Você está na página 1de 13

O LUGAR DA ESCUTA EM MEU TIO O IAUARETÊ

Henrique Rocha de Souza LIMA


USP

Resumo: Este artigo apresenta uma leitura crítica da tradição de


comentários que se estabeleceu em torno do conto ―Meu tio o
Iauaratê‖ (1961) de João Guimarães Rosa. A manobra aqui realizada
consiste na crítica de uma leitura teleológica do texto em favor de
um deslocamento radical daquilo que seria o ponto problemático e
central deste, sobretudo no que diz respeito ao tratamento artístico
da linguagem. Assim, o ―interlocutor virtual‖, cuja fala não se
encontra redigida, vem para o foco da leitura. Minha hipótese é a de
que a célebre transformação em jaguar não é representada nem
mimetizada pelo texto, mas situada mediante a construção de um
espaço, em cuja questão central é a Escuta.

Palavras-chave: Guimarães Rosa; Iauaretê; Individuação;


Perspectivismo; Escuta.

O sangue dos humanos é o


cauim do Jaguar exatamente
como minha irmã é a esposa
de meu cunhado, e pelas
mesmas razões.
Eduardo Viveiros de Castro

―Eu - Onça!‖
João Guimarães Rosa

Introdução

A fortuna crítica de Meu Tio o Iauaretê atualmente gravita


em torno da produção de dois autores: Haroldo de Campos e
Eduardo Viveiros de Castro. As referências a Haroldo de Campos
remetem ao artigo ―A linguagem do Iauaretê‖ (CAMPOS, 2006: 57-
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP
O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

64), e as referências a Viveiros de Castro baseiam-se na formulação


de um pensamento ontológico orientado no ethos e no conceito de
ponto de vista (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). Em linhas gerais, o
comentário de Campos consiste em apontar no texto a existência do
que ele chama de um procedimento de ―tupinização da linguagem‖
acompanhado de um ―procedimento isomórfico‖ mediante o qual o
próprio plano expressivo do texto teria sido capaz de expressar uma
metamorfose em jaguar que se passa em conteúdo.
No comentário de Campos, ―tupinização‖ e isomorfismo
andam em conjunto e pressupõem-se reciprocamente. No entanto,
elas carregam uma tese a qual penso merecer, antes da aceitação
inconteste que se tornou padrão, uma suspeita e um esforço crítico.
A leitura de Campos opera segundo a ideia de uma progressão
teleológica segundo a qual toda a elaboração isomórfica que
atravessa o texto seria orientada em direção a um ―clímax
metamórfico‖ (CAMPOS, 2006: 61). O tal ―Clímax‖ teria sua
realização prática no último parágrafo do texto, onde, aos olhos de
Campos, estaria em jogo a culminação do referido processo
metamórfico.
Ora, esta orientação teleológica me parece contestável. Como
veremos na primeira seção deste artigo, o suposto ponto culminante
da transformação pode ser suspenso em favor de uma
reconsideração da modalidade de enunciação segundo a qual a fala
do personagem se realiza. A hipótese aqui é a de a ideia de ―clímax
metamórfico‖ oferece uma falsa pista à leitura do processo
metamórfico que ocorre no texto. Mediante a noção de ―discurso
quase-direto‖ (VOLOSHINOV, 1993: 141-159), podemos constatar
que tal processo ocorre ao longo de todo o texto. Esta perspectiva
traz uma nova luz sobre a legibilidade do conto, pois ela torna
possível uma reconsideração radical do status do personagem
principal e de quem é ou quais são as instâncias que experimentam
a transformação trans-específica.

