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HALLINA BELTRÃO
E M A IS
Flavio Pessoa, designer e ilustrador, atualmente na revista Superinteressante. Gilvan Lemos, escritor falecido em agosto, reconhecido como um dos maiores
romancistas pernambucanos. Priscilla Campos, jornalista. Escreve para fugaparaoeste.com.br. Ronaldo Bressane, escritor e jornalista. Publicou Mnemomáquina
(Demônio Negro) e Sandiliche (Cosac Naify), entre outros. Sidney Rocha, autor de Fernanflor.
No que o menino se transforma quando nesse trecho um tom irônico ao se debru- SUPERINTENDENTE DE CRIAÇÃO
ele já não mais é menino? A metamorfose çar sobre seus próprios “azares”. O texto
GOVERNO DO ESTADO Luiz Arrais
já está em processo, não adianta mais vol- completo sairá numa biografia do escritor
DE PERNAMBUCO
EDIÇÃO
tar, ou melhor, só adianta voltar. Em um que está sendo preparada pela Cepe. Governador Schneider Carpeggiani e Carol Almeida
conto inédito de Luís Henrique Pellanda, Temos ainda um especial escrito por Pris- Paulo Henrique Saraiva Câmara
REDAÇÃO
enviado especialmente para o Pernam- cilla Campos sobre o boom da publicação Dudley Barbosa (revisão), Marco Polo, Mariza Pontes
buco, se revive o processo onde mutações de contemporâneos autores holandeses Vice-governador
e Raimundo Carrero (colunistas)
e memórias se fundem, em um tributo ao no Brasil, os pontos em comum entre eles, Raul Henry
centenário de uma das obras seminais a navegabilidade de suas escritas. Desta- ARTE
Secretário da Casa Civil Janio Santos, Karina Freitas e Manuela dos Santos
da literatura moderna, a própria A me- que ainda para uma revisão de Silviano (diagramação e ilustração)
tamorfose, de Franz Kafka. Pellanda, que Santiago sobre Stella Manhattan, o livro que Antonio Carlos Figueira Agelson Soares e Pedro Ferraz (tratamento de imagem)
confessa não ter tido muito contato com há 30 anos criava um diálogo entre dois
literatura infantojuvenil quando criança, gêneros de um só corpo, numa identida- COMPANHIA EDITORA PRODUÇÃO GRÁFICA
DE PERNAMBUCO – CEPE Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves
parece estar inspirado pela presença da de mais contemporânea do que nunca. e Sóstenes Fernandes
filha – e pelas leituras que faz ao lado dela Outra personagem que parecia perdida Presidente
- para falar de como as crianças são as no tempo e é posta de volta ao debate se Ricardo Leitão MARKETING E PUBLICIDADE
fundadoras das primeiras transfigurações chama Jean Louise, protagonista de O sol Diretor de Produção e Edição Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão
que sofremos em vida. Se articulando é para todos que ressurge com a publicação Ricardo Melo COMERCIAL E CIRCULAÇÃO
também com a metáfora maior da obra de Vá, coloque um vigia, o livro “perdido” Diretor Administrativo e Financeiro Gilberto Silva
kafkiana, Raimundo Carrero esmiúça a de Harper Lee. Há quem se espante com Bráulio Meneses
ambiência psicológica e os cortes nar- a revelação de que um dos heróis mais
rativos da desventura de Gregor Samsa. queridos da América tenha sido, desde CONSELHO EDITORIAL
A edição traz ainda um inédito texto au- sempre, um racista. Mas no texto de Carol Everardo Norões (presidente) PERNAMBUCO é uma publicação da
tobiográfico de Gilvan Lemos, um dos Almeida o que se coloca é que o buraco é Lourival Holanda Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
maiores romancistas pernambucanos, sempre mais embaixo. Nelly Medeiros de Carvalho CEP: 50100-140
falecido recentemente. Gilvan, que costu- Pedro Américo de Farias Contatos com a Redação
mava falar pouco sobre si próprio, revela Uma boa leitura e até o mês de outubro. Tarcísio Pereira 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
BASTIDORES
As criaturas
JANIO SANTOS
nunca vêm
a passeio
Esmiuçando as virtudes
e defeitos do personagem
central de seu novo
romance, autor se pergunta:
de quem se trata esse outro
que, no fundo, somos?
“Jeroni nos engole. Jeroni me engoliu. Estou dentro dele,
Sidney Rocha
agora.”, disse Lourenço Mutarelli diante da Ilha
Redonda, em Jeroni.
Quem é Jeroni Fernanflor? Leitor e autor de romances não dão nenhum
Alguém que pode merecer mais do que ódio, passo sem assinar esse pacto de devoração e de-
amor e compaixão. votação um pelo outro.
Está vivo e caminha desobrigado de verdades. Por isso, criaturas de romance nunca vêm a passeio.
Mas de qual verdade cuidaria, num mundo da Tranquilo, ocioso e altivo, Jeroni caminha. Avança
mais-valia, do mais-que-verdade, do sonho da pelo magasin, senhor de si e de suas emoções, sem que
hipérbole devastadora por todos os lados? nada, nem o tempo, possa feri-lo. Ele imagina e só
Para o escritor, a verdade só é possível no largo depois o mundo passa a existir. O mundo da repre-
universo da linguagem. Ela iguala tudo: indivíduo e sentação, desejo e beleza. E de nenhum escrúpulo.
multidão. E Jeroni está preso a esse beiral: o pesa- Ele é o que faz?
delo coletivo de solidão, o sonho do individualismo Observa. Tem a imaginação alterada pela obser-
inalcançável. vação da realidade. E a observação alterada pela
Quem é? imaginação. Nisso se iguala a um escritor.
Fernanflor é o retratista, retrato e retratado em Mas se o perguntássemos, diria não acreditar na
Fernanflor, meu romance. literatura, assim como não crê nas luzes nem nas
Ele não acredita na salvação se não chegamos perspectivas. Acredita redondamente na beleza e
sozinhos lá e, nisso, inaugura a desumanidade mais em nenhuma outra mágica. Todas as outras coisas
humana, porque reconhece a tragédia de sempre no planeta são manchas de ideias.
precisarmos do Outro para nos contemplar. O Outro Daria sua vida e colocaria sua fortuna na roleta
nos preenche. O Eu é um truque ao espelho. para sentir outra vez o perfume da inocência. Mas a
Fernanflor talvez considere tolice amar qualquer vida e o romance são o reino da experiência, onde
sonho de liberdade, essa Ilha. nada é fixo e cada um está naturalmente no seu lugar.
Mas isso são ideias altas ou demasiadas ou em vão. Esse concurso de forças pode engendrar as reações
Personagens não são feitos de ideias, mas de mais imprevisíveis e aterradoras. Sem saber porque,
coração e experiência. Parte da experiência pode continuamos pactuando com essas criaturas. E,
até dá-la o escritor, no entanto o coração e sangue quando falamos em pactos, se lemos romances o
para bombear dá-lo certa estirpe de demônio inato, suficiente, presumimos de quem afinal é a vitória.
o tipo com o qual ou se nasce com ele ou não se é Mas sempre acreditamos na virada, a cada página.
escritor, como disse Faulkner. Por isso ler é uma das atividades mais mal pagas
É no coração humano do personagem que pulsa e arriscadas.
a verdade.
E é a desumanidade, e não o espírito elevado, a ***
única ferramenta de Jeroni para retratar os seres hu-
manos em torno de sua gana e ganância, maravilha- Quanto a mim, contemplo daqui o sol viole-
dos pela morte, pela vaidade e pelo o dinheiro, onde ta da ilha sem-fim e sem-começo, das verdades
estão iludidos pela descoberta do gene da felicidade. excessivas. Leio as provas de revisão enviadas por
Jeroni não estranha nenhuma dessas coisas humanas, Samuel Leon. Tanto tempo depois de ter escrito
sofrimentos — paixões; estão doentes de feiuras, têm este romance, sinto Jeroni ainda me empurrando
a vida impregnada por ardis de todo azar. Porém, fortemente livro adentro. Ele e suas contradições.
não é juiz de nada, embora pudesse ter sido tudo o Sua alma, boa e má, empurra, empurra com a
quanto seu desejo fundasse. Assim como é, acredita certeza de fazer pulsar para sempre o coração do
elevar ao máximo sua experiência humana na Terra. seu tempo: o agora.
Pouco importa se o mundo é justo ou injusto. Isso me faz amá-lo, odiá-lo, e compreender que
Ele pinta. o Eu é só um truque, mas certamente o truque
Quem? mais perigoso. Montado nesse cavalo de eletricidade,
A tristeza ou a alegria são para ele expressões vejo progredir a convicção de que foi para isso que
da beleza vital. A pintura é sua sublime pilhagem, cheguei até aqui. Depois de muitos anos, choro,
assim como o sexo é para a psicanálise. Aliás, talvez porque descubro ter passado estes cinquenta anos
tenha sido para conter tanta interpretose que Jeroni escrevendo esse romance. Isto me conclui. Me cerca.
Fernanflor recusou-se a pintar o retrato de Sigmund Me enterra. Fernanflor finda por me escrever.
