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A MORTE PEDE PASSAGEM: Os costumes fúnebres e as atitudes da população de

Paripiranga-BA para com a morte e os mortos (1920-1940)

Robério José Santos Junior1

1 INTRODUÇÃO

Morte, uma palavra que gera nos indivíduos certo receio; as pessoas têm medo ou
preferem não tocar nesse assunto, justamente pelo fato de ter que enfrentá-la algum dia, ou
melhor, ter que se render à mesma. O que muitas pessoas não enxergam ou não querem
enxergar, é a grande diversidade cultural que existe na morte e em suas práticas. São vários
países no mundo que cultivam os rituais fúnebres; que são consequências de resquícios da
baixa idade média. A cidade de Paripiranga na Bahia teve em outrora algumas práticas
relacionadas à morte repletas de elementos culturais típicos da região. Pois, o sertão da Bahia
foi um dos lugares que se teve uma grande penetração de diversas culturas como as africanas
e as indígenas. Ou seja, houve uma grande mistura de ritos, práticas e de mentalidade para
com as mais variadas religiões, e claro para com as práticas da morte e do morrer2.
Inicialmente é importante observar uma parte da obra do autor Cândido da Costa e
Silva, na qual o mesmo traz à baila, uma passagem da morte nesta cidade um tanto que
hilária. Segundo o autor, existia em Paripiranga quando ainda era Coité, um tocador de
harmônica que se chamava Pedro Toca. Diziam as más línguas que o mesmo só sabia tocar
porque tinha um pacto com Satanás. Pedro Toca morreu em outra cidade e pediu ao seu amigo
Juvenal para ser enterrado em Coité. Depois de sua morte Juvenal o levou para o Coité e o
entregou aos seus familiares para realizarem os preparativos do enterro. Já no cortejo, as
pessoas iam rezando o Santo Ofício e dois cachorros começaram a brigar debaixo do caixão e

1
Acadêmico do curso de licenciatura em História do Centro Universitário UniAGES. Em Paripiranga-Bahia.
Cel: (75) 9 98058071. E-mail: roberiojuniorhist@gmail.com

2
SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no sertão da Bahia – São
Paulo: Ática, 1982.
não saiam de nenhuma forma. Depois de algum tempo, Pedro Toca “apareceu” para o seu
amigo Juvenal e lhe disse que os cães que brigavam debaixo do seu caixão era o Satanás
2

que o queria levar para o inferno, mas que não conseguiu porque as pessoas não pararam de
rezar o Santo Ofício3.
Com base nesta passagem ficam bem claras as práticas de enterro e as superstições
religiosas daquele período. Mas que na verdade se tornam muito importantes para um bom
entendimento do contexto social e da própria visão da população para com a morte e para com
a religiosidade, claro que utilizando também das memórias daquele período. “As memórias
fornecem alguns elementos diretos, relativos à natureza, à expressão de conhecimentos,
culturas, relações sociais e até políticas”4. Assim, se faz preciso analisar a população de
outrora, com um olhar voltado para as representações da época, ou seja, observar as atitudes
conjuntas das comunidades, numa perspectiva micro, para só então chegar ao objetivo central
que é relacionar o estudo efetuado ao macro social. Dessa forma, o trabalho poderá alcançar o
seu ponto primordial que é seguir numa perspectiva da história cultural.

2 VISITA AO MORIBUNDO

O medo que a morte traz é algo assustador para a grande maioria das pessoas;
entretanto, o morrer sempre teve suas peculiaridades nesta cidade. A morte observada era
comum; as pessoas morriam em suas casas, e eram assistidas por boa parte da sua
comunidade. O moribundo partia de sua vida cercado por amigos e parentes que de certa
forma faziam sua parte com bastantes orações e carinho. “Depois da última oração, resta
apenas esperar a morte, e esta já não tem a partir de então qualquer razão para tardar.
Pensava-se que a vontade humana podia conseguir ganhar sobre ela alguns instantes5.”
Assim, não adiantava muito, pois o acamado sempre acabava por morrer. Todavia, não
importava, visto que a ideia de se trazer a comunidade para dentro da casa do enfermo era
justamente o contrário, ou seja, que o moribundo morresse, mas que morresse cercado de
amigos e de paz.
Outra questão que vale a pena ser ressaltada nesta perspectiva da morte em casa, era a
auto avaliação do enfermo perante a sua própria partida. Ninguém sabia a hora exata que o

