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O tratamento cartográfico Resumo

da informação em saúde do Apesar do reconhecimento da importância


dos conhecimentos geográficos e do uso
trabalhador das ferramentas de análise espacial nos
estudos da saúde coletiva, esse é um campo
ainda pouco explorado pelos pesquisadores

Mapping of information on worker’s brasileiros. Em levantamento realizado nas


principais revistas científicas que veiculam
health os resultados de pesquisa em saúde do tra-
balhador, verificou-se o grande predomínio
do uso de tabelas e gráficos como meio de
organizar e apresentar os resultados obti-
dos, e o número reduzido de mapas. Para
isso foram examinados todos os artigos
publicados em quatro periódicos (Revista
de Saúde Pública, Cadernos de Saúde Pú-
blica, Revista Saúde e Sociedade e Revista
Brasileira de Epidemiologia) no período de
1967 a 2009. Uma vez analisado o conjunto
de artigos selecionados no estudo, aqueles
que utilizaram representações cartográficas
receberam atenção especial. Verificou-se
que, embora ainda pouco utilizadas, as
ferramentas do geoprocessamento e da
geoestatística com suporte em SIG abrem
um campo de novas possibilidades no uso
da cartografia temática em saúde do traba-
lhador no Brasil. Contudo, recomenda-se
para os editores das revistas científicas o
detalhamento de normas técnicas para
publicação de figuras cartográficas, assim
como a elaboração de pareceres específicos
que possam auxiliar os autores em vista das
modificações necessárias para a melhoria
da qualidade da comunicação visual de
mapas e da correlação espacial por meio
do tratamento cartográfico.

Palavras-chave: Saúde do trabalhador, Car-


tografia temática. Informação geográfica.
Literatura de revisão.

Raul Borges GuimarãesI


Helena RibeiroII
I
Departamento de Geografia da FCT da UNESP
II
Departamento de Saúde Ambiental da FSP da USP

Correspondência: Raul Borges Guimarães . Departamento de Geografia da FCT da UNESP


- Campus da FCT. Rua Roberto Simonsen, 305 - Presidente Prudente, SP CEP 19060-900. E-mail:
raul@fct.unesp.br

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Abstract Introdução

Geographic studies and spatial analyses A motivação do presente artigo é a dis-


have been recognized in Brazilian public cussão do modo como a informação nas
health papers. It is still, however, very little pesquisas em saúde do trabalhador tem
explored by researchers. In a survey of the sido tratada cartograficamente no Brasil.
leading scientific journals covering issues Em levantamento realizado nas principais
related to Brazilian worker’s health, we revistas científicas que veiculam os resul-
found the predominant use of charts and tados de pesquisa do tema, verificou-se o
tables as a way to organize and present grande predomínio do uso de tabelas e grá-
results with a small number of maps. This ficos como meio de organizar e apresentar
survey was conducted by examining all pa- os resultados obtidos, e o número reduzido
pers published in four journals, covering the de mapas. A principal questão que norteia o
period from 1967 to 2009 (Revista de Saúde texto é a relevância das figuras cartográficas
Pública, Cadernos de Saúde Pública, Revista não apenas como estratégia de exposição
Saúde e Sociedade, and Revista Brasileira dos resultados, mas no desenvolvimento
de Epidemiologia). After analyzing the set do raciocínio e da linha argumentativa das
of papers selected for the study, the papers pesquisas, facilitando o estudo de corre-
that used maps were given special atten- lações espaciais entre condições sociais,
tion. The tools of geoprocessing and geo- ambientais e a saúde do trabalhador.
statistics with GIS support, although little A representação e visualização do mun-
used, open new possibilities to use thematic do por meio de mapas têm sido objeto de
cartography in the field of workers’ health. reflexão de vários pesquisadores. Bertin1
However, it is recommended that editors of inventariou os recursos cartográficos,
scientific journals have detailed technical propondo uma semiologia gráfica com
standards as well as specific reports for the base nas categorias de tamanho, forma,
publication of cartographic figures aimed valor, textura e orientação. MacEachren2 foi
at facilitating the modifications necessary além de examinar os mapas apenas como
for the improvement of the visual quality of veículo de comunicação visual, estudando
maps and of the spatial correlations through o papel da representação cartográfica na
cartography. forma de estruturar o pensamento acerca
das relações espaciais. Por sua vez, o grupo
Keywords: Worker’s health. Thematic
���������������
carto- de pesquisa sob a coordenação de Brunet3
graphy. Geographic information. Literature considerou o mapa tanto como resultado
review. do processo de representação das estru-
turas elementares da realidade, quanto
como ferramenta do processo cognitivo de
generalização. Para ele, os modelos gráficos
não são meras abstrações, mas resultado
de procedimentos racionais de apreensão
de relações existentes entre os elementos
componentes do mundo sensível.
No campo da saúde coletiva, a carto-
grafia sempre foi um recurso para a formu-
lação de hipóteses etiológicas, conforme
Barret4. Na primeira metade do século XX,
tornaram-se populares vários Atlas mun-
diais de saúde que retratavam a situação
epidemiológica das regiões do globo num
contexto de aceleração dos processos de

