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DmEITO P{JBLIOO

DIREITOS E DEVERES NATURAIS DO HOMEM

A. MACHADO PAUPÉRIO
(Da Universidade do Brasil)

o tema em epígrafe, apesar de muito comum, é, por


assim dizer, o capítulo número um de tôda a Teoria Geral
do Estado, de tôda a Ciência do Estado. Não há problema
mais importante do que a delimitação da exata posição do
homem perante o Estado. Êsse é o problema por excelência
do Direito Público. Se situarmos, perfeitamente bem, a posi-
ção do homem, diante do Estado, estarão, em grande parte,
resolvidos todos os problemas políticos.
Costumamos dizer que há dois problemas de grande
importância na Teoria Geral do Estado: o problema da so-
berania, ou seja, de certo modo, o problema do poder estatal
ou dos limites dêsse poder e o problema da posição do homem
perante o Estado. O primeiro problema, isto é, o da sobera-
nia, depende, aliás, dêste segundo. Portanto, o próprio pro-
blema da soberania já é secundário em relação ao outro, que
é o problema, sem dúvida, primacial.
Deveremos indagar, antes de mais nada, por que tem o
homem direitos. A isso pertence um capítulo inteiro da filo-
sofia jurídica, da Filosofia do próprio Direito. Não nos cabe
aqui, evidentemente, estruturar o problema com maior de-
senvolvimento. Mas, em rapidíssimas pinceladas, pelo menos,
é de analisar-se por que o homem tem direitos.
O Estado subordina-se, em grande parte, ao homem e
não o homem ao Estado, porque, conforme já é pacífico, o
Estado é meio e não fim, sendo meio para a consecução dos
fins do homem. O homem serve-se do Estado para alcançar
a plenitude temporal e, através dessa, a própria pleni~ude
espiritual e, portanto, a plenitude integral.
Evidentemente, num problema dessa natureza, terc;nos
que adotar uma determinada filosofia. Aí abrem-se dois
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campos no mundo para a interpretação dos denominados
direitos do homem: o campo espiritualista e o campo mate-
rialista. Apenas a concepção espiritualista pode dar reais
fundamentos aos chamados direitos e deveres do homem.
Mas, em todo o caso, o próprio campo materialista tem che-
gado, na prática, ao mesmo resultado que o campo espiritua-
lista. E as Declarações de Direitos vigentes, proclamadas no
mundo, desde a Magna Carta Inglêsa de 1215, vêm estabele-
cendo, como denominador comum, a uma só voz, a dignidade
humana do ser racional, do único animal racional existente
sôbre a terra. De maneira que até mesmo a mais recente das
proclamações universais dos chamados Direitos do Homem, a
da Organização das Nações Unidas, apesar de não falar em
Deus - para satisfazer a certo grupo de nações do mundo -
reconhece essa dignidade do homem, hoje proclamada, assim,
por gregos e troianos.
Mas é mister, para fundamentar os verdadeiros direitos
do homem, fazer aqui uma distinção que os escolásticos já
faziam com relação ao tema. Os escolásticos consideravam
o homem, segundo dois aspectos: segundo o caráter de indi-
viduo e segundo o caráter de pessoa. O homem é, ao mesmo
tempo, indivíduo e pessoa. Como indivíduo, é parte do todo
coletivo, parte da sociedade. Indivíduo, porém, tanto é uma
simples mesa como um animal qualquer, que pode ser, inclu-
sive, o homem. Mas, além de, como indivíduo, ser parte do
todo coletivo, o homem é ainda pessoa humana, ser racional,
e
com um fim próprio distinto do fim da sociedade. O homem,
aliás, encerra em si - para nós, espiritualistas, por exemplo
- um destino eterno, e para todos, em geral, um fim em si,
individuado e distinto, diferente do fim social, do fim da
sociedade, do fim do todo coletivo. O homem é, nessa qua-
lidade, nesse aspecto, um verdadeiro microcosmo, um verda-
deiro universo em miniatura, com um destino próprio, inde-
pendente do destino coletivo.
Sob êsse aspecto do homem como pessoa humana, o
Estado subordina-se a êle, o Estado é especialmente meio
para a consecução dos fins humanos. Nesse particular, o
Estado deve subordinar-se ao homem, cujas necessidades e
direitos são anteriores ao próprio Estado, porque o homem
existiu, evidentemente, antes do Estado. O Estado é organi-
zação posterior ao homem. Assim sendo, o Estado deve res-
peitar os direitos do homem, que lhe são inerentes à natureza,
pois, se o homem existe para alcançar um fim, deve receber,