3
Ibidem. p. 24-25
4
OLIVEIRA, Ana Maria Ferreira de. Sob o signo da cruz, a malhada vermelha floresce: a origem de
paripiranga nas memórias paroquiais de (1840-1900): Universidade Federal de Sergipe centro e educação
superior departamento de história – HDI. Lagarto Sergipe, 2016, p. 11.

5
ARIÉS, Philippe. O homem perante a morte. Tradução de Ana Rabaça. Tradição Portuguesa de P. E. A.
1997, p. 28.
3

indivíduo entraria em óbito, já que eram quase ausentes os aparatos da medicina naquela
época. No entanto, o moribundo tinha uma breve percepção sobre a sua morte e estava ciente
de que suas horas em vida estavam por acabar. Por isso, realizava as suas próprias orações e
tinha o conhecimento das suas dívidas perante as pessoas; muitas vezes estas estavam
presentes na sua casa e do seu lado. “[...]. Nem o médico, nem os companheiros, nem os
padres; estes últimos ignorados e ausentes sabem tão bem como ele. Só o moribundo avalia o
tempo que lhe resta6.” Então, a morte chegava nesse contexto social; não deixava de ser
tenebrosa, entretanto, era menos assustadora para as pessoas que se faziam presentes.
Fazendo uma comparação com a idade média, que também era em alguns aspectos
parecida com as características estudadas nesta cidade7, ficam claros alguns pontos em
comum, principalmente no que diz respeito às visões do homem perante a sua morte. Na idade
média segundo Philippe Ariés8, a morte era mais familiar e não fazia medo a quem ela fora
levar, pois, o contexto da época era outro, no qual a perspectiva de vida era quase que mínima
devido aos fatos corriqueiros do período, como por exemplo, as doenças que assolavam a
época e as constantes guerras. Então, dessa forma os homens criaram uma espécie de
conformismo perante a morte e o morrer. Não se quer aqui dizer que a morte trabalhada no
recorte temporal deste artigo, fora uma morte tranquila e sem sombras; mas, se quer trazer à
baila os pontos em comum entre as épocas; os resquícios da idade média.
A morte e o morrer mudaram muito durante o passar dos anos. Hoje em dia é difícil
ver uma pessoa morrer em sua casa cercada por parentes e amigos; quando o enfermo está
muito mal os familiares o levam para o Hospital. Ou seja, a morte agora é adiada o máximo
possível. Não se tem mais as grandes multidões prestando a solidariedade ao morto e à
família.

A atitude em relação à morte e a imagem da morte em nossas sociedades


não podem ser completamente entendidas sem referência e essa segurança
relativa e à previsibilidade da vida individual- e à expectativa de vida
correspondentemente maior. A vida é mais longa, a morte é adiada. O
espetáculo da morte não é mais corriqueiro9.

6
Ibidem. p. 14.

7
Patrocínio Coité. Denominação dada à cidade de Paripiranga até 1933.

8
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2012

9
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos: seguido de, Envelhecer e morrer. Tradução, Plínio Dentzien.-
Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 15.
4

Isso acontece pelo fato das pessoas terem certo medo perante a morte e aos enfermos,
muitas vezes até mesmo os próprios filhos não querem os seus pais, que já se encontram
velhos e à beira da morte; por isso que se criaram os asilos, lugar destinado aos moribundos
esquecidos e deixados de lado para morrer. Esse processo é mais frequente em sociedades
metropolitanas e agitadas, pois “não se têm mais o tempo para cuidar dos velhos doentes”10.
Aí já remete a questão da efervescência dinâmica do capitalismo, visto que, ninguém quer
parar de ganhar dinheiro para ficar com um moribundo, há não ser o contrário disso, pessoas
que ganham para tal, e que muitas vezes maltratam o enfermo, como acontece quase que
todos os dias, e muitos poucos casos são noticiados nos jornais. Por fim, a visão e os costumes
mudaram veementemente em relação ao cuidado com o moribundo; a cultura agora é outra, e
não se sabe como essa cultura irá se portar com o passar dos anos.