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transmissão e disseminação de doenças. dos fenômenos de interesse epidemioló-
Essa tendência ganhou tratamento estatísti- gico, destacando dois grupos principais de
co mais acurado a partir do início da década mapas: os pontilhados ou dot maps, e os
de 1960, permitindo comparabilidade entre de coeficientes ou rate maps. No primeiro
diferentes unidades espaciais, de acordo caso, o autor destacou a possibilidade de
com Nardocci et al.5 identificação de conglomerados em áreas,
Se o uso de mapas nos estudos epide- apesar das limitações para a análise dos
miológicos tornou-se cada vez mais fre- dados para o conjunto da população. Para
quente, a reflexão sobre a qualidade desse essa finalidade, ele recomendou o segundo
recurso transformou-se numa necessidade tipo de mapa, possibilitando o estudo das
acadêmica. Desse modo, Gatrell6 dedicou frequências em diferentes áreas. Preocupa-
um capítulo do seu livro para a discussão do com as variações espaciais das doenças,
dos modelos de mapeamento em geografia Forattini também reagrupou os mapas em
da saúde. Além da visualização da distri- estáticos ou dinâmicos e discutiu a relevân-
buição espacial dos dados, ele destaca a cia dos mapas para a comparação entre di-
importância da geoestatística e da análise ferentes áreas e, principalmente, as formas
espacial, com suporte em sistemas de de representação das variações espaciais
informação geográfica, para o estudo de das doenças no decorrer do tempo.
alguns temas relevantes da saúde ambiental Atualmente, Barcellos e sua equipe são
e saúde dos trabalhadores, como a relação referências importantes no assunto. A pro-
entre a contaminação do solo, a poluição do dução desses autores reforça a relevância da
ar e da água e determinados agravos à saúde análise espacial para a melhor compreensão
(neoplasias, patologias cardiovasculares, do processo saúde-doença. Para isso eles
entre outros). chamam a atenção para a escolha correta
Koch7, por sua vez, analisou o mapea- da escala em função da questão ambiental
mento da distribuição espacial de doenças a ser analisada11 e para a necessidade do
nos últimos trezentos anos. Sua análise tratamento das bases para o uso adequado
demonstra claramente como o desenvol- das ferramentas do geoprocessamento na
vimento da epidemiologia não teria sido análise espacial12.
possível sem a produção cartográfica, uma Apesar do reconhecimento da impor-
vez que ela possibilita uma compreensão tância do uso das ferramentas de análise
global das relações entre saúde e ambiente. espacial nos estudos da saúde coletiva, esse
No Brasil, Ribeiro 8 fez referência ao é um campo ainda pouco explorado pelos
importante trabalho de mapeamento de do- pesquisadores brasileiros. Na análise dos
enças associadas ao quadro nutricional por 1.174 posters apresentados no IV Congresso
Josué de Castro na década de 1940 e das pa- Brasileiro de Epidemiologia realizado no Rio
tologias infecciosas e parasitárias por Carlos de Janeiro em julho de 1998, Rojas et al.13 já
Lacaz na década de 1970. Segundo Ribeiro, o haviam ficado surpresos com a escassez de
mapeamento de coeficientes intra-urbanos mapas nas áreas de saúde ambiental e saúde
ganhou atenção mais recentemente9. ocupacional. Esses autores constataram
Por sua vez, Forattini10 foi o pesquisador que, quando utilizados em posters destas
brasileiro que desenvolveu uma primeira áreas, os mapas eram quase meramente
reflexão metodológica do mapeamento ilustrativos, incluindo figuras com a loca-
nas pesquisas em saúde pública do país. lização do Estado ou município em que se
Considerando que dificilmente o mapea- desenvolveu o trabalho, ou a localização de
mento poderia ser substituído na análise elementos espaciais da amostragem. Nos úl-
e formulação de hipóteses sobre o traçado timos 10 anos, observou-se a incorporação
de quadros nosológicos locais e regionais, crescente de técnicas e procedimentos de
ele dedicou especial atenção às formas correlação espacial na área de saúde, parti-
de representação da distribuição espacial cularmente em estudos ecológicos, segundo