1. Problemática literária

Seria, então, necessária uma explicitação de como funciona


esta categoria de ―discurso quase-direto‖ e de em que sentido ela
torna possível uma reconsideração radical da legibilidade deste
texto. Antes de passar a este exame, é preciso considerar, ainda, que
a pressuposição de que haja uma orientação teleológica dirigida a
um clímax metamórfico parece ser baseada apenas na necessidade

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 275


Henrique Rocha de Souza LIMA

de justificação da presença de um procedimento isomórfico pelo


qual o nível da expressão viria a concretizar materialmente o
conteúdo do texto. Ora, esta tese baseia-se numa suposta relação
mimética entre as sílabas grafadas no último parágrafo do texto e
vocalizações de onça. Toda a aceitação desta leitura teleológica
baseia-se, quando não numa relação de mimese, naquilo que
Campos chamou de ―um grau de aproximação estocástica‖
(CAMPOS, 2006: 62) que o texto teria operado entre o português e o
tupi, e pela qual o transformação em onça teria sido ―presentada,
presentificada pelo texto‖ (Campos, 2006: 61). Assim, teríamos uma
mimese da transformação em onça mediante uma ―corrosão‖ da
sintaxe do português pela intervenção do nheengatu (Campos, 2006:
62-63).
Ora, se o leitor não aceita a tese de uma relação mimética
entre verbo e vocalizações de onça como chave de leitura do texto, o
que lhe resta a examinar neste sentido seria este ―grau de
aproximação estocástica‖, noção que embora passe a impressão da
existência de uma elaboração racional complexa, ainda recai sobre o
procedimento de mimese, como se este fosse o núcleo de
sofisticação que o texto desempenha em termos de trabalho com a
linguagem. A fixação do comentário sobre a ideia de um momento
da transformação é evidente:

A transfiguração se dá isomorficamente, no momento


em que a linguagem se desarticula, se quebra em
resíduos fônicos, que soam como um rugido e como um
estertor (pois nesse exato instante se percebe que o
interlocutor virtual também toma consciência da
metamorfose e, para escapar de virar pasto de onça, está
disparando contra o homem-iauaretê o revólver que sua
suspicácia mantivera engatilhado durante toda a
conversa. (CAMPOS, 2006: 62).

Embora a fixação pela vinculação do tema da transformação


a um momento culminante seja um fato que a passagem também se
encarrega de deixar evidente, ela apresenta também, embora apenas
de passagem, o que me parece ser o ponto central do modo como
este texto posiciona o tema da metamorfose em onça, a saber, o
―interlocutor virtual‖ (Campos, 2006: 63). Defendo aqui a tese de
que este texto de Rosa foi composto sim mediante uma organização
racional estrita, mas esta não se baseia sobre uma relação mimética,
tampouco sobre a emulação de ―um grau de aproximação

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 276


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

estocástica‖ mediante a qual algumas sílabas e letras recorrentes


viriam a materializar isomorficamente o tema central do conto.
Esta imagem que se faz do que seria o tema central do texto
me parece equivocada, pois não acredito que o texto se configure
como a estrita fala de um onceiro, o qual viria a se transformar em
onça apenas ao fim do conto. Contra esta interpretação, argumento
que a fala do enunciador está situada ao longo de todo o texto numa
zona de indistinção na qual nós, leitores, não podemos saber com
precisão quem é o dono daquela voz. Em outras palavras: todo o
texto coloca em jogo uma contínua oscilação entre as posições - ou
os pontos de vista (Viveiros de Castro, 2002: 373) - de humano e
jaguar, e a realidade desta oscilação é tornada sensível e legível se
abordarmos o texto sob a ótica da categoria de discurso quase-
direto, tal como fora concebida por Vladmir Voloshinov (1993)
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, originalmente
publicado em 1929, Voloshinov dedica um capítulo ao estudo do
discurso quase-direto, tal como este foi elaborado nas línguas
francesa, alemã e russa (VOLOSHINOV, 1993: 141-159). Sem
adentrar aqui os detalhes históricos elencados pelo autor no que diz
respeito ao processo histórico de configuração desta modalidade de
enunciação, é possível considerar como sendo um ―ponto de virada
nas vicissitudes sociais da enunciação‖ (VOLOSHINOV, 1993: 158) a
possibilidade de inscrição, no discurso de um narrador, da
dimensão de uma zona de indiscernibilidade na qual se apresenta
um discurso cujo sujeito de enunciação não pode ser localizado
com precisão, e que só se pode constituir como um outro, na
medida em que não se constitui enquanto enunciado pertencente a
um ―eu‖ (VOLOSHINOV, 1993:147). Assim concebido, o discurso
quase-direto diz de uma modalidade de enunciação que expressa
um hiato entre uma fala e o sujeito que fala, e insere neste hiato a
dimensão da ambiguidade, da incerteza, da oscilação do ponto de
vista que se expressa numa determinada fala. Na medida em que se
situa na possibilidade de separação entre o próprio ―eu‖ de um
narrador e as figuras da fantasia que falam através de sua voz
(VOLOSHINOV, 1993: 150), pode-se dizer que o discurso quase-
direto abre, na expressão linguística, a dimensão do inconsciente
como instância enunciadora. Trata-se de um conceito que diz da
capacidade linguística de posicionar diferentes figuras da alteridade
(o inconsciente, o não-humano, etc.) como o sujeito de enunciação.
Cumpre lembrar aqui esta modalidade de enunciação fora
conceituada também no campo da filosofia do cinema sob o título

