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Universidade Federal de Juiz de Fora

Faculdade de Engenharia
Departamento de Arquitetura e Urbanismo

Lucas Oliveira Roux

UM GUIA PARA O FIM DAS UTOPIAS

Monografia apresentada ao curso de Arquitetura e


Urbanismo, da Faculdade de Engenharia, da Univer-
sidade Federal de Juiz de Fora, como requisito par-
cial para conclusão da disciplina Trabalho Final de
Graduação I.

Orientador: Prof. Dr. Fabio Jose Martins de Lima

Juiz de Fora
Julho de 2014
A minha mãe, Adriana.

II
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor Fabio, pela confiança e liberdade depositados em mim


e no meu trabalho.

Ao professor Antônio Agenor e sua gentil disponibilidade, indicações e observações


preciosas que foram fundamentais para a construção desse trabalho.

À professora Raquel Braga pelos ensinamentos sobre arquitetura contemporânea,


por sempre ter sido uma inspiração e por ter implantado em mim o vírus da teoria.

Aos professores Gustavo Abdalla e Antônio Colchete pelos anos de ensinamento


como monitor na disciplina de Projeto.

Ao Otávio, parceiro de projeto desde o primeiro período, pelo suporte, pelas noites
em claro as vésperas de apresentações e pelas risadas sem fim.

À Marina pela amizade, apoio e companheirismo ao longo de todos esses anos de


faculdade.

À Isabella e Nina pela paciência, pelo drama, pelas cervejas e pelo amor sem fim.

Ao Rodrigo e Felipe, com seus gostos apurados por coisas belas.

Ao Tiago, Cassio e Fil pelas experiências, hospedagens, pela música e conversas de


máxima relevância.

E a minha família por todo o suporte e acompanhamento ao longo desses anos.

III
Não é necessário que o público saiba se estou
brincando ou sendo sério, assim como não é
necessário que eu mesmo saiba.

Salvador Dalí (1964)

IV
RESUMO

Este trabalho se propõe a apresentar os principais conceitos e paradigmas que


conduziram o debate da pós-criticalidade na teoria da arquitetura no início do século
XXI e a identificação das principais correntes dessa prática arquitetônica. Através
de uma reflexão baseada em alguns dos principais textos publicados sobre o assunto,
se constata que o absorvimento das vanguardas pela máquina capitalista
contemporânea acaba gerando, na arquitetura, o afloramento de uma prática
alinhada as regras da economia global e, consequentemente, impulsionadora de um
status quo destrutivo e opressor.

PALAVRAS-CHAVE

Teoria da Arquitetura. Arquitetura contemporânea. Crítica.

V
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................................. 01

1. DA CRITICALIDADE A PROJETIVIDADE............................................................................. 04
1.1. Das mudanças de paradigmas................................................................................................................. 05
1.2. Do indicial ao diagramático..................................................................................................................... 07
1.3. Da dialética ao doppler............................................................................................................................. 18
1.4. Do quente ao frio.......................................................................................................................................22

2. ACABARAM-SE OS SONHOS....................................................................................................... 25
2.1. Autonomia Projetiva..................................................................................................................................30
2.2. Mise-en-scène Projetiva............................................................................................................................ 33
2.3. Naturalização Projetiva............................................................................................................................. 36

3. RUMO A QUE?......................................................................................................................................... 40

CONCLUSÃO................................................................................................................................................ 46

REFERÊNCIAS............................................................................................................................................... 47

VI
INTRODUÇÃO

Durante o período pós-moderno a arquitetura viveu uma vigorosa efervescência


teórica em um esforço intenso de ampliação do campo disciplinar arquitetônico
através de um processo de aproximações e relações interdisciplinares. Teóricos da
nova geração identificaram que uma prática arquitetônica crítica e de resistência ao
status quo começou a ser difundida e se transformou no arquétipo dominante da
disciplina nos anos 1980 e 1990. Fundamentada no materialismo dialético marxista
e em linha com a escola de Frankfurt, situaram a arquitetura em uma posição
crítica de significação cultural, social e política de estar entre diferentes posturas,
ideologias e forças de poder. Com a virada do milênio, e principalmente após os
eventos de 11 de Setembro de 2001, começa a ser percebido um cenário de
resfriamento da agitação teórica que, até então, definia a disciplina. Arquitetos,
críticos e teóricos da nova geração começam a debater sobre a saturação de uma
prática arquitetônica crítica; Michael Speaks, diretor da Faculdade de Projeto da
Universidade de Kentucky, chega a anunciar o fim da teoria e a perspectiva de um
futuro dominado por uma Inteligência de Projeto, que teria se tornado o processo
intelectual revitalizante das vanguardas no final do século XX.

Dentro desse contexto de angústia teórica, Robert Somol, diretor da Faculdade


de Arquitetura da Universidade de Illinois, e Sarah Whiting, diretora da Faculdade
de Arquitetura de Rice, propõe uma alternativa conceitual à criticalidade através de
uma prática arquitetônica que eles denominam de projetiva.

O debate em torno da prática arquitetônica projetiva como operação conceitual


substitutiva à prática arquitetônica crítica é o elemento estruturador desse trabalho.
Essa monografia surge da inquietação provocada pela pouca participação dos
profissionais brasileiros no cenário de discussão teórica internacional. Em um
momento em que a sobrevivência da teoria da arquitetura chega a ser colocada em
cheque, julgo de fundamental importância refletir sobre os rumos dos fundamentos
da nossa disciplina.
Por se tratar de um debate muito recente, pouco difundido no meio acadêmico
brasileiro, esse trabalho se propõe a apresentar os principais conceitos que
conduzem a discussão teórica nesse período de transição do início do século XXI,
através de uma revisão bibliográfica feita a partir de alguns dos principais artigos
publicados sobre o tema.