deve ter a seu alcance os meios necessários para a consecução
dêsse fim. Não seria possível que se desse a alguém um obje-
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tivo, sem lhe dar os meios adequados para alcançar êsse
objetivo. Nem o próprio Deus poderia fazer isso: dar ao homem
uma missão especial, um destino individuado e distinto, sem
lhe dar, conseqüentemente, os meios capazes de assegurar
êsse destino. De maneira que os direitos existem porque o
homem tem um fim a preencher: direitos não existem para
simples gôzo humano.
Quando temos direitos, temos direitos para alguma coisa;
temos direitos para poder melhor preencher a nossa missão
e mais fàcilmente atingir os objetivos colimados. O homem
tem, assim, direitos porque só por intermédio dêles pode manter
sua existência e atingir a consecução de seus próprios fins.
Se o homem tem uma finalidade a objetivar, deve ter os
meios suficientes para consegui-lo. Tão-só por isso tem o
homem direitos. Os pais têm direitos sôbre os filhos não para
gôzo próprio mas para benefício dos próprios filhos, para
que os filhos possam atingir a sua formação adequada ou, por
outro lado, para que os pais possam atingir a finalidade pre-
cípua da educação dos filhos, e assim por diante. Desta ma-
neira, quanto aos fins, o Estado subordina-se ao homem.
Para atingir êsses fins, na execução dos meios, o homem
tem evidentemente, de outro lado, que se subordinar aos inte-
rêsses gerais da coletividade, aos interêsses, muitas vêzes, do
Estado. Assim como a parte se subordina ao todo, o homem
também, como indivíduo, subordina-se à sociedade e é por
isso que as sociedades podem exigir de nós certos deveres,
certos sacrifícios, que são legítimos, porque a parte deve su-
bordinar-se ao todo.
Discriminado o homem, assim, em indivíduo e pessoa,
temos perfeitamente delimitada a subordinação do Estado ao
homem quanto aos fins e do homem ao Estado quanto à
execução dos meios. Desta maneira, em síntese, os direitos do
homem são necessários à existência do próprio homem porque
necessários à consecução do seu próprio fim. ltsses direitos
decorrem, como é óbvio, da própria natureza: são, portanto,
direitos naturais. Tais direitos naturais são, dessa forma, direi-
tos fundamentais inerentes à própria natureza. ltsses direitos
naturais, via de regra, desenvolvem-se em outros direitos e
temos aí uma sucessão de direitos primários, secundários etc.
Em contraposição ao direito positivo, que é o direito
escrito, codificado, impôsto, inclusive, por normas coercitivas,
o direito natural é o direito dos grandes princípios decorren-
tes da natureza do homem. O direito positivo deve basear-se
no direito natural e desenvolvê-lo, consoante as novas neces-
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sidades humanas que vão aparecendo sôbre a face da terra.
O Direito, sob certo aspecto, é uma criação humana e, nesse
sentido, o Direito é dinâmico. As necessidades do Direito tor-
nam-se menores ou maiores, conforme a nova configuração
que vai tomando a sociedade no decorrer do tempos. Daí falar-
-se em novos direitos do homem, como o faz Jacques Maritain,
por exemplo, nos seus livros. Não é propriamente que o
homem tenha novos direitos hoje: os direitos do homem são
os mesmos; apenas êsses direitos desenvolveram-se hoje mais
em determinados sentidos, em vista das necessidades que sur-
giram no cenário social, decorrentes da nova configuração que
tomou a sociedade nos dias que correm, nos dias contem-
porâneos.
De maneira geral, em grandes linhas, os direitos do
homem podem catalogar-se em quatro grandes tipos: 1) di-
reitos de ordem pessoal; 2) direitos de ordem familiar; 3) di-
reitos de ordem política; 4) direitos de ordem internacional.
Os direitos de ordem pessoal, inerentes à personalidade
humana, reconhecem que o homem tem uma personalidade, um
fim individual. Tais direitos subdividem-se, por sua vez, em
vários outros direitos.
Entre êles é primordial o direito à vida. O direito à vida
é, dêsses direitos de ordem pessoal, principalíssimo, vamos
dizer assim. Dentro da sistemática espiritualista, dizemos que
só Deus é dono da vida do homem. Evidentemente, se cada
um de nós tem um direito à vida, tem um dever correlato de
respeitar a vida dos demais semelhantes. Se cada um de nós