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 277


Henrique Rocha de Souza LIMA

―ato de fala em discurso indireto livre‖. Gilles Deleuze se dedicou a


este tema em Cinema 2: a Imagem-Tempo, onde o conceito de
imagem cinematográfica não se encerra no campo do visível, e
estende-se a um extracampo preenchido pelo som. A tese de
Deleuze é a de que, a partir do cinema sonoro a imagem
cinematográfica se constituiu para além do visível, razão pela qual
ela passou a colocar de maneira indelével o problema de sua
legibilidade. A partir do momento em que se compõe de elementos
que não se encerram no campo da visibilidade, a imagem
cinematográfica constitui-se enquanto dispositivo de investigação
de modelos mentais e, por esta via, do âmbito do inconsciente.
Assim, toda imagem é entendida como uma materialidade a ser ―lida
e vista‖ (DELEUZE, 1985: 290), e cuja legibilidade depende, uma
leitura de camadas de significação que se dispõem num espaço
suplementar, ele mesmo não-visível na imagem.
O tratamento deleuziano do problema da legibilidade da
imagem pressupõe como componente da imagem um espaço não
manifesto na concretude visual da imagem, mas que participa
ativamente como componente desta. É deste ponto de vista que
proponho abordar aquele que ficou o tempo todo impensado na
fortuna crítica de Meu tio o iauaretê: o ―interlocutor virtual‖.

2. Problemática antropológica: a força do hábito

Antes de passar à consideração direta deste espaço ocupado


pelo ―interlocutor virtual‖, consideremos a aclimatação que o
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro oferece para a problemática
da individuação trans-específica mediante sua avaliação do papel
que o hábito desempenha na constituição daquilo que vem a ser um
―ponto de vista‖, base de uma ontologia relacional que vale a pena
ser vista de perto.
Consideremos o par conceitual que expressa o núcleo da
originalidade do pensamento de Viveiros de Castro: as noções de
perspectivismo e multiculturalismo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:
347-399). O autor argumenta que o modelo epistemológico oficial
do ocidente se difere do modelo ameríndio, sobretudo do ponto de
vista dos personagens conceituais segundo os quais a ideia de
conhecimento ganha seu valor. O pensador privado difere-se do
xamã, sobretudo no modo como estes personagens colocam em
jogo o conceito de relação social.
Viveiros de Castro é cuidadoso em especificar