3 RITUAIS DE ENTERRO

A morte é por natureza algo que impõe medo e é cheia de mistérios, tanto no cunho
religioso como na sua própria cultura e no desenrolar de suas práticas. A grande maioria das
pessoas passam boa parte das suas vidas e até mesmo toda vida sem se preocupar com a morte
e com o seu futuro, que por sua vez, é a única certeza que se pode ter, porém, no período
trabalhado neste artigo, os vivos sempre se encarregavam de cuidar para que tivessem uma
boa morte dos que partiam desse mundo. Eram realizadas diversas práticas de enterro que
garantiam, segundo eles, uma boa passagem para o reino dos céus.
Após o ritual da morte em casa, os familiares cuidavam para receberem bem as
pessoas que viriam ao velório. Ou seja, depois da ida do moribundo, cuidava-se para que tudo
ocorresse bem entre a casa e o momento final, o enterro.
Era comum após o falecimento de uma pessoa que morava longe da cidade, que os
parentes e amigos fossem até a casa mortuária11 encomendar o caixão, que era produzido na
hora; bastava que se levassem as medidas do defunto12: “vinha com a medida, às vezes já
tinha oito ou dez caixões prontos, quer dizer, só feito a madeira, depois a gente fazia e

10 10
Idem

11
Funerária pertencente ao pai de Dona Perpétua Batista do Nascimento Araújo
12
Entrevista concedida por Perpétua Batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016
na residência da Entrevistada.
5

forrava com veludo ou de seda”13. Logo em seguida os responsáveis pela casa mortuária
forravam o caixão de veludo ou de seda, de acordo com o que os familiares conseguiam
pagar. Visto isso, nota-se que existia certo sentimento de companheirismo por parte de quem
vendia os caixões, até mesmo pelo fato de que, se os familiares não pudessem pagar o caixão
na hora, poderia parcelar em várias vezes; o que eles não queriam era que se jogasse o defunto
de qualquer forma, ou enterrá-lo numa rede. O que, diga-se de passagem, ocorria em alguns
casos.

Naquele tempo não tinha essas coisas não, naquele tempo o cemitério era
nos aceiros das estradas. Não foi do meu tempo nem nada, mas as pessoas
diziam que nessa rua aí da frente era onde jogava os mortos, quando morria
muita gente. Naquele tempo enterrava as pessoas era de rede14.

Outra dificuldade encontrada por quem tinha de enterrar um ente querido, era a
distância entre os povoados e a vila. Só existia casa funerária na vila do Coité; e somente duas
funerárias. Para que se pudesse chegar ao Coité15, em alguns casos era necessário que se
percorresse cerca de 40 km a pé, dependendo do povoado em que se vivia, “vinha de muito
longe meu filho! Vinha da Roça de Dentro, do Saco, São Francisco e ficava tudo aqui” 16.
Como não existia nenhum tipo de automóvel ou outro meio, era tudo resolvido a pé ou
montados em mulas e cavalos; nem carroça existia, o que dificultava bastante na hora de ir
para a cidade enterrar os mortos.
Então, como se levava os defuntos entre grandes distâncias para realização do
processo de enterramento? Bem, essa é uma parte muito interessante da história da morte
nesta cidade. Quando se morria uma pessoa de muito longe, os familiares enviavam cerca de
quatro pessoas para irem pegar o caixão, e logo após retornavam com o caixão para
colocarem o defunto e enterrá-lo. Em seguida se fazia toda a despedida em sua casa; o
velório, e depois disso, o cortejo era extremamente exaustivo, as pessoas acompanhavam o
cortejo que durava basicamente o dia todo, ou seja, da morte até o enterro se levava quase que
um dia inteiro.