Freud. “Não me interessei pela encomenda. Repassei.”
Ele atira. Altera a emoção do bando. Supera todos
no apogeu e cada um na derrota. Ou é como diz O LIVRO
Gonçalo M. Tavares olhando nos olhos de Jeroni: Fernanflor
“Quanta arrogância necessitas para sentir que o prédio mais Editora Iluminuras
alto é mais baixo que tu!”. “Também tu não escaparás! O ponto Páginas 112
final é, por vezes, um ponto, mas ponto-bala em plena testa.”.
Esta constatação não serve também para cada
um de nós o tempo inteiro?
Quem não é Jeroni Fernanflor, afinal?
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
RESENHA
Quando o erro
MANUELA DOS SANTOS
Esta não é uma história sobre heróis, anti-heróis e, A autora do romance em questão, Harper Lee, o
menos ainda, vilões. É sobre as pessoas que vivem escreveu antes do primeiro e único livro que havia
na linha de tiro entre esses personagens cristalizados publicado até agora: O sol é para todos, clássico absoluto
em nossas narrativas cotidianas e sobre o espaço de da literatura norte-americana, lido por várias gera-
concessão entre nossa formação moral e o funciona- ções de jovens e adultos brancos que viram na figura
mento social. Jean Louise, a personagem central de do advogado Atticus Finch uma espécie de remição
que se vai falar aqui, é alvejada de todos os lados. Sua dos pecados, uma mea culpa por todo o sangue jorrado
consciência e a razão ética em um front, o sentido de em plantações de algodão. O homem branco que
pertencimento à família, a um espaço, em outro. Jean vai dar o seu melhor para, num julgamento fadado
Louise é uma personagem de mais de 50 anos atrás, ao fracasso, salvar um homem negro, já que este
quando não havia redes sociais ou comentaristas de sozinho nunca poderia ser o mestre de sua própria
portais de notícia. E, no entanto, a distância entre o redenção. Quando o romance chegou às livrarias em
seu Alabama-EUA no pós Segunda Guerra e a fila na 1960, já aconteciam nos Estados Unidos as primeiras
padaria de qualquer bairro classe média num Brasil reuniões do Movimento dos Direitos Civis. Dois anos
de ontem, hoje e amanhã se mede com uma trena depois, quando o livro foi adaptado para o cinema,
de menos de três metros. Jean Louise está em todas com aquela câmera levemente inclinada de baixo
as pessoas desconfortáveis no sofá, com as opiniões para cima, jogando um spray de grandiosidade no
fundadas em crenças cegas e segregacionistas. Ela está Atticus Finch de Gregory Peck, veio a imagem que
no movimento que precede cada amizade desfeita no faltava para condensar um personagem didático que
Facebook e, particularmente, está no momento em ensinasse à população branca o que estava por vir.
que se decide relevar o outro em nome de uma ceia O sucesso do livro e do filme jogaram sobre aquela
de Natal sem grandes polêmicas. jovem autora holofotes tão pesados que ela decidiu
Escrito em meados dos anos 50, Vá, coloque um vigia não mais publicar nada em vida. O sol é para todos seria
(Go set a watchmnan no original), o livro que tem gran- sua única obra.
des chances de fechar o ano com o primeiro lugar Mais de 50 anos depois de todos esses eventos,
entre os títulos de ficção mais vendidos nos Estados em um movimento muito suspeito, a advogada
Unidos, é, dentro e fora de suas páginas, um debate da escritora afirma ter “descoberto” o manuscrito
atual e necessário. Mas o caminho que as críticas e conseguido autorização por escrito da própria
sobre esse lançamento estão tomando segue a direção Harper Lee, que muitos afirmam estar senil, para
errada. Muito se fala sobre a decepção de ver agora publicar este que teria sido um livro escrito antes
exposto como racista um personagem por tantos do seu one and only best-seller. Numa história que,
anos emoldurado entre sólidas madeiras da retidão narrativamente, se encaixa como uma continuação
ética, da Justiça e do discurso racional pela igualda- temporal dos acontecimentos de O sol é para todos, Vá,
de, quando o mais tocante de tudo não é a queda da coloque um vigia só não havia sido publicado porque a
máscara, e sim ter de admitir que fomos nós quem então editora de Lee, Tay Hohoff, teria aconselhado
modelamos essa máscara no começo de tudo, como a escritora a lançar primeiro o manuscrito que partia
se instintivamente estivéssemos negando que, por do ponto de vista de uma Jean “Scout” Louise ainda
trás dela, esteja vivo algum reflexo bisonho nosso e criança. Sabiamente, a senhora Hohoff viu naquela
a inabilidade de lidar com esse espelho. primeira pessoa pueril, encantada com a aparente
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
ENTREVISTA
Ana Martins Marques
Para escalar e
cair em versos
montanhosos
Em seu terceiro livro, a poeta belorizontina
cartografa desejos e explora o modo como os afetos
formam e deformam nossa relação com os lugares
RODRIGO VALENTE/DIVULGAÇÃO
Este é um mundo kafkiano. A frase, de tão repetida, resto do corpo, tremulavam desamparadas diante
elogiada e ressaltada em todos os lugares, tornou- dos seus olhos.”
-se medíocre. A culpa, óbvio, não é de Kafka, mas Narrativa em falsa terceira pessoa – quem viu?
a sua influência é imperativa. Não se pode negar E o que viu? Gregor Samsa, que passa a narrar di-
a sua força e a sua precisão a partir daquele início zendo o que viu, mas o narrador dá-lhe uma ter-
exemplar de A metamorfose, um achado literário ceira pessoa que, no entanto, é falsa . Estas são as
mais do que uma expressão filosófica. Sim, porque técnicas narrativas que enriquem a obra de ficção
a novela é absolutamente literária, criada com com artesanato exemplar.
base no ponto de vista filosófico do autor, atra- Grito primal interno – “O que aconteceu comi-
vés do narrador, porque assim são os elementos go? – pensou”. Gregor pensa e grita porque viu,
essenciais da narrativa, conforme expressão de assombrado.
Graciliano Ramos, um dos escritores mais técnicos Outra frase incisiva do narrador para que o leitor,
do Brasil. Aí se destaca, sem dúvida, a diferença inteiramente seduzido, entre no plano do real,
fundamental entre a ficção, produzida como obra mostrando dois planos bem definidos – o fantástico
de arte, portanto compromissada com a estética em todo primeiro parágrafo e concreto ou real em
e a invenção, e o texto ensaístico ou jornalístico, todo segundo parágrafo.
que visa, sobretudo,a precisão. No ensaio ou no É uma riqueza muito grande de técnicas e de
jornalismo, o narrador poderia escrever uma frase movimentos presente no livro, de forma que o
– ou um jogo de frases – correta, bela, incisiva. Na leitor não se sente enganado, mas permanece todo
ficção, os escritores têm a liberdade de investir em o tempo seduzido. Podemos dizer então que a nar-
metáforas, símbolos e imagens, de forma a criar rativa começa na terceira pessoa, passa para a falsa
Raimundo
com visibilidade e força, ainda que abra caminho terceira pessoa porque é o personagem que , indire-
para interpretações. tamente, narra o que vê. Vejam que predomina no
CARRERO
Começar uma história é sempre um problema. narrador o verbo “ver’. Isto é, depois de anunciar,
Para a maioria, a primeira frase é o segredo; para indiretamente, que Gregor Samsa acordou trans-
outros, é preciso encontrar o ritmo – denso ou leve formado num inseto, diz que ele levanta a cabeça
– e o clima narrativo. O exemplo mais eloquente é, e vê o corpo novo, portanto a narrativa é em falsa
sem dúvida, o começo de A metamorfose de Kafka, que terceira pessoa porque se trata de Gregor Samsa
coloca o leitor imediatamente dentro da história. narrando com os olhos e, ao se ver monstruoso,
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de pergunta gritando – “O que aconteceu comigo?”
sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama Didaticamente:
metamorfoseado num inseto monstruoso”, pro- “O que aconteceu comigo?- pensou.”
clama o narrador, impiedoso e franco, metafórico, Observem bem, no princípio, o narrador apre-
numa imagem dolorosa, cuja credibilidade está senta o personagem – narrativa em terceira pessoa
ligada ao mundo interno da ficção e não à realidade – e coloca nele o peso do olhar– viu –, que dá maior
A Metamorfose:
concreta. O ensaísta diria: “Quando certa manhã credibilidade ao conflito. A narrativa deixa de ser
Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, indireta – na terceira pessoa –, para assumir a falsa
sentia-se maltratado, humilhado e ofendido”. Sem terceira pessoa, fornecendo os elementos decisivos
dúvida um belo começo, bem escrito e simples, com incrível credibilidade. Numa única frase, o
mas não é literatura. A literatura reclama invenção autor faz com que a narrativa deixe de ser indireta
a história de
e beleza, metáfora e imagens, já disse. E, através e passe a ser direta e, mais uma vez, verdadeira,
dela, provoca e inquieta o leitor. sob a voz do olhar narrativo.