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 278


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

epistemologicamente sua proposta, mediante as teses segundo as


quais o perspectivismo não é um relativismo, mas um
multinaturalismo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 379), e o
perspectivismo não é um relativismo, mas um relacionalismo
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 382). Seu percurso argumentativo
consiste em apontar o relativismo como um modelo baseado na
pressuposição da existência de uma natureza exterior aos pontos de
vista, e da existência fatídica de múltiplos pontos de vista, de modo
que nenhum deles seja capaz de oferecer uma representação
verdadeira da natureza, e, portanto, que pontos de vista são
igualmente válidos. Deste modo, o relativismo corresponde
diretamente a um multiculturalismo, modelo contra o qual o autor
apresenta o que ele chama de ―perspectivismo ameríndio‖, o qual,
por sua vez, não pressupõe uma incapacidade da representação com
relação a uma natureza exterior às representações, mas o total
engajamento da noção de ponto de vista no conceito mesmo de
natureza. Esta diferença entre os modelos passa pela distinção
básica entre as noções de perspectiva e representação. É neste ponto
que a noção de corpo entra para desempenhar um papel decisivo:
―uma perspectiva não é uma representação porque as
representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista
está no corpo‖ (VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 380). Mas esta frase só
é compreensível se explicitar-se o que é e como funciona o que este
autor chama de ―ponto de vista‖, ―corpo‖ e ―espírito‖.
A noção de ponto de vista depende do conceito de ―alma‖
(ou ―espírito‖), e é a partir deste que aquela ganha sua significação
conceitual. A definição do que é o ―espírito‖ na cosmologia
ameríndia expressa um pensamento que é não exatamente ―pós‖,
mas trans-estruturalista, porque se faz através do conceito de
estrutura, e para além dele. Viveiros de Castro qualifica o conceito
ameríndio de espírito como uma estrutura formal que se divide em
posições, através das quais se distribuem as relações. O estatuto do
espírito é o de algo que se articula sempre de maneira relacional
com diferentes tipos de outro, de modo que este só se configura a
partir da relação. Para descrever estas relações, o autor apresenta
uma descrição topológica na qual estas relações aparecem
distribuídas de acordo com três posições elementares: 1) há uma
posição do semelhante, isto é, de um coletivo do qual o ―eu‖
pertence; 2) há uma posição da presa, o outro que ―eu‖ predo; e 3)
há um lugar do predador, o outro que me destrói. O desenho é
básico, mas o que o torna complexo é o fato de ser estendido a

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 279


Henrique Rocha de Souza LIMA

todos os seres vivos, inclusive a entidades metafísicas, como uma


divindade ou o espírito de um morto (VIVEIROS DE CASTRO, 2002:
347-399). Esta é a grande questão do conceito de ponto de vista:
qualquer entidade capaz de percepção e agência enxerga a si mesmo
e os outros de maneira análoga à qual os humanos enxergam a si
mesmos, isto é, como um ser que tem seus semelhantes, uma
variedade de outros que são alimento, e uma variedade os outros
que são ameaça ou veneno. A posição do ponto de vista é cambiável,
ela desliza num espectro das formas de vida. Trata-se de uma
estrutura relacional que perpassa a variedade de formas de vida
como um gradiente, mas sempre prevendo as posições do eu e do
outro, de modo que este ―eu‖ só se constitui na relação com o outro.
A partir deste desenho estrutural, o autor conclui que o ponto de
vista faz o sujeito, e só há sujeito enquanto ponto de vista (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002: 373).
A inteligibilidade deste sistema estrutural torna-se mais clara
a partir do ―experimento mental‖ proposto pelo autor, no qual esta
problemática é ―traduzida‖ nos termos de uma filosofia da
linguagem. O ―pano de fundo‖ desta discussão é um mito estudado
por Renard-Casevitz , no qual ―os protagonistas humanos visitam
diversas aldeias habitadas por gentes estranhas que chamam ‗peixe‘,
‗cutia‘, ou ‗arara‘ (comida humana) às cobras‖ (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002: 382-383). Trata-se, portanto, de seres que qualificam
como ―comida‖ aquilo que não é qualificado como tal pelo grupo ao
qual pertence o enunciador. O fato de que aquilo que para mim é
―cobra‖ (leia-se, veneno), para o outro é ―peixe‖ (leia-se, alimento)
indica uma estrutura na qual uma coisa ganha seu sentido na
relação e em função da posição que ela ocupa com relação a um
ponto de vista, formando um jogo analógico que vale ser lido nas
palavras do autor:

Façamos um experimento mental. Os termos de


parentesco são relatores, ou operadores lógicos abertos;
eles pertencem àquela classe de nomes que definem
algo em termos de suas relações com outra coisas (...). Já
conceitos como ‗peixe‘ ou ‗árvore‘, por outro lado, são
substantivos ‗próprios‘, fechados ou bem circunscritos,
aplicando-se a um objeto em virtude de suas
propriedades autossubsistentes e autônomas. Ora, o que
parece ocorrer no perspectivismo indígena é que
substâncias nomeadas como ‗peixe‘, ‗cobra‘, ‗rede‘ ou
‗canoa‘ são usados como se fossem relatores, algo entre

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 280


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

o nome e o pronome, o substantivo e o dêitico (...).


