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Prática Lacaniana

A 'Sformação do analista
"
I. O desencantamento da i originalidade, e mesmo a bizarria do caso a
psicanálise caso. O singular é aliás, desde então para nós, o
status do caso.Temos que nos virar também com
Vi anunciado em todo canto que o titulo um real desatado do racional e mesmo de qual-
desse curso seria O desencantamento da psi- quer possibilidade de regularidade e de qualquer
canálise'. Primeira novidade. estabelecimento de uma lei.
Reconheço nele uma fórmula à qual cheguei
no ano passado, que não renego e tonio de boa
vontade como apoio, porém o que viso nesse 1. O primado da experiência
começo de ano é fazer com que se tome dis-
tância em relação a essa fórmula. Eu a havia em- O desencantamento da psicanálise - com
pregado para nomear aquilo em que desembo- os harmônicos dessa fórmula -, eu o deixo de
ca o último ensino de iacan2 a medida que ele bom grado aos outros.
desnuda, por um lado, a mola de ficção da ex-
periência analítica, o que ele já havia nomeado Fragmentação
o sujeito suposto saber e, por outro, correlati- 'L 'mimialin h i n n e ! I l , 4 (Zooim),
vamente, o real em jogo nessa experiência, um Nomeemos estes outros, já que existe na aulade11.21 eZidenor~mbrode2WI.
real que sobressai tanto mais quanto mais psicanálise uma formação. uma sedimentação 2NotemmqueJ.~A.Miller uãoempregoii,
disjunto está do racional. Mostrei no ano pas- chamada IPA. Não sei se vocês ouviram falar dela propnamena falando. esta fórmula: "de-
sencantamento da priranáiist' cm seu
sado3 que o ensino de iacaii não atingia esse com esse nome, pois ela se faz de coquete e não curso, m a sim numa Noite daEscolada
ponto sem uma inversão do determinismo le- quer que a chamemos assim na França. Trata-se Causa Freudinna. Fa-se desta o titulo do
vado ao absoluto, que dava sua ênfase própria de um conglomerado de agrupamentos de psi- cursa de 7001-02.J - A . htiller invalida
aqui ewtilulo. Seeleeuoco~uma\~ezque
aos começos do seu ensino. É uma ênfase que canalistas, de Sociedades de psicanálise,que tem o titulo desse ano poderia ser "0tato do
escutamos em seu "Discurso de Roma2$,em hoje bastante dificuldade de se definir. oporluno', náo pro* contudo nenhum
título de maneira formal. (NT Como o
1953, quando ele define a experiência analitica Eu poderia propor esta definição: "A IPA não Houaiss menciona que a locu$ão "a pro-
pela conjugação do particular e do universal, e lê Lacan"'. Uma definição a cada dia menos exa- páaito de" é considerada galicismo pelos
a teoria analítica pela subordinação do real ao ta, pois a IPA está lendo iacan. Isso promete. puristas. decidimcs traduzir: "le tact de
I 'à-pmpos' como ''o fato do oportuno").
racional. Tais termos são evidentemente extra- Ela permanece marcada por seu "não lê'; defi-
'Podemos lor nos números 48,49, j0 e i l
idos da filosofia de Hegel. nitório. Nada garante que passar Lacan no dea.! CauseFreudimmtextos eaaldos
Essas proposições são invalidadas e como triturador do seu "não lê'' lhe fará bem. do curso L'orienfalion lacnnienne
(ZOOO~OI),klieu ei k fie".
que contraditas em seu último ensino. Na ex- É deste lado - eu o digo com compaixão -
periência analítica temos que nos virar com um que se experimenta duramente o desencanta- 'lacan, J. (2001)AufreseCriIs,(pp. 143-
144). Parir: Seuil.
particular disjunto de qualquer universal, um mento da psicanálise. A IPA o experimenta sob
'NTJ.-A. Miller parm k m aqui um jogo a
particular que não se deixa absorver no univer- as formas da fragmentação, termo que retorna partir da bomohoia aike L 'IPA e Iilpa
sal, mas que é bem mais referido a singularidade, nas produções recentes provenientes da IPA. que não mmoguimos manw em pamiguk.

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O termo "fragmentação",para caracterizar o es- a nenhuma teoria psicanalítica estabiliiar-se du-
tado teórico da psicanálise, não é um termo que radouramente num estado de ortodoxia.
possamos adotar. Fragmentação, despedaça- Em 1914 Freud podia pensar que a identi-
mento? dispersáo, isso apenas toma seu senti- dade da psicanálise estava estabilizada. Pouco
do da crença da IPA de que existia na psicanáli- depois; ele próprio foi conduzido a subverter
se uma ortodoxia e que essa ortodoxia era ela. as coordenadas de sua teoria, nela introduzin-
É com relação ao tempo findo de sua orto- do uma segunda tópica. Em sua própria obra
doxia que ela experimenta o momento presen- observa-se esse transbordamento da experiên-
te como fragmentação. Esse ternio traduz a cia em relação a uma formalização teórica, re-
constaração dilacerante que se faz deste lado sultante da elaboração que havia permitido si-
de que não há mais ninguém - nem eles pró- tuar a experiência. A segunda tópica tornou-se
prios, para começar - que diga o verdadeiro o credo da ortodoxia que se estabeleceu e rei-
sobre o verdadeiro em psicanálise, seja saber o nou nos Estados Unidos de 1940 ao inicio da
que é a psicanálise, o que é e o que não é psica- década de 70 (periodização que tomei empres-
nálise. É fato que Freud pensava sabê-lo. Ele foi tada deliiallerstein, ex-presidente da IPA), e cuja
levado a dizê-lo no momento em que isso foi derrocada progressiva deixa hoje nossos cole-
posto em questão, em que isso o inquietou, gas, e nós mesmos através deles, frente à frag-
portanto no momento em que ele pensou ser mentação e ao despedaçamento.
capaz de transferir esse saber a um corpo cons- Observemos que essa ortodoxia foi limitada,
tituído, um corpo investido para essa finalida- corroída por dentro e animada por uma tensão
de, uma associação internacional dotada de desestabilizadora por causa do compron~isso
uma enunciação coletiva. histórico que o centro hartmanniano da IPA foi
Do ponto em que nos encontramos, pode- levado a passar com a periferia kleiniana. Esse
mos chegar a dizer que essa iniciativa de Freud manequim de ortodoxia forneceu no entanto a
de 1914 foi um erro. Não a idéia de que ele te- Lacan o parceiro do qual é preciso acreditar que
nha podido saber o que era a psicanálise, mas ele necessitava para iniciar, em 1953,seu ensino
sim a idéia de poder transferir esse saber a uma e uma prática que lhe valeram, dez anos mais
instância dotada de uma enunciação coletiva. tarde, o que ele chamou uma excomunhão.
O fracasso desse projeto de Freud, que já era
patente para aqueles de fora, é hoje admitido,
subjetivado por aqueles de dentro. Ele é acom-
panhado, para eles, de um afeto depressivo que Dizemos "o ensino de iacan" -a expressão
começa a ser confessado. Seria lógico que o tornou-se aqui ritual. Vale a pena interrogá-la.
afeto depressivo daqueles de dentro fosse Por que essa predileção em falar do ensino de
c~rrelativo~ naqueles de fora, a um afeto maní- iacan? Seguramente porque ela vale por aqui-
aco decorrente, por exemplo, de um sentimen- lo a que se opõe.
to de termos tido ainda mais razão do que pu- Não dizemos "a teoria de Lacan" porque te-
déssemos acreditar. ríamos bastante dificuldade de dizé-10. Não há
Quanto a isso é preciso manter o senso de teoria de Iacan. Ele náo estabeleceu, com a ex-
medida e nos interrogarmos, nesse momento de periência analítica! uma relação que permita fi-
confusão daqueles que acreditaram ser os repre- xar uma teoria. Se falamos, com dileção, de seu
sentantes da ortodoxia psicanalítica, sobre o que ensino, como ele próprio o fazia, é porque a
podemos ensinar Podemos inicialmente ensinar experiência analítica excedeu qualquer teoria
o que a experiência de um século de psicanálise que dela se pretendeu fixar.
ensina, ou seja, que essa experiéncia demonstrou Lacan dedicou-se a uma atividade teorizante
ser animada por uma dinâmica que não permitiu que se expressou numa seqüência de cursos e

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se depositou em escritos, não constituindo sis- O saber-verdade
tema mas série. A lição de iacan é a substitui-
ção do sistema pela série, da f~uaçáopelo fran- No sentido de iacan, a estrutura, ao tomar
queamento, da verificação do saber adquirido forma de discurso, é uin saber. uma ordem de
pelo paiso adiante. A lição de Lacan é o prima- significantes que dá seu lugar a verdade. Na es-
do da experiência sobre a teoria. trutura que ele chama discurso, estrutura que
A experiência em pauta não é uma experi- estabelece quatro lugares: um deles é o da ver-
ência imediata, uma experiência humana, mas dade. Dizer que o significante do saber se aloja
sim uma experiência analítica, uma experiên- na estrutura no lugar da verdade é concretizar
cia determinada, condicionada, estmturada, um paradoxo próprio à estrutura da experién-
decorrente do que iacan chamou um discur- cia analítica. Isso quer dizer que o saber que
so. Ele viu no conceito de estrutura o instru- opera na experiência analítica só pode se
mentoou a instância que permitia teorizar. dis- explicitar e se inscrever sob as formas da ver-
por a disjunção do singular, o desatamento do dade, que o sítio próprio desse saber é a oca-
real e o mistério do inconsciente. sião, a conjuntura fortuita, o momento aqui e
A experiência impõe constatar o poder da agora, o que faz com que uma dedução jamais
interpretação e a obscuridade profunda das vias seja uma interpretação.
pelas quais ela opera. A ponto de iacan formu- Quando se trata de formar psicanalistas.
lar, em 1966, na? "Respostas aos estudantes de coloca-se a questão do status desse saber, que
filo~ofia"~esta frase abissal: "Uma interpretação merece ser designado como saber-verdade, o
da qual se compreende os efeitos não é uma in- saber que só se inscreve sob as formas da ver-
terpretação psicanalítica". dade. É um saber que não é transformável em
Se há alguma coisa que instale o mistério conhecimento e que, . .por isso mesmo, não
na experiência é certamente uma proposição pode dar matéria a uma pedagogia se defini-
-

dessa ordem, que faz esmorecer aquilo que Fre- mos a pedagogia como a transmissão do saber
- -

quentemente se acredita ser o "orientar-se na enquanto conhecimento.


experiência". Ele expunha isso como uma evi- Na psicanálise, o saber essencial se trans-
dência da prática, já que acrescentava: "Basta mite como verdade, ou seja, na própria experi-
ter sido analisado ou ser analista" esse "ou" é ência da psicanálise. O saber-verdade é o que
surpreendente - "para saber disso". Basta essa explica,em última instância, o desencantamen-
notaçáo, feita em nome da experiência, para to que sempre se apodera do analista diante
situar o inconsciente como causa perdida, rup- da futilidade do seu saber-conhecimento, e
tura de causalidade. O inconsciente é o nome mais ainda. o que explica que seu saber-conhe-
que damos, desde Freud, a ausência da causa, cimento lhe pareça arbitrário. Era isto o que a
cujos efeitos são contudo manifestos no discur- pregnância da noção de ortodoxia tinha por
so. Foi justo isso que Freud cingiu com o ter- função velar. A questão da Formação do ana-
mo recalque. lista tornou-se cada vez mais aguda já que ela
Neste mesmo encadeamento, Lacan valida- deve ser desarticulada da pedagogia. Este é o
va sua referência, já antiga nessa data, a estm- sentido do aforismo de Lacan: "Não há forma-
tura: "Por isso a psicanálise como ciência será ção do analista; há apenas formações do in-
estruturalista". Ele entendia a estrutura como consciente". Essa proposição visa que, na ex-
permitindo situar uma relação de causalida- periência analítica, o único saber que se trata
de, de causa ao efeito que não se compreen- de transmitir é o saber suposto, ou seja, de
de, como se a estrutura fosse o que permitia verdade. Há portanto, em última instância,
aparelhar que a compreensão não é a medida reabsorção da Formação analítica na própria acan,,, (2Wl,dulres ~
bl f (p, i211),
da racionalidade. experiência analítica. Paris : Seuil.

