio?).
E síntese, e concluindo este item sobre a fragmentação da narrativa em “textos” propostos
à leitura em livros didáticos, pode-se afirmar que a escolarização – inevitável, repita-se o adjetivo
– da literatura infantil faz-se frequentemente de forma inadequada e, mais que isso, prejudicial
mesmo, pois abala o conceito que a criança tem, intuitivamente, da estrutura narrativa, dá-lhe
uma idéia errônea do que é um texto e pode induzi-la a produzir por ela mesma pseudotextos, já
que estes é que lhe são apresentados como modelo.
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Livro 1 Livro 4
A bota do bode
Cecília Meireles
[Imagem]
É preciso reconhecer e reafirmar o que se disse anteriormente: não há como não alterar o
texto, ao transportá-lo de seu suporte próprio – neste caso, o livro de literatura infantil – para o
suporte escolar – o livro didático; no entanto, é preciso fazê-lo respeitando o que é a essência
caracterizadora do texto, é preciso fazê-lo se distorcer, desvirtuar, desfigurar; em síntese: se é
inevitável escolarizar a literatura infantil, que essa escolarização obedeça a critérios que
preservem o literário, que propiciem à criança a vivência do literário, e não de uma distorção ou
uma caricatura dele.
Mas há ainda, em livros didáticos, uma outra forma de distorção do literário, que se revela
na maneira como textos retirados da literatura infantil são estudados, interpretados – é o que se
discute no item seguinte.
intrínseca ao processo de escolarização, como já foi dito, mas uma escolarização adequada da
literatura será aquela que se fundamente em respostas também adequadas às perguntas: por que
e para que “estudar” um texto literário? O que é que se deve “estudar” num texto literário? Os
objetivos de leitura e estudo de um texto literário são específicos a este tipo de texto, devem
privilegiar aqueles conhecimentos, habilidades e atitudes necessários à formação de um bom
leitor de literatura: a analise do gênero do texto, dos recursos de expressão e de recriação da
realidade, das figuras autor-narrador, personagem, ponto-de-vista (no caso da narrativa), a
interpretação de analogias, comparações, metáforas, identificação de recursos estilísticos,
poéticos, enfim, o “estudo” daquilo que é textual e daquilo que é literário.
Não é o que fazem, e geral, os livros didáticos. Quase sempre, os exercícios propostos aos
alunos ou são exercícios de compreensão, entendida como mera localização de informações no
texto, ou são exercícios de metalinguagem (gramática, ortografia), ou são exercícios moralizantes.
Relembre-se o texto já citado anteriormente, Por que não?e vejam-se as perguntas propostas
sobre ele:
Entendendo o texto
1. Responda:
a) Qual é o título da história?
b) Qual o nome da autora?
c) Quem é o personagem principal?
2. Copie as frases, substituindo a ¶ pela palavra correta:
a) Júnior passava ¶ tempo em casa. [pouco/muito]
b) Um dia ele ¶ com uma novidade. [apareceu/fugiu]
c) Os Bicudos gostavam de cantar e ¶ em coro. [brigar/falar]
3. Complete de acordo com o texto:
Os pombos podem trabalhar no correio porque nascem ¶. Mas uma pessoa ¶ aprende qualquer coisa que
ela ¶ muito.
Não se pode mais que localizar informações no texto e copiá-las: o título do texto, o nome
da autora, frases com lacunas que deve preencher com palavras do texto (observe-se, ainda, que
a alternativa à palavra do texto para preenchimento da lacuna é inteiramente destoante do sentido
do texto, o que torna ainda mais maquinal a resposta do aluno). No entanto, haveria outras
possibilidades: a inadequada fragmentação do texto, já comentada, poderia, por exemplo, ser de
certa forma superada se as perguntas levassem o aluno a fazer inferências, como por exemplo:
Em que parte do texto se descobre com quem Júnior está conversando? Ou a estabelecer
relações com outras idéias, como: Por que Júnior teve de aprender a ser pombo-correio? Etc.
Um outro exemplo, lançando mão de novo do texto já anteriormente citado, são os
exercícios propostos para o texto “A bota do bode”; comece-se por observar como se anunciam os
exercícios: “Vamos entender melhor a poesia?”. Além da inadequação do uso de poesia por
poema,verifica-se que a prosa de Mary e Eliardo França aqui foi transformada em poesia. Na
reprodução abaixo, os desenhos que aparecem no livro estão representados simbolicamente.
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