Alguém é um pai apenas porque existe outrem de quem
ele é o pai: a paternidade é uma relação, ao passo que a
peixidade ou a serpentidade é uma propriedade
intrínseca dos peixes e cobras. O que sucede no
perspectivismo, entretanto, é que algo também só é
peixe porque existe alguém de quem este algo é o peixe.
(VIVEIROS DE CASTRO, 2002: 383-384)

Do mesmo modo, este ―peixe‖ pode ser o ―jaguar‖ de um


peixe menor, de uma minhoca ou outros seres. Chegamos ao ponto
central da leitura que nos interessa aqui: o ―jaguar‖, além de ser um
substantivo que nomeia um tipo natural, é também o designador de
uma posição, é um termo relator ou um operador lógico aberto. Do
status de operador lógico que um substantivo passa a ganhar, o
autor passa ao papel desempenhado pelo corpo:

A diferença entre os pontos de vista - e um ponto de


vista não é senão diferença - não está na alma. Esta,
formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a
mesma coisa em toda parte; a diferença deve, então, ser
dada pela especificidade dos corpos.

Que toda a atenção seja dada a esta noção de especificidade


dos corpos: ―o que estou chamando de corpo (...) não é sinônimo de
fisiologia distintiva ou de anatomia característica; é um conjunto de
maneiras ou modos de ser que constituem um habitus‖ (VIVEIROS
DE CASTRO, 2002: 380). Não é, portanto, a caracterização fisiológica
que define um corpo, mas a economia relacional da qual ele
participa.

Não estou me referindo a diferenças de fisiologia (...),


mas aos afetos, afecções ou capacidades que
singularizam cada corpo: o que ele come, como se move,
como se comunica, onde vive, se é gregário ou
solitário… A morfologia corporal é signo poderoso
dessas diferenças de afecção, embora possa ser
enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo,
pode estar ocultando uma afecção jaguar (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002: 380).

O exemplo da passagem acima parece descrever exatamente


o que se passa em Meu Tio o Iauaratê, quando afirma a morfologia

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 281


Henrique Rocha de Souza LIMA

corporal como um ―signo poderoso‖ de um tipo de individuação,


mas um signo que pode incutir em erro, pode ser enganador, pois a
morfologia não garante o corpo.

Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade


substancial dos organismos, há esse plano central que é
o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a
origem das perspectivas. Longe do essencialismo
espiritual do relativismo, o perspectivismo é um
maneirismo corporal (Viveiros de Castro, 2002: 380).

Ora, é precisamente um caso deste maneirismo corporal que


parece estar apresentado em Meu tio o iauaretê. O caso de um corpo
que morfologicamente é uma coisa, mas efetivamente – em função
de seus hábitos – é outra.

3. Problemática da legibilidade

A certa altura de Meu tio o iauaretê, o enunciador da fala


pergunta ao seu interlocutor se acaso ele não teria ali no meio de
suas coisas um espelho: ―Mecê tem aquilo - espelhim, será? Eu
queria ver a minha cara...‖. Esta passagem ajuda a dimensionar o
contexto material no qual vive o falante, bem como oferece a
percepção de um intervalo ou de uma distância entre este falante e
um indivíduo médio inserido em nossa formação cultural do mundo
globalizado e assistido por uma variedade de gadgets. O texto
inteiro deste conto de Rosa não faz uma só menção a dispositivos
de gravação, reprodução ou transmissão de som ou de imagem. O
falante não tem sequer um relógio - Quero relógio nenhum não (...)
Pra quê que eu quero relógio? Não careço…‖ -, o que dirá, então, de
aparelhos como radio, gravador de som e telefone. Esta ausência, no
entanto, não pode passar despercebida, pois ela marca uma das
dimensões mais significativas da experiência do falante: a dimensão
da audibilidade.
A dimensão da audibilidade é significativa para a
compreensão deste personagem, justamente porque ela informa
muito a respeito de seu habitus. Uma leitura atenta poderá perceber
que o discurso do personagem descreve com grande frequência
situações, movimentos e seres através de sons. A dimensão da
audibilidade e do som é, aliás, uma das vias principais pelas quais a
personagem expressa sua identificação com o jaguar. Observe, por
exemplo, a descrição dada pelo falante de como funciona o aparelho
Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 282
O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