E ainda mais, a novela não tem um único narra- Logo em seguida Kafka dá um corte no clima
dor, como parece ter, mas um narrador em terceira psicológico, numa frase ainda mais curta em ter-
uma metáfora
pessoa, outro em primeira pessoa – o próprio Gre- ceira pessoa, puxando o leitor para o real.
gor Samsa – e outros tantos narradores dissimula- Rápido e ligeiro, definitivo:
dos, como se verá daqui pra frente. “Não era um sonho”.E em seguida mostra um
Mais claro ainda: cenário natural – que chama o olhar do leitor – sem
Terceira pessoa: “Quando certa manhã Gregor renunciar, contudo, à metáfora e ao olhar de Samsa,
Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou- o que se reforça agora no segundo parágrafo: “Não
-se em sua cama metamorfoseado num inseto era um sonho. Seu quarto, um autêntico quar-
De como Kafka armou a monstruoso”.
Ainda terceira pessoa – “estava deitado sobre
to humano, só que um pouco pequeno demais,
permanecia calmo entre as quatro paredes bem
AVENTURA
Marco Escritores brasileiros de romances de aventura
Polo na linha do fantástico conquistam milhões de leitores
Você sabe quem é André Vianco sabia também que outro gigante
(foto), Raphael Draccon e das vendagens, Paulo Coelho,
Eduardo Spohr? São escritores se recusou a participar da
brasileiros que já venderam comitiva brasileira na Feira de
milhões de livros. E a lista está Frankfurt porque considerava
crescendo. Carolina Munhóz, que os autores elitistas indicados
Thalita Rebouças, Cirilo S. a representar o Brasil excluíam
Lemos, Eric Novello, Fábio M. aqueles três primeiros nomes
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
MANUELA DOS SANTOS
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe, exceto
aqueles que a Diretoria considera projetos da própria
Editora, são analisados pelo Conselho Editorial, que
delibera a partir dos seguintes critérios:
Livro infantil tematiza a Em nova produção, Frei Beto questiona a humanidade de Companhia Editora de Pernambuco
questão das diferenças Deus, a fim de aproximá-lo mais dos homens comuns Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Manuel era um menino como Jornalista, antropólogo, filósofo, de que Deus, ao se fazer CEP 50100-140
os outros até os sete anos. Mas teólogo, frade dominicano e humano, se tornou igual a nós
Recife - Pernambuco
seus pais eram gigantes e, de escritor, o mineiro Frei Beto, em tudo (exceto no egoísmo) e
repente, ele começa a crescer com 60 livros publicados, contextualizando Jesus em seu
até não caber mais na sala de traduzidos em 25 idiomas e tempo e no nosso, Frei Beto faz
aula. Ele tinha medo de ser duas vezes ganhador do Jabuti, questionamentos instigantes,
rejeitado pelos colegas mas, além do prêmio da Associação como “Jesus era um cínico?”
ao contrário, todos ficaram do Paulista de Críticos de Arte e ou “Jesus, divino ou maluco?”,
seu lado. Essa é a estória do do prêmio Alba de Literatura, mostrando uma proveitosa
livro infantil Gigante pouco a pouco lança agora, pelo selo Fontanar, exemplaridade desse sujeito
(Editora Biruta), do espanhol da Editora Schwarcz S. A., Um único e oferecendo critérios
Pablo Albo, ilustrado por Aitana Deus muito humano: um novo olhar éticos para o comportamento
Carrasco, também espanhola. sobre Jesus. Partindo do princípio diante das questões do dia a dia.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
CAPA
Vira gente
Em forma de fábula, escritor
presta homenagem aos 100
anos de A metamorfose
Luís Henrique Pellanda
Quando menino, nunca li um livro “infantil”. Só fui ler com minha filha
mais velha, faz pouco tempo. Já Kafka, li no começo da adolescência, bem
antes de pensar em Lewis Carroll, L. Frank Baum, James M. Barrie, Carlo
Collodi. Lembro que li A metamorfose achando uma graça triste naquilo tudo,
e pensando que seria impossível, mais cedo ou mais tarde, eu próprio
não me tornar um outro, bom ou mau, não me perguntem como nem por
quê. O clichê nos ensina que viver é mudar, sabemos porque já fomos
crianças, e mesmo o tempo só se percebe pelas transformações com
que nos constrange. Só que há transformações boas e más, voluntárias
e involuntárias. Na literatura também é assim. Um escritor se transforma
ao narrar sua história, um leitor se transforma ao ler um livro que o
comova. Entre eles, se encasulam os personagens. Alice, Dorothy, Wendy
e Pinóquio se transformam na estrada, longe de suas casas. Gregor Samsa
se transforma em casa, perto demais de sua família. Metamorfoses
boas e más. Escrevi Vira gente, um conto de transfiguração para crianças,
pensando neste animal que somos: uma lagarta que quer virar qualquer
coisa, menos a borboleta.
1. 5.
Era um menino que se achava mágico. Não porque Quando a noite chegou, os passarinhos foram
fosse bobo ou convencido, mas porque conseguia embora, pois eram como você e eu, que não somos
se transformar no que quisesse. Bicho, pedra, mágicos e precisamos de descanso. Voaram todos,
planta, tudo. Se você conseguisse, sei que também de barriga cheia, o sono chegando gostoso, de leve.
se acharia mágico. E quem é que ia te chamar de E aquela grande árvore, enfim quieta, chateada de
bobo? tanto abrigar e oferecer, quis voltar a ser menino.
Até mesmo pra poder comer algumas frutas.
E foi o que aconteceu, o menino voltou a ser menino.
2. Comeu as frutas e adormeceu como vivia: satisfeito.
Um dia, o menino que se achava mágico acordou e
quis virar uma árvore. Foi rápido, nem doeu nada.
Sua mãe não estava olhando, ele deu um pulo ali no 6.
jardim e virou árvore. Criou raízes, penetrou a terra, No outro dia, o menino acordou e decidiu virar
atropelou minhocas, desceu bem fundo. Também água. Água doce e potável, não salgada. Então
cresceu rápido e subiu muito, furou uma nuvem, procurou um lugar bem longe dali, que estivesse
se molhou de garoa, deu até medo de ver a altura. precisando da sua mágica. Encontrou um leito
Mas a verdade é que o menino virou mesmo uma seco, uma imensa rachadura no chão, e se atirou
árvore. Grande, bonita e mágica. Que primeiro se dentro dela, nem pensou no risco que corria. Foi
encheu de flores e, depois, de frutos. lindo de ver, ele se espalhou por tudo, preencheu
todos os cantos, e saiu chispando pro mar, levando
tudo o que encontrava pela frente. Virou um rio
3. largo e forte, e todos iam até ele, beber e admirar
Na árvore tinha rosas, cravos, tulipas, margaridas, a sua passagem.
azaleias, orquídeas, violetas, lírios, bromélias.
Tudo misturado, uma bagunça, feito o quarto do
menino. E as flores eram vermelhas, amarelas, 7.
azuis, roxas, brancas. Porque o menino, arborizado Dentro do menino nadavam peixes e outras
ou não, queria tudo colorido. Isso sem falar nas criaturas esguias, pirarucus e piranhas, lambaris
frutas, de todos os tipos. Maçãs, bananas, amoras, e acarás, carpas e bagres, rãs e sucuris, botos e iaras.
cerejas, maracujás, pitangas, jabuticabas, mamões, Era tanto movimento que ele até sentia cócegas, se
figos, araçás. encrespava em corredeiras, selvagem e cintilante.
É, o menino dava de tudo, ele não era bobo, não. Às margens do menino pescavam os homens e
os jacarés, estátuas ao sol, e também cresciam as
matas e as roças, e ninguém conseguia barrá-lo,
4. e não havia muro que o segurasse, nem barco que
Tanta fruta boa, claro, atraiu muito passarinho. soubesse navegá-lo.
Eles vieram e pousaram nos galhos pesados do É, aquele rio não era fraco, não, aquele rio era um
menino, e fizeram a festa entre as folhas e os verdes mistério, o enigma do seu próprio curso.
que ele tinha inventado, e eram todos os pássaros
possíveis. Comiam e cantavam sem qualquer
preocupação, finalmente destemidos. Sabiás e 8.
sanhaços, corruíras e bem-te-vis, periquitos e Só que ainda era um rio inexperiente. E por isso,
canários, curiós e suiriris. Todos os passarinhos numa curva perigosa, sem o mínimo aviso, naquela
estavam lá, e até mais alguns outros, nem tão sua correria pro mar, o menino encontrou um
possíveis assim, mas que o menino imaginou abismo.
existirem também. Normal, você diz, quem é que nunca encontrou um?
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
HALLINA BELTRÃO
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
CAPA
e quis ser um
água sem cor e sem maldade, todo mundo sem depois de um dia duro de caçadas e derrotas. Mas não.
roupas, e o mundo em volta sem problemas.
15.
9.