tem um direito à vida, terá, ipso facto, também um direito de
legítima defesa, quando perigar-Ihe a vida por ataque injusto
de outrem.
Aqui valeria talvez um comentário sôbre a pena de morte.
:É um problema candente, que tem estado no ar dentro da
imprensa falada e escrita. As opiniões digladiam-se, apaixo-
nam os espíritos. Naturalmente, não cabe aqui debater o pro-
blema amplamente. Mas, de maneira muito sumária, podemos
dizer que a pena de morte é lícita, pelo próprio direito à
vida que tem cada homem. Dizendo que a pena de morte é
lícita, não queremos julgar, no momento, da oportunidade ou
das vantagens de se estabelecer a pena de morte nesta ou
naquela sociedade. É outro problema. O problema deve ser
equacionado em sentido genérico. Assim como se amputa um
membro em benefício do corpo quando um braço ou uma
perna se gangrenam, assim como se corta êsse membro para
salvar o todo, assim também a sociedade tem, em determina-
dos cases gravíssimos, o direito de amputar certos membros
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da comunidade para justamente resguardar a vida de todos
os seus elementos restantes. Ê o problema da licitude. Se
convém, num determinado momento histórico ou numa deter-
minada sociedade, implantar a pena de morte, é outro pro-
blema. A pena de morte é uma verdadeira e legítima defesa
°
da sociedade. Assim como temos direito de sacrificar o nosso
agressor injusto, matando-o em legítima defesa, também tem
a sociedade o legítimo direito de defesa coletiva. O problema
evidentemente, dá grande margem a debates doutrinários. Mas,
em síntese, não se pode negar a licitude da pena de morte, em-
bora pessoalmente não sejamos favorável à implantação da
pena capital no Brasil.
Do direito à vida decorre o direito à subsistência. Se o
homem tem o direito à vida, conseqüentemente deve ter tam-
bém os meios necessários para continuar a viver. Êsse direito
à subsistência exercita-se através do direito ao uso dos sêres
inferiores e através do direito ao trabalho.
Estamos discutindo aqui os direitos humanos, dentro de
um grande esquema geral, abstrato. A positivação dêsses
direitos apresenta modalidades e quadros diversos, uns mais,
outros menos ampliados, nessa ou naquela direção. Sob êsse
ponto de vista, aliás, é de chamar-se atenção para a nossa
Constituição Federal, no que diz respeito ao artigo 141 e pa-
rágrafos. O art. 141 da Constituição brasileira estabelece os
chamados direitos individuais e ali estão compendiados os
principais direitos humanos, dentro de uma forma positiva.
Contudo, ficamos aqui no terreno das grandes idéias, para
generalizar os grandes princípios que estão concretizados nas
várias Constituições e nas várias Declarações de Direitos.
Aliás, vale a pena reler-se, quando seja possível, as Declara-
ções de Direitos mais célebres, não só os «Bills of Rights»
inglêses, como a «Declaração de Direitos da Constituição Ame-
ricana», antes da qual é mister não esquecer a «Declaração de
Direitos de Virgínia» e a celebérrima «Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão», francesa, de 1779.
Ê de ler-se, porém, antes de tudo, a «Declaração Univer-
sal dos Direitos do Homem», proclamada pela Assembléia
Geral da ONU, em sua IH Seção, celebrada em Paris, em 10
de dezembro de 1948. Das denominadas declarações internacio-
nais, é a declaração mais completa, mais ordenada das que
apareceram até então, apesar de não ~ncerrar maiores novi-
dades, pois não representa, de certo modo, conquista mais
ampla, quer sob o ponto de vista teórico, quer sob o ponto de
vista prático, em virtude de o problema dos direitos do
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homem já vir sendo estudado há muito tempo e ter tido gran-
de desenvolvimento por parte de certas escolas jurídicas, so-
bretudo por parte da chamada escola espanhola do século XVI,
a que pertenceram tantos teólogos, canonistas e juristas,
como Molina, Domingos de Soto, Bafiez, Vitória, Suárez
e outros. Aliás, ninguém melhor do que os teólogos-juristas
espanhóis, capitaneados por Vitória e Domingos de Soto,
mestres do Renascimento, que pontificaram desde 1526 na
Universidade de Salamanca, defenderam os direitos e deveres
do Homem, base de todo o Direito Constitucional e Interna-
