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Às Sombras de um Carnaval

(Waldir Correia)

Personagens
Maria Rita
Rosário

(O cenário é constituído de objetos que sugerem uma sala de costura. O clima é


sombrio e abafado. Numa poltrona, imóvel, Rosário tem o olhar perdido no vazio.
Maria Rita troca de roupa animadamente).

MARIA RITA - Eu não acredito que consegui me atrasar logo hoje! Que bom que você
está aqui, Rosário. Você sempre por perto quando estou precisando de ajuda. Pode
acreditar que a culpa não foi minha e sim, daquela menina avoada que a Izildinha me
recomendou. Veja se pode: depois de todo esse tempo, ela ainda me passa um esmalte
que só chega perto da cor que eu pedi. Você gosta? Comprei também um pó-de-arroz
que é coisa finíssima! A mulher da loja falou que eu não deveria usar base porque ela
poderia derreter com esse calor. Mas você acha? Justamente a base que corrige
imperfeições... (pirraça). Prefiro ficar o tempo todo retocando a correr o risco. Ah!
Parece mentira! O dia de hoje ficará marcado na minha vida pra sempre. Talvez eu nem
mereça tanta felicidade. (nota o cabelo) Você acha que eu deveria ter feito um corte no
cabelo? A moda sugere que ele fique na altura dos ombros. Isso dá mais movimento,
sabia? (usa o pó) Também com toda essa correria seria impossível ficar sentada por
horas a fio, num salão à espera de uma mão caprichosa que pudesse me transformar. O
tempo passou tão rápido... Vivi esses meses numa expectativa angustiante. Parecia, até,
que o coração ia saltar pela boca. Cada dia que chegava ao fim me dava um friozinho na
barriga... É como se o dia de hoje me dissesse: “Vamos, menina, apresse-se que eu já
estou chegando”... E eu aqui atrasada... Posso apostar com você que nesse momento
todos já estão prontos e eu ainda desse jeito. Você acha mesmo que esta cor me fica
bem? Tenho medo de ficar muito pálida. Se bem que a Marialva escolheu um amarelo
bebê que é um horror! Acho que pra melindrosa, ela devia usar cores mais instigante
como, por exemplo, o rosa-choque ou talvez o grená. Também para quem vai usar está
muito bom. Ela sempre acredita que sabe de tudo. Só quero ver a cara dela, quando a
gente se encontrar no café. (olha ternamente para a irmã que permanece impassível)
Ah! Minha irmã, estou tão feliz... Só de pensar que foram necessários meses para que
esse sonho se realizasse... Meses que pareceram anos. Agora depois de tantos
preparativos, estou indo, finalmente, pro meu primeiro baile. E o que é melhor: um baile
de carnaval! Tenho vontade de gritar, tamanha é a minha alegria e devo tudo isso a
você, Rosário. (levanta-se e vai até a roupa) Você sempre tão doce, tão cuidadosa e
dotada com mãos de fada para confeccionar esta fantasia tão linda! Do jeito que você
queria. (veste) E pensar que eu quase entrei no cordão do Zé-Pereira. Sorte minha você
ter me convencido de que Colombina era a minha cara. Agora eu acredito. Talvez a
rivalidade entre Pierrot e Arlequim tenha me envolvido nesta trama de amor e