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Carvalho e Souza-Santos14. As figuras carto- ano, uma análise qualitativa dos temas e
gráficas utilizadas em artigos sobre a saúde seleção de artigos com algum tratamento
do trabalhador nos periódicos acadêmicos cartográfico das informações.
brasileiros não são muito distantes desta Uma vez analisado o conjunto de arti-
tendência, como veremos a seguir. gos selecionados no estudo, aqueles que
utilizaram representações cartográficas
Procedimentos metodológicos receberam atenção especial. Em função
das características dos fenômenos espaciais
O presente estudo teve como objetivo analisados e da escala cartográfica adotada
analisar o uso do tratamento cartográfico foram verificados os tipos de objeto geo-
da informação em artigos científicos da área gráfico representados nos mapas. Além da
da saúde do trabalhador no Brasil. Para isso análise da adequação do modo de implan-
foram examinados quatro periódicos: Revis- tação dos objetos geográficos levou-se em
ta de Saúde Pública (RSP), editada pela Fa- consideração os elementos da linguagem
culdade de Saúde Pública da Universidade visual empregados, tais como a forma e o
de São Paulo e a mais antiga da área (1967); tamanho dos objetos.
Cadernos de Saúde Pública (CSP), editado Por fim, os mapas dos artigos seleciona-
desde 1985 pela Escola Nacional de Saúde dos foram analisados a partir dos níveis de
Pública da Fundação Oswaldo Cruz; Revista leitura cartográfica propostos por Libault15,
Saúde e Sociedade, editada desde 1992 pela expressos no Quadro 1. Segundo este autor,
Faculdade de Saúde Pública da Universi- cabe perguntar qual é o propósito do trata-
dade de São Paulo e Associação Paulista mento cartográfico da informação. Em um
de Saúde Pública; e Revista Brasileira de nível elementar, a preocupação central do
Epidemiologia (RBE), criada em 1998 pela “mapeador” é apenas de localização. Quan-
Associação Brasileira de Pós-Graduação em do a preocupação envolve a correlação dos
Saúde Coletiva (Abrasco). dados, o mapeamento é considerado de se-
Foram examinados todos os artigos gundo nível ou de análise espacial. Por fim,
desses periódicos, disponíveis na SciELO se a representação cartográfica possibilita
- Scientific Eletronic Library Online,*** – a construção de tipologias e o tratamento
biblioteca virtual para acesso a periódicos gráfico é um suporte para o julgamento e
científicos na Internet publicados no perí- avaliação do pesquisador, obtém-se um
odo de 1967 a 2009. Os termos “saúde do nível mais elevado de leitura: a síntese.
trabalhador”, “saúde no trabalho”, “mapa de
risco”, “risco ocupacional”, “fator de risco”, Resultados
“análise espacial”, “distribuição espacial”
e “mapeamento” foram levantados em O levantamento realizado nas revistas
todos os campos de busca (título, resumo acadêmicas resultou no conjunto de 64 arti-
e palavras-chave do artigo). A análise tam- gos, distribuídos entre as revistas conforme
bém incluiu a quantificação de títulos por o Gráfico 1. Dentre os periódicos analisados,

Quadro 1 - Níveis de Leitura Cartográfica


Chart 1 – Cartographic reading levels

Nível Habilidades cognitivas


1 – elementar Identifica e localiza
(o quê? onde?)
2 – de correlação Estabelece relações entre 2 ou mais elementos
(com quem? por quê?)
3 – de síntese Classifica (tipologia) e julga
(como? para quê?)