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todo o campo da experiência e de que a verda- Essa proposição de Lacan perde força por-
de é disjunta do saber. Sócrates: pelas vias de que ele próprio foi pródigo em construções
Lacan, isola o verdadeiro como aquilo que está epistêmicas, ele não parou de afinar cadeias sig-
fora da ligação dos significantesentre si e como nificantes extremamente coerentes que tiveram
aquilo que põe em causa o saber. um poder de fascinação e de adesão sobre seus
Isso dura apenas um momento. Aseguir, o discípulos. Porém, nela já havia em espera a no-
saber avança, engole a verdade, reserva-lhe um ção de que o saber analítico constituído que se
lugar. O verdadeiro passa ao saber, este do qual depositou, aquele que foi elaborado a partir da
Sócrates se faz o promotor. Após ter feito cin- experiência em sua incoerência, em seu cará-
tilar que há o verdadeiro sem o saber, um ver- ter fortuito, aleatório, comporta em si mesmo
dadeiro desatado, ele o desvaloriza, de acor- uma dose de erro.
do com sua vocaçáo própria: 'As opiniões ver- Dai Lacan, antes de parar de falar, ter se dis-
dadeiras não valem grande coisa enquanto não posto a deixar como mensagem um: "Lanço
as religamos por um raciocínio que Ihes dá a meu ensino". "Lanço meu ensino em prol da
explicação". Os comentadores propuseram vá- verdade da experiência, do verdadeiro que
rias traduções de aitias logisnzos. Logismos é emerge na experiência". Eis o eco que toma
o cálculo ou o raciocínio que fornece a causa, para mim essas páginas nas quais ele situa o
a explicação, o fundamento. Sócrates promo- essencial da análise no nível da opinião verda-
ve que o verdadeiro que surge fora do saber deira - e não no da ciência -, no nível do dis-
seja recapturado peloaitias logismos, pelo ra- cernimento, do julgamento no momento, numa
ciocínio que poderá fundamentá-lo e dar-lhe conjuntura cujos fatores se reúnem sempre de
seu lugar. maneira inédita, imprevista. Aqui está a fonte
É nisso que Lacan se infiltra. É uma cons- do saber Ela não está no saber. Há uma dimen-
tante de sua abordagem que a interpretação são do saber que é da ordem da conseqüência,
analítica permanece fundamentalmente inca- mas isso não é o essencial.
paz de encontrar seu aitias logismos. Ela não iam fala neisai páginas do saber como cris-
pode encontrar o raciocínio que vai explicá-la talização da atividade simbólica. "Tudo o que se
a vocês. A interpretação é destinada a perma- opera no campo da ação analítica é anterior a
necer uma olzhedoxal" uma opinião verdadei- constituição do saber. o que não impede que,
ra, justa, reta, adaptada, que convém?mas que operando neste campo, tenliamos constituído um
permanece não Fundamentada, sobre a qual saber, que se mostrou inclusive excepcionalmen-
será possível admitir que ela é verificada pelo te eficaz". Porém, "quanto mais sabemos, maio-
que dela decorre a longo termo, pela elabora- res são os riscos. (...) Seria estúpido que um ana-
ção que ela permite. lista negligenciasse sistematicamente o que se
A tese que se expressa ali não é propriamen- ensina nos institutos, mas é preciso que ele saiba
te desenvolvida noSemináno2, mas sim em seu que esta não é a dimensão em que ele opera. Ele
último ensino. Há um verdadeiro anterior ao sa- deve formar-se,tornar-se flexível num outro âm-
ber, um verdadeiro prévio. e o que emerge na bito que não aquele em que se sedimenta, em
surpresa e na ocasião como verdade infundada que se deposita aquilo que em sua experiência
se amortece na coerência do saber. Assim, uma vai se formando pouco a pouco de saber".
frase deste seminário ecoa de forma inteiramen-
te diferente se a ouvimos tendo como pano de Kairos
fundo o seu último ensino: "Há em todo saber, '%T Tmditeraçáa do termo grego
uma vezconstituído, uma dimensão deerro, que 0 que se descobre na análise é da ordem "Lam,J.(l978).kSéminoire.~ure2~
kmoidonr1olhéoriedeFreudeIdans
consiste em esquecer a função criadora da ver- da verdade enquanto prévia ao saber. O que h,,bnlouedelaon,dii?Ml,,5e,
'
io,iOl.
dade em sua forma nascente"". implica uma suspensão do saber que não seja ~ a n s :Seuii.

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dissimulada para reendossar logo depois o cos- da psicanálise" seria um fragmento do abade
tume que, pretensamente, abandonou-se, po- Delille, que encontrei no Robert, "O tato do
rém para abalar o saber a partir da experiência oportuno". Talvez isto nos ajudasse a abalar a
e não para verificá-lo, como se passa o tenipo a noção de sucessão para a formação do analista.
fazê-lo com os casos clínicos. Verifica-se nestes Ora, certamente o saber tem um Furo: po-
a conformidade da experiência com o que já se rém?a formação está ela própria em tensão en-
sabia. Quando isso se produz, nos cerrificanios tre o que se ensina do saber que se depositou
de que é falso. É somente pelo viés no qual da experiência, e o essencial da formação e co-
aquilo que emerge na experiência é capaz de locar o sujeito em relação com o que não se
desconcertar o saber, que aquilo teni chance ensina. Não quero dizer ensinar-lhe o que não
de ser verdadeiro e de poder dar siia contribui- se ensina. É preciso colocar o sujeito em rela-
ção ao saber. ção, especialmente na experiéncia analítica,
Evidenteniente esqueceu-se essa ênfase de como o que não se ensina.
iacan porque ele próprio foi pródigo em nos ofe- O formidável é que oribeda~a- a opinião
recer cadeias significantes extremaniente bem verdadeira, fortuira,que escapa ao saber- é jus-
dehruaclas, e assim não se levou a sério que isso tamente a palavra que deu ungem iovtodoxia
surgisse do que, na experiência, podia abalar a (ovthodo.~ie),ou seja: o que parece ser justamen-
construçãoque, precedentemente, ele haviaapre- te o contrário. Como se passou de orthedoxa à
sentado. Retorno, portanto, a idéia de que o ana- ortodoxia?Isso se transformou tão bem que, na
lista como praticante opera com a verdade, e re- transcrição do Senziizuno2, enganei-me quanto
torno ao privilégio atribuído ao que esrá fora do ao ortheda~ae fui levado a escrever orthodoxa.
saber. Sem dúvida, para estar fora do saber, é pre- O que há de conium entre as duas é que elas se
ciso sabê-lo. Porém, privilégio do que aqui apare- constroem sobre a enunciação. O que conta
ce como recalcado ou foracluído do saber. numa ortodoxia não é o que se diz, mai sim o
Seguramente a iiiterpreração, em sua fase lugar do qual isso é enunciado.
mais profunda, é da ordem da opinião verda- Foi aliás o que Fi-eud pretendeu criar coni a
deira, da-ordem do que surge "no momento", IPA. Ele quis criar um lugar -Stelie - a partir do
e não da ordem da dedução. A interpretação qual se poderia enunciar: "Isso é psicanálise e
não é da ordem da episteme; ela é de uma or- isto não o e , em que se poderia enunciar es-
dem diferente daquilo que Lacan distingue pecialmente: "Isto não é psicanálise".
como sendo "o saber generalizável e sempre O que é a ortodoxia?O que se deposita como
verdadeiro". Sonha-se, evidentemente, em onodoxia?E por que ela se depositou na psicaná-
possuir a cakinha que oferece, em cada caso; a lise com o conejo da forinação do psicanalista?
computação daquilo que sevenficará. Fuis bem, A ortodoxia é o resultado da coletivização
é de uma outra ordem o que Iacan chama fa- da opinião verdadeira. A idéia de coletivizar a
zer a boa interpretação no momento preciso. opinião verdadeira foi o erro eclesiástico de
De fato, basta ser analisado, analista, para Freud. É totalmente diferente, é claro, a opi-
poder apreciar que a interpretação é um dizer nião verdadeira quando sustentada por um su-
de ocasião, no momento oportuno, o kairos. jeito ou quando ela dá corpo a ignorância.
isso significa dizer que a "formação" do analis- Isso já está presente na orthedoxa socrática.
ta culmina com o "espírito de opor~unidade"'~. iacan o comenta: "Há também um fundo de
Trata-se de produzir alguém com discernimen- crença comum que sustenta a opinião verdadei-
to, julgamento, capaz de apreciação adequada ra". Eis o esboço do que se explicitará como
ao caso tal como ele se apresenta. ortodoxia, essa base de conhecimentosob a qual
'INT hfoi nossa escolha para traduzir:
O que nie agradaria bem mais como título podem desaparecer as opiniões verdadeiras ou
..
I'esdril d'à Drooos. Oulra soluciio se-
ria: diipmiçio para O oportuno. para meu curso do que "O desencantamento a boa cartada a jogar. Não se deve sacraliiar a

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em que momento se constituiu a assim dita oao- Freudiana de Paris. Isso não nos engana. A tática
doxia freudiana. Ela se estabeleceu basicamente de Lacan foi antecipada por Tertuliano.
contra Melanie Mein. O triunvirato que se impôs
como uma instância pivô em Nova Iorque, o de A marca de Cainl
Hartmann, Loewenstein e Kns, sob a batuta e a
caução de Anna Freud, reuniu-se na revista m e Pude adquirir, de um livreiro de livros anti-
psychoanaliticStudiesofde Cl~ildE o fundamen- gos, uma obra apaixonante, o Dictionnaire
tal era certamente combater Melanie Klein. uniziersel des hérésies. des erreurs et des
Foi contra a heresia kleiniana que se radica- schisnles continués jusqu 'a nos jours (1847)
lizou uma ortodoxia freudiana. Foi uma orto- do abade Guyot. É inimaginável a extraordiná-
doxia tímida, o que os pôs a perder. Em sua ria inventividade dos hereges. Tertuliano de-
extensão, ela se limitou aos Estados Unidos, e nuncia a manipulação textual dos heresiarcas.
eles deixaram a Inglaterra e a América latina se Eles são especializados na retomada das Escri-
virar com o kleinianismo e as relações de obje- turas, em ir manipular os textos ao invés de
to - a França e a Europa tornando-se uma es- deixá-los tranqüilamente para a tradição-como
pécie de zona mista sob a dependência institu- certos psicanalistas que conhecemos. 'R here-
cional dos Estados Unidos, mas dando espaço sia": diz Tertuliano, "rejeita certos livros
a relação de objeto. canônicos". Prefere-se, por exemplo, a primei-
A ortodoxia psicanalítica estabeleceu um ra tópica a segunda, faz-se manobras desse tipo.
compromisso institucional com a heresia 'Aqueles que ela admite, ela os mutila, os
kleiniana e teve que se transformar em orto- interpela, e por adiçóes e supressóes os apro-
praxia. Não mais a doutrina reta - o verme já pria a sua defesa. Aqueles que ela aceita por
estava no fruto. A fragmentação teórica come- inteiro, ela os traveste por meio de interpreta-
çou em 1940 no compromisso histórico aceito çóes falsas de sua invenção. Hábil tática: pois a
pela ortodoxia. Ela recuou às posições da orto- verdade sofre tanto de um sentido arbitrário
praia. Por isso ela deu tantovalor aostandard. como de um texto alterado". A tradução é uma
Trata-se da ortoprzia no lugar da ortodoxia. bela infiel. "Obstinada em rejeitar o que a con-
Lacan foi condenado por inúmeras razoes, funde, a heresia cita em seu favor as passagens
porém antes de tudo em nome de suas infra- que falsificou e aquelas que, por sua obscuri-
ções a ortopraxia. Ele não é um heterodoxo, dade, fornecessem matéria a discussão". Em
mas um heteropra~a.Somos também hetero- relação a essas manobras textuais dos heresiar-
prauas. Podemos dizer isso com uma satisfa- cas, ele aconselha a não discutir. "Por mais ver-
ção ainda maior pois hoje a própria ortopraxia sado que sejas na ciéncia da Escritura, o que
está numa via de decadência acelerada. Eles se ganharás com uma disputa na qual se nega o
deram conta de que não sabem qual é o que avanças e se sustenta o que negas?':. Esta
standard, que ele foi roído pelas traças e está frase é formidável: "De tal conferência, apenas
extraordinariamente matizado na IPA. conseguirás muita fadiga e indignação, e se só
Sob o prisma da história da ortodoxia e das entrastes para suspender as dúvidas e fixar as
heresias eclesiais compreende-se o papel de- irresoluções do teu auditor, surpreso de que
sempenhado pela interpretação da escritura não tenhas tido nenhuma vantagem marcada,
freudiana. Em 1953,Lacan tomou como bandei- que de um lado e de outro, negou-se e afirmou-
ra o retorno a Freud. Ele disse: "Os hereges são se igualmente e que se permaneceu no ponto
os outros". Esta é uma manobra conhecida dos de onde se partiu, ele te deixará ainda mais in-
heresiarcas - basta ler Tertuliano. Em 1963,Iacan deciso, sem poder julgar onde está a heresia.
quis reafirmar sua ortodoxia no nome Escola O herege não terá e s c ~ p u l o sde afirmar que

