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Este artigo é resultado de minha pesquisa de mestrado em Artes Visuais, sob orientação
do Prof. Dr. Rogério Medeiros. Como se nunca tivesse existido... é uma história em
quadrinhos de Gabriel Bá, publicada no livro Crítica1. Gabriel Bá é um quadrinista paulista,
com diversos livros publicados. Ele é conhecido pela série 10 Pãezinhos (da qual Como se
nunca tivesse existido... faz parte), realizada em parceria com seu irmão gêmeo, Fábio Moon,
e pela série The Umbrella Academy, escrita por Gerard Way e desenhada por Bá.
Neste artigo, a narrativa de Como se nunca tivesse existido... será abordada sob três
pontos de vista: sua estrutura, o papel da imagem e a questão do chamado “tempo morto”. O
objetivo é obter uma compreensão mais profunda da construção de uma história em
quadrinhos. O primeiro aspecto a ser investigado é a estrutura da narrativa, empregando a
metodologia da analise estrutural. Serão utilizados como referência os textos de Roland
Barthes2, de Marc Vernet3, de Tzvetan Todorov4 e de Alain Bergala5. Em seguida, a imagem
será estudada no que diz respeito à sua contribuição para a narrativa, isto é, enquanto
linguagem. Para tanto, será feita uma análise semiótica. As referências serão os textos de
Martine Joly6 e de Umberto Eco7. Por fim, para compreender melhor o “tempo morto” que se
faz presente nesta história, haverá uma reflexão a respeito deste conceito e a respeito da
materialidade da narrativa, tendo como referência os textos de Pierre Bourdieu8, Moacy Cirne
e Pierre Fresnault-Deruelle9. A história é reproduzida nas páginas seguintes.
1. A estrutura da narrativa
Qualquer narrativa clássica, de acordo com Alain Bergala (1995), cativa o espectador (no
caso dos quadrinhos, o leitor) estabelecendo uma distância inicial entre um sujeito desejante e
seu objeto de desejo. “Toda a arte da narrativa consiste, depois, em regular a perseguição
sempre relançada deste objeto de desejo, desejo cuja realização é incessantemente adiada,
impedida, ameaçada e retardada até o final da narrativa”10. A função narrativa destes
obstáculos é prender o espectador pela vontade de ver a solução. O fim da narrativa ocorre
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quando o objetivo do protagonista é alcançado ou, pelo contrário, quando se encerra qualquer
possibilidade de realização deste objetivo. Em Como se nunca tivesse existido..., o desejo do
protagonista surge apenas ao final, e logo em seguida, constata-se que não é mais possível
realizar este desejo. O objetivo que move a história é o de Fábio11, que quer que Gabriel
responda ao interesse da moça.
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Sempre que se começa uma narrativa, cria-se uma situação que deve ser resolvida ao
final. A narrativa avança em direção a esta solução. O fato de a narrativa ser toda orientada,
organizada para a solução da intriga inicial, a torna previsível. Para surpreender e criar o
suspense que prende o leitor, o autor deve inserir uma série de obstáculos e elementos do
acaso na história, de forma a atrasar o avanço da narrativa12. É necessário que leitor fique na
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dúvida em relação ao desenlace, preveja e não preveja o que vai acontecer13. Este lento
avanço é, para Roland Barthes, o paradoxo de qualquer narrativa: “levar à revelação final, ao
mesmo tempo que deixá-la sempre para depois”14. Barthes15 chama de frase hermenêutica
esta sequência de paradas que atrasam o progresso rumo à solução, utilizando pistas falsas,
omissões, desvios, revelações, suspensões, engôdos. Em Como se nunca tivesse existido..., a
frase hermenêutica é composta pela inação do personagem de Gabriel.
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discurso. “Poder-se-ia dizer […] que a arte não conhece o ruído (no sentido informacional da
palavra): é um sistema puro, […] não há jamais unidade perdida, por mais longo, por mais
descuidado, por mais tênue que seja o fio que a liga a um dos níveis da história.”21. Em Como
se nunca tivesse existido..., a narrativa é bastante curta, e quase não há catálises. Uma destas é
a função de estender o braço ao olhar para a moça, de Gabriel. Outra catálise é a função de
apontar para a moça, de Fábio. As funções “fumar” e “segurar a garrafa” também são
catálises. Entretanto, como veremos adiante, elas são igualmente índices.