Foi legal. Mas, como sempre, veio a noite. As
monumento de Ah, ele podia ter virado qualquer coisa, mas quis
virar um vulcão. Porque esse menino, mais do que
crianças bocejaram e ficaram com frio, aquele
vento de chuva assobiando e a pele arrepiada, o
jeito era fugir, ir pra casa. Foram todas embora e,
pedra e fogo, um tudo, amava o suspense e a aventura. E podia, como
qualquer um de nós, explodir a qualquer momento.
HALLINA BELTRÃO
a transformação:
na cratera que ele mesmo tinha fantasiado, e virar mais nada, tinha muito medo de falhar de
ninguém pra segurar a mão dele — alguém aí ajude, novo e, paralisado, diante da tevê, adormeceu
socorro, alguém, alguém — e agora, menino, e como vivia: insatisfeito.
um homenzinho
agora que você caiu feio, e agora, menino, que
você explodiu, e agora — ninguém?
22.
18.
E agora que a noite vinha chegando, e o céu parecia
barbudo, com A noite passou. É o que a noite costuma fazer.
E, inesperadamente, o homem acordou menino
mais uma vez — ainda bem, que viagem ruim. Ele
um teto rebaixado de brasas, o vulcão quis voltar a
ser menino, e bem depressa, pra fugir do buraco,
do calor e da escuridão. Mas não deu. O menino
remela, enxaqueca logo viu que tinha reaprendido a fazer seus truques
de criança, e, por isso, a primeira providência
que tomou foi a de se transformar na luzinha que
tinha desaparecido e, no lugar dele, olhe só a 20. invadia o seu quarto pela fechadura da porta. Deu
transformação: um homenzinho barbudo, com No trabalho, o homenzinho carimbou papéis, certo. Depois, pra testar melhor os seus poderes
remela, enxaqueca e dor nas costas. assinou documentos, visitou o cartório, pintou recuperados, virou também uma gota de orvalho,
O menino tinha crescido, mas, engraçado, estava paredes, dirigiu um táxi, recusou um projeto, um montinho de pó, uma teia de aranha, a geada
bem menor do que antes. rejuntou azulejos, instalou luminárias, consertou sobre um broto de palmeira, um bigode de gato e
vazamentos, corrigiu provas, redigiu discursos, o pingo de leite ali pendurado. E tudo funcionou
puxou dois tapetes, trocou o telhado, almoçou direitinho, ufa, maravilha.
19. com clientes, tingiu cabelos, carregou mudanças, Até hoje, o menino que se achava mágico não
O homenzinho acordou de mau humor. Não sabia montou um cenário, aprovou campanhas, descobriu se aquele dia vivido como homenzinho
fazer mágicas. Tentou virar a brisa que balançava a autorizou cobranças, vacinou um cachorro, extraiu foi um pesadelo ou não. Mas anotou, na sua
persiana, o friozinho que saía da geladeira, o gás que um apêndice, desviou verbas, assinou uma petição, caderneta de espantos, que ninguém tem a força
aquecia o chuveiro, e nada. Tentou virar uma formiga, lavou vidraças, serviu cafezinhos, vendeu um ou o tamanho de suas ambições.
e depois uma formiga esmagada. Sem sucesso. Tentou terreno, serrou um crânio, fotografou crianças,
virar um fósforo, e depois um fósforo queimado. Nada mandou e-mails, varreu as ruas, carregou lixo,
feito. Tentou passar um café, ficou fraco demais. cuidou de automóveis, engraxou cem sapatos, 23.
Tentou alcançar os pés, a barriga não permitiu. Foi demitiu funcionários, abateu uma vaca, bateu Somos, quem sabe, do tamanho das nossas
trabalhar, chegou atrasado, levou bronca. um bolo, pediu um aumento, apitou um jogo, alegrias.
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
ESPECIAL
Por mares do
norte nunca
antes lidos
Literatura contemporânea
holandesa briga no Brasil
por seu espaço narrativo
Texto: Priscilla Campos/ Ilustração: Flavio Pessoa
A literatura nos ensina que, entre as vias aquáticas Ele explica que, desde 2012, emissários da insti-
intermináveis e a ideia de família, existe uma dis- tuição visitam o Brasil e encontram-se com editores
função progressiva. Contemplamos os marinheiros e jornalistas para apresentar programas de fomento
conradianos, a coragem doentia de Ishmael, os núcleos à tradução. “A Fundação e, sobretudo, as editoras
familiares apresentados por Philip Roth em Complexo brasileiras enfrentam um problema grave: há poucos
de Portnoy e When she was good, com a flutuante sensação tradutores do holandês no Brasil, onde não há nenhum
de curiosidade, temor, repulsa. Tanto no mar, como curso universitário desse idioma. Espera-se que algu-
na construção de um afeto supostamente óbvio e na- ma universidade se interesse em criar um, quiçá, em
tural, estamos diante do estranhamento. Nesses dois parceria com o governo da Holanda. Enquanto isso,
grandes espaços narrativos, o sujeito pode perder-se a literatura holandesa continua desconhecida para a
por completo, não importa quantos mapas, bússolas grande maioria dos leitores daqui. A iniciativa do Café
e diários de bordo estejam disponíveis. Amsterdã é interessante para chamar a atenção para
No encalço de temas tão labirínticos estão as es- esse universo – mas será inócua se não se repetir ou
critas de Toine Heijmans, Arnon Grunberg, Tommy expandir-se, formando público leitor e estimulando
Wieringa e Arjen Duinker, todos autores holandeses potenciais tradutores”, reflete Furtado.
recém-traduzidos no Brasil. Os quatro nomes fazem Apesar da distância idiomática que persiste, e, para
parte da lista de convidados do Café Amsterdã, even- além das organizações oficiais, incentivos indepen-
to organizado pela Fundação Holandesa das Letras dentes também ajudam na recente disseminação da
(Nederlands Letterenfonds), que promoverá debates literatura e da cultura holandesa. O tradutor Daniel
e encontros em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Dago, entusiasta da língua e responsável por um tra-
O festival surge como certo tipo de comemoração balho focado na produção clássica do país, mantém
para marcar o montante de títulos contemporâneos, um blog (www.literaturaholandesa.blogspot.com.
produzidos nos Países Baixos, que serão encami- br/) e uma página no Facebook intitulada Literatura
nhados para lançamento e distribuição ao longo Holandesa, nas quais divulga artigos da década de 1950
dos próximos meses. – obtidos na Biblioteca Nacional – e notícias recentes
O mercado literário brasileiro parece apostar, que envolvam a conexão Brasil-Países Baixos.
com atento envolvimento, no boom holandês que De acordo com levantamento feito por Dago, cer-
se aproxima. O número de editoras é expressivo: ca de 80 livros foram traduzidos para o português
sete estão participando da maratona proposta pelo brasileiro nos últimos dois séculos. A quantidade é
Café, algumas com mais de um livro a ser lançado ínfima, de fato, e reforça os embaraços linguísticos
– Cosac Naify, Editora 34, Rádio Londres, L&PM perpetuados até o momento atual. Na oportunidade do
Editores, Editora Rocco, Confraria do Vento, Martins contato, enfim, estabelecido, os leitores irão deparar-
Fontes. Outras, como Hedra e Intrínseca, também -se com mares afoitos, homens perturbados, famílias
possuem projetos focados em autores provindos destruídas, a paternidade como sinônimo de obsessão
das terras do Mar do Norte. Segundo Joaci Pereira e a irritante busca pela fuga infinita – atitude de quem
Furtado, consultor editorial da Fundação no Brasil, sabe não ter nada a perder.
um dos pontos que ainda dificultam a chegada A literatura contemporânea holandesa tem como
da literatura holandesa por aqui é o processo de personagem central a dissimulada hiena invisível que
adaptação linguística. nomeia o quadragésimo nono capítulo de Moby Dick.
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Escreve Melville: “Há certas circunstâncias e ocasiões humano e a descobrir o apavorante potencial destru- sem gerar enfado, como no início do terceiro capítulo:
bizarras neste estranho e caótico negócio que chama- tivo e autodestrutivo que também o conforma”. Em “Thyborøn ficou para trás há quarenta e quatro horas.
mos de vida nas quais um homem considera todo o No mar, o holandês trabalha sempre com essas duas São duzentas e trinta milhas náuticas de distância. O
universo uma grande piada, ainda que mal perceba possibilidades de ruína. percurso de lá até aqui já não importa. O importante
a sua graça, e mais do que suspeita que a piada seja O velejador permanece, durante toda a narrativa, agora é manter tudo inteiro. Tudo ainda está intacto.
feita à sua custa. No entanto, nada o desanima, e nada pressionando um tipo de “controle” metafórico no O barco está lindo. Convés arrumado. Velas altivas. A
parece valer o esforço de uma disputa”. Nos livros que qual a tensão ora cai sobre a tecla correspondente ao cabine é baixa; consigo ficar em pé por pouco. Pelas
serão analisados a seguir, cartuchos e pedras de fuzis seu fluxo psicológico angustiado, ora sobre o botão pequenas vigias vejo o mar, como se eu fizesse parte
são engolidos por homens que possuem, como diz que se destina à disciplina necessária para manter-se dele. Como se estivesse nadando”.