sensorial do jaguar quando em situação de caça: ―Rastrear, onça não


rastreia. Ela não tem faro bom, não é cachorro. Ela caça é com os
ouvidos. Boi soprou no sono, quebrou um capinzinho: daí a meia
légua onça sabe…‖. Uma passagem como esta ressoa diretamente
aquela em que o narrador expressa sua dimensão de aprendizado,
mais precisamente daquilo que ele aprendeu durante sua vida a
partir de suas relações sociais:

Onça, elas também sabem de muita coisa. Têm coisas


que ela vê, e a gente vê não, não pode. Ih! tanta coisa…
Gosto de saber muita coisa não, cabeça minha pega a
doer. Sei só o que onça sabe. Mas, isso, eu sei, tudo.
Aprendi.

Ambas, tanto a afirmação de que ―onça caça é com os


ouvidos‖, quanto ―só sei o que onça sabe‖, convergem para a
afirmação crucial ―eu sei entender no escuro‖:

Tem candieiro não, luz nenhuma. Sopro o fogo. Faz mal


não, rancho não pega fogo, tou olhando olholho.
Foguinho debaixo da rede é bom: bonito, alumeia,
esquenta. Aqui tem graveto, araçá, lenha voa. Pra mim
só, não carece, eu sei entender no escuro. Enxergo
dentro dos matos.

Considere a expressão ―eu sei entender no escuro‖ sob o


ponto de vista das ressonâncias etimológicas nele implicadas. O
verbo latim intendere divide-se nas acepções de 1) ter a intenção de
fazer algo; 2) compreender, apreender, entender algo; 3) escutar,
perceber pela audição. Esta última acepção, que remete à atividade
da audição, embora não tenha se instalado na língua portuguesa,
encontra-se presente de modo efetivo nos verbos intendere na
língua Italiana, e entendre na francesa. Deste modo, a expressão ―eu
sei entender no escuro‖ pode ser entendida como ―compreendo no
escuro‖, e o que compreendo, compreendo através da escuta. Assim,
pela atividade auditiva constitui o ponto de vista deste sujeito que
vê pela escuta, e assim, se habitua enquanto jaguar, este ponto de
vista que ―caça com os ouvidos‖.
Neste sentido, é possível uma apreensão conjunta das
diversas imagens, no texto, de orelhas em estado de alerta, seja em
função da caça, seja em função do medo. Assim, a expressão ―eu sei
entender no escuro‖ torna-se legível como sendo o núcleo de um