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carnaval... Por que você não vem também? Se não quiser entrar no bloco, pode ficar
acompanhando de fora até a nossa chegada no café. Lá chegaram outros blocos, então
será dado início a um grande baile. Ah! Por favor, diga que eu não estou sonhando.
(mudando de tom) (senta) O calor está insuportável. Toda vez que o mormaço me
incomoda, é sinal que aquelas olheiras ridículas vão aparecer. Mas desta vez, elas serão
frustradas. Além da camada de base, que a mulher falou pra eu não usar, ainda jogarei
por cima tantas e quantas demãos de pó-de-arroz eu quiser. (passa o batom) nada pode
me deter hoje... O carmim nos lábios revelará a liberação para um beijo apaixonado.
Estou parecendo muito fácil? Não importa, já que é carnaval... (apaixonada) (levanta-
se) Esse seria meu primeiro beijo. Mas dado por quem?... Por Augusto?... Por
Rômulo?... Estou tão dividida. Você já foi beijada, Rosário? Alguma vez seu coração já
foi tocado por uma paixão arrebatadora? (pausa) Estou muito preocupada com você.
Sempre trancada nesta casa, cuidando de papai, de suas costuras, dos afazeres. Fica me
tratando como se eu fosse um bebê! Você é uma moça muito bonita... Deveria usar
roupas mais alegres, passar um rouge para dar mais vida a esse rosto pálido. Pálido pela
falta de sol! Vamos, minha irmã... Eu posso lhe apresentar algumas pessoas. Conquistar
novas amizades faz bem à saúde, sabia? Onde será que eu coloquei as sapatilhas?... Ah!
Estão aqui. Você as deixou tão limpas, que parecem novas. Queria tanto que
pudéssemos ter comprado aquela da Rua dos Camões, lembra? Se Marialva descobre
que estas são emprestadas... Não quero nem pensar nisso. Fiz Izildinha jurar de pés
juntos que não contaria a ninguém. Você não gosta muito de Izildinha, não é? Mas ela é
minha amiga de verdade. Por favor, Rosário, me ajude aqui, porque eu não consigo
colocar esse casquete sozinha... (a irmã permanece distante)... Rosário! (segue-se um
grande silêncio. Maria Rita aproxima-se) Nem parece que você está aqui. Há horas que
estou falando e você nem se dignou a lançar um olharzinho, sequer, pro meu lado... O
que está se passando?

ROSÁRIO - Ele teve uma crise muito violenta hoje.

MARIA RITA - Ele já teve outras crises. Tantas que eu nem seria capaz de enumerá-
las.

ROSÁRIO - Desta vez foi diferente. Papai teve espasmos horríveis pela manhã. Nunca
aconteceu desta maneira. Seu corpo se comprimia, como se estivesse tentando, em vão,
segurar a alma que tentava se libertar. Eu fiquei apavorada.

MARIA RITA - Por que não chamou alguém?

ROSÁRIO - Tive medo que ele morresse enquanto eu saísse em busca de ajuda. Então
permaneci a seu lado em silêncio. Foi angustiante a sensação de impotência que me
dominava naquela hora. É como se estivéssemos juntando nossas forças para combater a
morte que ia e vinha de forma tão abrupta que parecia brincar com nosso desespero.

MARIA RITA - Nossa! Você está caminhando ao encontro de um esgotamento.


Lembra o que eu falei? Uma boa distração lhe faria muito bem. Há muito tempo a gente
vem se preparando para o pior, mas isso não quer dizer que vai acontecer logo hoje.
Relaxe.

ROSÁRIO - Depois que, finalmente, papai se acalmou, eu corri até o consultório do


Dr. Aníbal e ele, sempre tão solícito, veio até aqui para examiná-lo. Você precisava

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ver... Quando entramos no quarto, um frio intenso se chocou com o calor de nossos
corpos. O silêncio absoluto entrava em harmonia com seu olhar sem brilho, sem
expressão. Parecia que ele não estava mais ali. Somente as fracas batidas de seu coração
denunciavam um sopro de vida...

MARIA RITA - Você está muito tensa. Precisa descansar um pouco. Por que não
chama Dona Amália pra ficar um pouco com ele? Você sabe que sempre foram muito
amigos. E lembro que antigamente, Dona Amália vinha pra cá e eles ficavam horas
conversando ou então vocês duas experimentando novas receitas. Eram tão bons aqueles
dias... Apesar da minha pouquíssima idade, foram momentos que ficaram retidos em
minha memória...

ROSÁRIO - Dr. Aníbal confirmou que ele não tem muitas horas. Disse com toda
convicção que, hoje à noite, papai não estará mais entre nós.

MARIA RITA - Dr. Aníbal é um bêbado! Você não devia dar ouvidos ao que ele fala.
Ele já errou tantas vezes! Ele não disse que mamãe ficaria curada da pneumonia? E o
que aconteceu? Me fala? Onde está ela agora?

ROSÁRIO - Ele é o médico da família há muitos anos e sempre foi muito dedicado.

MARIA RITA - Só dedicação não importa. É preciso conhecimento. Foi justamente


por falta disso que nossa mãe morreu. Acho que seus métodos são ultrapassados.

ROSÁRIO - Pode-se combater uma doença, Maria Rita, mas a morte quando chega é
incisiva... Determinante.

MARIA RITA - A morte de mamãe nunca ficou muito clara pra mim. Às vezes tento
me lembrar de seu rosto...

ROSÁRIO - Você era tão menina ainda... Não posso culpá-la por não se lembrar dos
detalhes. Mas posso garantir que não foi uma falha médica.