Melville, um “tipo estranho de humor caprichoso”: navegando. Um movimento anula o outro; Donald Talvez, o principal acerto do livro seja abraçar, de
aquele estado de espírito que permite compreender, balança conforme a dança destrambelhada de seus forma benevolente, o narrador excessivo em seu desejo
nos momentos de tribulação extrema, a enorme piada dedos. O que se projeta em ambos os lados do controle por preencher-se com todos os mínimos detalhes
coletiva cuja saída jamais existiu. é a paternidade e seus desdobramentos. do modelo patriarcal. Êxito esse que não se trata de
Um dos fios condutores do romance é a ansiedade escolha segura, mas sim do propósito em manter
GIGANTE DE FORÇA DESCOMUNAL que o personagem lança em direção ao relacionamento uma história aberta a partir da flutuante sensação que
“Penso que muita gente vê o mar como uma rota de com sua filha. A linguagem utilizada para construir esse definimos no início deste texto – curiosidade, pânico,
fuga – pelo menos, Donald vê. Ele pensa que será livre discurso denota uma agonia ainda no gatilho, como repulsa. Ao colocar Donald como sujeito imerso num
enquanto estiver velejando sozinho. Mas claro, isso é uma bomba pronta para explodir, mas não agora. A alerta incurável, não importa seu cansaço ou delírio,
uma fata morgana (espécie de delírio que se conjura no impressão é de que, mesmo se o barco afundar, não Heijmans deixa o leitor diante de inúmeros preenchi-
horizonte). No mar, principalmente quando sozinho, haverá arrebentamento suficiente. Sobre o exercício mentos (situações que acontecem entre uma mudança
muitas regras precisam ser obedecidas se você quiser, de seu estilo ao longo do texto, Heijmans conta que narrativa e outra).
no mínimo, sobreviver. Na verdade, o cotidiano fami- estava ciente da dificuldade em tratar de uma temática Existe uma bela contradição em No mar. Apesar de
liar é muito mais liberto do que estar em solidão ma- às vezes associada ao sentimentalismo excessivo e, o romance ser o resultado da tentativa de Heijmans
rítima”, escreve Toine Heijmans, de Amsterdã, para o por isso, tentou trabalhar com essa linguagem mais de reger grandes temáticas, a construção do discurso
Suplemento Pernambuco. O escritor e jornalista assina contida. “Por outro lado, eu queria construir um sus- é formada, na verdade, por “ações humanas signifi-
No mar (Cosac Naify, tradução de Mariângela Guima- pense atrelado à história e às indagações que emergem cativas”, expressão desenvolvida pelo teórico Franco
rães), romance no qual podemos seguir os intervalos a partir da função paterna. Acredito que os escritores Moretti no ensaio O século sério. Sim, temos o mar e as
entre magnitude aquática e convívio doméstico através não devem ter medo de explorar técnicas que resultem suas criaturas mirabolantes; sim, a paternidade pode
de Donald, personagem que empreende navegação em expectativa por parte do leitor”, conclui. ser tanto impostura social quanto dedicação infinda
solo em seu veleiro vermelho – nomeado Ishmael. De acordo com o holandês, as frases curtas também de afeto. Mas aqui, como num quadro de Johannes
Para Heijmans, o livro é sobre um homem que se são decorrentes da influência do local onde escreveu Vermeer, a “narrativa não é feita apenas de grandes
debate, freneticamente, no desejo de tornar-se uma quase todas as páginas de No mar: seu pequeno barco, cenas”. Uma espécie de cotidiano sobrepõe-se à ca-
espécie de super-herói em todas as áreas: afetiva, atracado num porto holandês. “Eu gostava de ouvir, tástrofe; o que consideramos antes como ápice do
profissional, paterna, náutica. “Donald leva essa ideia durante o processo de criação, o barulho da água. As perigo é apenas o seu entorno.
para o mar apenas para jogá-la, repetidas vezes, em sua pausas entre as sentenças são como as ondas batendo Mas só nos damos conta dessa sobreposição nas
própria cara”, pontua o escritor. No ensaio intitulado no casco do barco”, observa. Deveras, Heijmans não fi- páginas finais. Ao longo do livro, o lugar de leitura
É possível pensar o mundo moderno sem o romance?, Mario cou apenas no romantismo que ronda a sua afirmação. converte-se em incerteza menos pelo fato de estarmos
Vargas Llosa grafa: “Não a ciência, mas a literatura O jornalista alcança um ritmo de escrita refreado, que todos em deriva imaginária no meio do Mar do Norte
foi a primeira a examinar os abismos do fenômeno golpeia sem machucar e, ao mesmo tempo, embala do que por percebermos, desde as primeiras linhas,
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ESPECIAL
a falta de sensatez do narrador. Heijmans demonstra personagem que se mantém entre a neurose, a sabe ao certo. Foi sorte a vidraça ter ficado intacta”.
entendimento da voz que ecoa na escrita como meca- normatização e o machismo. Na mimada figura de Tirza, sua filha mais nova,
nismo primeiro na ideia de exercício literário. Afinal, Construída através de um processo gradual de Hofmeister colide com desejos obsessivos disfarçados
é através desse discurso que se estabelece qualquer revelações, a força do protagonista é inquestionável, de adoração e extremo cuidado. Já nos primeiros pa-
geografia, loucura ou glossário náutico diante dos porém, dolorosa. Se em No mar, Donald é acolhido, rágrafos, Grunberg explana sobre a ausência maternal
olhos de um leitor. durante sua expedição esquizo, pelas alternativas de naquela família, situação essa que tragou todos os
abertura da trama, em Tirza ficamos à frente de um membros – o pai, Tirza e filha mais velha, Ibi – para
2. BOM [DISSE O DOUTOR]. AGORA A GENTE PODE outro passivo-agressivo, pronto para atacar de ma- o espiral depreciativo de autoflagelação que só um
COMEÇAR. neira silenciosa. A frase de abertura do livro é um fantasma ainda vivo pode gerar. “O tempo não cura
Antes de pensarmos em Complexo de Portnoy como exem- simples e eficiente truque: “Jörgen Hofmeister está todas as feridas, descobriu. O tempo rasga e abre ainda
plo de obra relacionada ao conceito de distúrbio, pode- na cozinha cortando atum para a festa”. Grunberg mais as feridas, provocando intoxicações e infecções”,
mos criar uma associação daquelas que só a bruxaria foca nas alusões fáceis (peixe e cozinha, sinônimos afirma o narrador observador.
da literatura nos permite. A premissa da maravilhosa de aconchego; festa, sinônimo de celebração) e camufla Enquanto revive uma briga de seus pais, Portnoy
piada desprezível apresentada por Melville em Moby o corte, a faca, substantivos que têm o poder de síntese empreende as perguntas sem respostas geradas pelas
Dick encontra no relato de Alexander Portnoy o para- tanto do tom, quanto do enredo que será desenvol- lacunas de uma memória do susto. “A cena em si é
lelo certeiro. Se o fazer literário consiste em escrever vido a partir dali. como um móvel pesado, na minha mente, impossível
sempre um final para algo do passado, como afirmou Assim como Heijmans, o escritor faz uso das “ações tirar do lugar – o que me leva a crer que a coisa acon-
o bósnio Saša Stanišić durante a última edição da Flip, humanas significativas”. Mas, aqui, elas acontecem teceu, sim”, diz o advogado. Desse modo também nos
a novela de Roth é uma das sequências possíveis para com o intuito de suscitar pequenas dilacerações. A atinge o estilo de Grunberg: não conseguimos arrastar a
essa premissa do clássico norte-americano. rotina familiar em Tirza é violenta, não importa o grau incômoda mobília com incontáveis farpas de madeira
Nesse desenrolar perpétuo da literatura – ação de amenidade que a linguagem pretenda nos oferecer. cortando a nossa pele.
que proporciona, sem nenhuma justificativa, o Escreve Grunberg: “Hofmeister apanha uma bacia
embate entre passado, presente e futuro – chega- cheia de arroz morno, amassa um bolinho e, enquanto CAÇADAS E MARINHEIROS
mos a Tirza (Rádio Londres, tradução de Mariângela está ocupado com isso, observa o caixilho da porta da Tanto nas perseguições por qualquer recompensa
Guimarães), de Arnon Grunberg. No romance, cozinha como se nunca tivesse usado a bancada da pia quanto na decisão de alinhar uma iole de cruzei-
considerado um dos maiores destaques da litera- antes. Vê a tinta descascando, um ponto fosco no papel ro, com a âncora, sem que as suas velas batam ao
tura contemporânea holandesa, Grunberg monta a de parede junto ao caixilho, onde uma vez bateu um vento, sobrevive a concepção de exílio. No romance
equação composta por paternidade e angústia do homem sapato que Tirza tinha jogado em sua cabeça. Antes de Tommy Wieringa, chamado Joe Speedboat (Rádio
branco cujo algoritmo final é Jörgen Hofmeister, disso ela havia gritado ‘babaca’. Ou depois, ele já não Londres, tradução de Cristiano Zwiesele do Amaral),
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APÊNDICE
Não sou Mariana / e tu não és Chamilly // A minha história / é outra
/ e começa agora // Estou sempre / a começar. (Adília Lopes
em Dobra: poesia reunida 1983-2007)
Este anexo propõe investigar, brevemente, a presen-
ça feminina na literatura contemporânea holandesa
recém-traduzida no Brasil. Uma observação antes de
continuarmos no universo da escrita: Duas autoras do
país europeu estarão presentes no evento oferecido
pela Fundação Holandesa das Letras. São elas: Janny
van der Molen – jornalista e teóloga, autora de livros
infantojuvenis, entre eles, O mundo de Anne Frank (Editora
Rocco) – e Marjolijn Hof – também escritora YA (young-
-adult), que assina Um fio de esperança (Martins Fontes).
