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História Intelectual: objetos, abordagens e perspectivas

8 de maio de 2017 Bibliografia Comentada 11

Ampla e interdisciplinar, a História Intelectual se consolidou nos últimos anos no Brasil


e no mundo. Confira uma bibliografia comentada sobre este importante domínio
historiográfico.
Por Vanderlei Sebastião de Souza

A História Intelectual pode ser definida tanto como uma disciplina quanto um campo de
estudo, cujos objetos, abordagens e perspectivas de análise são variadas e
interdisciplinares. De maneira geral, esse domínio historiográfico transita ainda na
fronteira de outras disciplinas, como a História dos Intelectuais e a História Cultural ou
das Mentalidades, conforme pratica a historiografia francesa, ou a História das Ideias, a
História Política e a Filosofia da Linguagem, conforme a versão predominante nas
historiografias britânica e norte-americana. Nas últimas décadas, a História Intelectual
tem produzido uma série de polêmicas teóricas e metodológicas que colocaram no
centro das discussões o próprio estatuto do trabalho historiográfico: a possibilidade de
interpretação do texto histórico, do seu contexto de produção e das intenções do autor
ao escrever uma obra, um conceito ou um enunciado qualquer. Esse debate tem
enriquecido a historiografia e alargado o horizonte de análises em diferentes direções,
desde a História dos Conceitos, passando pelos debates sobre História da Leitura, da
Recepção e Circulação de Ideias, até pesquisas em torno das gerações, movimentos ou
redes intelectuais, ou mesmo do estudo de biografias e trajetórias de intelectuais.

História Intelectual - Máquina de escrever


A História Intelectual é hoje um domínio historiográfico consolidado. Nos últimos anos,
esse campo também ampliou seu diálogo com a História Social e Cultural, atentando
para a inextricável relação entre o mundo social, as sensibilidades culturais e a produção
de ideias, tanto de intelectuais e de tradições consagradas quanto de autores anônimos
e movimentos intelectuais considerados marginais. Neste sentido, a bibliografia aqui
indicada trata tanto das obras teóricas e metodológica quanto daquelas que apresentam
estudos temáticos ou empíricos com os quais vem se ocupando a História Intelectual. O
objetivo é apresentar aos leitores do Café História uma lista de obras que permita
compreender as diferentes perspectivas de análise, as problemáticas norteadoras, os
objetos e as possibilidades de pesquisa desse diversificado e impreciso campo de
estudo.
LACAPRA, Dominick. Rethinking Intellectual History: texts, contexts, language. Ithaca:
Cornell University Press, 1983.

Publicado ainda nos anos 1980, a obra é uma das principais referências teórica e
metodológica no campo da História Intelectual. Partindo de uma perspectiva
transdisciplinar e num estreito diálogo com as propostas do linguistic turn, LaCapra
propõe nesse livro uma ampla renovação da História Intelectual a partir do diálogo com
a Filosofia, a teoria da linguagem e a crítica literária, reformulando o problema da
relação entre os grandes textos da tradição ocidental e seus contextos de produção, ou
mesmo de antigas dicotomias sobre as visões internalistas e externalistas. O autor
defende que os historiadores intelectuais precisam reavaliar o modo como concebem a
leitura e a interpretação dos textos históricos, ampliando seu diálogo com a crítica
literária e as noções de textualidade. Ao invés de analisar o texto como um documento
histórico, como um testemunho ou artefato de constituição de um determinado período
histórico, LaCapra destaca a necessidade de pensar as relações complexas entre o
presente e o passado, entre os textos, a realidade e os discursos, as formas de leitura,
interpretação e apropriação textual, sobretudo das obras clássicas ou dos cânones.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo:


Companhia das Letras, 1996.