Barthes (1971) explica que há outra distinção que podemos fazer em relação às funções,
separando-as em dois grupos: as distributivas (como as que temos descrito até o momento, e
que são normalmente denominadas simplesmente funções, em vez de funções distributivas), e
as funções integrativas, que são índices (num sentido bastante amplo do termo), e assim são
chamadas. Os índices são o que caracteriza cada personagem, as informações sobre a
identidade destes, a “atmosfera” do local onde a cena se passa. Índices informam também
sobre sentimentos, caracteres, e ajudam a situar a história no tempo e no espaço. Os índices
têm, portanto, a funcionalidade de descrever personagens e cenários. Entretanto, Barthes
ressalta que não se deve reduzir as funções a ações (verbos) e os índices a qualidades
(adjetivos), porque há ações que são indiciais: elas podem representar as características de um
personagem ou de uma 'atmosfera', de um local.
Gabriel segura uma garrafa de cerveja durante toda a narrativa. Trata-se de uma função
indicial cujo propósito é informar ao leitor sobre seu estado de embriaguez (os pequenos
círculos ao lado de sua testa têm o mesmo propósito). Outra função indicial é o ato de fumar
um cigarro: durante muitos anos, o cigarro foi um símbolo de sensualidade, de sedução, de
modo que o fato de ela estar fumando reforça a mensagem de interesse transmitida pelo
sorriso da moça. Ambos estão vestidos de forma semelhante, indicando afinidade: uma
camisa escura, com uma listra clara na manga, estampa clara, faixas no pulso, anel. Por fim,
há o cenário e os personagens ao fundo, cuja função indicial é compor o ambiente.
Barthes (1971) ressalta que algumas narrativas são mais funcionais (como o conto:
apenas os elementos mais estruturais estão presentes) e outras são mais indiciais (isto é, são
mais descritivas, descrevendo uma atmosfera, sentimentos, locais, personalidades, detalhes
que compõem um ambiente, situação ou personagem). Nesta segunda categoria, por exemplo,
estaria Como se nunca tivesse existido....
Podemos fazer um diagrama de sua estrutura, apontando suas funções.
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quadrinhos)22. Seus códigos visuais são bastante discretos. Os balões de fala são de um
formato constante, assim como a fonte usada para as palavras; a diagramação é simples, a
perspectiva é a que representa a visão do olho humano, a história é em preto e branco. A
representação dos personagens em si é bastante simples, icônica. Talvez o que mais chame
atenção seja a mudança constante de ponto de vista e do tamanho dos quadros, o que não
chega a quebrar, entretanto, a transparência da narrativa. Esta transparência garante que toda a
atenção se concentre na história.
Uma das primeiras impressões que um leitor pode ter a respeito de Como se nunca
tivesse existido... é que suas páginas são impressas em preto e branco, como, aliás, todo o
livro ao qual pertence. O preto e branco nesta história têm diversos significados. Na primeira
imagem, da mão que apaga a mesa do bar, o preto e branco têm representações opostas,
matéria e inexistência. O preto, nesta história, representa também a noite. No quarto quadro,
o fundo preto e as sombras no rosto de Gabriel significam uma certa depressão. No último
quadro, em que os irmãos estão isolados por uma mancha negra, o preto conota a solidão
(embora estejam juntos, estão separados do resto do mundo pelo negro). Outro aspecto do uso
do preto e branco é que ele amplia o efeito de realismo, devido à ligação com documentos e
documentários. O preto e branco está mais associado a fatos, enquanto cores são mais
associadas a histórias.
Uma das principais funções da textura é representar a materialidade, dar solidez aos
objetos. Outra função é a de representar a imperfeição, a sujeira. Neste conto, ela se encontra
nas paredes e na mesa da moça. A textura também pode representar um relevo ou material
específico, como no caso dos pelos nos braços e dos cigarros no cinzeiro, ou dos muitos
objetos lisos, polidos, transparentes.