O primeiro capítulo é organizado de acordo com o ensaio Notas sobre o efeito


Doppler e outros estados de espírito do modernismo, onde Robert Somol e Sarah
Whiting apresentam sua proposição de uma prática arquitetônica projetiva, como
alternativa ao projeto crítico. Dessa forma, o primeiro capítulo da monografia se
inicia com uma breve explanação sobre a construção do projeto crítico, baseado no
trabalho de Peter Eisenman e K. Michael Hays. As seções seguintes são dedicadas a
conceituar os paradigmas que regem a prática arquitetônica projetiva, proposta
pelos autores, a partir de diversas apropriações e aproximações filosóficas e
interdisciplinares. Numa curiosa construção de metáforas para a prática
arquitetônica, os autores buscam nas artes, na comunicação, na física e na semiótica
aproximações conceituais para ilustrar as principais ideias por trás da prática
arquitetônica projetiva.

No segundo capítulo a discussão sobre as práticas projetivas é aprofundada. O


professor da Universidade de Tecnologia de Delft e do Instituto Berlage, Roemer van
Toorn, analisa as práticas projetivas e identifica três correntes distintas que são,
então, apresentadas ao longo das seções do capítulo. Fica claro nesse capítulo que
Roemer van Toorn considera as práticas projetivas como uma tentativa do sistema
capitalista contemporâneo de absorver o discurso de resistência ao status quo das
práticas críticas; fazendo com que a arquitetura produzida tenha pouco impacto para
a construção de uma sociedade menos opressora. Roemer van Toorn considera que a
paixão pela realidade cotidiana, demonstrada pelas práticas projetivas, dificulta a
idealização de mundos utópicos.

O terceiro capítulo é dedicado a indagar sobre que tipo de mundo essas práticas
pós-críticas pretendem construir, com sua postura de projeto em serviço da
manutenção de um sistema opressor. O arquiteto e pesquisar Reinhold Martin,
professor da Universidade de Columbia, faz sua contribuição ao debate de maneira
bastante severa, invocando a imagem de “um yuppie lendo Deleuze”, arquétipo

2
concebido pelo filósofo Slavoj Žižek, para analisar alguns projetos que participaram
do concurso de propostas para o terreno do antigo World Trade Center, em Nova
York. Reinhold Martin se preocupa com a guinada reacionária dada pela arquitetura
e defende, assim como Roemer van Toorn, um retorno ao pensamento utópico
enquanto paradigma conceitual para que se possa repensar a noção de democracia
na construção do espaço.

Esse trabalho não tem qualquer pretensão de dar alguma resposta para as
questões discutidas, muito pelo contrário. O principal objetivo desse trabalho é
justamente iniciar um processo de discussão, levantar indagações e refletir sobre as
fronteiras do campo disciplinar da arquitetura.

Como o escopo dessa monografia é a reflexão sobre a prática arquitetônica,


motivado por inquietações fundamentalmente teóricas, não há compilado, neste
trabalho, qualquer proposta de diretriz projetual a ser desenvolvida no TFGII.
Entende-se, através dessa monografia, fundamentalmente teórica e de forte cunho
filosófico-político, que o projeto de arquitetura se encontra em seu próprio processo, e
não no objeto em si. Dessa forma, será parte fundamental do trabalho a ser
desenvolvido no TFGII a elaboração das definições projetuais a serem exploradas ao
longo do trabalho.

Mesmo após a morte anunciada da teoria; em épocas de Porto Maravilha e


Ocupe Estelita, a reflexão teórica nunca me pareceu tão necessária.

3
1. DA CRITICALIDADE A PROJETIVIDADE

Em 1984, quando K. Michael Hays, professor de teoria da arquitetura na


Universidde de Harvard, publica seu artigo Arquitetura crítica: Entre cultura e
forma, no número 21 da revista Perspecta1, o campo acadêmico da arquitetura
discutia os limites e paradigmas que cercavam a disciplina no contexto do pós-
modernismo. Os editores da revista, Carol Burns e Robert Taylor, não definiam a
arquitetura como uma disciplina autônoma – como se pode notar pelo texto do
programa da edição da revista – por conta de estar engajada na cultura social,
intelectual e visual de maneira ativa; questões essas que são, a princípio, externas à
disciplina arquitetônica.

O canônico artigo de Hays oferece uma retificação da posição dos editores do


número 21 da Perspecta ao entender com maior precisão a dialética entre
engajamento e autonomia; para Hays, uma das condições prévias para o
engajamento é justamente a autonomia. Assim, ao fazer uma análise de obras de
Mies van der Rohe no artigo, especialmente do Pavilhão da Alemanha para a Feira
Mundial de Barcelona de 1930, Hays defende uma prática arquitetônica crítica, que
“operaria entre os extremos da comodidade conciliatória e do comentário crítico”
(apud SOMOL, WHITING. 2013, p. 145).

A partir de sua publicação, o ensaio de Hays assume então papel de grande


destaque e influência nas discussões arquitetônicas nos anos que se seguiram,
culminando no lançamento da edição de número 33 da Perspecta, em 2002. Os
editores da revista organizam o programa da edição a partir da noção de que a
arquitetura está na posição crítica entre ser um produto da cultura e uma disciplina
autônoma em si.

K. Michael Hays afirmava que somente a arquitetura crítica ocupava a posição


do estar entre várias oposições discursivas, no que tange o regime da textualidade.