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a Revista de Saúde Pública é o principal fico das informações a respeito da saúde
veículo de divulgação das pesquisas reali- dos trabalhadores. O primeiro deles foi
zadas na área da saúde do trabalhador. Do publicado nos Cadernos de Saúde Pública,
total dos artigos selecionados, 36 (56,3%) em 1997 (Facchini et al.16), o segundo na
foram publicados nesta revista. Quando ela Revista de Saúde Pública, em 2002 (Leal
era o único periódico em circulação dentre e Wunch Filho17), o terceiro neste mesmo
aqueles analisados, foram publicados 10 periódico, em 2008 (Zangitolani et al.18),
artigos relacionados à saúde ocupacional. e o quarto artigo na Revista Brasileira de
Mesmo com o surgimento das outras revis- Epidemiologia, em 2009 (Bedor et al.19). As
tas, a Revista de Saúde Pública concentrou figuras cartográficas destes quatro artigos
a publicação sobre o tema, reunindo 26 foram avaliadas, conforme os níveis de
dos artigos analisados no período de 1985 leitura propostos por Libault15, e de outros
a 2009, seguida de 15 artigos publicados parâmetros importantes da representação
na Revista Brasileira de Epidemiologia, 10 temática20,21, como o modo de implantação
artigos nos Cadernos de Saúde Pública e 3 dos objetos geográficos (pontual, linear,
artigos publicados na revista Saúde e So- zonal), a escala geográfica (local, munici-
ciedade. Ainda, de acordo com o gráfico 1, pal, regional), as variáveis da comunicação
observa-se que, a partir de 2001, ocorreu um visual (pictórica, forma, valor) e os proce-
aumento significativo de publicações sobre dimentos metodológicos (mapeamento
saúde do trabalhador nas quatro revistas, participativo, plotagem, elaboração de
totalizando 45 artigos (70,3%) do conjunto cartograma, modelagem isarítmica). Todos
analisado. estes elementos foram utilizados para a
Apenas quatro dos artigos selecionados organização do Quadro 2, com os níveis de
apresentavam algum tratamento cartográ- leitura cartográfica dos artigos avaliados.

Gráfico 1 - Artigos analisados nas revistas científicas.


Graph 1 – Analysed articles in scientific journals.

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Quadro 2 - Níveis de leitura cartográfica – classificação dos artigos pesquisados .
Chart 2 - Cartographic reading levels - classification of papers surveyed.

Artigo Nível de leitura Modo de Escala variáveis da Procedimentos


cartográfica implantação comunicação metodológicos
visual
Cad Saúde Públ 1997, Elementar Pontual local pictórico Mapeamento
13(3): 497-502 Linear participativo
Zonal
Rev Bras Epidemiol 2009, Elementar Pontual Regional forma plotagem
12(1): 39-49 Linear
Zonal
Rev Saúde Pública 2002, Correlação Zonal Estadual Valor método
36(4): 400-8 coroplético
Rev Saúde Pública 2008, Síntese Pontual Municipal Valor método
42(2): 287-93 Linear isarítmico

Discussão O primeiro artigo com tratamento car-


tográfico16 é um exemplo interessante das
Apesar do número reduzido de artigos potencialidades do uso da representação
de saúde do trabalhador com tratamento temática em pesquisas da área da saúde do
cartográfico da informação (6,3% do total trabalhador. O mapa apresentado é resulta-
de artigos selecionados nas revistas), pôde- do da preocupação com o aprimoramento
se identificar uma evolução gradativa do da análise do risco em ambientes de traba-
uso destes recursos no estudo da saúde do lho. Esses autores discutiram uma proposta
trabalhador. Isto é evidente com a compa- de metodologia de mapeamento com a
ração entre as figuras elaboradas (Figura 1) participação dos trabalhadores, gerando um
e o cruzamento dos elementos avaliados modelo da planta da fábrica, com a repre-
(Quadro 2). sentação pictórica dos postos de trabalho

Figura 1 – Artigos analisados: representações cartpgráficas.