Em relação à composição, o primeiro quadro (que será o que analisaremos), tem como
focos de atenção Fábio, antes de tudo, que está numa posição central, e Gabriel, ao qual
somos conduzidos pelo olhar de Fábio. Ambos estão em primeiro plano, o que condiz com a
importância que possuem neste quadro. Em terceiro plano, à direita, está a moça para quem
Fábio aponta, embaixo do vértice de um triângulo formado pela luz. Devido a esta posição,
ela se torna um terceiro foco de atenção, mesmo porque três verticais (a fumaça, o porta-
canudos e um cartaz) também conduzem a ela. O quadro é grande o suficiente para mostrar
todos os personagens e cenários. O ponto de vista traz o leitor para perto dos personagens
principais; como se ele estivesse do outro lado do balcão, permite ver a moça, ao fundo, e
parte do cenário. O ponto de vista muda de quadro para quadro. No segundo, por exemplo,
vemos Bá do ponto de vista do outro lado, de forma a podermos ver seu rosto quando ele vira
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para olhar para a moça. No terceiro, vemos a moça do ponto de vista do rapaz. O quadro é
mais estreito para que ela seja o foco absoluto de atenção. Os dois próximos quadros são
feitos de tal ponto de vista que não se possa ver a moça, e o leitor se surpreenda com sua
ausência no penúltimo quadro (no qual o ponto de vista novamente permite ver sua mesa). O
quinto quadro é grande o suficiente para a fala de Fábio e para mostrar mais o cenário (que
tem uma função indicial importante na história). O sexto quadro tem que ser largo para
mostrar tanto os irmãos quanto a mesa vazia. O último quadro mostra os irmãos à distância,
de costas, como se o leitor se afastasse, encerrando a história (um efeito que os autores usam
em várias narrativas). Uma das razões pelas quais o ponto de vista muda tantas vezes é que os
personagens principais ficam relativamente parados ao longo de toda história (embora eles
gesticulem, não saem de seus lugares respectivos). Todo o movimento da história fica a cargo
do ponto de vista. Como afirma Cagnin (1975, p. 110)23, “a mudança vertiginosa de planos,
de pontos de vista […] e a busca de formas inusitadas dinamizam a história e atraem o leitor”.
Em relação à perspectiva, o autor usa a perspectiva artificialis – uma imagem realista
para uma história verossímil. Podemos apenas ressaltar a perspectiva acentuada do braço de
Gabriel no segundo quadro, que acentua a tridimensionalidade de uma imagem que é, afora
isso, essencialmente bidimensional (devido ao alto contraste, à ausência de tonalidades),
apesar de ter muitos planos. Neste quadro, o braço de Gabriel parece ir em direção ao leitor24
(na diegese, vai em direção à moça), reforçando a impressão de proximidade. O leitor
acompanha Gabriel durante toda a história, embora haja um afastamento progressivo (o ponto
de vista é mais distante no quinto quadro, o que se acentua no último), como se houvesse uma
preparação para o fim da história.
A diagramação reflete, em grande parte, a busca de transparência da narrativa, por ser
tão discreta, a ponto de quase passar despercebida. As sarjetas são todas da mesma largura, os
quadros e todos os quadros de uma mesma faixa têm a mesma altura, a ordem de leitura é
clara, o que aumenta a transparência da narrativa. Há poucos quadros, distribuídos com folga
ao longo de três páginas, o que permite que sejam grandes, o que, por sua vez, possibilita que
os personagens sejam representados como estando mais próximos do leitor.
Nos quadrinhos, o transcorrer dos acontecimentos e o tempo podem ser mostrados de
três formas: através de uma sobreposição de instantes; através da representação do instante
“mais relevante” (conhecido como “instante pregnante”25); e através da sequência dos
quadros. A sequência dos quadros forma a narrativa. Um quadro é um indicador de leitura,
cuja função básica é delimitar uma unidade narrativa e deixar claro se o conteúdo
representado é realidade, sonho, fantasia ou flash-back. Cohen e Klawa26 explicam que os
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quadros são mais inteligíveis quando estão em sequência. O quadro anterior fornece
informações que ajudam a explicar o que se segue; o quadro seguinte esclarece o anterior. Em
Como se nunca tivesse existido..., todos os quadros derivam seu significado dos quadros
anteriores (com exceção do primeiro). O segundo quadro, em que Gabriel olha para a moça, é
um exemplo de como o quadro posterior altera o significado do anterior: o terceiro quadro,
que mostra a moça, completa o segundo, dando sentido ao olhar do protagonista.
Os balões de fala são uma forma de mostrar um período de tempo maior numa imagem
estática. Muitos vezes, a pergunta de um personagem e a resposta de outro encontram-se num
mesmo quadro, sobrepondo, portanto, dois instantes diferentes. O balão é um símbolo que
representa o ato de falar, além do conteúdo da fala. Em Como se nunca tivesse existido, os
balões são uniformes; do mesmo modo, a fonte das letras que os balões contêm não se altera,
indicando que não há nenhuma variação de tom ou de volume nas falas dos personagens. A
única ênfase se encontra nas falas do narrador, em que certas palavras são compostas em
negrito e itálico, à moda americana.