MARIA RITA - Mas desta vez ele está enganado. Tenho certeza!

ROSÁRIO - Ele está morrendo!

MARIA RITA - Não! Não está não!

ROSÁRIO - Maria Rita... (olham-se em silêncio, vai abraçá-la e a irmã foge).

MARIA RITA - Que horas são? Ah! Meu Deus! O bloco já deve ter saído do Largo das
Rosas e eu ainda estou aqui! Eu nunca vou me perdoar se tiver que sair correndo atrás
para alcançá-los. Já pensou? Logo eu, que sou uma das organizadoras do desfile. Tenho
que estar na porta no momento em que estiverem chegando. No final do baile, serão
premiados os grupos mais animados e o nosso é um dos favoritos. Se nós ganharmos, o
que acho que vai acontecer, só quero ver a cara da Marialva. Nunca mais ela vai andar
por aí com o seu nariz arrebitado. As coisas vão mudar minha querida. Brevemente
teremos novos líderes no colégio. Que bom que soltou mais na cintura como eu lhe
pedi. Não quero nada me incomodando.

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ROSÁRIO - Fique comigo hoje...

(Um silêncio desconcertante toma conta de Maria Rita nesse momento)

ROSÁRIO - (indignada) Eu não posso acreditar que você vai pra um baile de carnaval
enquanto nosso pai está à beira da morte!

MARIA RITA - Você está exagerando. É claro que o seu estado não é tão grave.

ROSÁRIO - Você sabe que sim!... Nós somos uma família. Não é justo que você me
deixe sozinha nesta hora. Eu nunca lhe pedi nada e sempre cuidei pra que nada lhe
faltasse. Será possível que na hora que mais preciso você me nega sua companhia?...
Companhia! É tudo que lhe peço... Por favor...

MARIA RITA - Você não pode estar falando sério. Percebe o que está me pedindo?

ROSÁRIO - Como poderá se divertir? O remorso vai lhe acompanhar por toda a vida.
Nunca mais poderá olhar no espelho sem sentir vergonha de si mesma. Como pode
trocar laços tão profundos por um baile?

MARIA RITA - Não é apenas um baile. É o baile da minha vida. O momento mais
importante da minha vida até hoje. Por favor, Rosário, não me peça isso. Eu ficarei todo
o tempo com ele amanhã até que você...

ROSÁRIO - Não haverá amanhã!

MARIA RITA - Claro que sim! Rosário, você está desacreditando da vida pra se
agarras a essa idéia estúpida de morte. E eu? O que eu represento no meio dessa história
toda? Você fala de sua dedicação por mim, mas não leva em conta os dezessete anos da
minha vida que foram vividos por você! Nunca fiz nada que realmente gostasse apenas
para vê-la feliz... (arrependida) Ah, minha irmã, eu daria um vintém pelos seus
pensamentos...

ROSÁRIO - Nunca poderia entender nada em mim...

MARIA RITA - Você nunca deixou eu lhe conhecer profundamente. Sempre manteve
entre nós essa relação de mãe e filha. Eu não sou sua filha, Rosário. Somos irmãs...

ROSÁRIO - Mas é como se fosse...

MARIA RITA - (num susto) Não!

ROSÁRIO - A minha filhinha querida desde que nasceu... Você não faz idéia de como
o seu nascimento mudou a minha vida... Eu tinha oito anos na época e nunca, até então,
havia me interessado por brinquedos como as outras meninas. Gostava mesmo era de
ajudar mamãe com os afazeres da casa. Percebe? Eu brincava numa casinha de verdade.
Meus sonhos de criança se confundiam com deveres domésticos. Teve uma vez, eu me
lembro bem, era véspera de Natal. Eu estava passando pelo centro com mamãe. As ruas
estavam tão movimentadas que mal dava pra circular sem esbarrar nas pessoas. Nas
lojas havia um entra e sai constante de pessoas carregando sacolas, caixas com laços