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somos nós que corrompemos a Escritura, que Segunda origem
a interpretamos mal e que apenas ele sustenta
a causa da verdade. Não adianta então convo- Bossuet aconselha: "Nós confundimos to-
car as Escrituras, nem se situar em um terreno dos os hereges" nós os tornamos confusos,
-

no qual a vitória, se ela não é incerta, assim os obrigamos a calar-se - "mostrando-lhes sem
parecerá". O que é preciso fazer?A verdadeira as Escrituras" - não se discute os textos ou a
resposta da ortodoxia é, em resumo, que é pre- exatidão -, "que elas não Ihes pertencem e que
ciso condenar a originalidade. Primeiramente, é eles não têm o direito de servir-se delas".
necessário promover a continuidade de um con- Isso explica para mim muitos fenômenos
formismo, ou seja, fazer valer a tradição apostó- que ocorreram no curso da história da psicaná-
lica, ininterrupta desde a origem e, em segundo lise. Faz muito tempo que se guerreia conua
lugar: é preciso promover a extensão, ou seja, um manequim, contra uma IPA que não mais
defender a unidade e o universalismo da fé. existe. Ela servia depunching-ball, era usada
Por isso, no debate com iacan, não são os ar- para se fazer valer. Trata-se agora verdadeira-
gumentosque foram, propriamente falando,avan- mente de um adeus à ortodoxia. Não se a tem
çados, mas sim que se reconheceu neles as mar- mais como parceira.
cas infamantes da heresia, tais como Tertuliano - Tudo isso está presente neste argumento de
é uma tradição inintempta até Bossuet, que cita Bossuet dirigido ao heresiarca: 'Tu és novo, \iates
bastante Tertuliano - as isola. Em primeiro lu@. depois, viestes ontem, e anteontem não te co-
a mptura. Em uma heresia vocês sempre encon- nhecíamos". Nesse teatro do debate, o que sus-
tram a marca da mptura. Em segundo, o localismo tenta a ortodoxia é a noção de que a inovqão é
que se opõe ao universalismo. Por isso o caráter em si mesma uma infâmia.A enunciação é! antes
internacional da ortodoxia era um traço inteira- de tudo, uma enunciação de proprietários.
mente essencial. Lacan conhecia bem isso. Antes de cair sob
O conselho preciso é dado por Bossuet, em o golpe da excomunhão, ele havia percebido
suas Variations des Églzses protestantes ou em perfeitamente a natureza eclesial da psicanáli-
suas Prescriptions: "Face a heresia, é necessá- se tal como ela era transmitida na comunidade
rio apenas reconduzir todas as seitas separadas analítica, uma vez que, em 1948, ao falar em
a sua origem. Sempre se encontrará facilmen- nome da Comissão de ensino da Sociedade Fsi-
te, e sem dúvida alguma: o momento preciso canaiídca de Paris, ele não ennibesce ao men-
da interrupção. O ponto de ruptura sempre cionar uma "tradição contínua desde as desco-
permanecerá, por assim dizer, ensangüentado bertas constituintes da psicanálise". O que exis-
e o caráter de novidade, que elas eternamente te detrás de uma tradição continua é a suces-
trarão sobre a fronte sem que essa marca possa são apostólica. Ele a menciona porque nada
se apagar, sempre as tornará reconhecíveis". mais havia a valorizar senão a continuidade
A marca de Caim -sempre &te um ponto apostólica da tradição. Ele tinha noçáo da im-
de ruptura assinalái-el e ele continua a sangrar portância dessa continoidade, que ele próprio
Pode-seconstatar a que ponto efetivamente, nos havia mantido acreditando ou não nela -
-

porta-vozesdas seitas heresiarcas lacanianas-que quando da criação de sua Escola, ou seja, a Es-
não o são mais, uma vez que não existe mais or- cola era uma experiência inaugural. Outrora:
todoxia - a mptura lacaniana, a excomunhão de enganei-me ao ouvir nessa expressão ecos hei-
íacan permaneceu como um episódio fundador. deggerianos. Experiência inaugural significa
O que distingue a heresia daortodoxia é que esta exatamente quel na criação de uma Escola, ele
alega a sua continuidade e aquela é marcada pela assumiu a ruptura com a tradição analítica. Pro-
mptura. Não adianta então discutir as Escrituras. pôs entào uma segunda origem.

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do kleinianismo e da relação de objeto: 'Tu asso- seja possível dizer tal coisa. Eu, pelo menos, ja-
cias, eu associo" - o que o atual presidente da mais fui levado a me exprimir nestes termos.
IPA, o Sr.Wdlocher,chama, de modo delicioso, a Não havia mais "O movimento psicanalíti-
co-associatividade. Este é uni dos eleinentos que co": simplesmente porque existiam dois, o
se mantém presente, comum à IPA, na doutrina ipeísta e o lacaniano. Dizer isso nestes termos
da contratransferência.Há também a escolha la- não passa portanto de uma aproximação. Des-
caniana.Para caractetizá-iapor uma palavra, é urna sa forma manifestamente dividida era, de qual-
escolha orientada pela noção de que o analista quer modo, o movimento psicanalítico que se
não é um sujeito, orientada pela dessubjetivação visava, se é preciso entender por essa termino-
do analista. Essa escolha pode cenamente mobi- logia, da maneira mais geral, as conseqüências
l i r toda uma biblioteca de saberes. mas ela se do tipo de prática surgida do freudismo, a for-
mantém orientada pela noçio de que o que con- mação de agentes capazes dessa prática e seus
ta no analista é um estado de vacuidade. um esta- modos de seleção, regulaçáo e associação, as-
do zen de disponibilidade ao inesperado e o ss- sim como sua desastrada reflexão a respeito do
pinto de oportunidade. O que chamamos a for- que eles conseguiam encontrar nessa prática e
mação do anal6ta não tem outra finalidade se- sua maneira de se virar com isso.
não obter. no analista, a presença de espírito. %- Tudo isso constituía sem dúvida "O movi-
mos defini-la simplesmente, como o fazia mento psicanalítico", porém, à medida que este
Vauvenargues: '#presença de espínto poderia ser era buscado de formas muito diferentes do lado
definida como uma aptidão para aproveitar as ipeista e do lado lacaniano. Não sei a quem afi-
ocasiões para falar ou para agir". nal beneficiará mais tomar as coisas desse
modo, aos ipeistas ou aos lacanianos. Definiti-
vamente, cada um deles, a sua maneira bem
11. O fim da ortodoxia distinta, estava acostumado a se pensar, num
certo nível, como único. Relembrar a cada um
Levantei a questáo de saber o que era uma o seu Outro vai exigir um pouco de tempo de
ortodoxia e porque alguma coisa como uma or- familiarização, de adaptação, inclusive para
todoxia havia emergido, havia emharapdo a mim. Por isso, caminho cautelosamente.
prática da psicanálise e a reflexão dos psicana-
listas. A questão da ortodoxia concerne a fase
atualmente atravessada pelo movimento psica- 1. O problema lacaniano
nalítico, que se caracteriza, pelo menos aos
meus olhos, pelo fini da ortodoxia. Pode-se
sustentar que isso vem de longa d a t a como a
cadavez que nos damos conta de alguma coisa O que aprendemos ao considerar os dois
nova. Pelo menos a fase atual caracteriza-sepela lados ao mesmo tempo como formas que o
subjetivação do fim da ortodoxia. movimento psicanalítico tomou historicamen-
te? O que observamos? Para simplificar, o lado
O movimentopsicanalítico ipeísta estava às voltas com o múltiplo, especi-
almente com a tarefa de conciliar o múltiplo
Náo é evidente que seja possível expressar- presente em seu seio. Simetricamente, o lado
se nesses termos referindo-se ao movimento lacaniano se debatia com a dificuldade de lidar
psicanalítico como tal, supondo que ele próprio com seu Um: o Um que o habitava, o invadia, o
atravessa uma fase. Aqui está o fato novo. Atual- Um sobre o qual alguns puderam pensar que ele
mente, de quarenta anos para cá: náo vejo que os sufocava, tentando desprender-se dele.

Opção Lacaniana n" 37 Setembro 2003


Se vocês não o reconheceram, esse Um é A'ascimento da oriodoxiafreudiana
iacan, que foie ainda é o problema dos lacani-
anos. Ora, paradoxalmente. era o múltiplo Tentemos detalhar um pouco mais o pro-
ipeísta que estava sendo investido do signifi- cesso segundo o qual o movimento analítico
cante ortodoxia e que, conseqüentemente, se dividiu em dois. Tomemos o lado ipeísta. Para
apresentava-se, pensava-se como uma onodo- aqueles que não o sabem, ipeísta refere-se a
xia, acreditava ser uma, e pouco a pouco bus- Associação Psicanalítica Internacional que se
cava as vias e os meios para manter-se como quis o Outro de Lacan, uma vez que ela o colo-
tal. Em contrapartida, o lado lacaniano não se cou para fora ou recusou-se a reincluí-10, quan-
pensava absolutamente como uma ortodoxia, do ele se encontrou, por meio do que ele pró-
nem por um segundo sonhava em reivindicar prio chamou uma falsa manobra, fora dela. O
este significante, mesmo quando gozava de uma lado ipeísta assumiu o encargo, que lhe foi con-
unidade incomparável, simplesmente porque, fiado por Freud, de representar a ortodoxia na
deste lado, o movimento analítico era animado psicanálise. É fato - eu o mencionei da última
por uma elaboração única, a elaboraçáo de vez - que Freud sentiu a necessidade de que
Jacques iacan em pessoa. houvesse um dizer autorizado a proferir: "isto
Por este prisma, vejo de um lado, uma or- não é psicanálise".
todoxia assoberbada, enlouquecida pelo múl- É preciso perguntar-se porque ele experi-
tiplo que a trabalhava, e que interiormente a mentou a necessidade de que houvesse, em
negava, e do outro, uma unidade a trabalho algum canto: um lugar habilitado, inicialmente
que não se pensava a si niesma como uma por ele mesmo, e que se perpetuaria, de onde
ortodoxia, e que, desse modo, escapava a um se poderia ouvir: "isto não é psicanálise". Ora:
certo número cle dificuldades, mas talvez ao se era evidente que algo náo era psicanálise,
preço de um desconhecimento do que era isso se imporia sem precisar dizê-lo. Temos,
seu ser real. pelo contrário, o testemunho de que Freud teve
Tomo aqui, sobre a história da psicanálise e que se render a evidência de que isso não se
para situar a posição de hoje, um ponto de vis- imporia sem dizê-lo. Se houve IKd psicanálise
ta dialético. O ponto de vista dialético não é alguma coisa como uma ortodoxia, se isso ro-
irênico, pacificador. mas mesmo assim ele im- lou aproximadamente por um século, foi cer-
põe considerar o Outro sob um aspecto dife- tamente porque se sentiu esta necessidade.
rente daquele do a mais, do desviante e do Ora, se estava habituado a isso, mas isso
perturbador. O ponto de vista dialético conduz, seria uma decorrência natural? Sabemos quan-
obriga a dar seu lugar ao Outro. do esta idéia lhe passou pela cabeça. Ele expli-
A dialética é o que Ihes ensina que o que ca?em sua "História do movimento psicanalíti-
ocorre no Outro não está separado de vocês, co", que ela surgiu em 1914, após ter se con-
é correlativo ao que Ihes acontece! que exis- frontado com as cisóes de Adler e de Jung. Ele
te alguma coisa de vocês no Outro e vice-ver- tentou dar conta delas, extrair a sua filosofia, e
sa. A dialética leua a pensar uma unidade que nestes termos. O que ele teve que constatar
náo é a fusáo, o reconhecimento, a comuni- nesse momento? Ele teve que constatar que,
dade mas que, de certo ponto de vista, supe- apesar da criação de uma Associação Internaci-
ra a divisão, a separação, a ignorância, e leva onal, se produziam desvios com relação à sua
então a pensar uma unidade articulada - aqui intençilo inicial.
a articular, d e inicio, sobre esses dois elemen- O que eles traduziam? O fato de que há
tos que eu designava como o lado ipeísta e o jogo, em psicanálise, entre a teoria e a práti-
lado lacaniano. ca. Isso já confirmava mesmo que havia uma