Figure 1 – Articles analyzed: cartographic models

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de maior risco (Figura 1A). Trata-se de um retidas nas propriedades e o restante é
produto cartográfico de leitura elementar, devolvido às lojas ou entregue à Asso-
uma vez que a representação apenas indica ciação do Comércio Agropecuário.
a localização dos objetos por tipo de risco.
Mas a simplicidade do mapa não invalida A simples comunicação cartográfica das
o seu valor para o maior envolvimento dos informações obtidas numa figura, com as
trabalhadores no diagnóstico e monitora- divisas administrativas e a localização dos
mento dos planos de prevenção dos danos lotes onde foram realizadas as entrevistas,
à saúde nos ambientes de trabalho. Pelo agregaria aspectos importantes na discus-
contrário, a qualidade do mapa não se mede são dessa situação. Afinal, era relevante no
apenas pelo grau de precisão e de conteúdo estudo descritivo reconhecer se haveria
técnico, mas também por outros atributos, alguma diferença entre os municípios da
que devem ser considerados na avaliação Bahia e de Pernambuco ou entre municípios
da qualidade dos produtos cartográficos, e vizinhos e mais distantes em termos do
que foram considerados pelos autores do destino das embalagens vazias de agrotó-
mapa como a legibilidade ou facilidade de xicos e de quem é o sujeito que manuseia
comunicação e a exatidão ou fidelidade às os produtos, ou seja, os empregados ou
informações levantadas no campo22. Afinal, pequenos proprietários rurais. Essas eram
a simplificação é um componente funda- informações disponíveis nos questionários
mental do método cartográfico que é, acima aplicados e que poderiam receber algum
de tudo, seletivo e generalizado. tratamento cartográfico, o que permitiria
Isto não quer dizer que este procedi- maior aprofundamento da análise dos da-
mento, simples e elementar, seja adequado dos coletados no campo.
em todas as situações. O nível de precisão Contudo, o mapa carece de uma deli-
e detalhamento de um mapa depende do mitação mais precisa dos limites entre os
problema enfocado pela pesquisa, das municípios e da divisão interestadual entre
informações possíveis de serem locali- Pernambuco e Bahia, na medida em que
zadas e do grau de exatidão aceitável na a área de estudo teve como recorte físico-
escala do mapa. Nestes casos, a acurácia territorial os lotes de produtores do curso
do tratamento cartográfico é um atributo médio da bacia hidrográfica. Neste sentido,
imprescindível, como no caso do trabalho a figura quase se presta apenas à ilustração e
de Bedor et al.19. Esses autores apresentam não dá suporte para a avaliação do compo-
no artigo um mapa para localizar os muni- nente espacial do problema analisado. É aí
cípios onde foram coletados os dados de que a disseminação do geoprocessamento
intoxicação por agrotóxico no pólo fruti- e a de aplicativos computacionais de car-
cultor do Vale do São Francisco, indicados tografia digital tem se mostrado como uma
por pontos nos distritos-sede (Figura 1B). grande alternativa para facilitar o uso do
O estudo tinha como objetivo descrever os método cartográfico pelos pesquisadores
danos à saúde e ao ambiente decorrente do da saúde do trabalhador. Seja pela dimi-
uso de agrotóxicos. Por meio da aplicação nuição dos custos, pelo desenvolvimento
de 300 questionários, amostragem definida de plataformas mais amigáveis ou mesmo
para garantir a representatividade de todos pela disponibilização gratuita de bases
os tipos de propriedades, o estudo aponta cartográficas digitais pelo IBGE e pelo INPE,
resultados importantes: as condições serão cada vez mais favoráveis
· 69% dos trabalhadores que manuseiam para o melhor aproveitamento dos recursos
o agrotóxico são empregados e 31% da cartografia no tratamento das informa-
pequenos proprietários rurais que tra- ções das pesquisas.
balham diretamente na terra; Isto já pôde ser observado nos mapas
· entre as embalagens vazias de agrotó- produzidos por Leal e Wunch Filho17, que
xicos, 7% são queimadas, 13% ficam fizeram uso do programa computacional