13
Entrevista concedida por Perpétua batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016
na residência da Entrevistada.

14
Idem.
15
Patrocínio Coité. Denominação dada à cidade de Paripiranga até 1933.
16
Entrevista concedida por Perpétua batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016
na residência da Entrevistada.
6

No cortejo fúnebre ocorriam várias coisas bem estranhas e interessantes, como por
exemplo, beber cachaça no percorrer do caminho. Segundo os que faziam isso, era para que
pudesse aguentar a vasta jornada, que era bem cansativa. É necessário se dizer que o hábito de
beber cachaça vinha já do velório e da sentinela, as noites eram regadas a álcool, segundo
Dona Perpétua o as pessoas sempre se juntavam para beber nos enterros “sim, muito. Ali na
casa de pai o povo chegava no balcão e era só pegar as garrafas e bebendo”17. Por mais
incrível que se pareça, os familiares não achavam ruim essas coisas, pois era preciso que
tivesse muitas pessoas ao redor do morto; uma boa morte é uma morte acompanhada por
várias pessoas, dentre elas amigos e desconhecidos. A morte era quase que uma festa para as
outras pessoas, “é, hoje o povo não bebe mais, antigamente depois dos enterros vinha todo
mundo pra cá beber e comer, e hoje não hoje faz mais isso”18, às vezes tais atitudes eram
orientadas pelo ente querido que fora embora desse mundo, antes de morrer já deixava de
forma explicita como queria o seu enterro e o seu velório; explicava se queria fazer banquetes
e dar cachaça às pessoas que chegavam e que se faziam presentes no seu funeral.

Percebe-se que isso é uma questão puramente da mentalidade da época, o que hoje é
considerado como desrespeito, numa sociedade de outrora era sinônimo de companheirismo e
de carinho para com o morto. É importante ressaltar que antigamente os enterros eram
considerados um grande fato social, principalmente se o morto fosse uma pessoa conhecida da
sociedade. Ou seja, nos enterros dos mais pobres iam muitas pessoas e saia até uma pequena
nota no jornal, entretanto, quando se tratava da morte de uma pessoa reconhecida era tudo
mais vistoso, os jornais prestavam grandes homenagens e os velórios eram deslumbrosos, os
ricos e os pobres iam ver o gigantesco evento que era a morte e o velório de uma pessoa
reconhecida socialmente.
Nota-se que morrer deixou de ser um fato íntimo e restrito a poucas pessoas
transformando-se num processo social capaz de aglutinar um maior número
possível de participantes que buscavam neste rito de passagem confortar os
que sofreram a perda de um ente, como também a transformavam numa
importante oportunidade de interação social19

O pensamento social muda com o passar dos anos, mesmo que se demore muito, e o
que é mais interessante ainda, é o fato de algumas coisas existirem e resistirem ao tempo. É
17
Idem
18
Entrevista concedida por Perpétua batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016
na residência da Entrevistada.

19
CERQUEIRA, Rafael Santa Rosa. Nos Domínios de Hades: A representação Social da Morte em Aracaju/Se
Durante a Primeira República. Universidade Federal de Alagoas Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e
Artes Programa de Pós-graduação em História MACEIÓ/AL, 2014, p. 20.
7