Setembro 2003 Opçáo lacaniana n" 37


independência relativa, da prática em relação no qual já estáo presentes elementosque Freud
a teoria, e que Freud havia posto no mundo só põe em ação no momento do Édipo, e igual-
um modo de escuta que implica que se inter- mente em dar um destino especial, capital, à
venha pela interpretação e que, como resul- ação dos maus objetos internos, cuja incidên-
tado, as pessoas se sintam melhor; se curem, cia seria despedaçadora sobre a identificação
se satisfaçam. do sujeito. Eles deveriam portanto, ser trata-
Ele teve que constatar - é o reconhecimen- dos preferencialmente, incluindo-se aí a subje-
to que a criação de uma ortodoxia comporta - tivação primordial de um mau objeto, o que
que se podia utilizar o método, o modo, o dis- conduziu, como o acentua Lacan, a antecipar
positivo e conceituá-lo de maneira diferente da bastante, com relação a Freud, o momento da
sua, e portanto interpretar, na prática, em fiin- formação do supereu, considerando que o
ção de um saber distinto daquele que ele havia supereu intervém precocemente e não no
obtido da experiência. Ele constatou que era declinio do Édipo. Elementos perfeitamente
possível receber pessoas, convidá-lasa falar sem caracterizados de um desvio teórico em rela-
barreiras quanto ao que podiam ter a dizer. ção a elementos totalmente estabelecidos da
convidando-as a se entregarem ao modo da doutrina freudiana retomada por seus discípu-
associação livre, pontuar seus enunciados, los. É preciso acrescentar que esse desvio ti-
decifrá-los,propor-lhes outros sentidos ao que nha uma incidência acentuada na prática, unia
elas diziam, e depois, ao mesmo tempo, livrar- prática situada sob o signo da mãe, de tal for-
se do aparelho conceitual fundamental que ele, ma mesmo que, comparativamente, a prática
Freud, havia construido para caminhar ao lado que se queria freudiana, antikleiniana, situou-
desse tipo de prática. se perseverantemente sob o signo do pai.
Ele constatou que Adler podia pensar fazer
psicanálise unilateralizando completamente o Duas ortodoxias
protesto viril, ou que Jung podia fazer alguma
coisa como psicanálise desvalorizando totalmen- Vimos delinear-se na psicanálise uma opo-
te a incidência sexual, inclusive concebendo uma sição prática que, apesar de imprecisa, não é
libido dessexualizada, ou que Rank podia rece- menos capital. Do lado freudiano ortodoxo,
ber pessoas e tratá-las, considerando que todos um clima rígido do tratamento, um clima im-
os seus males se originavam do traumatismo do placável quando praticado por fanáticos. Tra-
nascimento. Frente a essa evidência imposta ta-se de uma mistura de rigorismo germânico
pelos fatos, Freud recorreu a ortodoxia para e de puritanismo anglo-saxáo. Isso deu lugar
obturar a distância entre teoria e prática. a descrições da rigidez, da fixidez de todas as
Há contudo um desvio que não foi domina- coordenadas do tratamento e do caráter indi-
do, que não se conseguiu transformar em ci- ferente, cego, do analista a todos os inciden-
são - a cisão é o ideal para a prese~açãoda tes que poderiam ocorrer, ele próprio tentan-
ortodoxia, ela verifica uma ortodoxia -, o des- do encarnar um objeto absolutamente invari-
vio kieiniano. Trata-se de um desvio que con- ável. Ele se veste sempre da mesma maneira,
siste - como o destaca Lacan na página 117 dos nada é movido no consultório, o que tem o
Escritos" -em projetar a experiência subjetiva sentido de um certo despojamento - chegan-
até o limite do surgimento da linguagem e, por do mesmo, nos verdadeiros fanáticos, a vesti-
isso mesmo, em alterar a cronologia freudiana, rem-se todos da mesma maneira. Temos um
que consiste em dar uma importância muito relato, da década de 50, da prática nova-
grande a função imaginária do corpo materno, iorquina no qual era enfaticamente recomen-
que delineia um universo conflitual da criança dado aos analistas se vestirem na Brooks '*iacvi,~.(l996).Émk@.117).~am:~e

Opção Lacaniana no 37 Setembro 2003 17


Rrothers. Do outro lado, um clima flexível, con- irrigar a psicanálise - Balint é um dos nomes
descendente, acolhedor, em relação ao qual célebres -, e para além da psicanálise, por con-
os sujeitos que desejassem uma análise pode- vergir com a flexibilidade kleiniana. Essa fleA-
riam se dirigir. Tanibém, sem dúvida, um esti- bilidade conduziu, por exemplo, um Balint a
lo de interpretação profundamente distinto de estabelecer as melhores relações com I.acan
um lado e do outro, certamente muito mais nas décadas de 40>50 - Lacan menciona isso
loquaz do lado kleiniano, que chegava a ope- nos Escritos.
rar uma espécie de comentário contínuo dos O lado ipeísta subdividiu-se em dois. De um
enunciados do paciente, de modo que se tem lado, a corrente annafreudiana, que na verda-
as vezes a impressão de que a sessão transcor- de tomou forma após a morte de Freud, sua
re em dueto - o paciente diz, o analista fala, e filha patrocinando o movimento de ortocloxi-
isto se repete. zação da segunda tópica e fazendo a ligação da
O fato é que o desvio kleiniano - não se equipe Hartmann, I.oearenstein e Kris, em The
emprega mais este termo porque se conse- Pg~choanalyticStudies of the Child. Do outro
guiu apagar esse fato no entanto fundamen- lado, a corrente kleiniana, à qual é possível jun-
tal - pegou. Ele pegou na Inglaterra sob a tar, fazendo no entanto diferenças mais finas,
batuta de Ernest Jones que viu nele uma al- aquela das relações de objeto, que se desen-
ternativa a hegemonia alemã, austríaca, so- volveu principalmente no Reino Unido. A opo-
bre a psicanálise. Na década de 30, vemos sição, que dura ainda, é aquela entre o estilo
Jones muito contente consigo mesmo dirigir- rígido e o estilo flexível na prática. Tal divisão
se a Viena e dizer: "Venho trazer-lhes novida- não chegou a seu termo. Ela foi conservada no
des que nós, em Londres, pudemos elaborar mesmo quadro institucional.
a partir de Melanie Klein". O que equivale a
dizer: "Não há apenas vocês, meus senhores; Compromisso histórico
há um segundo lugar de verdade na psicaná-
lise. Desse ponto de vista! Londres equivale Eis a aventura do lado ipeísta do movimento
a Viena". Foi este o seu lugar histórico na psi- psicanalítico. Duas ortodoxias convivem sem se
canálise, o d e buscar um acordo. Ele foi de excomungarem. Em conseqüência afirmou-se,
fato o instrumento do destino que permitiu logicamente, uma terceira ortodoxia, a ortodo.xia
a IPA superar o desvio kleiniano, porém re- mista, aberta, tomando empresrado de todos, de-
conhecendo-o, admitindo-o. finitivamenteinforme. aquela que conhecemos na
A partir da Inglaterra, esse desvio provo- França e na zona européia de influência h c e s a .
cou entusiasmo na América latina - encon- Sem estar verdadeiramente fixada na doutrina, a
trou-se nele uma alternativa a hegemonia ame- terceira ortodoxia antes conservou um clima de
ricana. O destino do desvio kleiniano contras- ortodoxia do que propriamente elaborou uma
ta, desse ponto de vista, com o que ocorreu doutrina ortodoxa. O que, aliás, lhe permitiu a b
com relação a Sandor Ferenczi. Foi o desloca- sorver influências fenomenológicas personalism.
mento de Klein para Londres, em uma metró- O que traduz essa pluralização da ortodo-
pole mundial - trata-se da geopolítica da psi- xia do lado da IPA? Ela apenas confirma o trans-
canálise - e o uso que os ilhéus puderam fa- bordamento constante em psicanálise da teo-
zer dele, e mais tarde os latino-americanos, ria pela prática. Freud foi o primeiro a dar dis-
que fortaleceram esse desvio até transformá- so o exemplo, pelo fato dele próprio ter reali-
lo numa corrente. A partir de Budapeste não zado a passagem da primeira a segunda tópica.
houve, propriamente falando, uma escola Hoje em dia estamos habituados a estes temos,
ferencziana, mas antes um estilo que tentava porém é preciso perceber o que significou na

Setembro 2003 Opçáo Lacaniana no 37


época, para aqueles que tinham feito entrar na mundo para esconder a argumentação freudia-
cabeça a primeira tópica, ver que Freud, con- na a favor do que se chamava a análise profana,
servando a experiência, deslocava o primeiro a análise praticada por analistas não médicos.
edifício que ele havia construído e: sobre a base Em terceiro lugar - ponto que necessaria-
da mesma prática, levantava um novo edifício. mente foi investitlo de uma importância capital
É gritante. Como melhor confessar a disjunção nesse contexto -: reguiação puramente quanti-
entre prática e teoria, o transbordamento in- tativa da prática. Ela é puramente quantitativa;
terno da teoria sob os efeitos da prática? não podia ser qualitativa, pois eles não estavam
O escândalo foi que: de qualquer forma, ele de acordo sobre nada, ou iiiuito pouco, no que
substituía uma ortodoxia por outra. Isso des- concerne aos fundamentos teóricos, e havia jus-
concertou. Uns concordaram, outros discorda- tamente essa zona mista em pleno crescimento
ram: e eles tiveram pelo menos dois elementos de todos os lados. O cimento foi então necessa-
para jogar Alguns dentre eles, que se diziam os riamente a regulação puramente quantitativa da
mais ortodoxos freudianos, recusaram a pulsão prática no que concerne à duração das sessões,
de morte, enquanto Klein, a desviante, abraçou- que se tornou uma pedra angular da psicanáli-
a com entusiasmo. se, e depois quanto ao número das sessões se-
Edificou-se,sobre a base da segunda tópica, a manais a respeitar para a validação de uma aná-
Egopsychologi! que foi a principal figura da orto- lise como didática.
doxia na psicanálise. Foi nela que iacan encon- Somos informados agora, e pelas bocas
trou a mola para o seu próprio movimento que mais autorizadas, que houve um conflito per-
tinha, no momento em que ele começou o seu manente, a partir da década de 50, entre os
ensino em 192.3, em seu momento de frescor.uma ortodoxos franceses e o centro ortodoxo ipe-
foca muito grande. O uiuniirato nova-iorquino ísta. Digo isso coni todas as reservas, pois as
produzia então os textos fundamentais sobre o pesquisas
. . estão em curso. No momento em
que eles pensavam ser a ortodoxia na psicanálise. que iacan começou a diminuir a duração cle
E isso sustentou iacan em seu esforço teórico de uma sessão analítica - o que foi criticado como
se opor Frontalmente a essa ortodoxia. um crime de lesa majestade - eles diminuíam
Tal energia emanou desse confronto que: o número de sessões obrigatórias para uma
durante anos, os alunos de Lacan continuaram análise didática.
a ver o niovimento ipeista pelo prisma daEgop- Está provado que, a partir da década de 60, a
s)~chology,mesmo no momento em que esta já Sociedade Psicanalítica de Paris, ponta de lanp
estava começando a tlissipar-se, a desaparecer da ortodoxia na Fmnça, esteve em conflito com o
É fato que as três ortodoxias que distingui esta- conjunto da 1PA a respeito do fato de que eles se
beleceram um compromisso histórico que fez contentavam de bom grado com tr& sessões se-
perdurar a ortodoxia na psicanálise. Esse com- manais para a didática, enquanto a n o n a era 4
promisso comportava três planos. ou 5 sessóes. Ao mesmo tempo em que iacan
Primeiramente, o pertencimento a um mes- diminuía a duração das sessões, Nacht: o luminar
mo conjunto institucional, deixando a direçáo do outro lado, retirou do programa obrigatório
do movimento nas mãos dos annafreudianos. dadidática uma sessào obrigatória dai 4 ou 5. Eles
Isso se manteve assim até muito recentemen- fizeram então simultaneamente a descoberta de
te. Era preciso, sem exceqáo, ser annafreudiano que o tempo era uma variável em que se potlia
ou ter demonstrado Fidelidade ao annafreudis- tocar Portanto, ideal de uma regulação quantita-
mo para ser presidente da IPA. tiva especialnienteinvestida nessa situação de or-
Em segundo lugar, conservação do privilé- todoxia em conflito. A excomunhão de iacan se
gio médico, ou seja, o acordo geral de todo o baseou nesse conipromisso histórico.

Opção Lacaniana no 37 Setembro 2003


2- Uma elucubração de saber conseguir uma mixagem das ortodoxias visan-
do dar novamente um sentido a ortodoxia.
Pode-se observar ali um fenómeno de luta assi-
métrica entre os rígidos e os flexíveis.
Tentemos delinear a evolução da tríplice ali- A Egopsychology estava destinada, por sua
ança. A tríplice aliança das três ortodoxias, mar- própria definição, a repetição, e o simples fato
cada pelo momento de seu nascimento no com- de que ela tenha tido que acolher os achados,
promisso, ocupou-se em elaborar as formações ou os pretensos achadosl já era para ela um fa-
teóricas de compromisso. Trata-se da história tor de enfraquecimento e de dissolução. Na
teórica a partir da década de 40. A elaboração história do movimento ipeísta se constata que
das formações teóricas de compron~issotradu- os novos mestres da verdade emergiram sobre-
ziu-se nos fatos por um questionamento da tudo da corrente das relações de objeto. Os
Egopg~chology.Ela era a única verdadeira orto- Bion, os \yrinnicott provêm do lado dos flexí-
doxia, uma vez que eles tinham a vantagem e veis. Quanto aos inflexíveis: eles foram clesti-
ao mesmo tenipo o pecado, a tarefa de repre- nados a uma repetição ou a tentar recapturar,
sentar, nesse debate, o discurso rígido. O mo- nomeando da antiga maneira, os novos acha-
viniento histórico não é generoso, benevolen- dos, os fenômenos clínicos que não tinham sido
te com os rígidos. levados em conta.
A elaboração teórica ipeísta, sua história, é
a dilapidação progressiva das posiçóes daEgop- Ortodoxia mata-borrão
s y c h o l o ~pela
~ mixagem coni o kleinianismo, e
especialmente com a corrente assim dita das Do lado deste movimento ipeísta, o progres-
relações de objeto. Na década de 70, algueni se so, o desen~~olvimento se realizou do lado da
distinguiu pelos recolainentos astuciosos que ortodoxia mais fraca, até o momento em que,
tentou fazer da Egopsychology com as relaçóes após a morte de Lacan, seu próprio ensino co-
de objeto. Otto Kernberg foi saudado nos Esta- meça a ser levado em conta, sendo incluído
dos Unidos como o salvador da América, ou progressivamente no programa de um certo nú-
seja: como o produtor de uma neo-Egopq~cho- mero de institutos ipeístas. O que experimenta
1 0 ~Ele . foi recompensado por isso com a pre- atualmente) vinte anos após o início desse fe-
sidência da IPA, que corajosamente assumiu nómeno, um crescimento consitlerável - de
nesses quatro últimos anos. Ele acaba de pas- maneira discreta na França e totalmente
sar o cargo em julho último. Pode-se no entan- alardeada na América latina.
to constatar que a novaortodoxia daEgopsycbo- O movimento ipeísta começou pela investi-
logy. que havia sido aperfeiçoada, não ultrapas- dura de Freud como uma ortodoxia feroz - ela
sou os Estados Unidos. Eles não conseguiram deveria sê-lo - e se transformou em ortodoxia
a reconquista do campo freudiano a partir de mata-borrão, absorve-tudo. A evolução deste
Otto Kernberg. lado chegou ao ponto em que não apenas cada
A melhor prova de que ele sofreu por causa um tem a sua teoria! ma5 quer ter sua teoria. Se
disso é que ele foi mortificado. Por que o que ele não tem a sua teoria lhe falta alguma coisa. E
prosperava nos Estados Unidos foi tratado com preciso que haja pelo menos uma palavra sua -
descaso por seus colegas ipeistas da França, da isto faz parte de sua identidade de psicanalista.
América e do resto do mundo?Vimos surgir da É assim que as ortodoxias terminam, o que
sua parte um certo número de textos extrema- o movimento ipeísta está começando a subjetivar
mente críticos a respeito de seus colegas da IPA, dolorosamente. Não zombemos. Não Ihes digo
traduzindo o fracasso de seu projeto que era para se compadecerem,porém é também nossa