1Perspecta: The Yale Architectural Journal. Periódico ligado a Universidade de Yale, fundado em
1952.
4
Mas, segundo o editorial da Perspecta 33, toda arquitetura assume automaticamente
essa posição de estar entre; de forma que toda a prática arquitetônica possuísse um
caráter de prática crítica, transformando o que antes era uma excepcionalidade da
prática arquitetônica em um fato cotidiano.

Dessa forma, segundo Robert Somol e Sarah Whiting, podemos identificar, no


evento dessas publicações, um fenômeno que acometeu, talvez inconscientemente,
com a arquitetura nas décadas de 1980 e 1990: “que a disciplinaridade foi absorvida
e esgotada pelo projeto da criticalidade” (2013. p. 146).

A partir dessa perspectiva, Somol e Whiting elaboram uma teoria para “oferecer
uma alternativa ao paradigma da criticalidade”; alternativa que os autores
denominam como prática projetiva.

1.1. DAS MUDANÇAS DE PARADIGMAS

Para explicar as mudanças de paradigmas da prática arquitetônica crítica para a


prática projetiva, Somol e Whiting tomam como referência os trabalhos de K.
Michael Hays e Peter Eisenman que, segundo os autores, são fundamentados nas
ideias desenvolvidas por Colin Rowe e Manfredo Tafuri.

A noção de cultura e forma é uma contradição dialética intrínseca a condição da


arquitetura em assumir uma posição crítica do estar entre; Colin Rowe e Manfredo
Tafuri enxergam essa dialética de maneiras diferentes. Apesar de ambos partirem
do pressuposto da contradição e ambiguidade, Rowe possui uma visão baseada no
formalismo liberal, enquanto que Tafuri baseia suas ideias no materialismo
dialético.

Dessa maneira, Tafuri apresenta a ideia dialética de cultura e forma como


sendo uma expressão da relação entre desenvolvimento capitalista e projeto,
enquanto que Rowe sugere uma representação dialética entre o literal e fenomênico.
Assim, de acordo com as análises de Somol e Whiting, são as ideias de Colin Rowe e
Manfredo Tafuri que melhor preenchem a posição do projeto arquitetônico crítico de
estar entre diferentes discursos.

5
Robert Somol e Sarah Whiting avançam nessa análise (2013):

O projeto ostensivamente formal de Rowe tem profundas


ligações com uma política liberal determinada, e a prática de
uma crítica dialética visivelmente engajada de Tafuri acarreta
uma série definida de a prioris formais, além de um prognóstico
pessimista em relação à produção arquitetônica. Visto dessa
maneira, não existe autor mais político do que Rowe nem mais
formalista do que Tafuri.

A partir das análises feitas por Robert Somol e Sara Whiting, foi desenvolvido
para este trabalho o diagrama abaixo sobre as principais posturas de Rowe e Tafuri:

Figura 1 – Diagrama das análises de Somol e Whiting sobre Colin Rowe e Manfredo Tafuri.

6
O projeto da criticalidade na arquitetura foi desenvolvido baseado no material
genético conceitual de Rowe e Tafuri, quer seja através de K. Michael Hays no
campo da história e teoria quer seja no campo do projeto através das análises e
experimentações projetuais de Peter Eisenman.

Peter Eisenman e K. Michael Hays se baseiam na dialética e na contradição de


Rowe e Tafuri para construírem o projeto da criticalidade, conservando a sua
estrutura ao mesmo tempo em que procura anular e destruir seus paradigmas. Hays
e Eisenman temem o literalismo e entendem a disciplinaridade arquitetônica como
uma autonomia – o que permitiria uma crítica ao status quo e a ideologia social
vigente através da representação e da significação – e não como uma
instrumentalidade – que levaria apenas a uma projeção da capacidade de
desempenho de maneira pragmática. Assim sendo, a conceituação de Hays e
Eisenman quanto à disciplinaridade se volta contra a reificação2, no entendimento
de que esta seria mais uma forma de apropriação da diferença pelo capitalismo
tardio, reduzindo a experiência qualitativa em favorecimento da quantificação.

Analisando essas questões, Somol e Whiting por fim caracterizam o projeto


crítico como estando em diálogo com o índice, a dialética e a uma representação
quente; enquanto que a prática projetiva proposta estaria vinculada ao pensamento
diagramático, às relações atmosféricas e a um desempenho frio3.

1.2. DO INDICIAL AO DIAGRAMÁTICO

A produção de Hays e Eisenman encontra correspondência nos conceitos de


mediação e reprodução desenvolvidos por Marshall McLuhan; a partir da sua teoria
da reprodutibilidade traduzível dos meios de comunicação de massa; e Fredric
Jameson; com sua ideia de mediação ativa, que parte do princípio de uma interação

2 Conceito desenvolvido pelo filósofo George Lukács, definido como o “processo através do qual os
produtos da atividade e do trabalho humanos se expressam como um modelo estrutural que é coi-
sificado, independente e estranho aos homens, passando a dominá-los por leis que adquirem uma
existência externa ao sujeito. O mundo toma a aparência de um mundo de coisas, e os homens
também se coisificam” (CAMARGO, Silvio; SOUZA, Luiz, 2012).
3 Para caracterizar o desempenho “frio” no ensaio original, em inglês, é usada a palavra “cool”.