Em relação aos movimentos, é uma história com pouca ação – todos os movimentos são
cotidianos, e não precisam de linhas de movimento ou outros sinais que os expliquem. A
postura curvada de Gabriel, conotando embriaguez (podemos compará-la com a postura ereta
da moça, que representa sobriedade e que é mais um sinal do quanto ela é atraente), a mão
estendida em direção à moça no segundo quadro, num sinal de surpresa (que os olhos muito
abertos acentuam), o fato de Gabriel estar sempre segurando a garrafa (já mencionamos que
este é um signo de embriaguez), os braços estendidos de Fábio enquanto argumenta,
representando indignação (o que é acentuado pela expressão de seu rosto), são gestos que
portam significados. Os rostos são igualmente expressivos: o convite no sorriso da moça, a
inércia nos olhos semicerrados de Gabriel, por exemplo.
Desenhos são ícones, que têm, entretanto, aspectos arbitrários. Em Como se nunca
tivesse existido..., há um forte grau de analogia (as proporções dos personagens, por exemplo,
são essencialmente as mesmas de um ser humano real) e um certo grau de convenção. A
representação dos personagens em preto e branco, com uma linha de contorno, por exemplo, é
uma convenção. Apenas as sombras mais escuras são desenhadas; todas as variações de
luminosidade são simplificadas em preto absoluto e branco. A pele humana, que no mundo
real não é da cor de papel, é representada com esta tonalidade. Nem tudo é desenhado: são
omitidos os detalhes da pele humana, rugas, fios de cabelos, a textura e os detalhes dos
objetos, e assim por diante. Cabe lembrar que nenhum destes desenhos representa algo que
realmente exista no mundo real: os personagens e os cenários são fictícios, e só ganham
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existência a partir do momento em que são desenhados (não há nada além de tinta no papel, e
quem dá voz, movimento e vida aos personagens é a imaginação do leitor). Entretanto, todos
têm como referência uma classe de seres vivos e objetos do mundo real: a moça, por exemplo,
tem os atributos das moças jovens de verdade: um rosto, cabelo, braços, e assim por diante. É
a esta classe que o leitor recorre em sua memória para interpretar o ícone.
Os móveis, figurinos e objetos que compõem o ambiente são desenhados com um grau
maior de analogia, talvez porque sejam símbolos menos universais, menos conhecidos, e,
portanto, precisem ser mais detalhados, mais analógicos, para serem compreendidos. Por
outro lado, é comum nos quadrinhos que o cenário seja mais analógico e detalhado que os
personagens. Fresnault-Deruel1e (1972) afirma que estes detalhes trazem um ar de rigor, de
exatidão e de realismo à narrativa. Eles combatem a irrealidade dos traços dos personagens e
conferem verossimilhança à narrativa (como se os personagens tivessem existência real).
Os personagens são desenhados de forma mais simbólica. Em Como se nunca tivesse
existido..., Bá desenha a moça, por exemplo, de forma quase inteiramente codificada,
construindo-a a partir de uma série de signos que portam o significado “atraente”, com todas
as características exageradas para serem explícitas. Os cabelos loiros e sedosos, a cintura
muito fina (muito mais do que seria num estudo de modelo vivo, por exemplo), os seios
fartos, o nariz pequeno, a boca grande, os olhos alongados, a pinta na bochecha direita, entre a
boca e o nariz 27: é um cliché do que é uma mulher atraente. O leitor não precisa que Gabriel
afirme que ela é “bem gostosa” para chegar à mesma conclusão: a imagem é inequívoca.
Antônio Cagnin (1975) afirma que toda imagem é uma oração, ou, mais precisamente,
pelo menos dois enunciados linguísticos. Tomemos o exemplo da imagem da moça no
terceiro quadro: seus significados denotativos são “isto é uma moça bonita” e “a moça sorri”.