Setembro 2003
história, talvez pelo avesso. Nada de Schadet7- Em segundo
- . é ao mesmo tempo este-
lugar.
Jreude, náo nos regozijemos com as desgraças tizante. As belas metáforas são apreciadas. Não
alheias. Tanto mais porque não é uma desgraça. se acredita contudo que elas sejam verdadeiras,
~ ~

A própria significação da ortodoxia está agora porém se é capaz de fazer uma diferença entre
perdida para eles, a ponto de assistirmos a uma bem falar da psicanálise ou não falar bem dela.
privatizaçãoda teoria. O que isso quer dizer?Eles Há também, conseqüência lógica, o plura-
estão começando a realizar. muito mais do que lismo - que desce ao nível de cada praticante.
os lacanianos, que a teoria é uma elucubração Já se perdeu a esperança de que haja um plura-
de saber - expressão do último ensino de Lacan. lismo no nível das sociedades entre si.
A IPA percebe atualmente a teoria como elucu- Esse estado de dissolução da ortodoxia con-
bração de saber. verge com o relativismo pós-moderno e pode
Nosso guia nesse terreno é o Sr.Wallerstein, perfeitamente acoinodar-se, sentir-se em res-
ex-presidente da IPA, que se dedicou de ma- sonância tanto coni a desconstrução de Derrida
neira heróica, nas últimas décadas, a pesquisar quanto com o neopragmatismo de Richard
as bases mínimas da ortodoxia. No último tex- Rorty. O resultado dessa festa -anyihiggoes, é
to que li dele, publicado em Francês em junho o banquete, todo mundo é convidado - o efei-
passado, ele chega a tese da disjunção, em psi- to de ressaca desse excesso é que se torna cada
canálise, entre teoria e prática. vez mais difícil para o movimento ipeísta, de
Ele propõe ao psicanalista distinguir dois maneira patente, distinguir a psicanálise da psi-
níveis. O primeiro consiste em dizer o que ele coterapia psicanalítica, como eles se expressam.
Faz, em tentar dizê-lo numa linguagem comum, Eles estão movidos agora por uma pesquisa
numa linguagem pobre, factual. Talvez isso se apaixonada sobre a diferenciaçáo. Eles a tomam
aproxime, em última instância, dos protocolos como tema, porém, a partir dos fundamentos
de observação que se tentava praticar no posi- que acabo de relerribrar, essa diferericiagáo ne-
tivismo lógico para descrever as experiências cessarianieiite escapa. Ela chega mesmo a se
de uma maneira desprovida de qualquer cono- inverter. Ouvimo-los então dizer: "É justamen-
tação, dentro do modelo: "Otto viu que, dois te ali onde você acredita ser psicoterapeuta que
pontos". O segundo nível é uma elucubração a você é psicanalista, e vice-versa".
esse respeito, sabendo-se que esta jamais pas- A própria idéia de ortodoxia aparece como
sará de metáforas. É iiessa direção que conver- fora de moda. Poderíamos mesmo dizer que a
gem tanto o último ensino de iacan como a única chance, o único recurso deles teria sido
experiência vivida pelo movimento ipeísta, no poder definir-se como ortodoxia contra Lacan.
qual se desenvolve um pluralismo simultanea- Seria preciso - é manejável?- que Lacali fosse
mente pragmático e estetizante. o menos-um do novo banquete dos analistas.
Inicialmente é pragmático, nosentido de que
se c u m diante do que caminha ou do que é su-
posto caminhar Ali se está no regime que o
epistemólogo Fqerabend chamavaanyi/~i?7ggoes A que assistimos ali efetivamente, hoje, na
-qualquer que seja o assunto-, e iacan também. semana passada, na próxima semana?Tento falar
Estou começando a descrever o momento mais do mais presente, da maneira como acompanho
atual e a ponto de fazer previsões de que isso só a atualidade a partir do que este ou aquele me
poderá caminhar neste sentido. Pelo andar da conta a respeito da corrente ipeísta ao tomar a
carruagem, isso caminhará nesta direção, a não palavra em Ruis, Nova lorque?Buenos Aires.
ser que as boas fadas se apresentem e ajudem Em primeiro lugar, há tentativas de repetir
para que isso se dê de modo diferente. o anátema de 1963 nas condiçóes do século

Opção Lacaniana no 37 Setembro 2003


XXI. Vimos essa tentativa há três anos com suas metáforas. 'Tenho ressal\m a respeito da prári-
Kernberg. Ele pintou uma excomunhão que faz ca de Lacan, mas gosto muito das inetáforas cle
rir, dizendo que a IPA estava a favor do contato Iacan". Eu Ihes dou o princípio de uma literatura da
com todo mundo, exceto com as pessoas ou qual temos até agora alguns elementos: que \:em
instituições que não respeitavam osstandards mos aumentar em número nos tempos vindouros.
da IPA. Em terceiro lugar, operar uma disjunção en-
Isso não é sério. Quando se quer que uma tre iacan e os lacanianos. É a \:ersão: "Quanto a
excomunhão avance, ela é formulada cle modo iacan, tudo bem, muito interessante, porém os
diferente, dá-se os nomes. Quando não se diz os lacanianos, argh!", com o corolário dessa posi-
nomes, uma excomunhão é nula e não advinda. ção declarada por analistas ipeístas: "Definitiva-
Dei-me esse prazer, em abril últinio, em mente, os melhores alunos de lacan somos nós".
Buenos Aires, diante de um auditório lotado Descre\relhes uma combinatória a partir de in-
de membros da IPA ao lado dos lacanianos - dices que sãoainda fracos,mas acreditoque toda
tudo isso para render homenagem a iacan, uma literatura virá preencher e dar vida a esses
não a Kernberg - lembrando-lhes que eles es- diferentes lugares. Eu Ilies dou uma matriz. Há
tavam ali infringindo um edito. Não posso di- combinação das trés posições, e essas combina-
zer-lhes o que eles me responderam, não pos- ções são múltiplas,infinitas, utiliwndese de cada
so imitá-los [J.-A. Miller dá de ombros]. Não é uma das trés em cliversas proporções.
fácil repetir o anátema. Não se trata aqui de sátira, mas d e uma
Vocês têm também a tentativa, meritória, do constatação.Aonodoxia tornou-se um ecletismo.
Sr. André Green, que se apresentou a Iacan di- Assistimos a um fenômeno que não é inédito na
zendo ser uma espécie de propagador de Iacan história do pensamento, presenciamos o ponir
na IP.4. Aliás, ele manteve a palavra. Ele propa- eclético da onodoxia e uma pulverizaç30 do clis-
gou alguma coisa de iacan na IP& dizendo que curso que é mantida pela inércia institucional e
era de Green - é um detalhe! -, falando "ima- pelas barreiras que são assim estabelecidas.
gem mnêmica" ao invés de dizer "significante".
Dialeticaniente, ele foi ao mesmo tempo
levado a propor atualmente ao movimento 3. Psicanálise sem mestre
ipeista a foraclusão eterna de iacan. Compre-
ende-se bem que se Green é o profeta de Iacan Foi nesse contexto que me ocorreu falar de
na IPA, é porque Lacan nada é ali. Isso obedece reurilficação do movimento psicanalítico". A pala-
a uma lógica inflexível. É perfeitamente lógico vra tem evidentemente algo de irônico. Por um
que aquele que mais fez para fazer penetrar as lado, nomeia o estado no qual todos os gatos são
teses ou as noções de iacan na IPA seja o difa- pardos, no qual a única coisa que pode prevalecer
mador de iacan, aquele que fala, ele próprio, é a fórmula atribuida a um teórico, que também
mal de Lacan. Eis os produtos de dissolução da foi um governante chinês, Teng HsiePing, e que
ortodoxia. Eis o que ocorre quando a ortodo- havia declmdo: "Tinto faz que um gato seja bran-
xia se desfaz: surgem fenônienos desse tipo. co ou preto desde que ele pegue os ratos". b i s
Em segundo lugar, a operação que consiste bem, há na psicanálise alguma coisa que se alaitra
em praticar uma disjunção entre o Lacan prati- e que responde i fórmula de Teng HsiaePing.
cante e o Iacan teórico, ou seja, criticar um e
tomar emprestado do outro. Criticar o Lacan Aquele que quer saber
praticante, ter reservasl porém, ao mesmo teni-
"Millesj. A. (2002).Ici/resRl'ópinion
po e cada vez mais, apesar dessas reservas, pe- Tomemosagora o lado lacaniano. O m o h e n -
édairk, ~ans:%uiI. dir emprestada a sua linguagem, utilizar-se de to lacaniano tem aparentemente uma história

Setembro 2003 Opção Lacatiiana no 37


mais simples,uma vez que ele se restringe à evm analisando, não daquele que sabe mas sim da-
lução interna do ensino de iacan. Até 1981, o quele que quer saber "Faço continuamente o
movimento lacaniano estava na mesma posição passe em meu Seminário". "O ápice da posição
que o movimento ipeísta até 1939,ou seja, numa analítica é voltar a ser analisando em relação ao
situação em que o mestre estava presente. O sujeito suposto saber". São algumas, entre tan-
mestre, aquele que inaugurou uma experiência tas formulações, que tornam impossível qual-
nova, está lá em pessoa para orientá-la,comentá- quer posição de ortodoxia
Ia e fazê-la e\:oluir. É o que buscam no momento os aventurei-
A diferença - há uma - é que iacan não deu, ros ipeístas que vasculham entre os lacanianos:
como o fez Freud, aos seus ditos a forma de "Onde está o tesouro?". Eles buscam as pistas,
uma ortodoxia: recusando-se mesmo explicita- como dizia um ipeísta, muito simpático, que
mente a fazê-lo. Foi o próprio Freud que colo- estava há cinco anos num canel com quatro
cou em evidencia a primeira e a segunda tópi- lacanianos: Xnda não descobri como se faz o
cas como balizas ne varietur. Na verdade fo- corte". E o que se pode procurar, pois não há
ram seus alunos que as tomaram dessa manei- formulário, não há credo lacaniano. Nada se
ra, mas Freud pensou que era preciso dar uma acha, ou muito pouco, de iacan sobre a sessão
estabilidade a prática analítica, que era preciso curta. Pode-se repetir: "o retorno a Freud, "o
tomá-la num enquadre institucional rigido. O inconsciente esrruturado como uma lingua-
que levou iacan a dizer que Freud enfrentava gem"?mas são expressões que foram ditas uma
dessa forma o risco de uma certa parada da vez, que são extraídas de seu discurso, das quais
psicanálise. Ele admitiu que talvez, para Freud, se pode, no máximo, fazerslogam que ele dei-
este fosse o único abrigo possível para evitar a xou se espalharem, mas que não podem cons-
extinção da experiência analítica. tituir uma ortodoxia.
Sente-se isto eni Freud, a idéia de que há ali Por isso o movimento lacaniano não tem uin
um fogo que é preciso preservar e que, por isso, porvir eclético. Lacan não era eclético por não
é necessário não correr riscos. iacan, por sua ser ortodoxo. Era bem mais oportunista, no
parte, teve uma estratégia antionodoxa, ou seja, sentido de que ele estava atento às invenções
ele apostou na transformação e não na estabili- da cultura, as produções da civilizaçãol a infor-
dade. Por isso fez o que ele próprio chamou - mação de ponta. Quantos autores, dos que se
mesmo dissimulando -"um ensino", e não uma tornaram célebres depois, foram mencionados
-ou duas - teoria, porque a teoria implica para- e indicados, primeiramente, por iacan?
da, contemplação. Em qualquer teoria há um O nome de Chomsky era desconhecido da
repouso sobre o adquirido, enquanto que o en- opinião esclarecida até iacan lhe dedicar um
sino - pelo menos o de iacan -se instala na fa- seminário. Ele começava a ser conhecido por
lha que, na psicanálise, disjunta prática e teoria, sua pequena tese para especialistas, Syntactic
e a partir da idéia de que o parceiro, coni o qual Structures. Foi iacan que o apresentou à opi-
o analista que ensina tem que se haver, é um nião pública.
real que produz seu próprio desconhecimento. Não havia uma só tradução francesa de Fre-
Trata-se entáo, na atividade teórica, de superar ge, sequer uma menção ao seu nome, ele era
o recalque, de ganhar da defesa, de modo que o totalmente desconhecido do batalhão da filo-
ensino aparece como a análise do que um ana- sofia francesa quando iacan me disse: "Interes-
lista desconhece de sua prática e da psicanálise. se-se por isso, faça uma comunicação sobre
Nessa perspectiva, os ditos de iacan, que não isso''. Ocorre que, poucos dias antes, eu havia
são um coquetismo, combinam muito bem com comprado os Grundlagen der Arithmetik na
dizer que, ao ensinar, ele estava na posiç5o de tradução inglesa que acabara de ser publicada.