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coloridos... Então, de repente, um detalhe numa vitrine me chamou atenção. Eu fiquei
ali como que hipnotizada por aquele olhar... Tão doce. Era como se tivesse ela tivesse
me dominado completamente... Usava um vestido de brocado rosa esfumaçado com um
tule da mesma cor... Parece que estou vendo os detalhes em fitas de cetim... DE sua
cabeça desciam pompons prateados que pareciam tremular com o brilho das luzes.
Então, seu rosto de pele de porcelana ganhava uma moldura iluminada que parecia lhe
dar vida... Nunca desejei tanto alguma coisa na minha vida. Mamãe sem notar meu
encantamento, saiu me puxando pelo braço. Nos juntamos à multidão que tomava conta
da calçada. Eles falavam alto e riam muito também. Parecia uma festa. Uma festa da
qual eu não participava. Olhando pra trás, ainda pude ver uma parte do da vitrine que
aprisionava o meu sonho. No dia seguinte, mamãe me deu uma bruxinha que ela mesma
havia feito usando alguns retalhos. Meu sonho ganhou uma mescla de tristeza...
Chorei... (mudando de tom) Dali a alguns meses nascia você. Tão pequena, tão frágil e
os olhos mexiam também. A pele tão delicada quanto a porcelana que me deixara
fascinada naquele dia. Ninguém podia me tirar a idéia de que você era minha. A minha
filhinha. Pedi a mamãe que me ensinasse costurar apenas pra lhe fazer roupinhas
maravilhosas como aquela de marinheiro quando você completou dois anos. A da
primeira comunhão, lembra? Eu estava tão orgulhosa e você tão linda... E agora você
me diz que somos “apenas” irmãs?

MARIA RITA - Eu não disse “apenas”, disse que somos irmãs. Eu não sabia dessa
história. Acredite que sempre trarei comigo essa gratidão, mas não pode me olhar a vida
inteira como se eu fosse um brinquedo. Eu cresci! Hoje trago comigo os meus próprios
pensamentos, minhas idéias, meus sonhos. Ah! Rosário, mamãe deve ter ficado muito
feliz sabendo do carinho que você tinha por mim.

ROSÁRIO - Ela não deixava eu brincar com você. Acho que tinha medo que eu lhe
quebrasse, que danificasse seus cabelos, ou que estragasse o mecanismo que lhe fazia
chorar.

MARIA RITA - Não fale assim...

ROSÁRIO - Quando ela morreu, então entendi que você era minha de verdade. Pra
sempre. A morte de mamãe não veio como uma dor, mas como a realização de um
grande desejo. Eu sabia que estava ganhando naquele dia, o maior presente da minha
vida.

MARIA RITA - Eu não sou sua propriedade! Nunca fui e a possibilidade de ser um
dia, nem existe!... Por que está me dizendo essas coisas? Que tipo de prazer pode sentir
estragando dessa forma o meu dia?

ROSÁRIO - Estragando o seu dia?! Eu dediquei minha vida inteira para que você
estivesse hoje aqui do meu lado. Como tem coragem de comparar seu baile idiota com
minha vida desgraçada?

MARIA RITA - Não estou fazendo comparação. O que quero que entenda, é que não
tenho culpa da escolha que você fez. Eu sou jovem, alegre e tenho planos. Existem
rapazes que se interessam por mim. Algumas pessoas me odeiam e outras me admiram,
porque assim é que é. Toda vez que tento fazer algo de bom pra mim, chega você com
alguma história comovente pra tentar me impedir e eu sempre acabo cedendo às suas

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lamúrias... (num grito) Mas agora chega! Acabou! Eu vou sair por aquela porta e
encontrar com os amigos. Vou dançar e cantar até abanda tocar a última marchinha.
(cantarola) Vou ser muito feliz, obrigada! Tomarei gasosa toda vez que me oferecerem
e quando eu chegar, à noite, em casa, minha fantasia vai estar com cheiro de cigarros e
meus pés cheio de bolhas por causa dessas malditas sapatilhas que nem são meu
número. Mas mesmo assim estarei contente. Nem você, nem ninguém vai conseguir
tirar isso de mim. Portanto, não fique agindo como se fosse dona da minha vida.

ROSÁRIO - Não precisa me tratar dessa maneira. Eu só penso no melhor pra você.

MARIA RITA - Eu já sei o que é melhor pra mim. Você vai ter que entender isso mais
cedo ou mais tarde. Então, por favor, pare de me perseguir.

ROSÁRIO - É essa a gratidão que você mencionou ainda há pouco? Nunca pensei que
pudesse se tornar uma pessoa tão egoísta.

MARIA RITA - Eu devia imaginar que todo esse carinho me seria cobrado um dia. Só
não pensei que o preço fosse tão alto.

ROSÁRIO - Você é apenas uma criança mimada. Mas tenho que admitir que a culpa é
toda minha. Não devia ter-lhe poupado de todo o horror que acompanha a nossa família.