Christian Metz28 afirmava: “Um close-up de um revólver não significa revólver […], mas
significa, como um mínimo, e deixando de lado suas conotações, eis um revólver. Ele veicula
a sua própria atualização, algo como ei-lo aqui.” A imagem da moça é exatamente isto: “eis
uma moça bonita sorrindo”. É a atualização de um conceito, embora não deixe de ser um
conceito. Neste sentido, em teoria, toda a história poderia ser recontada através de
enunciados. Entretanto, poderíamos realmente substituir as imagens por texto, sem perda de
informação? Para tanto, teríamos que ignorar o fato de que imagens tendem a ser
polissêmicas. Ao escolher uma série de enunciados, deixamos de lado outros significados
(tanto denotativos quanto conotativos) que também poderiam ser válidos. Além disso, nem
toda imagem tem um significado tão explícito, tão claro. Muitos são difusos, vagos. Há
aspectos da imagem que não podem ser transcritos em palavras29. Por exemplo, poderíamos
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Conclusão
O objetivo deste artigo era analisar uma narrativa em quadrinhos sob três pontos de vista:
sua estrutura, o papel da imagem e o tempo na narrativa (especificamente a questão do tempo
morto). Quanto à estrutura da narrativa, vimos que estas são constituídas por funções, que
exigem outras funções, complementares a estas, até que o ciclo se encerre. Em relação à
imagem, buscamos mostrar que cada elemento da imagem é um signo, inclusive elementos
plásticos como cor, textura e assim por diante. Outro aspecto importante da imagem nos
quadrinhos, que é essencial para a narrativa, é a questão da sequência. Por fim, concluímos
que embora o tempo representado diegeticamente seja um tempo morto, o próprio fato de ele
ser representado significa que, extra-diegeticamente, ele não é “morto”, mas relevante.
1 MOON, Fábio; BÁ, Gabriel. Crítica. São Paulo: Editora Devir, 2004.
2 BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: BARTHES, Roland et al. Análise
estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971.
3 VERNET, Marc. Cinema e narração. In: AUMONT, Jacques, et al. A estética do filme. Campinas, SP:
Papirus, 1995.
4 TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural
da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971.
5 BERGALA, Alain. O Filme e seu espectador. In: AUMONT, Jacques, et al. A estética do filme. Campinas,
SP: Papirus, 1995.
6 JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. São Paulo: Papirus, 2008.
7 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1976.
8 BOURDIEU, Pierre. A Ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Morais
(coordenadoras). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
9 CIRNE, Moacy. Quadrinhos, Sedução e Paixão. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. La Bande Dessinée. Paris : Hachette, 1972.
10 Bergala (1995, p.263).
11 Sabemos que os personagens se chamam Fábio e Gabriel porque já apareceram em outras histórias do autor.
12 Cabe aqui uma distinção entre história e narrativa. Vernet (1995, p.113) define a narrativa como “o
enunciado em sua materialidade, o texto narrativo que se encarrega da história a ser contada” (1995, p.106).
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Já a história seria “o significado ou o conteúdo narrativo (mesmo se, no caso, esse conteúdo for de fraca
intensidade dramática ou de fraco teor factual)”. A narrativa seria a história em quadrinhos em si: os
desenhos e textos na sequência em que se encontram. A mesma história poderia ter outra narrativa se alguém
decidisse, por exemplo, refazer a história em quadrinhos, ou então fazer um curta-metragem baseado nela.
13 Vernet (1995).
14 Citado por Vernet (1995, p.125).
15 Citado por Vernet (1995).
16 Um programa é um elemento que leva ao avanço da história rumo à solução do conflito principal; um
programa antiprograma, ao contrário, tem a função de frear o avanço em direção a esta solução (segundo
Vernet (1995), um antiprograma não deixa de ser um programa, na medida em que seu desenvolvimento é
organizado; há uma espécie de sintaxe para sua disposição na narrativa). Um antiprograma pode fazer parte
do início de um programa. Por exemplo, o momento em que um herói está o mais longe possível de seu
objetivo – nas mãos do vilão, à beira da morte ou no fundo do poço – pode ser o início de sua ascensão. A
frase hermenêutica é um antiprograma.
17 Falaremos mais adiante da questão da composição, mas gostaríamos de ressaltar que a diagonal que divide
esta imagem em duas traz dinamismo ao movimento da mão.
18 De forma semelhante, Tzvetan Todorov (1971, p.212) afirma que o “sentido (ou a função) de um elemento
da obra é sua possibilidade de entrar em correlação com outros elementos desta obra e com a obra inteira.”
19 Barthes (1971) diz que são as ações que fornecem significado às funções, que estão em um nível inferior.
Acreditamos que a diferença entre os conceitos de Ação e de Programa é que o segundo tem um sentido de
avanço ou de atraso para a narrativa (uma orientação, enfim) que o primeiro não tem. À parte isto, os
significados dos dois conceitos nos parecem ser muito próximos.