Embora o livro seja mais comumente associado ao campo da História Política, As


fundações do pensamento político moderno é uma obra exemplar de História
Intelectual. No livro, o historiador britânico coloca em perspectiva o contextualismo
linguístico, método de análise desenvolvido pelo autor a partir dos anos 1960, quando
se tornou um dos principais representantes da chamada Escola de Cambridge. Nesta
obra, Skinner analisa os principais textos do pensamento político no período de
transição da Idade Média para a Moderna, atentando especialmente para a formação
do Estado e do pensamento político moderno. Preocupado com os modos de estudos e
interpretação dos textos históricos, Skinner analisa tanto os autores clássicos quanto os
chamados pensadores marginais, procurando enfocar as matrizes mais amplas de
formação social e intelectual desses pensadores e o significado de suas atuações
políticas. Ao invés de concentrar atenção nos clássicos, como se fossem pensadores
atemporais, Skinner elabora uma história das ideologias políticas, evidenciando a
natureza e os limites da linguagem e do vocabulário normativo disponível num
determinado período histórico. Alargando seu compromisso com o método de pesquisa
da História Intelectual, o historiador britânico enfatiza que, para compreender o
significado de uma obra e as intenções do autor, o historiador intelectual precisa
analisar as “ideias em contexto”, atentando não somente para o contexto intelectual
em que as obras foram concebidas, mas para “o contexto das obras anteriores e dos
axiomas herdados a propósito da sociedade política, bem como o contexto das
contribuições mais efêmeras da mesma época ao pensamento social e político”.

DOSSE, François. La marcha de las ideas. Historia de los intelectuales, historia


intelectual. Valencia: Universitat de València, 2007.

O livro deve ser visto como um balanço teórico e metodológico das principais
perspectivas e problemáticas que envolvem a História Intelectual. O historiador francês
demonstra que esse campo historiográfico emergiu do entrecruzamento da tradicional
História das Ideias com a História Cultural e das Mentalidades, ou mesmo da influência
da História das Ciências, sobretudo no contexto da historiografia francesa. Na primeira
parte do livro, o autor trata do próprio conceito de intelectual, demonstrando que as
suas definições e caracterizações são amplas, polissêmicas e polifônicas. Segundo ele,
embora o intelectual possa ser caracterizado pelo compromisso com a crítica e o
engajamento público, a definição de intelectual não pode ser tomada a priori, mas a
partir de uma dada perspectiva histórica e sociológica, chamando a atenção para a
relação entre a História Intelectual e a História Social e Cultural. A segunda parte do livro
trata das diferentes tendências da História Intelectual, destacando especialmente as
análises propostas pelo contextualismo linguístico da Escola de Cambridge,
representada por historiadores como Quentin Skinner, John Pocock e John Dunn, e pela
História dos Conceitos construída por Reinhart Kosseleck em estreito diálogo com a
História Social. Dosse destaca ainda a importância da renovação historiográfica
produzida após a virada linguística, cujas reformulações romperam com as tradicionais
dicotomias entre as análises internas e externas, a relação texto e contexto, passado e
presente, o que possibilitou a construção da História Intelectual como um interessante
e promissor campo historiográfico.

DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo


Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

A obra de Robert Darnton tem contribuído sobremaneira para renovação da História


Intelectual, especialmente pelo estreito diálogo que articula com a História Cultural. Em
Boemia literária e revolução, o historiador norte-americano analisa o papel dos
intelectuais marginais e da subliteratura às vésperas da Revolução Francesa. Ao
contrário da historiografia tradicional, que procurava entender as ideias revolucionárias
a partir dos grandes filósofos iluministas, Darnton busca as motivações que alimentaram
a Revolução nos escritos subversivos, anticlericais e pornográficos que circulavam no
submundo dos excluídos, da boemia literária, dos panfletistas e dos filósofos
fracassados. Além de analisar as ideias políticas e morais defendida por essa literatura
underground, Darnton persegue com maestria o processo de circulação e
comercialização dessas obras, demonstrando a existência de um rico comércio editorial
clandestino que envolvia tipógrafos, escritores, contrabandistas e leitores, seja do
submundo da boemia ou de burgueses ávidos pela propaganda radical contra o Antigo
Regime, a moral aristocrática e a corrupção do clero. Atentando, portanto, para a
produção e a circulação marginal de ideias políticas e filosóficas, o livro não apenas
alarga a nossa compreensão sobre o consumo e a difusão de ideias potencialmente
explosivas, decisivas para a deflagração revolucionária, como renova a metodologia da
História Intelectual em diferentes direções.