Somol e Whiting se aproveitam da dupla acepção da palavra, que pode significar tanto frio como
descolado, para lançar uma crítica em seu texto. As traduções brasileiras optaram pelo uso da pa-
lavra “frio”.
7
engajada entre dois sujeitos ou entre um sujeito e um objeto, e não uma relação
passiva, que funcionaria apenas como uma conciliação entre sujeitos e objetos.
Observamos a existência de uma obsessão pela reprodução no desenvolvimento do
projeto da criticalidade, manifestada nas interpretações feitas por Michael Hays
sobre o Pavilhão de Barcelona, de Mies van der Rohe, e por Peter Eisenman sobre a
Maison Dom-ino, de Le Corbusier. Nesses dois projetos o objeto formal atua como
elemento mediador crítico da posição de estar “entre” ao combinar materialismo e
significação, surgindo, assim, como um índice.

O índice, nesse caso, é definido por Gilles Deleuze e Félix Guattari como
“estados de coisas territoriais que constituem o designável”, se diferenciando, assim,
do ícone – que é caracterizado pelas “operações de reterritorialização que constituem,
por sua vez, o significável” – e do símbolo – que são signos de “desterritorialização
relativa ou negativa” (DELEUZE, GUATTARI, 1995). O índice não se apresenta
como uma reificação, mas sim como um signo físico que não é determinado
culturalmente nem visualmente, como acontece com os símbolos e os ícones.

No ensaio “Arquitetura crítica: Entre cultura e forma”, K. Michael Hays analisa


a obra de Mies van der Rohe e coloca sua arquitetura como estando entre uma a
representação eficiente dos valores culturais preexistentes e uma autonomia
totalmente separada de um sistema formal abstrato. Hays utiliza de fotografias
históricas do Pavilhão de Barcelona para fazer uma reinterpretação dos sistemas
técnicos construtivos e materiais, identificando que não existe uma relação
hierárquica na composição, mas sim um conjunto de partes de diferentes matérias
que se relacionam em um fluxo constante através do edifício, sem a existência de um
centro conceitual de organização das partes (HAYS, 1984).

Assim, Hays define o Pavilhão de Barcelona como “um evento com duração
temporal, cuja existência concreta está sendo continuamente produzida” e o
significado continuamente decidido. E completa:

Ainda que [o Pavilhão] exista em grande extensão em virtude


de suas próprias estruturas formais, não pode ser apreendida
apenas formalmente. Nem representa meramente uma
realidade preexistente. A realidade arquitetônica se dá junto
com o mundo real, explicitamente compartilhando condições

8
temporais e espaciais com este mundo, mas obstruindo suas
autoridades absolutas com uma alternativa de material, técnica
e precisão teórica. Um participante do mundo e ainda
disjuntivo a ele, o Pavilhão de Barcelona secciona uma lasca da
superfície contínua da realidade (1984, p. 24).4

Figura 2 - Pavilhão de Barcelona: interior (Mies van der Rohe - 1929).5

4 Tradução nossa. Do original, em inglês: “Though it exists to a considerable extent by virtue of its
own formal structures, it cannot be apprehended only formally. Nor does it simply represent a
preexisting reality. The architectural reality takes its place alongside the real world, explicitly
sharing temporal and spatial conditions of that world, but obstructing their absolute authority
with an alternative of material, technical, and theoretical precision. A participant in the world
and yet disjunctive with it, the Barcelona Pavilion tears a cleft in the continuous surface of reali-
ty” (HAYS, 1984, p. 25).
5 Fonte: HAYS, 1984.

9
Segundo Somol e Whiting, esse ato de decisão contínua do significado é o gesto
crítico por excelência. Hays acredita que a “repetição demonstra como a arquitetura
pode resistir, mais do que refletir, a uma realidade cultural externa”. Somol e
Whiting chegam, então, a conclusão de que:

Alcança-se essa situação de estar no mundo, mas resistindo a


ele, pela maneira como o objeto arquitetônico reflete
materialmente seu contexto temporal e espacial específico, e
também pela maneira como ele serve como vestígio de seus
sistemas de produção (2013, p. 147).

Figura 3 - Pavilhão de Barcelona: Planta Baixa (Mies van der Rohe - 1929).6

Quando se debruça sobre o projeto da Maison Dom-ino, de Le Corbusier, Peter


Eisenman registra e analisa o próprio processo de projeto; e não os sistemas e
materiais construtivos e os contextos específicos discutidos por Michael Hays na sua
reinterpretação do Pavilhão de Barcelona.

Fica evidente na análise de Eisenman que a condição de existência da Maison


Dom-ino se deve a sua capacidade de funcionar como um signo autorreferencial;
tornando-se, assim, um dos primeiros gestos críticos em arquitetura. Eisenman faz
uma profunda recuperação do processo projetual da Maison Dom-ino a partir de
uma série de desenhos axonométricos variados, redesenhando os croquis iniciais de
Le Corbusier. Peter Eisenman reconstrói os processos de tomada de decisões que Le

6 Fonte: HAYS, 1984.


10
Corbusier fez até que chegasse ao desenho final da Maison Dom-ino, identificando
possíveis desenhos não satisfatórios que foram abandonados ou modificados ao longo
do processo. A partir dessa reconstrução, Eisenman pode afirmar que a Maison
Dom-ino é um artefato autoconsciente; nas palavras de Somol, “um sistema
notacional de seu próprio processo de projeto” (apud EISENMAN. 2013).

Figura 4 - Maison Dom-ino (Le Corbusier - 1914)7

O processo de reprodução serial em ambas as análises – nas axonometrias de


Eisenamn e nas fotografias de Hays – tornam a arquitetura um procedimento
autônomo e natural, autotransformador e autorreferencial, onde o objeto está, em
certo sentido, projetando a si próprio.