MARIA RITA - Do que você está falando?

ROSÁRIO - (transfigurada) Você acha que nada do que eu disse vai lhe convencer,
não é mesmo? Então preste atenção no que eu vou te contar agora...

MARIA RITA - Agora não! Olha Rosário, eles já devem estar chegando e eu perdi
tempo demais com essas conversa. Não quero de jeito nenhum, manter esse clima de
guerra entre nós duas. (corre até o espelho e dá os últimos retoques) Pronto! (põe um
sorriso de menina no rosto e dá uma volta pela sala) Que tal? Não sou a Colombina
mais linda do carnaval? Obrigada pela fantasia, irmã. Agora me dê um grande abraço.

ROSÁRIO - (seca) Você não vai.

MARIA RITA - Rosário, não vamos começar de novo. Você sabe que eu vou de
qualquer maneira. Então vamos tornar as coisas mais fáceis pra nós.

ROSÁRIO - Então vamos até o quarto dele. Se depois de vê-lo você ainda continuar
insistindo no baile, eu prometo que não falo mais nada. Vamos.

MARIA RITA - Não!

ROSÁRIO - Tem medo de que? Você não está afirmando o tempo todo que ele está
bem?

MARIA RITA - Eu sei que está.

ROSÁRIO - Então vamos até lá. Quem sabe não podemos presenciar juntas, ele
expirando de uma vez.

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MARIA RITA - Credo, Rosário! Que horror! E claro que isso é uma brincadeira de
muito mau gosto. Parece até que você quer que nosso pai mossa!

ROSÁRIO - (cruel) Você não quer?

MARIA RITA - (recuando) Claro que não!

ROSÁRIO - Mas se ele morrer, você não vai se importar, não é mesmo?

MARIA RITA - Por que você está fazendo isso? Está me testando por acaso? Eu nunca
desejei a morte de ninguém, muito menos a de meu próprio pai. Você está querendo que
eu me sinta culpada. Eu até entendo, mas não acho justo. Não pode me arrastar para
essa sua tristeza. Se é verdadeiro o sentimento que diz ter por mim, então deixe que
minha alegria exploda. Fique feliz com a minha felicidade, Rosário. Mamãe ficaria...

ROSÁRIO - Você, realmente, acredito nisso, não é? Na tentativa de poupar-lhe, acabei


fazendo com que você a visse como uma santa.

MARIA RITA - Chega! Você está passando dos limites, Rosário! Eu exijo que respeite
a memória de nossa mãe!

ROSÁRIO - Memória? Não me faça rir. A vida daquela mulher ficou marcada pelo
adultério.

MARIA RITA - Como se atreve...

ROSÁRIO - Escute aqui, menina, já passou da hora de você colocar os pés no chão.
Pensa que pode sair e se divertir numa festa mundana como se o destino se resumisse a
isso? Você nunca questiona nada! Não tem noção da tormenta que devastou nossa casa.
Sua atenção sempre esteve voltada pra si mesma. Eu me calei esse tempo todo apenas
para conservar, no seu rosto, o sorriso que eu tanto gosto de ver, no entanto acabei
sendo anulada de sua vida. (violenta) Agora você me diz que vai sair em busca de novas
aventuras enquanto eu fico apodrecendo às sombras de um carnaval?! Não, Maria Rita.
Você não se safar da desgraça assim como nenhum de nós conseguiu. Eu prometo que
hoje arranco do seu olhar todo o brilho e juventude que se confundem nele.

MARIA RITA - Rosário, o que está acontecendo? Estou ficando assustada. Você
nunca agiu dessa maneira comigo. E o que mamãe tem a ver com todo esse seu
infortúnio?

ROSÁRIO - Nosso infortúnio. Não se esqueça que doravante dividiremos até as


lágrimas.

MARIA RITA - Pare com esse rodeios e me diga de uma vez!... (numa súplica) Fale-
me de mamãe...

ROSÁRIO - Foi dela que você herdou esse amor exagerado pela liberdade.

MARIA RITA - Eu não acredito! Se ela gostasse tanto assim da liberdade, não teria se
casado tão cedo.