PALTI, Elías José. Giro lingüístico e historia intelectual. Stanley Fish, Dominick LaCapra,
Paul Rabinow y Richard Rorty. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes, 1998.

O historiador argentino Elías José Palti, especialista em História Intelectual da América


Latina, apresenta neste livro uma interessante análise das implicações do giro linguístico
nas Ciências Humanas, destacando a renovação da História Intelectual norte-americana
depois dos anos 1960. Na primeira parte do livro, Palti introduz as principais questões
que nortearam o linguistic turn e o modo como a História Intelectual passou a repensar
o significado da linguagem, do texto histórico, das formas de interpretação e recepção
das ideias e, acima de tudo, da textualização do mundo. Partindo da análise da produção
de Hayden White, Stanley Fish, Dominick LaCapra, Fredric Jameson e Richard Rorty, o
historiador argentino historiciza o giro linguístico destacando, ao mesmo tempo, suas
contribuições para o processo de renovação da História Intelectual e os paradoxos e
limitações de suas teorias da linguagem. Na segunda parte do livro, Palti reúne um
excelente conjunto de textos de autores norte-americanos ligados ao movimento do
giro linguístico, com destaque para o clássico texto Repensar la historia intelectual y leer
textos, de Dominick LaCapra, e Relativismo: el encontrar e el hacer, de Richard Rorty.
Esse conjunto de texto não apenas dialoga com as principais questões apresentadas por
Palti na primeira parte do livro, como também lançam novas questões para repensar os
desafios colocados pelas teorias da linguagem ao campo da História Intelectual.

SILVA, Helenice Rodrigues da. Fragmentos da História Intelectual: entre


questionamentos e perspectivas. Campinas, Papirus, 2002.

Helenice Rodrigues da Silva trata neste livro tanto das discussões teóricas e
metodológicas da História Intelectual, chamando a atenção para a diversidade de
abordagens e perspectivas teóricas, quanto da trajetória e da atuação dos intelectuais
franceses na segunda metade do século XX. Curiosamente, o livro traça a História
Intelectual francesa a partir de uma ampla análise da própria contribuição dos franceses
para campo da História dos Intelectuais. Em diálogo com a História Social francesa, a
autora analisa o modo como os intelectuais daquele país leram e responderam aos
momentos nefrálgicos da história da França, como a participação na Segunda Guerra
Mundial, a memória sobre o nazismo, a Guerra Fria, as manifestações de 1968 e o
processo de colonização e descolonização. Para a autora, ao mesmo tempo que os
eventos culturais, políticos e sociais foram decisivos para modelar as visões e valores
dos intelectuais, estes também ajudaram a formatar a sociedade a partir da atuação
pública e do desejo de transformar a realidade, como foi a grande marca da
intelectualidade francesa a partir de meados do século XX. Neste sentido, Helenice
Rodrigues da Silva esboça uma história social das ideias, ou uma história sociológica dos
intelectuais, analisando as perspectivas, os projetos e a atuação de um conjunto de
intelectuais que vai de Jean Paul Sartre a Michel Foucault, passando por Norbert Elias,
Hannah Arendt, Claude Leford até Pierre Bourdieu.

LOPES, Marco Antônio (org). Grandes nomes da história intelectual. São Paulo: Editora
Contexto, 2003.