Na biografia dessa última, disponível no site oficial
da instituição, está grafado: “é um dos autores mais
bem-sucedidos em livros infanto-juvenis (...)”. Até
este momento – manhã do dia 17 de agosto – o erro
não foi corrigido. De volta à produção ficcional. Como
vimos ao longo dos intertítulos anteriores, os romances
holandeses que chegarão por aqui são protagonizados
por homens brancos, heterossexuais e com algum
tipo de neurose, psicose ou problema de saúde grave.
Enfim, personagens doentes e egoístas que procuram
contar sua história como expurgo da maldição que os
assola. Até aí, nada de muito novo no front.
No entanto, na base de cada uma das narrações,
está a mulher que se alterna entre: a) não ser ouvida
ou levada a sério; b) mãe protetora, complacente com
Cerca de 80 livros
foram traduzidos
para o português
brasileiro nos
últimos 200 anos. A
quantidade ainda é,
de fato, ínfima
e na coletânea poética da Antologia provisória, de Arjen mesmo quando não existe mais navio ou casa que as imaturidades do marido; c) malévola, fria e sem
Duinker (Confraria do Vento, tradução de Arie Pos), os sustentem. coração; d) alienada; e, em última instância, a perso-
as vozes narrativas – mesmo acompanhadas de outros De forma semelhante a No mar, os versos de Duinker nagem que se submete aos pensamentos patriarcais
personagens e envoltas em relacionamentos afetivos também possuem uma ode aos pormenores náuticos, constantes nos textos de No mar, Tirza e Joe Speedboat.
– estão absortos em seus respectivos isolamentos. como no trecho do poema E, presente na Antologia pro- Dos três, o que chama mais atenção e abrange mais
Em Joe Speedboat, o narrador anuncia sua situação, visória: “O mistério não fala para mim / A mística não letras expostas acima é o drama de Arnon Grunberg.
após voltar para casa de um acidente que quase o fala para mim / E tampouco a metafísica / Prefiro as A família Hofmeister possui o clássico protótipo
deixou paralisado por inteiro, da seguinte maneira: intenções da proa / E as certezas pacientes da âncora”. do homem como dominador absoluto. Jörgen é o
“[...] eu, Fransje Hermans, com apenas um braço fun- Nessa temática, o destaque fica para Sailor’s home, um maestro da casa e, claro, nem sempre estará em sua
cional suportando quarenta quilos de carne morta. No dos títulos mais extensos do livro, que expõe bonitos melhor performance. Mas, não importa, a visão dele
passado, já me vi em melhores condições. [...] Tenho fragmentos, aos quais fica difícil passarmos incólu- é a que vai prevalecer. Seus medos, dúvidas e anseios
de me mandar deste lugar o mais rápido possível. mes: “De repente, os elementos soltam as entranhas. serão captados sem parar, até o fim. Os romances
Eles estão me enlouquecendo com tanto vaivém ao / Relâmpagos formidáveis marcam a rota para o porto. manifestam – Tirza em especial – a ideia da perso-
redor da cama e com toda essa conversa mole sobre / O cheiro de cabelos soltos é implacável e fabuloso. / nalidade perturbadora que encobre a violência (seja
comércio e tempo”. O então garoto mora na cidade O navio avança ao encontro da cisão de realidades, / ela qual for) e reforça a mudez censurada do outro.
fictícia de Lomark, uma região que aprisiona, por Navega através de fatos insonoros e fatos ruidosos. / São enredos que reforçam o “calo porque não quero
motivos aleatórios, todos os seus moradores. Todos os fatos se reúnem aqui para escolher palavras, desestabilizar você” e nunca a autonomia do “calo
Na vontade da caça está intrínseca a urgência pelo / Todas as palavras se juntam para fazer sonhos, / Tão porque não tenho o que te dizer”.
retorno. Os personagens de Wieringa perduram na- bem que o bater das velas deixa de existir. A escolha de Adília Lopes como citação de abertura
quele lugar; clamam pela volta eterna e não sabem Porém, a despeito do eu lírico dirigido a referências deste apêndice foi devido a sua relação direta com as
nem o porquê de almejá-la com tamanho afinco. que poderiam denotar um aspecto afável – flores, tais “ações humanas significativas” que tanto falou
“Nós ainda continuamos aqui”, conclui Hermans percepções oníricas, lágrimas, nuvens – podemos Moretti e que parece eclodir na literatura holande-
na derradeira sentença do livro. Algo próximo à reconhecer uma frieza latente. Essa identificação sa contemporânea. Ao lermos a poeta portuguesa,
insistência, sem razão de ser, do alucinante coman- não afasta, mas sim produz certo desvelo tardio; a lembramos: não só a história pode ser outra, como
dante Ahab. No fim, a tripulação do baleeiro, assim conquista que ultrapassa a simples beleza da escrita também os personagens que caminham pelas beiras
como os habitantes de Lomark, são devorados, e e estimula, aos poucos, a invasão do leitor no texto. narrativas devem, sim, participar dela. Afinal, a mar-
isso vai além do significado de entrega. Joe Speeboat Em alguns poemas, o holandês abusa das repetições ginalidade dos que não se submetem aos enfadonhos
é sobre pessoas que não acharam a saída por que, e a metrificação pode trazer impaciência para a leitura. e insensíveis padrões é tão cotidiana quanto nadar na
talvez, sentem deleite na teimosia de fincar os pés Mas, de todos os escritores aqui citados, Duinker surge imensidão do mar gelado.
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Vá vendo
o caiporismo
Nada de autobiografia, nada de depoimento para a tive conhecimento de que eu era assim quando certa vez
Gilvan Lemos
posteridade (ô merda!), apenas relembranças literá- ouvi de minha mãe, esclarecendo à vizinha que me
rias, ou melhor, da minha insignificante formação observava, curiosa: É assim o dia todo, passa horas aí,
de escritor. Na mocidade, eu tinha grande interesse brincando sozinho.
pelas biografias e, principalmente, autobiografias. Que seria isso, enfim? Do meu temperamento,
Era, talvez, uma maneira de me inspirar, porque, sem do meu retraimento? Porque, na verdade, eu, por
dúvida, eu pretendia ser um Grande Homem. Com ser o caçula, era muito privilegiado. Ao chegar da
o tempo, a realidade entrando-me pelos olhos (para rua, meu pai me sufocava de carinhos, enquanto
não dizer por outras vias), fui perdendo o interesse esperava o jantar carregava-me para sua cama, a
pelo gênero, passei a dar razão a minha irmã Malude, puxar conversa, a rir dos meus disparates. Minha
que julgava pretensiosos, vaidosos, os indivíduos mãe, meus irmãos... Claro que eu apreciava suas
que se dedicavam a falar da própria vida, como se afeições, mas havia momentos em que preferia me
fosse imprescindível que outros a conhecessem. separar delas. Discrição, constrangimento... Sempre
Hoje, além de vaidosos e pretensiosos, acrescento: fui muito imaginoso. Aos enredos dos filmes a que
egoístas, hipócritas e, em certos casos, mentirosos. assistia colocava adendos da minha imaginação; os
Afinal, esses caras só contam grandeza, altruísmo, dramas íntimos relatados, em tom de queixa, por
heroísmo etc. Cadê que revelam fraqueza? Uma ova, minha mãe, eu amenizava, transmudando o enre-
que revelam... Há sinceridade nisso? do. Tudo isso intimamente, sem ninguém saber. Devo
Poderia parecer que eu mesmo, com essa história acrescentar, entretanto, que nunca fui mentiroso,
de “formação de escritor”, estivesse me predis- jamais fui pegado, por quem quer que fosse, numa
pondo a relatar minhas próprias vitórias. Claro que mentira. Imaginoso, sim; mentiroso, não.