cional de todos os tempos.
Mas voltemos ao direito ao uso dos sêres inferiores.
Evidentemente, os sêres inferiores, que existem sôbre a terra,
em função da vida humana, existem como meios para a con-
secução dos fins humanos. Daí decorre, por conseqüência, o
direito de propriedade.
O direito de propriedade é comum a todos os homens.
Mas, por necessidades imperiosas da vida humana, a proprie-
dade passou a dividir-se. Essa divisão da propriedade não é
absoluta e o homem tem possibilidade de mudá-la, em função
do bem comum. Portanto, as reformas agrárias são legítimas.
Como é natural, em caso de necessidade extrema, a divi-
são cessa e tudo passa a ser comum. Se uma pessoa está em
iminência de perecer por falta de alimentos, os alimentos mais
individuais passam a ser comuns e, por isso, num caso de
roubo de alimentos, não há infração penal, sob o ponto de
vista do direito natural.
Outro direito de ordem pessoal é o direito. e ao mesmo
tempo dever, de dar a Deus o culto devido. ~ o direito de
religião, o direito de cada um adorar o seu Deus, que tôdas
as Declarações de Direitos reconhecem. Evidentemente, com
limitações quanto aos credos, quanto aos ritos que degradam
o homem ou atentam contra os bons costumes. Nenhum direito
é absoluto, comportando sempre limitações que decorrem do
próprio interêsse comum. E cada um dêsses direitos daria
margem a longas e oportunas discriminações.
Outro direito de ordem pessoal é, finalmente, o direito à
liberdade física e moral, dentro, é claro, da lei justa. O homem
é naturalmente livre e, portanto, a escravidão é mal supremo.
Não podemos conceber um homem escravo. Todo homem é
naturalmente livre sob o ponto de vista físico e moral, inclu-
sive livre no próprio domínio espiritual. É preciso não con-
fundir, entretanto, liberdade com libertinagem. São duas coisas
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diferentes. De maneira que, mesmo nesse terreno, terá que
haver limitações decorrentes do interêsse comum.
Essa liberdade física e moral divide-se em muitas liber-
dades, nas chamadas liberdade modernas, que estão cataloga-
das nas Declarações de Direitos, nas declarações positivas
constantes dos textos constitucionais contemporâneos. Entre
essas liberdades conta-se por exemplo, a chamada liberdade
de cátedra. O professor tem o direito de investigar livre-
mente a verdade e expô-la sem constrangimento. Mas tal
direito não pode manifestar-se de maneira absoluta. Se o
professor prega doutrinas dissolventes, destruidoras da pró-
pria sociedade, do próprio Direito etc., essa liberdade não po-
derá prevalecer, porque já passa a prejudicar os interêsses
da coletividade. De maneira que as limitações são naturais e
existem para maior eficácia da própria liberdade. Porque, se
tivéssemos liberdade para pregar a destruição da liberdade,
sem dúvida o resultado seria a morte da própria liberdade,
que reputamos bem supremo.
Quanto aos direitos de ordem familiar, temos, em primeiro
lugar, o direito ao matrimônio, o direito de constituir família,
dentro do próprio preceito bíblico: Crescei e multiplicai-vos.
Os pais têm, outrossim, direito de testar em favor dos
filhos. O Estado pode, portanto, gravar com impostos a he-
rança, mas não a tal ponto que anule êsse direito. Há inte-
rêsses sociais relevantes que fazem com que o Estado possa
gravar a herança. Mas não a tal ponto que anule pràtica-
mente êsse direito.
Outro direito de ordem familiar, que também se concre-
tiza um dever, é o de os pais educarem os filhos. Sôbre êsse
problema teríamos muita coisa a dizer, já que é uma questão
muito agitada hoje em dia, na opinião pública brasileira, o
tema «escola pública». Sôbre tal assunto, aliás, a título ilus-
trativo, é de consultar-se a encíclia de Pio XI, Divini illius
Magistri, de 31 de dezembro de 1929, que focaliza muito bem,
êsses aspectos dos chamados direitos de ordem famíliar. Tais
direitos-deveres dos pais decorrem dos direitos correlatos dos
filhos à vida, ao sustento e à educação. Nesse particular, é de
chamar-se atenção para os direitos da família. O Estado,
nesse terreno, só deve intervir supletivamente. De modo
normal não pode, portanto, imiscuir-se na direção dos assuntos
familiares, que cabem à própria família. Só quando a família
deixa. por razões óbvias, de cumprir a sua missão específica,