Opção iacaniana no 37 Setembro 2003


Não havia muitas comunicações sobre Frege problemas da enunciação e da linguagem com
antes que eu fizesse a infelizmente minha, em uma minúcia que, ainda hoje, provoca nossa ad-
lacaniano. Meu colega Bouveresse me critica miração: e, em contrapanida, os renascentistas
ainda hoje por isso - o fato de ensinar filosofia retomavam o mais batido da mitografia antiga.
no College de Fra~zcenão impede que eu ter Pensemos também no que ocorreu no mo-
escrito isso continue a preocupá-lo. mento da emergência do discurso científico, no
qual se pode acompanhar como se passou da
erudição a experiência e à manipulação dos sím-
bolos matemáticos. Isso se deu progressiva-
Na via de Iacan não se esperava, com efei- mente e se começa efetivamente a dizer, a par-
to, grandes batalhões para estar na vanguarda. tir da metade do século XVIII: 'L5pessoas não
É relativo, pois Frege já era uma referência ca- se interessam mais pelos trabalhos de erudição;
pital nos países anglo-saxões. Em outras pala- só se interessam pelos experimentalistas e pe-
vras, há em Lacan uma orientação antionodoxa los cientistas". Aqueles que computam os da-
declarada, que repercutiu tanto no nível da For- dos quantitativos puderam, pouco a pouco, si-
mação quanto no da transmissão da psicanáli- tuar o momento em que o gosto se desloca para
se. É em relação a isso que é preciso inscrever o lado científico e a erudição aparece, pelo con-
seu dito: "Não há formação analítica, há ape- trário, como unia coisa do passado.
nas formações do inconsciente", e também:
"Trata-sede que cada um reinvente a psicanáli- Uma i~ljunçâode transparência
se". Estas não são elucubrações do final de seu
ensino; isso já estava presente desde o inicio: Lacan Fundamentava efetivamente a trans-
desde que ele toma a palavra. Vejam nos Escri- missão na transferência, ou seja: nas mutações
tos, em 'apsicanálise e seu ensino": "(...)a úni- do sujeito suposto saber. O que nos convida
ca formação que podemos pretender transmi- certamente a nos interrogarmos também sobre
tir àqueles que nos seguem se chama um esti- como os psicanalistas se situam hoje em rela-
l0"~5.Não se trata da transmissão de um saber ção ao sujeito suposto saber.
adquirido. Lacan toma nessa época, como refe- Seguramente os analistas sentem-se hoje
rência, as revoluções da cultura. Ele diz que a perturbados frente a forma moderna do sujei-
via pela qual se trata de transmitir a psicanálise to suposto saber Por um lado, o sujeito supos-
é aquela "por onde a verdade mais oculta se to saber não fez senão inflar sua posição do lado
manifesta nas revoluções da cultura". do discurso da ciência e há, por outro, em coni-
Pensemos na revolução da cultura chamada pensação, uma inflação das práticas de falação
Renascimento. Em certo momento, colocou-se na esfera pública, assim como de terapêuticas.
de lado a escolástica,para entregar-se apaixona- Do lado cientifico, o fora-do-sentido cresce e,
damente a reedição, à tradução dos mestres an- do outro, uma busca desnorteada de sentido,
tigos. Temos ali uma mutação do gosto, uma re- terapêutico, político, de diversão. A psicanáli-
volução da cultura que passa por outras vias que se se encontra como que esquanejada entre
não a da transmissão de um saber já organi7ado. essas duas vertentes.
Não necessariamente um saber melhor, ali- Sob que forma essa reunificaçáo, da qual
ás. Seria possível defender que na escolástica pude falar, pode se reali~ar?Coloco novamen-
havia mais espírito científico do que no movi- te a pergunta.
mento renascentista, que Iacan taxa nesta oca- Bastou que eu lançasse a palavra para que
sião de ter sido obscurantista, enquanto os algumas pequenas luzes se acendesseni. Tive
"iacui,~(1996).&&(~.46o).~a~~~anlescolá~ticosse ocupavam antes de tudo dos justamente que responder nesta manhã a uma

Setembro 2003 iacaniana no 37


Op~io
pesquisa de opiniáo públi~a'~. Vieram me en- dos psicanalistas, exceto quando eles tomam a
trevistar sobre minha opinião, para saber o que palavra sob formas absconsas: equivalentes, no
se faria verdadeiramente dessa reunificaçáo. pior dos casos, ao silêncio. O próprio inconsci-
Tive que explicar que era o triunfo do múltiplo ente tem uni modo de ser, ou de não ser, que
na psicanálise o que permitia prever uma náo responde aos cânones da existência co-
reunificação sob formas totalmente imprevis- mum, e que frustra particularmente a concep-
tas, que o fato novo é que a psicanálise se reco- çáo de relação de causalidade linear.
nhece como plural. É preciso perceber que isso Portanto a psicanálise não convém. Se fos-
supõe finalmente mais esforços d o lado se preciso escolher um século, náo seria este o
lacaniano do que do lado ipeísta. escolhido. Porém não é possível escolher. H á
Constata-se com efeito que as barreiras se uma escolha forçada. Uma escolha forçada que,
tornaram porosas e que a libido dos psicanalis- independentemente daquela que eles fizeram,
tas, nos tempos que viráo, se deixará levar me- força os analistas a uma aproximação para res-
nos para se desacreditarem mutuamente. Eles ponder pela psicanálise. Uma psicanalise que,
já fizeram bastante nesse terreno, e pode-se exceto isso, está em todos os cantos. Ela tem
escutar. com certa ternura, alguns resquícios do incidência em toda parte, inspira profundamen-
tempo passado tentarem reanimara chama. b- te o modo de sustentação de nossa civilização.
rém os psicanalistas serão sobretudo obrigados Ou a libido dos psicanalistas vai se deslocar
a tentar dar uma definição aceitável da psicaná- do confronto entre os movimentos psicanalíti-
lise nas condições do presente século. cos para assumir a contradição em que a psica-
Quais são as condiçóes do século atual? O nálise está com relaçáo a civilização sobre um
próprio fato de um jornalista se abalar por ter certo número de pontos, ou a psicanálise de-
ouvido dizer que eu falava de reunificação do saparecerá no movimento geral da civilização.
movimento psicanalítico testemunha isso. É a Ainda um instante, Sr. Carrasco.
época em que os psicanalistas são levados a
responder a uma injunção de transparência, a
um imperativo que se impõe a partir da esfera 111. Disjunção entre prática e
pública: "Diga-nos quem é você, o que você faz. teoria
Diga-nos de onde você vem". Os analistas náo
poderão escapar disso, não poderão desconhe- Os analistas experimentam hoje a disjunção
cer isso, tanto os ipeistas como os lacanianos. entre prática e teoria. Como é possível ser dife-
As formas tradicionais de garantia ou de rente quando, por um lado, a prática se amplia
autoridade sob as quais viveu o movimento e prolifera e por outro, a teoria se fragmenta e
psicanalítico em seu conjunto, o respeito a au- se privatiza? O fato mais importante é que a
toridade, a instituição, o preconceito favorável prática goza de credibilidade social enquanto a
que se atribui a institui~ãoou a uma autorida- teoria, pelo contrário, está sob suspeiçáo, ela
de que porta as insígnias necessárias, tudo isso alimenta os incrédulos.
pertence a um mundo desaparecido. Não se
tem mais confiança nos medalhões, ainda me-
nos nos medalhões do que nos outros, porque 1. Estrutura e mentira
se sabe que eles têm coisas a ocultar.
O momento presente é um momento de Auto-inualidaçâo do real '6RC Podemos supor queJ-A. Miller faz
dificuldade aguda pois a prática analítica é fun- alusão a u i a umaentrei,is!a que ele deu
ao jornal semanal1 'Erpress, publicada
damentada no oculto, numa confidência inti- O que chamo aqui a prática, em um sentido de de 002, intilulada
ma. Fundamenta-se cada vez mais no silêncio amplo - a prática da escuta considerada numa ,,~ousiacaniens!'.

Opção Lacaniana n" 37 Setembro 2003 25


acepçáo geral, nas diversas foriiias com as quais O que isso tem de inverossímil pode ser
ela se reveste -, tem crédito. Constata-se que a melhor aproximado atualmente, quando se ex-
opinião pública confia nela. Admite-se de for- perimenta a disjunçáo da prática e da teoria. E5sa
ma muito geral que falar e ser escutado em par- disjunção foi apreendida por iacan, sem dúvida
ticular, e até em público, faz beni. Em toda par- mais profundamente, como a disjunção do ver-
te se encoraja o terapeuta a isolar-se com o pa- dadeiro e do real. Não se experimenta de fato
ciente para que este lhe falhe o mais livremen- tal disjunção mas sim a disjunção entre teoria e
te possí~;ele diga o que não poderia dizer em prática, aindependência relativa das constmções
seu trabalho, em sua família, e se está conven- teóricas com rela~ãoà prática. E talvez esta se
cido de que ele se beneficiará disso. esclareça a partir da clisjunção, introduzida por
Qual é a teoria dessa prática? Quanto a isso iacan em seu último ensino, do verdadeiro e do
não se sabe mais, nisso os pretendentes rivali- real. O que a tornaria efetivamente atual.
zam, duvida-se, combina-se, copia-se modelos,
se é eclético, até mesmose abstém simplesmen- Da melilira no real
te de teoria. Porém existem ainda alguns para
lembrar que essa prática, essa maneira de fa- Essa disjunção é o que expressa a tese: "não
zer: foi inaugurada por Freud, que ela náo exis- há verdade sobre o real", que extraí doSeminá-
tia antes dele, porém parece que isso não pav n o de iacan. E uma tese limite. A que ela pode
sa de uma lembrança. Exagero, para fazer en- introduzirsenão ao silêncio?Nessa via, nada mais
tender em que direção caminha a tendência. há a dizer a não ser que qualquer teoria será in-
Mas a tendência vai nesta direção. É essa ten- suficiente, inadequada, sempre estará aquém
dência que Lacan antecipou em seu último en- daquilo de que se trata: não permitirá o acesso
sino: quando ele avançou até chegar a questio- ao real, não passará de uma elucubração pes-
nar os conceitos fundamentais de Freud, dei- soal a respeito de uin real que lhe escapa.
xando entrever por que via estes conceitos po- É certamente nesse registro que se pode ins-
deriam ser recusados. crever a coniunicaçáode um analista que se pre-
Simplifiquemos. Eles poderiam ser recusa- tende epistemólogo, o Sr. W'allerstein, quando
dos em nome do real como inadequados ao reduz o que ele chama de nossas metáforas
que existe, ao que haveria de real, na experi- explicativas em ampla escala dizendo não passa-
ência analítica. No que concerne ao real, o rem, essencialmente,cle metáforas e simbolismos.
edifício conceitual freudiano e o que dele de- Ele considera que, como tais, elas estão além do
corre como broto, até mesmo - a dúvida che- domínio empírico e do processo científico; que
ga até aí - as próprias construções de iacan, como tais diferem dos dados recolhidos na ex-
um bom numero delas, poderiam ser invali- periência efetiva. É tainbém isso o que reconhe-
dadas quanto ao real da experiência. ceatualmente um psicanalista inglb,o Sr. Tuckett,
Que estranha categoria esse real, uma vez ao formular que as teorias do psicanalista sáo te-
que é uma categoria que ela própria se recusa. orias privadas. &to um como outro, cada um ao
Lacan não hesita em dize. pelo menos uma vez, seu modo, confessam que a teoria psicanalítica
que já seria muito dizer que há o real, porque Ihes parece mentirosa.
dizê-lo é dar sentido. Consideramos o real como A via de saída dessa aporia foi indicada há
uma categoria que se auto-invalida quando a muito tempo por iacan. Ela consiste em abando-
tomamos e que tem esse efeito de invalidaçáo nar o "sobre': que figura na tese limite: "náo há
sobre todas as construçóes conceituais. Essa verdade sobre o real", substituindo-o pelo "no"
categoria é justamente feita para recusar e mes- [dans].A hipótese que fundamenta a orientaçáo
mo para instituir uma dimensão que recusa lacaniana desde o início é de que há simbólico
tudo o que se pode falar sobre ela. no real, e que portanto é possí\$elopeiar sobre o