Dessa forma, o Pavilhão de Barcelona e a Maison Dom-ino não funcionam como


ícones, tampouco símbolos. Os dois artefatos são, na verdade, índices dos próprios
processos de projeto que os criou. Segundo Somol e Whiting:

o Dom-ino e o Pavilhão de Barcelona são ao mesmo tempo


vestígios de um evento, índices de seus procedimentos de

7 Fonte: EISENMAN, 1979.


11
projeto ou construção, e objetos que apontam potencialmente
para um estado de transformação contínua (2013, p.148).

Figura 5 - Axonometrias de análise da Maison Dom-ino8

Em contraponto a essa leitura crítico-indicial adotada por Eisenman para


elaborar suas reflexões sobre a estrutura da arquitetura europeia nos anos 1970,
o arquiteto holandês Rem Koolhaas se debruça sobre a cultura de massas norte-
americana para desenvolver seu arcabouço analítico.

A reinterpretação indicial que Eisenman faz da Maison Dom-ino, apesar de


ser desenvolvida através de diagramas, continua ainda ligada a uma repetição
serial, com uma pretensão semiológica e representacional. Ou seja, embora as
análises de Peter Eisenman operem através da elaboração de diagramas, a con-
ceituação desenvolvida não possui um caráter diagramático; como as análises fei-
tas por Rem Koolhas em seu livro Nova York Delirante, de 1978.

8 Fonte: EISENMAN, 1979.


12
Em seu livro, Koolhaas faz uma interpretação do Downtown Athletic Club de
Nova York através de um corte transversal, onde começa a elaborar uma outra
visão de arquitetura, onde esta coloca na posição de projetar e produzir novas
formas de coletividade em universos virtuais.

De acordo com Somol e Whiting, o Downtown Athletic Club é mais uma das
estruturas de Nova York à qual não se presta atenção; sendo visto da cidade, é
apenas mais um edifício imerso no mar de arranha-céus. Nas palavras de Koo-
lhaas, o Downtown Athletic Club possui:

um exterior inescrutável e quase indiscernível entre os arra-


nha-céus convencionais que o cercam. Essa serenidade oculta
a apoteose do arranha céu como instrumento da cultura da
congestão. [...] com o Downtown Athletic Club, o modo de vi-
da, a técnica e a iniciativa americana superam definitiva-
mente as modificações teóricas no estilo de vida que as diver-
sas vanguardas europeias do século XX vêm propondo insis-
tentemente, sem nunca conseguir impô-las (2008, p. 180).

O Downtown Athletic Club não é um edifício destinado à leitura, mas sim um


espaço concebido para “seduzir, criar e instigar novos eventos e comportamentos”
(SOMOL, WHITING. 2013, p. 148). Rem Koolhaas analisa, então, o curioso pro-
grama do edifício, voltado basicamente para atividades de restauro do corpo hu-
mano e ligadas ao atletismo; exclusivamente destinado a usuários do gênero mas-
culino que desfrutam das atividades distribuídas ao longo das 38 plataformas re-
tangulares empilhadas, que praticamente reproduzem as pequenas dimensões do
seu terreno de implantação.

Cada andar é um evento, um território nunca antes explorado. Quadras de


tênis, piscinas, salas para irrigação do cólon, campos de golfe e jardins se empi-
lham em territórios virtuais. O edifício transforma “a natureza em sobrenatural”.
Rem descreve o Downtown Athletic Club como um lugar onde homens, atletas
hedonistas puritanos, podem “comer ostras com luvas de boxe, nus, no enésimo
andar – tal é o enredo do 9º andar, ou o século XX em ação” (KOOLHAAS. 2008).

13
Figura 6 - Downtown Club
Planta Baixa 9º andar.9

Figura 8 - Downtown Club


Figura 7 - Downtown Club
Corte transversal.9
Atividades no 9º andar. 9
9

9 Fonte: KOOLHAAS, 2008.


14
Para Koolhaas, essa arquitetura é uma maneira de colocar a própria vida em
planta, em uma disposição aleatória. A planta exerce um papel fundamental no
projeto do Downtown Club, com uma composição abstrata, que determina atuações
numa sobreposição fantástica de atividades, onde cada pavimento do clube é um
universo independente em uma trama absolutamente imprevisível que exalta a
rendição à completa instabilidade definitiva da vida na metrópole.

Koolhaas entende o Downtown Athletic Club como uma máquina-arranha-céu


que permite uma projeção vertical ascendente infinita de universos e territórios
virtuais dentro desse mundo. Essa ideia maquínica encontra paralelo no conceito
filosófico de máquina abstrata, desenvolvido nos Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, juntamente com as definições de pensamento diagramático, que tem como
uma de suas bases a interpretação que Foucault faz sobre o projeto do Panopticon.

Foucault analisa o Panopticon de Jeremy Benthan, um presídio composto de


uma torre de vigia central e um anel externo onde se localizam as celas que
atravessam toda a espessura da construção; com janelas que se abrem para o
interior da estrutura, voltadas para a torre de vigia, e para o exterior, onde permite
que a luz atravesse a cela de lado a lado.

Figura 9 – Estrutura de um Panopticon em Cuba.10

10 Fonte: http://www.unfinishedman.com/presidio-modelo-cubas-abandoned-panopticon-prison/.
Acessado em: 05/05/2014.
15
Dessa maneira, devido ao efeito da contraluz, pode-se visualizar a partir da
torre de vigia a silhueta dos cativos contra a claridade. Segundo Foucault (1987),
cada detento se encontra “perfeitamente individualizado e constantemente visível”,
invertendo-se, assim, o princípio da masmorra; agora, a “luz e o olhar de um vigia
captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma
armadilha”.