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do EpiMap (programa computacional do Estado de São Paulo, em centro de ortopedia
Center for Disease Control and Prevention, e traumatologia especializado, foi realizada
dos EUA), e por Zangirolani et al.18, que análise exploratória dos dados, observando-
utilizaram ferramentas de geoestatística se a distribuição espacial de frequência das
do ArcView (programa computacional do variáveis estudadas. A partir destes resulta-
instituto americano ESRI). dos, calculou-se a posição central e a disper-
No primeiro caso (Figura 1C), os auto- são das variáveis contínuas, possibilitando
res elaboraram um tipo de rate map com a elaboração de um mapa-síntese (Figura
coeficientes padronizados de mortalidade 1D) com a aplicação do método isarítmico.
de leucemia, procurando estabelecer re- Segundo Martinelli23, o método isarít-
lações com os níveis de industrialização mico resulta da representação da superfície
das regiões administrativas do estado de estatística por isolinhas (linhas que unem
São Paulo. O recurso cartográfico utilizado pontos de igual valor). Assim, valores to-
pelos autores foi a elaboração de cartogra- mados em pontos dispersos na superfície
mas pelo método coroplético, uma vez que do mapa possuem uma localização (X,Y)
as áreas das regiões administrativas foram e uma terceira dimensão (Z). No artigo de
transformadas em superfícies estatísticas23. Zangirolani et al.18 este procedimento foi
Os autores utilizaram este artifício para adotado para estabelecer a intersecção
explorar possíveis relações ecológicas entre entre os endereços das empresas com aci-
industrialização e doença. Esta forma de dentados, setorizando o espaço urbano por
tratamento cartográfico da informação foi grau de risco (superfície tridimensional). É
suficiente para se produzir um mapeamento por isto que este mapa foi considerado de
de segundo nível (correlação) e confirmar o terceiro nível, uma vez que é resultado de
que também foi possível analisar por meio um esforço de síntese, por meio da recu-
da estatística. Ou seja, o método cartográ- peração da superfície de valores a partir de
fico demonstrou ser tão eficiente na análise dados pontuais dispersos.
de correlação quanto métodos mais usuais Se a cartografia digital facilitou o manu-
de tratamento estatístico dos dados. seio de programas de suporte SIG e incor-
Por sua vez, os autores demonstraram porou procedimentos de geoestatística no
conhecimento das limitações deste tipo de processamento de dados (Figuras 1C e 1D),
abordagem cartográfica, uma vez que as ainda é preciso avançar no acabamento das
divisas entre as regiões representadas pelo figuras publicadas. Para quem não conhece
método coroplético apresentam desconti- as regiões administrativas do Estado de São
nuidade de unidade observacional de uma Paulo, ou a cidade paulista de Piracicaba,
área para a outra, o que pode significar uma elementos básicos de comunicação car-
divisão artificial da realidade. Para isto, os tográfica facilitariam a correlação espacial
autores fizeram referência à necessidade de complementar à correlação estatística,
definição de áreas em função dos atributos e como a indicação de vias principais e cir-
da dinâmica do fenômeno estudado. culação e da área urbana central.
Esse modo de tratamento cartográfico
da informação pode ser observado no Considerações finais
trabalho de Zangirolani et al.18 (Figura 1D).
Trata-se de um estudo geoestatístico com Nos artigos analisados, os dados espa-
suporte em SIG com o objetivo de analisar ciais não foram apenas do tipo quantita-
a distribuição espacial do risco de acidente tivo, mas também qualitativos. Os dados
do trabalho controlado por variáveis nu- quantitativos são resultados de medidas ou
tricionais e outras co-variáveis. Utilizando contagens efetuadas acerca dos fenômenos
como fonte o cadastro de atendimento estudados. Neste caso, por exemplo, os da-
ambulatorial de trabalhadores acidentados dos referem-se à distância entre os objetos
e residentes no município de Piracicaba, no geográficos, bem como à concentração ou