20 Barthes (1971, p. 25) diz que há três níveis: o das funções; o das ações; e o da narração, ou discurso. Ele
explica a relação entre os três: “uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um actante; e
a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada, confiada a um discurso que tem seu
próprio código”. (Segundo Vernet, o conceito de actante foi criado por Vladimir Propp, para se referir aos
personagens que são definidos por sua 'esfera de ação', isto é, as funções que cumprem na história, e não por
suas características sociais e psicológicas). Em Como se nunca tivesse existido..., a função “olhar para moça”
está inserida no contexto da ação “tomada de consciência”, em que o personagem verifica qual é exatamente
a situação.
21 Barthes (1971, p.28)
22 Uma narrativa é transparente quando o leitor não percebe as marcas de sua construção, isto é, não percebe
que a narrativa é construída por um autor (ou por uma instância narrativa real, no caso do cinema, que é
feito, em colaboração, por muitas pessoas), que a narrativa tem uma materialidade. Na narrativa transparente,
a história parece se contar sozinha, de forma natural, autônoma, e o universo diegético parece muito real ao
leitor: como se houvesse mais do que está sendo mostrado, como se os personagens tivessem uma existência
real entre as cenas, agindo sem ser vistos pelo leitor.
23 CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.
24 Outra função desta imagem em perspectiva tão inusitada é trazer interesse visual à história e dinamizá-la,
como explicamos acima.
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25 Segundo Jacques Aumont, com o advento da fotografia, percebeu-se que não há um instante único que
sozinho possa representar a história como um todo; que não há um instante que seja mais importante do que
os outros; cada um é um instante qualquer. AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 2002.
26 COHEN, Haron; KLAWA, Laonte. Os Quadrinhos e a comunicação de massa. In: MOYA, Álvaro de et alli.
Shazam!. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.
27 Esta descrição em palavras coincide exatamente com a imagem de Marilyn Monroe em Os homens preferem
as loiras (1953), símbolo absoluto da beleza, sensualidade e atratividade. O corte de cabelo e o figurino são
diferentes, reflexo de épocas diferentes.
28 Apud Cagnin (1975, p.77).
29 Isso é facilmente percebido no caso de imagens cômicas, cujas descrições nem sempre têm graça.
30 Em seu texto A Ilusão Biográfica, Pierre Bourdieu escreve (a respeito dos relatos biográficos, mas isto se
aplica à forma como concebemos a vida em geral) que uma vida pode ser apreendida como expressão de uma
“intenção” subjetiva e objetiva, de um projeto. Nos relatos, a vida é organizada como uma história, segundo
uma ordem cronológica, mas também lógica, “desde um começo […], no duplo sentido de ponto de partida,
de início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até seu término, que também é um
objetivo.” (2006, p.184). Segundo Bourdieu (2006), o relato autobiográfico se baseia, pelo menos em parte,
na preocupação de se extrair um sentido, uma lógica retrospectiva e prospectiva, de uma vida. No relato,
estabelecem-se relações inteligíveis entre os estados sucessivos (como a de causa e efeito), percebidos como
etapas de um desenvolvimento necessário. São selecionados certos acontecimentos considerados
significativos, e conexões são estabelecidas entre eles para lhes dar coerência, em uma criação artificial de
sentido. Ainda que não cheguemos a escrever uma autobiografia, é comum esta busca de um sentido não
apenas ao nos lembrarmos do percurso de nossas existências, como ao projetarmos nossas vidas, ao
pensarmos no futuro. Deste modo, selecionamos os momentos que consideramos relevantes para nossa
história. Os “tempos mortos” de nosso cotidiano ficam inteiramente em segundo plano – são considerados
insignificantes, não fazem parte do projeto, do sentido que acreditamos que nossas vidas possuam.
Voltando à questão da história de vida, de ver a vida como uma história, isto é, “como o relato coerente de
uma sequência de acontecimentos com significado e direção” (BOURDIEU, 2006, p. 185), talvez seja,
segundo Bourdieu, conformar-se com uma ilusão retórica, um modo de representar a existência bastante
comum, reforçada por toda uma tradição literária. Bourdieu afirma que é significativo que o abandono do
modo de estruturar um romance como um relato linear tenha acontecido na mesma época em que houve o
questionamento da visão da vida como uma existência com significação e direção. Ele cita Allain Robbe-
Grillet: “o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo,
formado por elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos
porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório”.
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