quando a família falha nessa missão, é que o Estado deve
supletivamente vir em auxílio do menor. Cada problema
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dêsses, em si, envolve uma série de problemas correlatos mas
não é possível aqui desenvolvê-los. A propósito, vale, porém,
relembrar o que estabelece, em consonância com os princípios
do direito natural, o art. 5'-' do Fuero de los Espa,iWles) de
18-7-1945: «Todos os espanhóis têm direito a receber educa-
ção e o dever de adquiri-las, seja no seio de sua família ou
em centros privados ou públicos, de sua livre eleição. O Es-
tado velará por que nenhum talento se malogre por falta de
meios econômicos» (Jus :discendi et ld,erendi).
Vejamos agora os direitos de ordem política. Entre êsses,
direito primacial é o direito de constituir-se e organizar-se em
sociedade. O homem é um ser social, um animal político.
O homem só se aperfeiçoa, só atinge a sua plenitude, dentro
da sociedade. Se não fôsse a sociedade, o homem não poderia
atingir os seus fins; se não fôsse a sociedade, não poderíamos
talvez ter escrito o presente trabalho; não poderíamos, enfim,
atingir o nosso próprio aperfeiçoamento. Porque a família, SÓ,
não está em condições de aperfeiçoar integralmente o homem.
De maneira que, além da sociedade familiar, que é natural por
excelência, o homem tem o direito de conhecer outros cír-
culos de convivência. Dentre êsses círculos de convivência, por
sua importância, distingue-se o Estado. O homem colabora
com uma parte de sua vontade para a formação do Estado,
mas êste é sobretudo uma instituição natural. Êle não é fruto
exclusivamente da vontade humana mas, em maior parte, uma
associação espontânea e natural, produto da tendência inata
do homem de associar-se, de constituir-se e organizar-se em
sociedade.
Dêsse direito, decorre o direito de participar, de algum
modo, na direção da sociedade política, no govêrno da pátria,
e escolher os meios adequados e justos para a seleção dos
governantes. Dentre os direitos políticos estará, assim, como
direito por excelência nas democracias modernas o direito de
sufrágio.
O Estado, por sua vez, tem um direito, que também é um
dever, de promulgar leis necessárias à organização, ao govêrno
e à defesa da sociedade. Porque, se o Estado existe para o
bem comum, deve, em primeiro lugar, prover a sociedade de
uma organização jurídica capaz de trazer paz social e fazer
com que os bons possam trabalhar, possam produzir, sem o
incômodo, sem a perturbação dos maus.
De outro lado, havendo êsse direito-dever do Estado, há
também um dever correlato do cidadão de obedecer às leis,
servindo e cooperando na devida proporção para o bem co-
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letivo. E dentre os deveres correlatos de cooperação, devemos
catalogar dois, que, por sua importância, merecem citação
especial: é o dever de contribuir para as necessidades da nação,
o dever, portanto, de pagar impostos, e o dever de cooperar
para com a defesa da pátria e da sociedade, que é o dever do
serviço militar.
Outro direito que é mister também não esquecer é o di-
reito, e, às vêzes, dever do Estado, de intervenção. O Estado
pode, muitas vêzes, intervir sôbre, inclusive, a economia pri-
vada, em benefício do bem comum, quando aquela perturba
êste. O Estado como árbitro do bem comum temporal, pode
intervir muitas vêzes para colocar as coisas nos seus devidos
lugares. Às vêzes, êsse direito é até um dever. Se o Estado
cruza os braços diante dos trusts, por exemplo, êle está des-
servindo ao bem público.
Êsse direito de intervenção gera, correlatamente, um
direito para os cidadãos, que é o direito de indenização. Se o
Estado intervém para desapropriar um bem individual, deve
indenizar o indivíduo dos prejuízos sofridos; nesse caso, o
cidadão tem o direito de reclamar do Estado uma indenização
proporcional.
Nesse terreno, político, ainda há um último direito,
ultima ratio dos direitos humanos, que é o direito chamado de
resistência, individual e coletiva, o qual só se pode exercer,
porém, partindo de certos e determinados pressupostos. Se o
Estado trai completamente a sua própria missão, se desserve
ao bem público, se trata só do bem individual dos seus go-
vernantes, se transforma o crime em direito etc., há razões de