Opção lacaniana no 37
atual para examinar oque nos conduziu atéele, É preciso dizer que se ensina de bom grado
e em particular que foi Iacan quem deu o con- Iacan no estilo dessa polêmica. São esses mes-
ceito de estrutura em psicanálise, e, singular- mos ecos que se fazem ouvir até o 'Ato de fun-
mente, em nome do retomo a Freud. dação da Escola Freudiana de Paris" em junho
de 1964, quando Lacan convoca a um "traba-
lho que restaure a lâmina cortante da verdade
freudiana, que conduza a prática analítica ao
Do ponto em que estamos, podemos con- dever que lhe cabe e que, por uma crítica assi-
siderar do que se trata nesse retorno a Freud. dua, nela denuncie os desvios e os compromis-
Ele estava estritamente condicionado pela or- sos que amortecem o seu progresso".
todoxia então reinante na psicanálise. Já fazia Temos aqui uma espécie de duplo ato inau-
meio século que o tom era dado pela corrente gural de iacan: o ato inaugural de seu ensino
da Egopsychology, que se colocava como orto- em "Função e campo da fala e da linguagem em
doxia. Foi com relação a essa ortodoxia que psicanálise"" e a repetição desse ato no 'Ato de
Iacan empreendeu seu ensino como sendo um fundação" da Escola. Esse duplo ato inaugural
retorno a Freud. Isso consistia em convocar instalou a divisão na psicanálise, fez da psicaná-
Freud contra a ortodoxia reinante, que se fun- lise o campo de uma polêmica que não se extin-
damentava em uma leitura psicologizante da gue, e na qual essa corrente que se chama o
segunda tópica, que o próprio Freud havia subs- Campo freudiano encontrou sua mola própria.
tituído a primeira na qual havia aparelhado sua Vocês encontram o ápice dessa polêmica
descoberta. O retorno a Freud é apresentado num texto que iacan se absteve de publicar em
no ensino de iacan como um retorno às for- francês, descoberto após a sua morte, e que
mulaçoes iniciais de Freud, às suas primeiras vocês encontram nos Autres écrits, 'A psicaná-
obras: "A interpretação dos sonhos", 'X lise verdadeira, e a falsa", no qual a IPA é devi-
psicopatologia da vida cotidiana': "O chiste em damente assimilada a uma Igreja e somos con-
suas relações com o inconsciente" e além dis- vidados a esmagar a infame, numa retomada
so, como um retorno a intenção original de do anátema voltairian~'~.
Freud, aquela que havia presidido à descober- O fragor e a força dessa polêmica eclipsa-
ta de um novo modo de tratar o sintoma. ram uma outra atitude que, no entanto, se re-
O retorno a Freud era um apelo a leitura de conhece claramente em iacan, sobretudo quan-
Freud, ao pé da letra. Por esse fato, Iacan foi con- do sua polêmica recebeu, da parte da onodo-
duzido a estigmatizar como desvio, como here- xia, a sansãode uma excomunhão. Seguramen-
sia o que se apresentava como ortodoxia. O co- te, sob o golpe da excomunhão de 1963,Iacan
meço de seu ensino permanece marcado por este foi levado a repetir a reivindicação de uma or-
traço: dadas às circunstâncias em que entrou na todoxia verdadeira, que se fazia ouvir na pala-
psicanálise, ele teve que adotar a própria lingua- vrade ordem do retorno a Freud. Porém é uma
gem da ortodoxia para combatê-la, teve que se ênfase totalmente diferente que se faz ouvir
expressar em termos de desvio e de heresia quando ele escreve em 1967: propondo a sua
Ele introduziu, ou aperfeiçoou, na psicaná- Escola o procedimento do passe: Freud quis as
lise, um estilo polêmico de rara violência que Sociedades existentes tais como são.
"Lacan, J. (1998) Fun$áoecampodalala reproduzia os ecos da grande polêmica revoiu- Percebe-se,a partir disso, que Iacan sempre
edalinguagem em pricangine. In b i - cionária do início do século, que encontrara respeitara, mesmo no interior do retorno a
10s. Rio deJaneiro: Zahar.
uma tradução literária no surrealismo. A ener- Freud, uma margem na qual ele precisava que
% m , J (2WI). Lapqrhanalyre iraie
e1 Ia lausse. In Aulreséaits (p.174). Pa-
gia dessa polêmica não se extinguiu, e trouxe Freud estava disposto efetivamente a fazer algu-
ris: Seuil. (%ao de 1958). duradouramente o ensino de Iacan até nós. ma coisa frente ao que ele, aliás, estigmatizava

28 Setembro 2003 Opçáo Lacaniana no 37


como desvios. Pois bem, nessa margem que foi verdadene uarietur. Desmorona mesmo a pos-
se ampliando, iacan abriu um outro espaço para sibilidade de fazer, entre os psicanalistas, uma
a reflexão, que não é mais estmturado em ter- partilha em termos de classe: os freudianos e
mos de ortodoxia e de desvio, e que não pode os desviantes. Na perspecti17a do além do Édipo
mais se satisfazer com a polêmica e a sátira. Tra- a série prevalece sobre a classe. Trata-se entao
ta-se-Iacan o esbqou - de um questionamento de considerar bem mais os analistas um a um,
do desejo do próprio Freud, esse desejo sobre o já que cada um está sozinho, as voltas com a
qual ele indicou que estava preso nas malhas do experiéncia e com a psicanálise, que se trata
Édipo, que ele visava celebrar o reino do Nome- para cada um de reinventar.
do-Pai em um tempo que via, pelo conuáno, cum- Em seu último ensino,lacan chegou até ai.Ele
prir-se a decadência da figura paterna e a escala- surpreendeu todo um Congresso que se r&va
da irresistível da reivindicação feminina. sobre a uansmi5são fecliandw com a considera-
ção de que a psicanálise não se rransmitia, que ela
a interpretação só se transmitia desde que cada um areinventasse.
Essa proposição, queacrescenta umanuançaa toda
Ela é o temasecreto dosQunboconceito~fun- a tematica da formação,encontra seu sentido, seu
damer~&ais;'~seu tema aparente são os quatrocon- fundamento. Não se trata simplesmente de um
ceitos fundamentais de Freud. liata-se de uma es- chiste. É um chiste que se inscreve nessa segunda
péae de repetição, de c o n h a ç ã o do retomo a perspectiva, que configura o campo freudiio de
Freud. Porém, mais secretamente,detrás do tema maneiradistintadaquelaqueestam anunciadacom
apxente dos quatro conceitos, afirma-se o desíg- a mbrica do retomo a Freud.
nio de deslocar o fundamento e: em particular, de Se o movimentoatual se desenvober de modo
invalidar como fundamento o siRnificante-mestre
- conveniente - o que não é dito - talvez isso nos
do pai para substitui-lopelo objetou, esse gozo ao permita perceber que ainda não extraímos todas
qual o significante-mestre dá lugar, revelando-se as conseqüências dessa mutaç3o do discurso de
porém hpotenteparaextingui-loassimcomopara iacan - pelo menos, desse alargamento da mar-
dominá-lo. iacan passa aqui do retomo a Freud a gem - que abandona o combate entre as classes
um além do Édipo, o que precisamente quer di- opostas de psicanalista$ para descer ao nível em
zer, num certo sentido, um além de Freud. que cada um é confrontado com um real inédito
Essa mutação não deixa incólume a configu- que a experiência psicanalítica libera. A polêmica
ração do campo freudiano. Com o retomo a não é a palavra final da relaçáo que os psicanalis-
Freud como única perspectiva,
. . o campo freudi- tas uão manter entre si. O .próprio . iam deslo-
ano aparece configurado pela separação que cou-se da polêmica à interpretaçáo.
deve ser feita entre ortodoxia e desvio, instalan- A partilha dos psicanalistas em duas classes, os
do assim a relação polêmica no âmago da rela- ipeistas e os lacanianos, é um fato, e um fato que
çáo dos psicanalistas.Nesta configuração, íacan, vem dando lugara polêmica há muito tempo. Mas
seu ensino, seus alunos, toda essa parafernália para além da polêmica, há a interpretação. O fato
aparecem comoo menos-um,em relação aoqual de que existe um real em jogo na experiência ana-
os outros estão no erro e no desvio. lítica explica que ele possa dar lugar ao recaique e
Na perspectiva do além do Édipo, a confi- a defesa, que há então lugar para a interpretação.
guração do campo freudiano deve ser pensa-
da de maneira distinta. Além do Édipo, deixa- Coerções e consequZncias
mos de racionar em termos de ortodoxia e de
"Lacan.J.(1985). Osemidrio,h r n 11,
desvio. Não se trata tampouco de referir-se a É um fato de interpretação e não de polê- oqua, uincei,os,u ndamniiBrs
uma origem concebida como o critério de uma mica, aliás agora subjetivado pela própria IPA, psiwnálise. ~ i o d e ~ a o e i iZaa:har

Opção Lacaniana no 37 Setembro 2003


que essa antiga ortodoxia parou de acreditar escrevi em 1984 e que indicavam uma cena per-
nela própria e tornou-se um ecletismo, aliás cepçáo do que estava em jogo tal como aparece
um ecletismo dinâmico que começou mesmo hoje claramente. Eu tentava então, no momen-
a abordar a antiga heresia lacaniana. Na van- to em que reaparecia Ornicar?, k e r aparecer o
guarda desse dinamismo encontra-se a IPA la- que estava em jogo no Campo freudiano, e nos
tino-americana que abre ocaminho que o con- mesmos termos que fui levado a reencontrar
junto da IPA se apressa em copiar, e que con- hoje, ou seja, o problema da ortodoxiaz0.
siste em adotar Lacan como uma referência
entre outras. Isso, de qualquer modo, define Congratulações
nossa conjuntura.
Estávamos sobretudo habituados a uma re- Eu comesava definindo a IPA em termos de
cusa a iacan, e vemos delinear-se uma conjun- ortodoxia: "O que é a IPA na psicanálise?A IPA é
tura diferente constituída pelaadoçãodeiacan a ortodoxia. Isso é muito. E como não é a fwtlez
como uma referência entre outras, e que está da doutrina o que define uma ortodoxia mas sini
evidentemente ligada a noção. a suposição de o argumento de autoridade, o uso de um
que a prática se sustenta por sua própria evi- engrimanço, o embargo da prática e da interpre-
dência, e que a teoria não passa de um comen- tação -se o que ele ensina não trouxesse mais
tário metafórico do que ocorre na experiência. consequências para ostandard. a Internacional
Hoje, nessa conjuntura que se revela, toma-se logo daria a Lacan um lugar em seu Panteáo. Já
ainda mais crucial formular a obiecão . . lacania- não venios a sua sombra invocada na abenura
na. A objeção lacaniana é fundamenralrnente dos Congressos, como o Outro e a testemunha?"
que a experiência analítica é condicionada por Eu tinha nessa época uma referência precisa na
uma estrutura, e que essa estrutura implica mão, em que já se iria?nesse pequeno signo, o
coerções e conseqüências. movimento de integração,de absorção de Iacan
O que será preciso saber desenvolver é que delinear-se, anunciar-se longinquamente.
há uma junção condicionante daestrutura com Enfatizei então que a ortodoxia não se apoi-
a própria experiência analítica e que a estmtu- ava na doutrina. A ortodoxia não é uma doutri-
ra comporta tal grau de objetividade que é pos- na. Não é necessário que o que serve de dou-
sível julgar as teorias, que a teoria em pautadeve trina a uma ortodoxia seja ne varietur. Uma
ser teoria da estrutura e não metáfora à distân- ortodoxia não se sustenta nos enunciados, mas
cia, relato da experiência - com essa pequena sim numa enunciação, numa hierarquia; ela se
nuança de que há, no último ensino de Lacan, apóia na referência a uma escritura, que eu cha-
uma certa semelhança de lugar entre estrutura mava engriman~o,e ela diz menos o que é pre-
e mentira. ciso pensar do que é preciso fazer para estar
Se estamos no tempo da interpretação dos dentro das regras.
analistas mais do que naquele da polêmica en- Do outro lado eu colocava, eu imaginava a
tre eles, isso não tem um sentido único. Os alu- tentação lacaniana, aquela de uma ortodoxia
nos de Iacan não deverão ser menos interpre- pelo avesso. E enumerava os seus elementos
tados do que os outros. consrituintes: 'A referência constante tomada
de uma obra parecendo criptografada - a de
iacan -, o comentário autorizado que ela exi-
3. Uma mutago subjetiva ge, a lei que propõe que ao carisma sucede a
burocracia, e que encontraria aqui o relé de
'%Millei] -d. (1984, janeiro) Liminaire.
Orntcar?,28, 5-6.Revista do Campo
Poderia, unia vez) me parabenizar diante de instâncias legítimas (a Fundação do Campo
ireudiano. vocês fazendo referência a algumas linhas que freudiano, a Escola da Causa Freudiana), enfim