Organizado por Marco Antônio Lopes, o livro apresenta um extenso número de textos
escritos por diferentes historiadores brasileiro. A obra pode ser considerada uma das
principais contribuições para a História Intelectual já produzida no Brasil, uma vez que
concilia as reflexões teóricas e metodológica com a análise de uma diversidade de temas
e estudos de caso que vão da História Intelectual, a História Social das Ideias, a História
do Pensamento Político, passando pela História da Historiografia até a História Cultural.
A coletânea apresenta análises que cobrem diferentes períodos da História, seja do
mundo antigo e medieval, seja da História Moderna e Contemporânea. Merece
destaque a última seção do livro, intitulada O Brasil dos intelectuais, os intelectuais do
Brasil, que coloca em cena a análise da obra e atuação de viajantes, literatos, ensaístas
e pensadores sociais brasileiros do século XIX e XX. De forma proposital, a variedade de
autores, textos, temas e abordagens refletem a própria diversidade teórica e
metodológica do campo da História Intelectual, conforme o próprio organizador do livro
destaca em seu texto de introdução.

PALLARES-BURKE, Maria Lucia. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. São Paulo:
Editora da Unesp, 2005.

O livro de Maria Lucia Pallares-Burke não é apenas um dos mais ricos estudos sobre
Gilberto Freyre, mas uma interessante obra de História Intelectual. Produzido a partir
de uma extensa pesquisa documental, a autora persegue a trajetória intelectual, a vida
social, as ideias, projetos e antagonismos de Gilberto Freyre até a publicação de Casa-
Grande & Senzala, emblemático estudo da sociedade brasileira publicado em 1933. Ao
mesmo tempo em que traça uma biografia intelectual do escritor pernambucano,
Pallares-Burke preocupa-se em investigar as leituras, as formas de apropriação, os
diálogos, as redes e as sociabilidades do autor com intelectuais brasileiros, latino-
americanos, norte-americanos e europeus. Sua preocupação é entender como foi
possível a escrita de Casa-grande & Senzala, cuja síntese exalta a História Cultural e a
identidade mestiça brasileira, num contexto marcado pelo determinismo biológico e
racial. O argumento central de Pallares-Burke é que a obra de Gilberto Freyre deve
muito ao diálogo que estabeleceu com a cultura britânica, representada acima de tudo
pelo universo literário e científico de escritores como Thomas Carlyle, William B. Yates,
Lafcadio Hearn, Herbert Spencer, Alfred Zimmern e Franklin Giddings.

SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no
Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.

O livro de Dominichi Miranda de Sá é uma das melhores expressões da recente produção


de historiadores intelectuais brasileiros, seja pela originalidade do tema abordado seja
pela renovada perspectiva com que incorpora a metodologia da História Intelectual ao
estudo da História das Ciências. Logo na introdução da obra a autora já deixa entrever
as suas referências teóricas e metodológicas, apontando para o diálogo entre a História
Intelectual, a História Social das Ideias e a história dos conceitos praticada por Reinhart
Koselleck. Neste sentido, a autora incorpora a noção segundo a qual a produção de
discursos, textos e linguagens precisa ser analisada no cruzamento com os diferentes
contextos temporais de produção e de transformação do mundo social, refutando o
princípio da textualização da cultura. Interessada em compreender a mudança no estilo
de produção cultural brasileira no início do século XX, a autora analisa o processo de
especialização da atividade intelectual e da emergência do “cientista” no Brasil. No livro,
Dominichi Miranda de Sá demonstra que a pratica da atividade diletante, beletrista e
bacharelesca que caracterizava a atividade intelectual brasileira até o final do século XIX
passou a perder prestígio com o surgimento da pesquisa científica especializada, num
contexto em que os próprios cientistas passaram a repreender indistintamente a
pretensa inutilidade social dos homens de letras, dos eruditos e retóricos.

Vanderlei Sebastião de Souza é Doutor em História e professor da Universidade Estadual


do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro-PR). Tem experiência na área de História
Intelectual e História das Ciências, com trabalhos publicados sobre História da Eugenia,
interpretações do Brasil, raça, nação e identidade nacional, História da Antropologia
Física e da Genética. É coordenador do grupo de pesquisa “Intelectuais, Ciência e Nação”
e também coordena o “Laboratório de História das Ciências e História Intelectual”.

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