sobra para que os cidadãos resistam a essa autoridade que já
perdeu a própria legitimidade. Ê o chamado então direito de
resistência, que pode chegar, em casos excepcionais, até ao
extremo direito de insurreição.
Como proclama Bartolomeu de Medina, O. P., recolhen-
do a tradição de Vitória, Soto, Azpilcueta, Pena, Maneio,
Sotomay.or e outros da escola salmantina, «Não é o reino
para o Rei, mas o Rei para o reino». Se bem comum é o que,
por meio da Nação, acaba por refletir-se em todos os membros
da comunidade, não é bem comum o que se vincula apenas à
prosperidade e riqueza do Estado, como Estado, embora à.
custa da felicidade dos súditos. Nesse caso, como nos de
opressão violenta, já não cabe a incondicional obediência dos
governados aos governantes, que traem a sua própria missão
mais essencial.
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Finalmente, há os direitos do homem de ordem interna-
cional. Um dêles é o direito de emigração. O homem tem
direito de sair do seu território, da sua nação, do seu Estado,
e de a êles voltar. Tem o direito, inclusive, não só de sair a
título temporário, como de sair até a título definitivo; de na-
turalizar-se cidadão de outro Estado; de adotar uma outra
Pátria quando, sobretudo, existam razões para isso. Os países
superpovoados, que já não podem dar condições de vida aos
seus cidadãos, fazem com que êstes tenham, muitas vêzes,
que emigrar, procurando trabalho em outras regiões. Isso é
um direito. Se o homem tem um direito à vida e portanto à
subsistência, êle terá êsse direito de emigração.
O direito de comércio é outro direito de ordem interna-
cional. O comércio entre os povos, entre as nações e entre os
Estados é um imperativo da própria sociabilidade humana.
O direito de asilo é outro direito ainda, decorrente do
direito à vida. Se alguém é perseguido injustamente por um
determinado Estado, os outros Estados têm o dever de aco-
lhê-lo, dentro do seu território ou através dos dignitários de
suas Embaixadas.
Também direito de ordem internacional é o direito de
intervenção bélica. Quando um determinado Estado infringe
preceito absoluto de justiça, os outros Estados têm o direito
de intervir, inclusive pela fôrça, para assegurar o direito. Do
mesmo modo que há um direito de resistência no plano na-
cional, há um direito de intervenção no plano internacional.
Está claro que apenas em casos graves; não vai ser por
qualquer motivo que se fará intervenção. O estudo pormeno-
rizado dêsse direito far-nos-ia ver as limitações que no caso
existem e que são óbvias, mas, no momento, cingimo-nos ape-
nas às idéias gerais.
Finalmente, há um direito muito discutido, mas que não
deixa de ser um direito de ordem internacional, que é o direito
ao espaço vital. Assim como há uma possibilidade de redivi-
são da propriedade privada no plano nacional, também há
uma possibilidade, de certo modo, de redivisão do mundo em
nações distintas, ou seja, do mapa internacional, quando existe
a chamada falta do espaço vital. Em todo caso, êsse é um
problema que tem levantado celeumas muito grandes e que
exige, vamos dizer assim, discriminações especiais para um
perfeito entendimento. Mas, do mesmo modo que o indivíduo,
em casos de extrema penúria, tem direito ao uso comum da
propriedade, também, no plano internacional, em casos de
extrema necessidade quando o espaço nacional já não chega
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para abrigar Estados superpovoados e quando, sobretudo, o
direito de imigração foi limitado por grande número de Es-
tados, êsse direito emerge como um próprio direito natural.
Assim como há possibilidade de mudar, uma ou outra vez, a
divisão da terra, quando a paz e a justiça o exijam, como tão
bem demonstraram os teólogos-juristas espanhóis, com
Martín de Ledesma à frente, há de outro lado idêntica
possibilidade de redividir o mundo em nações distintas, dentro
dêsse discutidíssimo direito denominado hoje direito ao espaço
vital. Se tais mudanças são possíveis, entretanto, só se tor-
narão viáveis quando se positivar, de maneira plena, a Socie-
dade das Nações e um Govêrno geral para tôda a Humanidade.
Para melhor visão panorâmica do assunto, podemos re-
presentar, em quadro (vide página seguinte), o que ficou mais
ou menos analiticamente dito.