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ROSÁRIO - Nossos pais casaram-se respeitando um acordo entre famílias. Ele a amava
muito, mas ela, por sua vez, já tinha entregado seu coração a um grande amor do
passado. Mamãe era uma mulher triste. A solidão que trazia consigo, mesmo em dias de
suposta alegria, era evidente. Decorridos alguns anos, eis que o antigo namorado retorna
à cidade, também casado. Como papai era caixeiro viajante, o trabalho sempre o
mantinha afastado de casa, às vezes por semanas seguidas. Não demorou muito até que
eles começassem a se encontrar e nisso ficaram por muito tempo. Quando você tinha
três anos, aconteceu de, uma noite, papai chegar em casa de surpresa e pegar os dois
juntos. Sabe o que eles faziam, além de usar a cama de casal? Traçavam planos para o
“seu” futuro. Foi um golpe terrível pra ele. Eu acordei assustada com a gritaria. Não
sabia exatamente o que estava acontecendo. Vi o amante saindo rapidamente e quando
entrei no quarto, o meu pai espancava nossa mãe impiedosamente. Comecei a gritar e
me agarrei a ela na intenção de protegê-la. Papai, desfigurado, a botou pra fora de casa
do jeito que estava. Eu me lembro que era madrugada de inverno e chovia muito.
Mamãe ficou o tempo todo ao relento, pois não tinha para onde ir daquele jeito. Pela
manhã, pessoas que passavam pela rua, penalizadas, a levaram para um hospital. A
pneumonia se agravou e ela morreu três dias depois. Papai não deixou que fôssemos ao
seu enterro nem que falássemos mais o seu nome dentro de casa. Ele nunca mais se
dedicou a você. A filha do pecado. Todo o carinho e educação que teve foram dados por
mim.

MARIA RITA - (atônita) Meu Deus! Não é possível que minha mãe... O amante! O
que aconteceu com ele?

ROSÁRIO - Fugiu, o covarde. Mas não pra muito longe. Queria apensa ficar fora de
evidência. Quando papai saía pra suas viagens, ele aparecia para saber notícias suas.

MARIA RITA - E você permitiu isso?

ROSÁRIO - Ele poderia segui-la pelas ruas, fazer perguntas e isso levantaria suspeitas.
Então achei melhor que freqüentasse nossa casa na ausência de papai.

MARIA RITA - Não é possível! Como eu não percebi nada?

ROSÁRIO - Nossa sorte é que você nunca enxergou um palmo adiante do nariz.

MARIA RITA - Você chama nossa mãe de adúltera, mas também cometeu uma grande
traição mantendo esse homem por aqui.

ROSÁRIO - Olhar para você passou a ser um grande tormento para papai. Ele não
suportava a idéia de criar a filha de um inimigo. Sua presença só foi tolerada porque ele
sabia o quanto eu a adorava. Agora pense comigo: se seu pai soubesse o quanto o meu
pai a desprezava, provavelmente ele a levaria daqui... Não! Não! Nada. Ninguém
poderia tirar você de mim... Ninguém... Então eu tive que fazer este jogo duplo.
Nenhum dos dois conhecia verdadeiramente a história.

MARIA RITA - Eu não quero que você se refira a esse homem como sendo meu pai.

ROSÁRIO - Mas ele o é.

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MARIA RITA - Prefiro não acreditar. Ah! Rosário, quem lhe deu o direito de
manipular desse jeito nossas vidas?

ROSÁRIO - Eu só pensava em você.

MARIA RITA - Pare de me usar como desculpa! É claro que não sou responsável por
este caráter que lhe domina!

ROSÁRIO - Apesar de todos os esforços, eu não pude segurar a ira de papai por muito
tempo.

MARIA RITA - Ele me odiava tanto assim?

ROSÁRIO - Não. Ele odiava as lembranças que tinha quando olhava pra você. Então
ele decidiu que você iria para um colégio interno bem longe daqui. Achava que, com
isso, se livraria de vez do fantasma de mamãe. E eu? Como ficaria sem minha
bonequinha? Foi então que aconteceu o fato que o jogou naquela cama pra sempre.

MARIA RITA - O derrame. Ele devia estar muito abalado emocionalmente. Tudo
aconteceu tão de repente...