comum hoje em dia se vê funerais com banquetes e bastante cachaça, claro que isso ocorre
mais nas zonas rurais, mas é um fato que resistiu ao tempo e é por sua vez, é histórico. A
cultura social é expressa por vários meios inimagináveis; um desses meios é a morte e as suas
representações.
Continuando a analisar as características das práticas dos enterros que eram realizados
nesta cidade, existia outra peculiaridade; as missas de encomendação das almas. Eram
realizadas missas nas casas dos defuntos e à chegada à meia noite do velório, era preciso se
rezar o santo ofício. No dia seguinte, dia do enterro, iam para a casa dos defuntos os
rezadores20. Os mesmos eram encarregados de rezar até em Latim21, para que a alma pudesse
descansar em paz, e que só a partir daí poderia levar o morto para o cemitério e enterrá-lo.
Segundo Perpétua Batista do Nascimento Araújo, existia naquela época um enorme
companheirismo entre as famílias, não precisava nem chamar as pessoas para os enterros,
todos da comunidade já iam por conta própria “sim, não precisava nem chamar ninguém todo
mundo participava. E hoje tem carro de som tem tudo e mesmo assim não vai quase
ninguém”22, ou seja, a visão do homem para com a morte e o morrer muda com o passar dos
anos.

4 CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA “MORADA PARA AS ALMAS”

A morte nesta cidade era tida como um fato muito importante, e o respeito para com as
almas era muito grande, e tinha de ser prestado por todos que se diziam cristãos. Um fato
abalou a cidade, novas leis higienistas; “A novidade vinha da Europa, e foi divulgada no
Brasil independente por meio de uma campanha que fazia da opinião dos higienistas o
testemunho da civilização. O estudo da literatura médica da época permite entender melhor o
conflito de mentalidades em 1836”23, diziam que não poderia existir cemitérios dentro de uma
cidade, e tão menos se enterrar pessoas em pequenos cemitérios feitos em suas próprias casas
e dentro das igrejas; além das novas leis implementadas pelo Código de Posturas do
município de 1926, ou seja, já na República; que delimitava algumas ações para com o cortejo

20
Pessoas encarregadas de rezar para encomendar as almas.

21
Perpétua Batista do Nascimento Araújo também era encarregada de rezar em latim.
22
Entrevista concedida por Perpétua Batista do Nascimento Araújo a Robério José Santos Junior em 29/02/2016
na residência da Entrevistada.

23 23
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 24.
8

fúnebre. “Art. 128. Fica prohibido os caixões abertos conduzindo cadáveres, sejam de
creanças ou de adultos. Pena de 30$000 de multa24”, e ainda outro importante artigo do
mesmo código que proibia os enterramentos depois das 18 horas25.
Essas práticas eram bastante comuns; no Brasil imperial, por exemplo, membros das
confrarias eram enterrados nas igrejas, até mesmo os padres eram enterrados nestes
ambientes. Mas que fora banida tal prática, justamente por causa da higiene.

Em 1804, um novo decreto estabeleceria detalhadas regras de enterro,


reafirmando a proibição de sepulturas dentro das igrejas, abolindo as covas
comuns, ordenando a distância entre os cemitérios e a cidade, e a distância
entre as sepulturas dentro dos cemitérios. O fim das covas comuns
representou, segundo Ariès, “uma ruptura completa com o passado”, embora
uma questão de economia de espaço se continua-se a utilizá-las em alguns
lugares, mas sempre com os cadáveres acondicionados em caixões. Assim,
na França, durante a primeira década do século XIX se montou o modelo
básico de sepultamentos que vigoraria até o final do século. Este o modelo
que inspiraria nossos reformadores cemiteriais26.

Pois, a igreja era um local público, onde várias pessoas a frequentavam, e que por isso,
o risco de contágio era muito grande. E não foi diferente com os cemitérios residenciais, nos
quais as mães enterravam seus filhos pagãos; (sem o batismo)27.
Na Vila de Patrocínio do Coité por volta de 1923, já se falava nisso; seria necessário
mudar o cemitério que se encontrava no centro da Vila. Segundo especialistas “médicos
higienistas”28, isso estava gerando várias doenças para a população. E realmente era algo
impensável para uma sociedade que se dizia estar evoluindo. Mas, como fazer um novo
cemitério? Onde realizar a construção? No terreno de quem? E como a população iria reagir
diante de tal fato?
Com esse novo objetivo a ser comprido para o benefício da vila e dos seus cidadãos,
os membros da igreja começaram a se reunir com políticos e pessoas influentes no meio
social, a fim de se chegar à um acordo sobre tal obra que necessitaria ser realizado o quanto

24
LEI Nº 8 de 11 de Abril de 1928. Códigos de Posturas do Município de Patrocínio do Coité. Capítulo VI
hygiene e salubridade pública. Artigo 128. p. 19.