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dispersão, às médias, às frequências e às flu- moto, sistemas de informação geográfica e
tuações. Os dados qualitativos referem-se às grande oferta de pacotes de geoestatística)
características dos objetos geográficos, tais tenha reforçado a associação do mapea-
como localização e distribuição no espaço, mento com abordagens quantitativas.
vizinhança e conectividade. A despeito do desenvolvimento de novas
A escolha de qual representação car- tecnologias, que culminaram inclusive com
tográfica é mais adequada depende do uma nova definição de Cartografia pela
poder de síntese do assunto que se quer Associação Cartográfica Internacional, com
tratar, ou dos propósitos da pesquisa. Nos relação ao mapeamento temático, ainda é
quatro artigos analisados, do conjunto de válida a definição de Joly22, segundo a qual
64 selecionados, os autores utilizaram o cartografia é a arte de conceber, de levantar,
tratamento cartográfico da informação para de redigir e de divulgar os mapas. Assim, o
analisar problemas de localização e de rela- mapeamento também pode ser um cami-
ções espaciais, problemas de qualificação e nho a ser considerado na análise de fenôme-
de diferenciação entre áreas, problemas de nos que não sofrem avaliação matemática.
classificação e comparação entre lugares Neste caso, o melhor tratamento para se
(grau de risco) e problemas de proporções e eliminar imprecisões ou facilitar a conver-
valores de superfícies estatísticas. Estes são são do subjetivo ao objetivo, é submeter o
alguns problemas interessantes que podem fenômeno à prova da cartografação15. Desde
ser explorados pelo tratamento cartográfico que respeitadas as regras da linguagem
das informações em pesquisas na área da visual, que considera as limitações do olho
saúde do trabalhador. humano diante dos objetos ao seu redor, a
Ainda que os mapas sejam quase inexis- correlação cartográfica certamente com-
tentes nos estudos em saúde do trabalhador, plementa a correlação estatística, como
o uso do geoprocessamento e de ferramen- demonstra o artigo de Leal e Wunch Filho17.
tas de geoestatística, com suporte em SIG, A representação dos elementos geográ-
abre um campo de novas investigações. ficos, por meio de linhas, formas e cores,
Isto exige maior discussão dos limites e coloca esse processo de tomada de decisão
potencialidades da cartografia, bem como não apenas no campo do conhecimento
das dificuldades encontradas para tornar científico, mas envolve o domínio da lingua-
as geotecnologias mais amigáveis aos pes- gem apropriada aos problemas tratados nas
quisadores brasileiros. Várias iniciativas diversas pesquisas e expressos de diferentes
nesta direção estão em desenvolvimento, maneiras pelas figuras cartográficas dos
como a formação de redes cooperativas artigos científicos. Assim, nas aplicações em
interdisciplinares, envolvendo especialistas saúde do trabalhador em questão, é o pes-
de diversas áreas (epidemiologia, geografia, quisador que conhece o assunto e o modelo
estatística, ciências da computação etc.), que vai representar – o risco ocupacional,
como ocorre no projeto Saudável, dentre por exemplo. É ele que deve discernir para
outros exemplos citados por Carvalho e acrescentar ou suprimir detalhes, segundo
Souza-Santos18. a escala e a finalidade do seu mapa.
Contudo, a impressão que fica da análise Tais conclusões baseiam-se no fato de
dos mapas é a de que talvez a cartografia que os documentos cartográficos não são
digital tenha reforçado a idéia de que o simplesmente apreendidos de modo intacto
tratamento gráfico da informação responde do papel para a mente do leitor. Pelo con-
a processamentos automáticos pré-estabe- trário, quando o leitor observa uma figura
lecidos, não havendo a necessidade de fazer cartográfica, exerce um papel ativo de de-
uso da arte expressiva dos mapas como um codificação, interpretação e avaliação. É por
recurso de comunicação e cognição. Da causa disto que, ao olhar para os mapas, o
mesma forma, talvez o impacto provocado leitor não mobiliza apenas a sua capacidade
pelas geotecnologias (sensoriamento re- de visualização da realidade a partir de sua

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representação gráfica. Eles também exigem mento de normas técnicas para publicação
capacidade de leitura dos códigos específi- de figuras cartográficas nas orientações para
cos da linguagem cartográfica, potenciali- apresentação de artigos, assim como o en-
zando o uso de cartas temáticas na análise caminhamento a pareceristas especializa-
de interações entre o espaço produzido, as dos em cartografia, que possam auxiliar os
condições ambientais e o risco à saúde dos autores nas modificações necessárias para
trabalhadores. a melhoria da qualidade da comunicação
Pelo exposto acima, recomenda-se aos visual de mapas e da correlação espacial por
editores das revistas científicas o detalha- meio do tratamento cartográfico.

Referências

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