ROSÁRIO - É verdade... Naquele dia eu estava terminando o vestido da Nair. Lembra


da Nair? Faltavam apenas alguns arremates quando papai entrou. Ele parecia
transtornado. Disse algumas coisas que eu não entendi direito, depois ordenou que
arrumasse suas malas. Ele disse que precisava viajar, mas que antes queria lhe deixar no
colégio. Já estava tudo acertado. O choque me deixou paralisada. Não conseguia atinar
minhas próprias idéias. Tudo parecia rodar a minha volta. Quando notou que eu não
reagia, ele mesmo foi até seu quarto e juntou algumas peças de roupas que julgava
necessárias. Voltou pra sala e trazia consigo duas malas. Ah, meu Deus! Eu pude sentir
a desgraça iminente que nos rondava. Começamos uma discussão terrível que foi
tomando proporções desmedidas. Até que, se esgotando todos os argumentos, eu me
atirei sobre ele como um animal furioso. Não avaliei, naquela hora, nossas diferenças
físicas. Agia por puro instinto. Mas que esperança a minha de vencer, numa luta, um
homem tão forte. Sem precisar de muito esforço, ele me atirou num canto da sala. Caí
sobre a máquina de costura e logo depois fui ao chão. Ergui a cabeça e pude ver papai
pegando as malas para sair da casa. Foi então que um som estridente chamou minha
atenção pra tesoura que caía ao meu lado. Tão próxima da minha mão, que mais parecia
uma sugestão para o crime. (pega a tesoura) Dessa vez já não me sentia tão fraca.
Levantei com força e corri atrás do potente inimigo que se afastava. (relembrando como
se refizesse o momento) A tesoura na mão agia como uma garra poderosa e o urro
desumano fortaleceu o golpe... Um único golpe... Preciso... Bem abaixo da nuca... Ele
caiu de uma só vez. Dei alguns passos pra trás e me preparei para um novo confronto. O
tempo passava e ele não reagia. Não emitia som. Nem um ruído sequer. O terror tomou
conta de mim, quando olhei pra mão assassina e a tesoura fria parecia pedir mais...

MARIA RITA - Pará!... Você não vai continuar com isso! É tudo mentira! Mentira!
Você está louca!

ROSÁRIO - Louca?

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MARIA RITA - O papai teve um derrame! O Dr. Aníbal atestou isso. Ele é um
médico!

ROSÁRIO - Ele é um homem! Um homem velho que tem uma esposa feia e doente. E
eu sou jovem, bonita e cheia de vida.

MARIA RITA - Rosário!

ROSÁRIO - Eu não sei se por sorte ou azar naquele dia o Dr. Aníbal apareceu para
uma de suas visitas. Ao examiná-lo ele constatou que papai nunca mais seria capaz de
andar. Como se não bastasse a desgraça, ele também jamais conseguiria falar nem se
comunicar de forma alguma. Eu tinha transformado meu pai num vegetal. Dr. Aníbal
ameaçou me entregar para a polícia. Parecia que tudo tinha chegado ao fim.
Desesperada, eu tentei achar uma saída. Mas parecia que todas as portas estavam
fechadas. Ele, quando percebeu minha fragilidade, me propôs um trato: atestaria uma
doença que convencesse a todos, em troca eu lhe daria o prazer de ser homem
novamente.

MARIA RITA - Rosário, pelo amor de Deus!

ROSÁRIO - Eu não hesitei... Faria qualquer coisa para mantê-la ao meu lado.

MARIA RITA - Maluca! Não percebe que o que sente por mim não é amor, mas sim
uma possessão doentia? Eu não acredito no que acabou de me contar! É monstruoso...
Como conseguiu viver com isso tanto tempo? E o remorso? Me diga que estou
enganada... Diga que se pudesse voltar no tempo, faria tudo diferente... (silêncio)... Meu
Deus!...

ROSÁRIO - Você acha que mais alguém nesse mundo seria capaz de cometer um ato
desses por você?

MARIA RITA - Por mim?... Depois de toda essa barbaridade que fez você ainda
consegue manter esse cinismo?... Rosário, como teve coragem de fazer uma coisa
dessas com seu próprio pai?

ROSÁRIO - Pensa que não sofri com isso também? Toda vez que entrei naquele quarto
durante esses anos, pude sentir o ódio em seu olhar. O único movimento a que pude
assistir no corpo, imóvel, de papai, foi o das lágrimas que desciam pelo seu rosto em
silêncio. Esse era o único sinal de que dentro da carcaça havia vida. Vida que agora está
se esvaindo pra sempre.

MARIA RITA - Você me surpreende a cada frase. Ainda não se deu por satisfeita em
mutilar nosso pai... Precisa também assistir à sua morte, não é? Quem lhe deu o direito
de julgar e punir uma pessoa?