25
Idem. Artigo 129. p. 19.

26
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991, p. 78.

27
Idem.p. 24.

28
Idem.
9

antes. Nesta perspectiva o padre João de Mattos Freire de Carvalho iniciou os debates em prol
da construção do novo cemitério.

Aos 27 dias do mês de Maio de 1923, reunidos no paço municipal, cidadãos


representantes de todas as classes sociaes, sob a presidência do coronel
Joaquim de Mattos Carregoza, eleito por aclamação, foi dada a palavra a
quem d´ella se quisesse utilizar29.

Como se pode analisar, o fato da construção de um cemitério era tão importante que se
deu a palavra, tanto aos ricos e influentes no meio social quanto aos menos influentes e até
mesmo alguns pobres religiosos. O objetivo era comum a todos cristão da sociedade. A
representação da morte era algo muito forte nesta cidade, o respeito para com os mortos era
muito grande, e o que se queria acima de tudo, era fazer um local calmo para o descanso das
almas. Mas também, livrar as pessoas de possíveis doenças que se espalhavam pelas regiões, e
consequentemente faziam muitas vítimas.
Ainda analisando essa importante fase da história de Paripiranga; o padre João de
Mattos Freire de Carvalho teve o aval para construir um novo cemitério, logo se iniciaram as
buscas por um local que fosse apto a receber tal estrutura. O padre começou a procurar por
esse espaço, e dialogou para isso, com vários proprietários de terra da vila, foram alguns
meses de conversa até se chegar a um bom lugar e a um bom preço, o qual a paroquia pudesse
pagar. Então, finalmente o negócio fora concretizado, e a paroquia enfim tinha uma nova casa
para a acomodação das almas de Paripiranga.

Recebi do excelentíssimo senhor Cônego João de Mattos Freire de Carvalho


como pároco representante legal desta paroquia do Patrocínio do Coité a
cento e cinquenta mil reis. Proveniente da venda que nesta data faço a
mesma paroquia, do arrendamento e trabalhos agrícolas que tenho em minha
tarefa de terras nas imediações desta vila30.

Com o terreno comprado o padre iniciou as conversas com a população acerca da


ajuda que os mesmos deveriam prestar para a construção do cemitério, já que se tratava de
uma obra puramente pública e que serviria para todas as pessoas. Visto isso, de imediato o
mesmo conseguiu grande número de ajudantes, principalmente homens com carros de boi
para poder levar as pedras ao novo cemitério. Dessa maneira, analisando as atitudes da

29
O Paladino. Ata da reunião do paço municipal afim de se tratar da construção de um cemitério. ano IV, nº 31.
p. 02. 03 de junho de 1923.