eu jamais cairia nessa esparrela. Primeiro, porque
reconheço que sou escritor apenas porque escrevo O cinema foi meu primeiro deslumbramento. Diante
livros (quem faz sapatos é sapateiro, quem faz pão é da tela eu me multiplicava. Mas aquilo era verdade,
padeiro, quem costura roupa é costureiro... Portan- existia de fato, e eu estava lá dentro, participando de
to, quem escreve livros é escritor, não é mesmo?); tudo. Se havia cena comovente, eu chorava; se hi-
segundo, porque, em seguimento a este relato, me lariante, morria de rir. Era um mundo novo que me
ocuparei, principalmente, dos fracassos. Não para fascinava, embora não o entendesse. Deslumbramento
me lastimar, granjear simpatia, obter caridoso per- que foi acrescido com as histórias em quadrinhos,
dão, cristianíssima remissão, sim para me vingar do que vim a conhecer mais tarde. Eram distrações, no
que bestamente chamamos de destino, revidar com entanto, que me encantavam e ao mesmo tempo mar-
autoridade suas provocações, mostrar-lhe que não as tirizavam. Sim, porque não dispunha delas como era
aceitei, aceito, passivamente. do meu insaciável desejo. Cinema, só às terças-feiras,
O título, por que o título? Lembro-me dum conto dia do seriado. Aos domingos, a mil e seiscentos réis a
de Machado de Assis, no qual são relatados os azares entrada, eu ficava de fora. De fora, vagando pela rua,
de certo personagem, sempre entremeados com a angustiado, a ouvir o retinir da campanhia anunciando
observação do autor: “Vá vendo o caiporismo”. É o a sessão. Enquanto a ouvisse, havia esperança. Bo-
que, a partir de agora, parafraseando o genial Machado tava a imaginação a trabalhar. Dez tostões perdidos,
de Assis, passo a referir: VÁ VENDO O CAIPORISMO. sem dono, à beira da calçada. Ou remanescente da
Sendo o último filho duma prole de cinco, quase feira do sábado. Ou caído do bolso de algum bêbado.
cinco anos mais novo do que o penúltimo, vivi muito A campanhia retinindo e eu... nada. Só a imaginar.
tempo isolado, em companhia de minha mãe. Somente Como nas histórias dos filmes, repentinamente surgia
aos sete anos passei a frequentar a escola, como era um milionário na praça, em seu carro monumental
costume na época. Meu pai no trabalho, meus irmãos dirigido por motorista fardado, por certo perdido.
na escola ou em companhia dos amiguinhos e eu sob Abordava-me: Meu filho, onde estou, que cidade é
a vigilância materna. Habituei-me, pois, a brincar esta? Eu o atendia, trêmulo de emoção, previsão: São
sozinho. Jogava dama comigo mesmo, baralho, futebol Bento. E ele, bondoso: Que está fazendo a esta hora na
de botão; construía casinhas, fazendas de boi de osso; rua? Eu lhe confessava meu sofrimento. E o milionário
executava aventuras copiadas dos seriados do cinema. desconhecido, abrindo a carteira de cédulas: Tome, vá
Eu me constituía em fazendeiro e boiadeiro, ladrão e pro cinema, leve mais esse trocado pra comprar con-
delegado, herói e bandido, em disputas interminá- feitos. Mas fatalmente a campanhia deixava de tocar,
SOBRE O TEXTO
veis. Dialogava em pensamento com meus desafetos, o milionário desaparecia, eu me convencia de que a
Esse trecho faz parte de participava de sua vivência enredada. Havia uns bo- sessão havia começado. E eu mais uma vez frustrado,
um ensaio que estará, na nequinhos de celuloide, do tamanho dum dedo, que do lado de fora, chorando, revoltado com a sorte, com
íntegra, em livro biográfico minhas irmãs utilizavam como filhos de suas bonecas a vida, com meus pais que não tinham dinheiro nem
sobre Gilvan Lemos, de pano; eu, como personagens. Tudo isso à porta da para me pagar uma entrada de cinema. Quanto aos
editado pela Cepe, como cozinha, no jardinzinho que mamãe conservava com Gibis, nome que generalizava as revistas em quadri-
parte da coleção Memória afeição de agricultora frustrada: sempre desejou ser nhos, o suplício se assemelhava. São Bento na época
fazendeira, como seus ascendentes. Minhas atividades não tinha mais do que 2.500 habitantes. Desservida
distrativas, contudo, passavam-me despercebidas. Só de estrada de ferro ou de rodagem federal, isolava-se
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
tachos para ser pesado. O mestre então nos dava em os diabos, fiz com que meus heróis fossem todos bra-
papel impermeável (amarelo, como me lembro!), sileiros. Só que aqui e acolá traía-me ingenuamente.
pequenas porções, branquíssimas, borrachudas, que Havia o índio Tapir, das selvas amazônicas (imitação
segurávamos nas pontinhas, por causa da quentura, de Tarzan); o Condor, êmulo de Batman (sem Robin);
e ficávamos a beliscar, na medida em que esfriavam. contudo, havia também Tommy e Hal (“parecidos”
Em seguida, Joaquim Ezequiel, com a família, mu- com Tim e Tom, da Patrulha do Marfim) e o cowboy Tom
dou-se para Maceió. Anos depois, eis que recebo Merril (um quase Bronco Piller, das páginas do Gibi).
inesperadamente um pacote enorme de Gibis, ver- Tudo muito precário, desenhado com tinta azul,
dadeira coleção. Lilia, que me mandara de Maceió. escolar, marca Sardinha e pena comum, que logo
E ficara mandando, para minha felicidade. escarrapachava (o computador, chato pra burro, está
Major, depois que saiu de São Bento, não mais o vi. dizendo que o certo é assim, mas nós dizíamos “es-
Sabia dele por intermédio da família. Mais ou menos carrapichava”). Ouvia falar duma tinta pra desenho,
na década de 60, soube que havia morrido em Carpina, chamada de Nankim, que eu nunca cheguei a pelo
onde destacava, ainda como delegado de polícia. E menos ver. Em São Bento, não. Como, igualmente, ja-
Lilia fez carreira na televisão. Telejornalista, atriz de mais recebera uma aula de desenho, jamais conhecera
telenovelas, morreu no Recife, pertencente ao quadro um desenhista. Tudo que eu fazia era sob a orientação
da TV Jornal do Commercio. Jamais esquecerei os mo- de Malude que, como eu, completara apenas o curso
mentos de indizível ventura que me proporcionaram. primário da escola de Dona Esterzinha Siqueira, no
Eu era naturalmente um menino solitário, já pelo Grupo Escolar Barbosa Lima. Contudo, minha fama
meu temperamento, já pela doença dos olhos que de artista se espalhou. Os amiguinhos iam lá em casa
me acometera quando eu andava pelos onze anos de ler O farol, acompanhar as aventuras dos meus heróis.
idade. Conjuntivite primaveril, havia diagnosticado Um número único, que passava de mão em mão, co-
o estudante de oftalmologia, nosso primo, que vinha migo ao lado, vigilante, temendo que o estragassem.
do Recife passar as férias em companhia dos pais. De vez em quando meu pai violava a gaveta onde eu
Adiantando: Você se livra dela quando atingir a maio- os guardava, a fim de gabar minha habilidade aos
ridade. Foi, realmente, o que aconteceu. De manhã amigos dele. Cheguei a desenhar uns jogadores de
eu acordava com os olhos pregados, sem poder sair do futebol para o União Sport Club, por encomenda do
quarto por causa da claridade, que me encandeava, Dr. Adelmar Paiva, que me pagou vinte mil réis por
causando-me um verdadeiro choque lacrimejante. eles. Um dia quase morro de gosto, porque meu tio e
Para ir à escola eu tinha de acordar antes do horário padrinho Getúlio Valença, respeitado na cidade pelos
previsto, a fim de acostumar a vista. Caíam-me os cílios, seus conhecimentos gerais e que eu muito admirava,
as pálpebras inflamavam, cercavam-se de carocinhos, elogiou meus desenhos. Sabendo das condições em
como terçóis. Vaidoso, envergonhava-me de exibi-los, que eu os executava, concluiu: Vocação inata. Só que
até que meu pai comprou-me uns óculos escuros, eu não sabia o que significava inata.
desses vagabundos, de lentes marrons, vendidos na Durante a guerra deflagrada pelo Eixo os Gibis pas-
feira. Ainda estava feliz? Veio-me, então, a enxaqueca, saram a ser invadidos pelos Super Heróis, homens de
eu estava com uns treze anos. Fui pegado de surpresa, poderes excepcionais, sobrenaturais, que voavam,
na rua. De repente minha visão começou a ser atrapa- tinham visão de raios X, eram imunes a tiros, pedradas,
lhada por umas argolas brilhantes, a movimentar-se facadas etc., todos norte-americanos, a combater os
constantemente, aumentando de tamanho (a esses nazistas. Bastava uma dessas personagens, Capitão
sinais os médicos chamam de escotomas), quase me América, por exemplo, para dizimar um pelotão inteiro
impedindo de enxergar. Corri pra casa, julgando tra- de alemães. Isso me desgostou, me esfriou com relação
tar-se de algum sintoma da conjuntivite. Minha mãe à leitura das histórias em quadrinhos. Malude, então,
esclareceu, experiente: É enxaqueca, vá se deitar. me socorreu: Leia romance. Ela própria lia bastante,
Era mal de família. E como incomodava! Quando os já influenciada por nossa mãe que, embora de poucas
escotomas desapareciam, vinha uma dor de cabeça de letras (não tinha nem o primário), vivia com um à mão.
rachar, que não passava com remédio algum. Náusea, Na mezinha do quarto de mamãe havia uma ruma de
vômito, dormência nos pés, nas mãos. Era um dia romances, duma coleção chamada CIP, na contracapa
perdido para mim. A enxaqueca ficou me visitan- o desenho duma mão com dois dedos levantados, in-
do semanalmente, às vezes dois, três dias seguidos. dicando o preço do livro: dois mil réis. Eram volumes
Diziam: Mas isso é doença de velho. Curioso é que, diminutos, em papel ordinário, creio que precursores
igualmente à conjuntivite, ao atingir a maioridade a dos atuais livros de bolso. Verdadeira coleção, e variada
enxaqueca desapareceu, voltou-me 36 anos depois, que era: O conde de Monte Cristo, Humilhados e ofendidos, O
estou com ela, e os médicos dizem: Na velhice, comu- homem que ri, Escaramouche, Os miseráveis, A moreninha, O
mente a enxaqueca desaparece. Só se for nas pessoas moço louro, Inocência, O prisioneiro de Zenda, O Máscara de
normais, em mim, não. Ferro... e por aí em diante.