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 283


Henrique Rocha de Souza LIMA

ponto de vista, condensando em si a articulação entre o pronome


reflexivo ―eu‖ em relação a um modo de acesso ao real (―entender‖)
delimitado de modo específico em termos de aclimatação ética, ou
seja, dehabitus. Se o ponto de vista cria o sujeito (VIVEIROS DE
CASTRO, 2002: 373), e este é função do corpo concebido como
composto de ações e afecções constituídas no hábito, só nos resta
compreender que este sujeito que fala, o faz a partir do ponto de
vista de onça, e não como sugerem as interpretações feitas na
esteira de Campos, segundo a qual haveria uma culminação
localizável com precisão do momento da individuação como Onça. O
que parece se passar, antes, é uma contínua oscilação entre os
pontos de vista humano e jaguar, na qual não se consegue precisar
exatamente quem fala em diversos momentos do conto. A dimensão
do ethos se inscreve de modo decisivo no corpo, como dimensão
performativa. Assim, a formulação sintética ―Eu - Onça!‖,
apresentada não apenas uma vez no texto, tem um valor que não é
metafórico, mas literal.
Portanto, Meu tio o iauaretê coloca em jogo o problema da
legibilidade remete a uma ontologia baseada no hábito, na qual os
hábitos de escuta desempenham um papel primordial. Esta parece
ser a chave de leitura que permite apreender aquilo que ficou
restando: o interlocutor virtual, aquele que soube escutar, na fala do
outro, a onça latente. Observe que não estamos descartando aqui a
ideia de metamorfose em jaguar como chave de leitura do texto. O
que estamos descartando é apenas a ideia de que esta metamorfose
seja vivenciada por aquele que fala. Se há uma metamorfose em
jaguar no texto, esta é vivenciada não pelo narrador, mas pelo
ouvinte.
Quem se metamorfoseia em onça é o ―interlocutor virtual‖
que, ao perceber no outro uma diferença de potencial em nível ético,
precisa ele mesmo variar seu status ético para poder salvaguardar
sua condição de ser vivo. O conatus do interlocutor virtual o leva a
se tornar o jaguardo outro, ou o onceiro da onça, em todo caso:
aquele que mata. O que temos com a teoria perspectivista é uma
espécie de perspectiva inversa na qual o que é dado a perceber é o
lugar do interlocutor virtual, e sua posição enquanto elemento
diferencial e diferenciante.
O falante, que afirmara repetidas vezes seu parentesco com
jaguar, finalmente fala a partir do medo, isto é, aquilo que não
caracteriza a onça:―(...) mecê é bom, faz isso comigo não, me mata
não... Eu – Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhenhém...

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 284


O lugar da escuta em Meu tio o Iauaretê

Heeé!...‖. Na cena final o falante passa, não de humano a jaguar, mas


de jaguar a humano, enquanto o interlocutor virtual passa de
humano a jaguar.
Portanto, no final temos, não mais o ―Eu-Onça!‖, mas ―Eu-
Macuncozo‖, enquanto aquele que chegara ali humano, montado a
cavalo, foi levado a afirmar-se, na relação, como o onceiro daquela
onça, ou como a onça do humano. Em todo caso, aquele ―não-
humano‖ que age por predação. Uma reviravolta total de
perspectivas.

Conclusão

Em todas as leituras que a fortuna crítica de Meu tio o


Iauaretê deixou até então, nenhuma cuidou desta transformação
que se passa nessa ―casa vazia‖ criada por Rosa como espaço onde
se desempenha a diferenciação. Este lugar, não escrito, mas
performado pelo texto funciona como espaço constituinte deste
enquanto um componente de seu campo de sentido. Assim, Rosa
faz da escuta, este veículo primordial da narratividade, o espaço
onde se passa uma transformação. Em vez de representar este
espaço, Rosa apenas o constrói. Em vez de grafar em texto a
transformação referida, Rosa cria as condições para que o leitor a
experimente, para que o leitor preencha este espaço, se inscreva
nele, e nele escute esta fala que, paradoxalmente é o relato empírico
de um jaguar.
Neste sentido, Meu tio o iauaretê é uma grande obra de arte
que escava nossos hábitos de escuta, e que cria condições para uma
escuta possível, exterior ao horizonte da escuta hipermediada por
gadgets. Meu tio o Iauaretê é uma ode a este dispositivo primordial
da literatura - a escuta -, performada em sintonia com
procedimentos poéticos contemporâneos os mais refinados: a
criação de uma casa vazia como espaço diferenciante (DELEUZE,
2006: 237-243) e de uma problemática zona de indiscernibilidade
entre o artista e o etnógrafo (FOSTER, 2014). O problema da
legibilidade em Meu tio o iauaretê é um problema de escuta, este
problema narrativo, literário, ontológico e intelectual primordial.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 285


Henrique Rocha de Souza LIMA

Referências

CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva,


2006.

DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos, edição preparada por David
Lapoujade. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_________. Cinema 2: a Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009.

FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX, Tradução


de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

ROSA, João Guimarães. Estas estórias. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1976.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da Alma Selvagem. São


Paulo: Cosac Naify, 2002.

VOLOSHINOV, V. N. Marxism and the philosophy of language. Tradução para


o inglês:Ladislav Matejka e I. R. Titunik. Cambridge: Harvard University
Press, 1993.

Anais da XIV Semana de Letras da UFOP 286

Você também pode gostar