30
Paróquia de Nossa Senhora do Patrocínio. Livro do Tombo I. Novo Cemitéio. Paripiranga. Bahia. 1921. p. 23.
10

população perante a mudança do cemitério, pode-se dizer que foi de bom agrado para a
grande maioria da população do Patrocínio do Coité. Já que agora os entes queridos dos
vivos, estariam em paz e em pleno silêncio, bem afastados do centro da vila.
Outro benefício que essa mudança gerou para as pessoas, foi a questão da visitação
aos mortos. A partir de então poderia se visitar o seu morto de modo a ninguém o incomodar,
agora era só o visitante e o túmulo. Isso foi bem visto, entretanto, houve alguns prejuízos.
Vândalos atacavam de forma solapada, deixando alguns prejuízos no cemitério, era comum
que grupos passassem a noite no cemitério fazendo rituais macabros, nos quais existiam
aqueles em que se bebia a cachaça em crânios dos mortos, e houve para, além disso, um
caixão que fora brutalmente retirado do túmulo e posto a céu aberto, e por mais incrível que
se pareça, não existia cadáver no mesmo, muito provavelmente foi vítima de algum ritual de
magia negra31.
O afastamento do cemitério do centro da Vila também gerou alguns importantes
problemas. Todavia, como era de se esperar, a população tratou de pressionar os
representantes políticos e da lei, para que se pusesse um fim nesses indivíduos que estavam
perturbando o descanso das almas32.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este foi um trabalho que teve como objetivo central abordar um pouco das várias
práticas de enterramento da população da época, entendendo assim, as suas atitudes perante a
morte e o morrer. Analisando também, a representação da morte como um todo no cenário do
período. No qual se destacou as mais variadas formas de se pensar a morte, e tendo como
foco, o momento que marcou a cidade naquela época, ou seja, o momento da transferência do
cemitério, que se encontrava no centro da vila e que depois fora construído um novo mais
afastado. Todas essas observações minuciosas são frutos da nova História que se faz hoje em
dia, uma história voltada para as coisas que antes eram desprezadas. Tudo isso graças ao
movimento da Escola dos Annales, no qual se puderam abrir novos rumos e novas
perspectivas perante a história e a visão que o historiador tem de ter para com o seu objeto de

31
Entrevista concedida por Paulo Matos Andrade a Robério José Santos Junior em 12/03/2016 na residência do
Entrevistado.
32
Jornal O Paladino. Acervo do LEPH, Laboratório de Ensino e Pesquisas Históricas. Do Centro Universitário
UniAGES.2016.
11

pesquisa. Dessa maneira, os estudos sobre a morte estão ganhando cada vez mais espaço na
historiografia contemporânea, pois, através de tais estudos é possível analisar a representação
social e as várias práticas culturais33.

FONTES

Entrevista oral a Perpétua Batista do Nascimento Araújo em 29/02/2016.


Entrevista oral a Paulo Matos Andrade em 12/03/2016.
LEI Nº 8 de 11 de Abril de 1928. Códigos de Posturas do Município de Patrocínio do Coité.
Capítulo VI hygiene e salubridade pública. Artigos 128 e 129. p. 19.
Livro de Tombo I da Paroquia Nossa Senhora do Patrocínio. Cemitério. Paripiranga-Bahia.
1921. p. 23.
Jornal O Paladino. Ata da reunião do paço municipal a fim de se tratar da construção de um
cemitério. Ano IV, nº 31. p. 02. 03 de junho de 1923.

REFERÊNCIAS

ARIÉS, Philippe. O homem perante a morte. Tradução de Ana Rabaça. Tradição


Portuguesa de P. E. A. 1997.

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

CERQUEIRA, Rafael Santa Rosa. Nos Domínios de Hades: A representação Social da Morte
em Aracaju/Se Durante a Primeira República. Universidade Federal de Alagoas Instituto de
Ciências Humanas, Comunicação e Artes Programa de Pós-graduação em História
MACEIÓ/AL, 2014.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Algés – Portugal:


DIFEL, 2002.

ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Tradução,
Plínio Dentzien.- Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

33
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Algés – Portugal: DIFEL, 2002, p.
14.
12

LIMA, Rafaela Moreira de. A conveniência da morte: os rituais fúnebres e o consumo


mortuário em limoeiro do norte – Ce. XXVII simpósio nacional de história: conhecimento
histórico e dialogo social. Natal-RN. 22 a 25 de Julho. 2013.

OLIVEIRA, Ana Maria Ferreira de. Sob o signo da cruz, a malhada vermelha floresce: a
origem de Paripiranga nas memórias paroquiais de (1840-1900): Universidade Federal de
Sergipe centro e educação superior departamento de história – HDI. Lagarto Sergipe, 2016.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
2008.

REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

SILVA, Cândido da Costa e. Roteiro da vida e da morte: um estudo do catolicismo no


sertão da Bahia – São Paulo: Ática, 1982

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