Michel Foucault percebe, então, que a arquitetura do Panopticon tem a


capacidade de exercer sobre o indivíduo cativo um estado de visibilidade permanente
e consciente, assegurando, assim, o perfeito funcionamento do poder. Dessa forma,
Foucault nos diz que:

Esse aparelho arquitetural [funciona como] uma máquina de


criar e sustentar uma relação de poder independente daquele
que o exerce. [...] O Panóptico é uma maquina maravilhosa que,
a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos
de poder. [podendo] ser utilizado como máquina de fazer
experiências, modificar o comportamento, treinar ou retreinar
os indivíduos (1987).

E depois completa:

Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício


onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua
forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer
obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado
como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade
uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar
de qualquer uso específico.

A partir dessa interpretação da arquitetura como máquina, Gilles Deleuze faz


uma análise das reflexões foucaultianas e afirma que Foucault percebe o Panopticon
não como uma simples máquina de vigilância, mas como um diagrama que
determina uma maneira específica de comportamento a uma coletividade particular.
Nesse momento é importante, então, entendermos como Deleuze define o conceito de
diagrama dentro da sua ideia de pensamento diagramático, desenvolvido em

16
sintonia com a corrente pós-estruturalista; que se difere da ideia de diagrama dentro
do sistema índice-ícone-símbolo da semiótica peirceana11.

Deleuze entende o diagrama como um mapa cartográfico co-extensivo a todo


campo social, e o conceitua como:

Uma máquina abstrata. Definindo-se por meio de funções e


matérias informes, ele ignora toda distinção de forma entre um
conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e
uma formação não-discursiva. [...] o diagrama é altamente
instável ou fluido, não para de misturar matérias e funções de
modo a constituir mutações. [...] todo diagrama é intersocial, e
em devir. Ele nunca age para representar um mundo
preexistente, ele produz um novo tipo de realidade, um novo
modelo de verdade. (2005)

A partir dessas conceituações, podemos entender que Rem Koolhaas examina o


arcabouço estrutural e programático em suas análises; não apenas do Downtown
Athletic Club aqui comentada, mas em várias outras ao longo de sua carreira; de
acordo com a elaboração de um pensamento diagramático. Dessa maneira, segundo
Somol e Whiting, conseguimos distinguir duas orientações que guiaram a
disciplinaridade arquitetônica a partir dos anos 1970: no caso de Eisenman e sua
análise sobre o Maison Dom-ino, identificamos uma disciplinaridade que se
comporta como autonomia e processo; no caso de Koolhaas e sua apresentação sobre
o Downtown Athletic Club, notamos uma disciplinaridade como força e efeito.

Assim sendo, podemos estabelecer uma diferenciação entre o projeto ligado ao


indicial, que caracteriza a prática arquitetônica crítica, e o projeto que opera por
meio diagramático, característica da prática arquitetônica projetiva. O diagrama é
um instrumento que está ligado ao universo virtual e a projeção de realidades ainda
não existentes, muitas vezes submetidas a relações de poder externas, especial-
mente mercadológicas, devido à voracidade do capitalismo contemporâneo, que a
tudo absorve; enquanto que o índice se comporta como um vestígio do universo real,
como instrumento autorreferencial autônomo, porém ligado à realidade, podendo
servir de ferramenta de crítica à própria realidade.

11 Em referência a Charles Peirce, considerado por muitos o fundador da semiótica.


17
1.3. DA DIALÉTICA AO DOPPLER

Robert Somol e Sarah Whiting afirmam que a prática projetiva não se baseia na
estratégia de oposição dialética característica da prática crítica, mas sim em um
fenômeno parecido com o efeito Doppler – fenômeno físico que explica a “mudança na
frequência aparente de uma onda que ocorre quando a fonte e o receptor da onda
estão em movimento relativo” (2013, p. 149).

A arquitetura Doppler não se baseia em um isolamento na autonomia para


definir os limites disciplinares da arquitetura, como faz a dialética crítica. O Doppler
“reconhece a síntese adaptativa das múltiplas contingências da arquitetura” e se
concentra nos efeitos e intercâmbios das pluralidades inerentes à disciplina.

Enquanto a dialética crítica encara a disciplinaridade arquitetônica como uma


autonomia onde o conhecimento e a forma são baseados em “normas, princípios e
tradições compartilhados”, a arquitetura Doppler entende a disciplinaridade
arquitetônica como “desempenho ou prática”, trabalhando com o conceito de
disciplinaridade desenvolvido por Foucault, onde a disciplina não é tratada como um
dado ou entidade fixa, mas sim como um organismo ou prática discursiva que atua
de forma ativa e ingovernável. Foucault define disciplina como:

[...] unidades [que] formam domínios autônomos, embora não


independentes; regrados, embora em contínua transformação;
anônimos e sem sujeito, ainda que integrem tantas obras
individuais (2008).

Dessa maneira, a arquitetura Doppler – que caracteriza a prática arquitetônica


projetiva – não se limita ao campo de especialidade e a definição absoluta de
arquitetura, ao mesmo tempo em que não reivindica para si um conhecimento
especializado que se encontra fora do campo tradicional da arquitetura. Na prática
projetiva, o que delimita as fronteiras volúveis da disciplinaridade e especialidade
arquitetônicas é o próprio projeto. Somol e Whiting explicam:

Quando abordam questões que aparentemente estão fora do


escopo historicamente definido da arquitetura – questões de
economia ou política institucional, por exemplo –, os arquitetos
não tratam esses temas como especialistas em economia ou

18
política institucional, mas como especialistas em projeto
abordando os possíveis efeitos do projeto na economia ou na
política (2013. p. 150).