Apesar de tudo, diante do caiporismo que se su- Eu pegava um a um, largava, desencantado. Enor-
cedia, não fui uma criança infeliz. Magro que nem mes, letras miudinhas, sem gravuras. Um dos autores
um caniço, participava de toda brincadeira infantil, chamava-se Fiedor Não Sei Que Lá. Um escritor com
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PERNAMBUCO, SETEMBRO 2015
eram americanos.
português, e por muitos anos tido como da autoria estudante: ler por obrigação, para aprender, a fim
de Alexandre Dumas. Aliás, nunca mais ouvi falar de prestar exame no fim do ano não era comigo,
de A mão do finado. não tinha em que me segurar. Em contato com os
RESENHAS
DIVULGAÇÃO
nossa poesia de
Andrade, enfim, falava da ao montar sua seleção “Num esboço de prefácio legado, como um pastor a
sua homossexualidade, de “libertinos”. a Macunaíma, escrito por reunir ovelhas dispersas.
apenas revelada este “São misteriosos os volta de 1926, Mário de A organizadora faz
“baixo-ventre”
ano. Na última Flip, laços que unem a poesia Andrade observava que, questão de destacar ainda
em homenagem ao ao erotismo. Misteriosos no Brasil, ‘as literaturas o caráter parcial do livro,
mestre modernista, a e duradouros, já que o rapsódicas e religiosas como apenas um dos
pesquisadora Eliane despertar da lira de Eros são frequentemente depoimentos possíveis
De insuspeitos como João Robert Moraes (foto) não
apenas revelou como a
parece coincidir com
a própria origem das
pornográficas e
sensuais. Não careço
do erotismo em nossa
literatura. É compreensível
Cabral a libertinos anônimos, o sexualidade do autor se
alastrava em alguns dos
línguas e, desde sempre,
seus ecos vibram com
de citar exemplos. Uma
pornografia desorganizada
o uso da palavra “parcial”:
o jogo do erótico jamais
livro é de pesquisa exemplar seus textos mais famosos, intensidade por toda é também da trata do tudo descobrir,
como o quanto sua obra parte. Não admira, pois, quotidianidade nacional’. do tudo conhecer.
pulsava com questões que a escrita erótica tenha Em contraposição a essa
Schneider Carpeggiani
eróticas — e mais eróticas sido praticada por tantos produção licenciosa que
ainda por revelarem poetas e que muitos deles estaria dispersa na cultura
temas fundamentais tenham interrogado tais popular, o escritor evocava
para pensarmos a segredos para melhor as formas de ‘pornografia
identidade nacional. conhecer o pacto entre organizada’ que entre ‘os
Essa mesma identidade a carne e a letra. As alemães científicos, os
Eliane busca flagrar respostas que nos legaram franceses de sociedade,
em panorâmica na repercutem, de forma os gregos filosóficos, os
organização que realizou notável, umas nas outras, indianos especialistas,
da Antologia da poesia erótica como que reafirmando os turcos poéticos etc.,
brasileira. Um trabalho as fundações de um existiram e existem, nós
que cobre os assuntos saber antigo”, observa sabemos. A pornografia
de “baixo-ventre” dos Eliane em seu ensaio entre eles possui caráter
nossos escritores, desde no começo do livro, étnico. Já falam que se
Gregório de Matos aos demarcando para o leitor três brasileiros estão POESIA
contemporâneos. E mais: o terreno onde ele irá juntos, estão falando de
o livro não fica restrito pisar daqui para a frente. porcaria...’” Ou seja, o Antologia da poesia erótica brasileira
apenas aos cânones, No texto, ela destaca erotismo como texto, Org. - Eliane Robert Moraes
focando também em ainda a diversidade e como expressão, também Editora - Ateliê Editorial
textos anônimos, uma a vastidão (a antologia faria parte de uma espécie Páginas - 504
percepção genial do conta com 500 páginas) de identidade nacional Preço - R$ 82
REPRODUÇÃO
DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO
PRATELEIRA
CLARICE,
Considerada a mais bem documentada
biografia de Clarice Lispector, escrita
pelo norte-americano Benjamin Moser e
traduzida por José Geraldo Couto, Clarice
virgula chega agora à sua terceira edição
com capa dura. A obra permanece como o
maior best-seller da editora Cosac Naify. O
livro revela aspectos fundamentais da vida
da escritora, e é o principal responsável pelo
conhecimento sobre Clarice fora do País.
Favela: ser ou não ser Deus, falta ou excesso Livro Infantil e Juvenil - FNLIJ para compor
seu acervo, com o selo de obra altamente
recomendável, o livro de César Obeid mistura
O incômodo começa já Marcelino Freire, Ferréz Há uma matemática em seu depoimento a beleza poética das lendas indígenas com o
no título. Je suis Charlie, (foto) e Ronaldo Bressane. que pode ser montada sobre a obra, que não dinamismo rítmico dos versos de cordel. Através
somos todos Maju, ser Mais uma observação: no romance de estreia chega sem uma dose de das belas ilustrações de Nireuda Longobardi, o
ou não ser, sempre a a coletânea traz apenas da escritora argentina assombro, o assombro leitor diverte-se ao mesmo tempo que encontra
questão. Escritores, por uma escritora (e apenas Selva Almada no Brasil, diante de algo como um explicação para diversas situações e nomes de
ofício, precisam ser outros, um dos contos tem como O vento que arrasa: 4 E.T.: “‘De onde vem esse origem indígena.
outras. Mas dar a uma protagonista uma mulher, personagens + 4 vidas livro surpreendente?’.
coletânea o peso político o de Ferréz). Favela, fragmentadas por Não sei responder”. Vale
de “ser favela”, ainda substantivo feminino, abandonos + 1 carro ressaltar que Selva vem
mais num livro de autores parece aqui ser um quebrado + 1 dia e 1 ao Recife no dia 5 de
brasileiros, editado para lugar de leitura e de fala noite de espera. Mas outubro, como convidada
gringo ver é perigoso. Ou preponderantemente essa conta nunca da Bienal do Livro de
você faz uma reunião de masculino (C.A.) chega a um resultado Pernambuco. (S.C.) Autor: César Obeid
textos a tentar desconstruir satisfatório porque Editora: do Brasil
o imaginário de favela, ou algo flutua por cima Páginas: 40
embala esses textos como desses números, um Preço: R$ 30,90
souvenir de aeroporto. Esta medo ou uma presença
edição pende pro segundo tangíveis, que lança ÉRAMOS MAIS UNIDOS AOS DOMINGOS
caminho. O conto de para o alto qualquer Seleção de crônicas do impagável Sérgio Porto,
abertura do livro fetichiza raciocínio lógico. Algo criador de Stanislaw Ponte Preta, seu alter
a pobreza no personagem que pode ser Deus, ego, grande observador da vida carioca e da
de uma criança (texto a falta de Deus ou o mudança de costumes nas cidades brasileiras,
de João Anzanello excesso de um Deus, que criticava a ditadura com humor debochado,
Carrascoza) e o que se ou todas essas opções principalmente no livro Febeapá: festival de besteiras
segue é uma maioria juntas, como se elas não que assola o pais. Os textos engraçados e os
de contos que precisa fossem excludentes, personagens populares são representativos de
dar conta do elemento pelo contrário: como o humor aliviou um dos períodos mais
mais simbolicamente complementares. Essa negros da vida brasileira.
compartilhado da CONTOS novela de pouco mais ROMANCE
favela, o crime, sem de 100 páginas é sem
necessariamente usá-lo Eu sou favela dúvida o livro mais O vento que arrasa
como uma ferramenta Autores - Vários forte que li em 2015 Autora - Selva Almada
narrativa interessante. Editora - Nós até agora. Ou como Editora - Cosac Naify
Quem consegue escapar Páginas - 80 pergunta a crítica Páginas - 128 Autor: Sérgio Porto
dessa armadilha são Preço - R$ 22 argentina Beatriz Sarlo Preço - R$ 29,90 Editora: Companhia das Letras
Páginas: 168
Preço: R$ 26
MEMÓRIA
Silviano Santiago
MANUELA DOS SANTOS