BIBLIOGRAFIA
Para maior desenvolvimento do estudo dos direitos
e deveres naturais do homem, aqui genericamente
esboçado, veja-se de modo especial:

Altavilla (Jayme de) - Origem dos Direitos dos Povos, Edições


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Rev. de Dir. Públ. e Ciência Política - Rio de Janeiro - Vol. V, nO 2 - maio/agôsto 1962
Dever correlato de respeito à vida dos demais.

DÜ'eito à
Direito de legitima defesa.
Pena de morte - amputação de membro em beneficio do
todo: legitima defesa da sociedade.
r Possibilidade de mudan-
Ça da divisão da proprie-
Direito ao uso{ Direito de dade em função do
Direito à d?s séres illfe- priedade bem comum.
De ordem pessoal sub,~istêllcia nores Em neces'Sidade extre-

1 Direito ao trabalho
ma, tudo é comum.

Direito-dever de dar a Deus o culto devido (direito de religião -


com limita-
ções quanto aos credos e ritos que degradem o homem ou atentem contra
os bons costumes)
Direito d liberdade fisica e ntoral, dentro da lei justa, com limitação quanto à
pregação de doutrinas dissolventes. Todo homem é livre mas não se con-
funda liberdade com libertinagem.
Direito ao matrimôllio

DffiEITOS E
DEVERES DO
HOMEM
De ordem familiar
j Direito dos pais de testar ou de deixar bens em favor OOS filhos
Direito-dever dos pais de educar os filoos
Direito oornelato dos filhos à vida, ao st~stellto e à educação

Dirrito de constituir-se c organizar-se em ll'ocieda4e


Direito de participar, de algum nwdo, no govérno da Pátria e de escolher o
meio mais adequado e justo para a seleção dos governantes
Direit,a do EstadJo de promulgar leis necessiiri{~s à orgaJlli:::!ação, govérno e
defesa da sociedade
De ordem polUlca J r Dever de contribuir p(!ra os gastos da Nação
Dever correlato do
cidadão de obedecer ~ Dever d.e cOllt1'ibuir para a defesa da Pátria e dos
à.~ leis l cidad(íos
Direito do Estado, de intervenção (às vêzes, dever) - Direito cOrl'elato dos
cidadãos, à indenização
Dil'dto de resis1êllcirl • individual e coletiva

Dirri"a de ellli.IJI·açcío
Dil'rit,o de comércio
De ordem interlla-
ci<mal Dirrito de ~'lilo
J Direito de
\
illtrn'rllçlio bélica

L Di·trito ao espaço dta!

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