A prática arquitetônica projetiva entra no campo da multiplicidade disciplinar


como uma especialista nas relações entre o projeto arquitetônico e as demais
disciplinas, e não como um ator disciplinar crítico. Nas palavras de Robert Somol e
Sarah Whiting, “o Doppler não olha para o passado nem critica o status quo; ele
projeta ordenamentos ou cenários alternativos (não necessariamente em oposição ao
presente)” (2013. p. 150).

É notável que o efeito Doppler compartilhe de alguns atributos da Paralaxe;


outro fenômeno físico, que consiste na aparente mudança de posição de um objeto
em decorrência do deslocamento do observador. O crítico de arte Yve-Alain Bois, ao
analisar a obra do escultor Richard Serra, afirma que o artista utiliza de maneira
consciente as possibilidades da paralaxe e descreve a obra Sight Point para
exemplificar esse recurso, descrevendo a escultura como se ela parecesse “cair da
direita para a esquerda, fazer um xis e se endireitar formando uma pirâmide
truncada. Isso ocorreria três vezes durante o percurso do observador em torno dela”
(BOIS apud SOMOL, WHITING. 2013, p. 151).12

Figura 10 – Sight Point (Richard Serra – 1972) Figura 11 – Sight Point (Richard Serra – 1972)
Vista externa.11 Vista interna.11

A paralaxe pressupõe que o contexto e o observador complementam a obra de


arte; assim, ela acontece a partir de uma apreensão peripatética, criando um efeito
óptico teatral do objeto em relação ao observador. O efeito Doppler se diferencia da

12 Fonte: https://www.flickr.com
19
paralaxe no sentido de ir além da apreensão puramente óptica. O Doppler aceita
muitas outras sensibilidades ao se basear no movimento das ondas – sonoras,
visuais, informacionais etc –, deixando de ser apenas um instrumento de leitura,
como a paralaxe, para se tornar uma interação atmosférica de troca de energia e
informação entre sujeito e objeto. Na arquitetura Doppler, os ecos de outras
experiências, conversas, encontros, estados de espírito, afetam a experimentação do
momento arquitetônico, desencadeando uma justaposição entre universos virtuais e
reais.

O projeto do escritório WW Architecture para o IntraCenter (Lexington, EUA) é


um exemplo de arquitetura projetiva que utiliza a estratégia do efeito Doppler, em
vez da dialética. O projeto atende a um extenso e heterogêneo programa que
contempla salas de ginástica, creche, café, lojas, biblioteca, serviços sociais, salas de
computadores, centros de formação etc. O projeto escapa à sobreposição formal entre
forma e programa ao evitar representar e identificar formalmente cada um dos
múltiplos programas, evitando que o programa definisse o projeto.

Figura 12 – IntraCenter – Diagrama do programa arquitetônico (WW Architects).13

Ao evitar as relações programáticas concêntricas, o projeto impede o


alinhamento entre forma e função gerando uma oscilação Doppler contínua entre
ambos, que resulta em múltiplas reverberações sobrepostas entre os públicos

13 Fonte: http://www.wwarchitecture.com/projects/intracenter/intracenter.html
20
frequentadores e entre as condições materiais e estruturais. Assim, Somol e Whiting
completam: “o IntraCenter é mais projetual do que crítico, no sentido de que ativa
deliberadamente a possibilidade de múltiplas inter-relações, no lugar de uma única
articulação de programa, tecnologia e forma” (2013, p. 150-1).

Figura 13 – IntraCenter – Diagramas (WW Architects).14

Figura 14 - IntraCenter – Diagramas (WW Architects).14

14 Fonte: http://www.wwarchitecture.com/projects/intracenter/intracenter.html
21
1.4. DO QUENTE AO FRIO

O período de transição entre as práticas arquitetônicas críticas para as práticas


projetivas pode ser caracterizado como um resfriamento da disciplina; em uma
analogia à teoria dos meios de comunicação quentes e frios, de Marshall McLuhan.
Os meios de comunicação são distinguíveis em quentes e frios de acordo dependendo
do nível de participação do usuário. Segundo McLuhan, “um meio quente é aquele
que prolonga um único de nossos sentidos e em alta definição” (1974, p. 38). A alta
definição faz referência a um estado de saturação de dados transmitidos; assim, os
meios quentes, como o cinema, transmitem as informações de maneira muito precisa
em apenas uma modalidade, sem a necessidade da intervenção do usuário, sem
deixar espaços a serem preenchidos ou completados pela audiência. No entanto, os
meios de comunicação frios, como a televisão, possuem uma baixa definição, já que
existe uma baixa saturação de dados nas informações transmitidas, comprometendo
a comunicação e exigindo uma participação ativa dos usuários.

Dessa forma, segundo Robert Somol e Sarah Whiting, as práticas arquitetônicas


críticas são quentes porque dão prioridade à definição, ao delineamento e à distinção
das especificidades do meio, se preocupando em romper com as condições normativas
de produção, subjacentes ou anônimas, e em expressar a diferença; deixando poucas
lacunas para uma participação ativa do usuário. Por outro lado, os meios frios não
possuem a mesma autossuficiência e autoconsciência, necessitando do contexto e do
usuário para complementarem a informação; como observamos no minimalismo,
onde a participação é explicitamente requerida.

Para Somol e Whiting, esse resfriamento suscita um processo de mistura, de


forma que o efeito Doppler seria uma espécie de frio. O frio implica em uma postura
relaxada e tranquila, enquanto que o quente “conota o explicitamente difícil,
trabalhado, elaborado, complicado” (2013, p. 152). Somol e Whiting expandem as
diferenças entre o quente e o frio ao fazer uma análise da interpretação cênica, meio
de comunicação não examinado por McLuhan, tomando como exemplo as
interpretações de Robert Mitchum e Robert De Niro.