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o assento de uma filiação (a IPA não começou O socrático enfrenta o problema de que o
de modo diferente) -tudo ali levaria a contra- mestre ao qual se refere é um mestre da ironia,
ortodoxia". Enumerei ainda os elementos cons- um mestre que professou o não-saber - nada
tituintes do que podia ser a ortodoxia lacania- reter senão um certo uso de sua ignorância, o
na - os Escritos e os Seniimários. Evocava com que coloca o discípulo diante do paradoxo de
a escritura a figura do comentador autorizado, permanecer fiel sendo totalmente criador A
figura que surgiria, convocada por essa conjun- referência a Sócrates deu, em última instância,
tura. Recorria também a sociologia, à lei nascimento a diferentes escolas, opostas umas
weberiana que prevê que ao carisma de alguém as outras, em função desse paradoxo matricial.
sucede uma organização burocrática - o que O discípulo epicurista nada pode acrescentar
estava sendo verificado com a IPA. Chegava nein retirar da palavra do mestre que lhe ensi-
mesmo a acrescentar o fator de legitimidade nou os conteúdos de saber. Ele está portanto
pela família. Em todo caso, eu não atribuía a destinado à repetição desse ensino. O aristoté-
pane bonita aos lacanianos ao hipotetizar o que lico é destinado a buscar ao infinito o que o
poderia advir de ortodoxia a descendência de mestre poderia ter querido dizer.
Iacan. O que me impelia a convidar a não se Temos aqui uma trindade bastante sugesti-
engajar na via do pai para escolher a do pior. va; esses três tipos, e a dificuldade que cada
Tentava mostrar, rapidamente, num terceiro um implica, convergem no discípulo lacaniano
parágrafo, que a psicanálise não se presta, como que retira algo de cada um deles.
tal! a ortodoxia. Preferir o pior ao pai - o que Eu, da minha pane, teria sobretudo a ten-
comporta o principio de autorizar-se de si mes- dência - a história, aliás, parece mostrá-lo -de
mo - é recusar a investidura superior. Em se- acentuar o socratismo de iacan. Por certo um
gundo lugar, nada pode apaziguar a distância grande saber foi efetivamente acumulado, que
entre o agente e o ato. Eu lembrava também faria pensar eni Aristóteles, porém tendo coiiio
que a psicanálise: segundo o último dito de base uma ironia, um questionamento, uma ig-
Lacan, tinha que ser reinventada por cada um: norância a trabalho.
convocando, para terminar, ao deslocamento O que estava em jogo em uma Escola como
do discurso. É isso aliás ao que assistimos com a da Causa Freudiana era Fazer de modo a
Lacan, uma dinâmica própria do significante viabilizar o discípulo lacaniano. Talvez hoje se
que escapa a qualquer supervisão autorizada. possa dizer que isso não foi um desejo incon-
Porém, isso cinge o que resta a interpretar nos seqüente e que - é o que, da minha parte, me
alunos de Lacan, e que pode ser classificado no pareceu ocorrer nas últimas Jorriadas desta Es-
capítulo dos tormentos dos discípulos. colaZ'-algo havia sido conseguido no sentido
de desfazer os impasses dos discípulos.
D~SC@M/O
lacaniano Isso se deu inicialmente por um retorno à
clínica, a experiência analítica, e supôs também
Já o vimos na Antiguidade, que nos propicia um comentário de Lacan num estilo antiono-
uma certa amostragem desses tormentos dos doxo, um comentário irônico de Lacan e que
discípulos, na qual se trata de saber o que fazer consistia, ao modo socrático, em colocar iacan
da fidelidade, o que fazer da ligação com o mes- em contradição com ele mesmo. É o que cha-
tre. Um filósofo, Francis \Volff - que aliás, fre- mei, num momento desse curso, "iacan con-
qüentou o ensino de iacan e os lacanianos, ins- tra iacan", o que significa aplicar ao próprio
pirado certamente nisso - foi levado a distinguir ensino d e iacan a aura socrática.
?']ornadar qiie se beron~oiarnsob D título
três grandes tipos de discipulos: o socrático, o O dispositi\:o de transmissão criado por iacan ,,Tupeur saioircommentonpvhandy-
epicurista e o aristotélico. relativo à forma@o do analista é um esforço na x à ~ . É c o ~ e diacause
e hudienne"

Opcão lacaniana no 37 Setembro 2003


direção da antiortdoxia. Inicialmente,através da se enconm singularmente disjunto de qualquer
sua prática da ironia. Podemos lembrar suas pala- exame de saber adquirido,de qualquer exame de
~ ~

vras, que vocés encontram no "Discurso de saber nas formas universitárias ou nas formas de
Roma,"" que o próprio iacan colocava sob a m- supenisáo. O único saber nele examinadoé aque-
brica da ironia. Assim, ele qualificava o estilo que le que pode ser apreendido e relatado sobre uma
havia adotado de "estilo irônico, de questiona- mutação subjetiva.
mento dos fundamentos dessa disciplina". Ao Pode-se considerar a mutação subjetiva a
mesmo tempo, preconizando um antifonnalismo partir de dois pólos, entre a universidade e a
institucional - e Mmos desde então as críticas iniciação. Amutação subjetiva é o que a univer-
internas a própria IPA se multiplicarem -, ele de- sidade evita levar em conta. Na verdade, ela a
fine o formahmo institucional de forma precisa: recupera por outravia, pois ali se trata também
consiste em daencorajar a iniciativa, em penali- de saber se foi adquirido o hábito adequado, o
zar o risco, em fazer reinar a opinião dos doutos gênero, o estilo da instituição. Há certamente
visando obter uma prudência que arruína a au- sobre isso uma ambigüidade, porém ela proce-
tenticidade. de por meio de provas formais nas quais se tra-
Poder-se-ia concluir disso que Iiá, da pane ta de resolver, de expor ou de satisfazer a re-
de iacan, um convite para que cada um faça a quisitos formalizados. No outro pólo está a ini-
sua teoria. Temos a impressão de que se está ciação' na qual o saber que é transmitido não
tentando agora este tipo de solução com as te- pode ser dito, na qual ele é basicamente um
orias particulares ou a teoria das teorias priva- saber escondido.
das. Por isso iacan podia, de inicio, precisar que O passe visa, pelo contrário, inscrever a
não se deveria esperar dele uma valorização das mutação subjetiva num aparelho de transmis-
divergências como, tais. Ele realiza sobretudo são, cujo pivô é um testemunho que relata uma
uma manobra de tabula rasa do saber em nome experiência que foi aceita por uma comunida-
da autenticidade e da verdade. Assim, podemos de. Em linguagem pós-moderna, trata-se, no
escutar o que ele formula nos Escritos em "Va- passe, de produzir um grande relato de sua ex-
riantes da cura-padrão", que parece comportar periência, uma hystória. O que supõe a manu-
uma invalidação do saber como tal na forma- tenção de uma comunidade capaz de apreciar
ção analítica, acentuando portanto o aspecto o valor desse testemunho.
socrático da formaqáo: "Mesmo que um saber A oposição entre ipeísta e lacaniano é, a esse
desse tipo resuma os dados da experiência ana- respeito, sensível. De modo geral, o fim de aná-
lítica, seja qual for a dose de saber assim trans- lise não tem o mesmo valor crucial para o ipeísta
mitida, ela não tem para o analista nenhum va- e para o lacaniano. Para o ipeísta, não é a muta-
lor forma~ivo"~~. Temos aqui uma formulação @o subjetiva que está no primeiro plano da for-
de ordem socrática, e que convida a uma for- m a ç a analítica, mas sim o saber transmitido, o
mação que váalém da transmissão de saber, que exame supe~sionadodesse saber, que perma-
visa uma formação que comporte uma muta- nece, para o lacaniano, uma pedra angular.
ção subjetiva. A diferença essencial é que, para iacan, há
ali um real em jogo. Não apenas na experiência
Oscilação analítica: mas também na formação do analis-
ta. Essa posição deve ser oposta, evidentemen-
É nesta linha que Lacan proporá o passe como te, ao futuro eclético da ortodoxia, no qual, de
"Lacan, J. (2701). Dixours de Rome. I n
Aulresécrils. faris: Seuil. exame de capacidade, o paise apenas levando em certa maneira? não liá real, tudo é semblante.
conta e tentando cingir a mutação subjetiva ope- Eis porque também existe certamente uma cli-
"Lacan. J. (1996). Mariantes de Ia cure-
ype. inÉmlr (pp. 358~359).Pais:Seuii. rada. O exame de capacidade implícito no passe nica vista pelos lacanianos como uma clínica

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imprecisa. Na perspectiva lacaniana, a clínica outro nivel em que ele exige o saber. Ele não
ipeísta é imprecisa a ponto de não conseguir exige o saber por se ter praticado muito na
de fato distinguir o analista do analisando, ou experiência analítica, uma vez que, em sua
seja, qualificando a ambos de sujeitos que as- épura, o passe devia confirmar como analista
sociam, por certo de lugares diferentes. antes de tudo um analisando, e não um prati-
Isso não impede que a doutrina da forma- cante. A exigência de muito saber não recai
ção em Lacan seja ela própria perconida por então sobre a quantidade de experiência, nio
uma tensão, cujos pólos são o real e a verdade. é uma exigência que levaria ao analista tarim-
Nota-se a esse respeito uma oscilação em sua bado. A exigência de saber se situa muito pre-
doutrina da formação. cisamente no nível da estrutura da experiên-
Temos, primeiramente, uma abertura ao par- cia. Em outras palavras, no nível dos fenôme-
ticular, a recomendacão enfatizada e extraída de nos, uma anulação para estar disponível ao real
Freud, de jamais prejulgar nada na experiência, como impossível de prever; a exigência de sa-
de esforçar-se para nada saber previamente so- ber não recai na quantidade de experiências
bre aquilo que irá ocorre. portanto de fazer tábu- mas sim na estrutura da experiência.
Ia rasa do saber adquirido. Numerosas passagens Tudo se assenta na noção lacaniana de que
de iacan podem ser invocadas,nas quais ele dá, há simbólico no real, e de que a formação anali-
como chave da formação analítica, "saber nada ticadeve recair eletivamentenos saberes que são
saber". A ponto de ele formular, na p. 360 dos capazes de cingir o simbólico no real. O saber
Escritos, para qualificar essa abertura ao parti- que Lacan recusa de bom grado é o que concer-
cular: '1 paixão da ignorância dá seu sentido a ne a experiência anterior, ao funcionamento
toda formação analitica". empírico do tratamento analítico. Ele o recusa,
Em segundo lugar, há um número impor- por exeniplo, em "Variantes do tratamento-pa-
tante de passagens que, pelo contrário, menci- drão": "Os argumentos se modificarão ao longo
onam na formação do analista uma exigência do tempo, tudo isso é apenas imaginário".
imensa e quase desmedida de saber, relaciona- Ele opõe de maneira estrita, quanto ao saber
da ao real da experiência. Como se situar em em função na formaçio analítica, o que é da or-
relação ao que é uma oscilação constante do dem do depósito e o que é da ordem da mola.
discurso de Lacan sobre a formação, e portan- Há o que se deposita da experiência por força
to também sobre a produção de discipulos? É de. Esse depósito das formas imaginárias de cap-
preciso saber? É preciso não saber? tura do desejodeve ser distinguido do que cons-
titui a mola da ação analítica propriamente dita,
Depósito e mola na qual essa mola deve ser buscada nas leis da
linguagem, nas leis da fala. No labirinto dessa
Ordenemos tal perspectiva de maneira sim- doutrina da formação é preciso ordenar e dis-
ples, estratificando essas teses de Lacan. A par- tinguir o que é o saber depositado e o saber da
t u da constatação de uma oscilação é preciso estrutura como eficaz.
passar a construir uma estratificação. Nesse sentido, iacan pode dizer que a pai-
Não há dúvida de que Lacan recomenda xão da ignorância estnitura a situação analíti-
uma anulação de saber no nível dos fenôme- ca. Essa fórmula dos Escrilo?' já anuncia a for-
nos da experiência, uma anulação de saber mulação do sujeito suposto saber A paixão da
como condição para que possa surgir a sur- ignorância, não mais do que o desejo do ana-
presa ou o aleatório, ou seja, para dar lugar ao lista, não é, para Iacan, uma disposição psico-
real como impossível de prever, como impos-
sível de saber por antecipação. Há, porém, um
lógica. A paixão da ignorância se situa aqui no
próprio nível da estnitura.
,, (1996), de cure
vpe. In b i / s (p. 360). Pdis:Spuil

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