ROSÁRIO - O castigo, quando dado ao corpo, purifica nossas almas... Dentro de


algumas horas, papai morrerá tão puro quanto nasceu...

MARIA RITA - Por que não chama seu amante nojento? Tenho certeza que vocês se
divertiriam muito...

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ROSÁRIO - Melhor que isso: por que não ficamos os três juntos? Formaríamos uma
família perfeita.

MARIA RITA - Família?... Você desconhece o significado dessa palavra, Rosário!...


Eu não faço parte dessa corja imunda!

(Pausa. A expressão de Maria Rita começa a se transformar. O rosto que até então
transmitia ódio, agora demonstra medo desesperador).

MARIA RITA - Família?... O que quer dizer com isso?

ROSÁRIO - Eu gostaria que fosse tudo diferente... Acredite...

MARIA RITA - O Dr. Aníbal... Não pode ser!... Por favor, diga que tudo isso é um
pesadelo!...

ROSÁRIO - Fique calma, Maria Rita. Eu estarei sempre aqui com você.

MARIA RITA - Cale essa boca!... Será que você nunca reconhece a hora de parar?!...
Eu não agüento mais...

ROSÁRIO - Mas eu... (interrompe o que ia dizer e mergulha num choro silencioso ao
ver o estado da irmã)... Me perdoe...

MARIA RITA - E agora? O que eu vou fazer?... Não consigo pensar... Vocês não
tinham o direito de fazer nada do que fizeram!

ROSÁRIO - Só pensamos em você...

MARIA RITA - Mentira! Vocês não pensam em ninguém! O único sentimento que
acreditam é o de vingança. E agora, pela primeira vez, eu acredito que herdei isso de
nossa família. Eu ainda quero cuspir no seu túmulo, Rosário...

ROSÁRIO - Faça isso. Una-se a nós de uma vez. Esse é um direito que eu não posso
lhe tirar, mas saiba que nada do que fizer, poderá me agredir. Eu entenderei...

(Maria Rita desaba na poltrona e chora compulsivamente. Aos poucos o choro vai se
misturando ao som de uma marcha. É o bloco carnavalesco que está passando na rua.
Lentamente ela começa a se levantar. Rosário percebe sua intenção).

ROSÁRIO - Maria Rita...

(Maria Rita vai até o espelho e retoca rapidamente a maquiagem, depois se dirige à
irmã que segura a máscara da Colombina).

MARIA RITA - Me dê a máscara.

ROSÁRIO - Pra que?

MARIA RITA - Minha fantasia fica incompleta sem ela.

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ROSÁRIO - (suplicando) Por Deus, não! Eu faço o que você quiser... Mas não vá...

MARIA RITA - A máscara.

ROSÁRIO - Maria Rita, por favor, não me deixe sozinha hoje... Eu não suportaria...

MARIA RITA - A máscara.

ROSÁRIO - Amanhã você vai estar mais calma, então nós poderemos...

MARIA RITA - (numa explosão) Me dê essa porcaria de máscara!

ROSÁRIO - Não!

(Como uma louca, Rosário se atira sobre a irmã e entre gritos e golpes, começa a
rasgar sua fantasia).

MARIA RITA - Não!... O que está fazendo?... Pare!... Pare!...

(Os pedaços de tecido ficam espalhados pelo chão. Rosário tem no rosto uma expressão
que mistura alegria e insanidade).

ROSÁRIO - O seu carnaval acaba aqui.

(Rosário, friamente, se recompõe. Vai até a máquina de costura e senta de costas pra
irmã. Começa a trabalhar como se nada tivesse acontecido. Maria Rita recolhe os
pedaços da fantasia e traz junto ao corpo como se tentasse recuperá-la. Cai numa
profunda depressão. Rosário inicia uma marchinha num ritmo que mais parece uma
cantiga de ninar).

ROSÁRIO - Um Pierrot apaixonado


Que vivia só cantando
Por causa de uma Colombina
Acabou chorando, acabou chorando...
Um Pierrot apaixonado
Que vivia só... cantando...

(A luz vai fechando em resistência, ficando apenas um pequeno foco sobre a tesoura
entreaberta que se encontra numa extremidade do palco).

FIM

Por gentileza, qualquer interessado em montar este espetáculo,


comunicar pelo e-mail waldir.correia@uol.com.br
O texto não é protegido por leis de direitos autorais, mas solicita-
se que os créditos do mesmo sempre sejam dados somente ao autor.

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