Com a morte de Robert Mitchum, em 1997, o crítico de arte Dave Hickey


escreve um obituário sobre o ator para a revista Art Issues, onde descreve o trabalho

22
de Mitchum como um tipo de interpretação não expressa ou representada, mas sim
apresentada, entregue. Para Dave Hickey, a interpretação de Mitchum é sempre
surpreendente e plausível, porque é baseado no saber de que há algo ali por trás,
mas sem ter certeza do que é exatamente. Para Robert Somol e Sarah Whiting, é
“exatamente esse traço surpreendente de plausibilidade que pode se converter num
efeito projetivo, que soma o evento fortuito a um realismo mais amplo” (2013, p.152).

Dave Hickey separa os atores em dois grupos distintos. No primeiro grupo, onde
está Robert De Niro, os atores constroem seus personagens a partir dos detalhes,
construindo um subtexto para o texto original do roteiro, nos fazendo acreditar no
personagem a partir da narrativa construída para ele. É a chamada escola do
Método, onde os atores entram com os gestos e a motivação. No segundo grupo, onde
está Robert Mitchum, os atores criam apenas uma plausibilidade cênica com o corpo;
Dave Hickey diz que os atores não estão realmente atuando, mas “interpretando
com ímpeto" (idem, p. 152).

Para Robert Somol e Sarah Whiting, a arquitetura estabeleceu uma relação com
a filosofia, nos anos 1980 e 1990, semelhante com a relação estabelecida entre
Robert De Niro e seus personagens. Ou seja, a arquitetura operava em uma espécie
de atuação por Método, ou, no caso, projeto por Método; exercendo uma prática
arquitetônica ligada à psicanálise, onde o arquiteto expressava um discurso ou a
arquitetura representava seus próprios processos de projeto, se transformando em
um índice autorreferencial. Esses vestígios do processo de construção estão sempre
visíveis na atuação de Robert De Niro; podemos perceber a luta existente entre o
ator e o personagem, e não só as lutas internas do personagem.

As diferenças de atuação dos dois grupos de atores teorizados por Dave Hickey
ficam claras logo nas cenas iniciais das duas versões do filme Cabo do Medo,
protagonizadas por Mitchum e De Niro. Na primeira versão, de 1962, dirigida por J.
Lee Thompson, Robert Mitchum interpreta o psicopata Max Cady com um ar lascivo
e despreocupado; o personagem aparece nas cenas iniciais andando pela rua em
direção ao tribunal sem demonstrar nenhuma tensão, fumando seu charuto e
admirando as mulheres na rua.

23
Segundo Robert Somol e Sarah Whiting, a atuação de Mitchum é leve e fresca,
tudo parece fácil; dessa forma, uma arquitetura Mitchum é:

[...] fria, tranquila e nunca parece um trabalho: é sobre um


estado de espírito ou uma vivência de realidades alternativas
(quais, se não as virtuais?). Aqui, o estado de espírito é o
corolário aberto do efeito do esfriamento sem alta definição,
dando espaço de manobra e promovendo cumplicidade com o(s)
objeto(s) (2013, p. 153).

Na refilmagem do filme Cabo do Medo, de 1991, dirigida por Martin Scorsese,


Robert De Niro interpreta um Max Cady quente, difícil, que indexa os processos de
sua produção; De Niro aparece nas primeiras cenas fazendo exercícios na prisão,
com o suor escorrendo. De acordo com Somol e Whiting, a arquitetura De Niro é
“claramente elaborada, narrativa ou representacional, ou expressa uma relação da
representação com o real (o fornecimento de um subtexto psíquico a partir de um
fato real para um texto de ficção)” (2013, p.153).

Dessa forma, uma prática arquitetônica projetiva seria ligada a interpretação


Mitchum, ao frio, ao tranquilo, a um “projeto de apresentar uma interpretação ou
criar uma plausibilidade surpreendente” (idem, p. 153); em contraponto com a
prática arquitetônica crítica, que é quente, representacional, reflexiva e narrativa,
ligada a escola de atuação pelo Método e interpretação De Niro.1516

Figura 15 – Robert Mitchum Figura 16 – Robert De Niro


Cabo do Medo (1962)15 Cabo do Medo (1991)16

15 Fonte: http://www.dvdbeaver.com/film/dvdcompare/capefear62.htm
16 Fonte: http://us.cdn281.fansshare.com/photos/robertdeniro/capefear-cape-fear-1202345548.jpg
24
2. ACABARAM-SE OS SONHOS

A supremacia do sistema capitalista contemporâneo engloba e absorve toda


adversidade, toda prática e manifestação de resistência, de reflexão, de vanguarda;
de acordo com a interpretação de Roemer van Toorn (2013), “o capitalismo tardio é o
único jogo em curso”. Nos prósperos países desenvolvidos; abarrotados de
entretenimento comercial e cultural, aplicações tecnológicas e produções
computadorizadas; se desenvolve a ideia de que estamos rumo a uma situação social
ideal: segundo a política da Terceira Via, de Anthony Giddens, só nos resta nos
acomodar ao corporativismo globalizado, apesar de reconhecer que a máquina da
economia neoliberal necessita de pequenos ajustes para alcançar alguns direitos
sociais e alguma igualdade.

O capitalismo tardio possui uma impressionante capacidade adaptativa;


importantes instituições culturais que antes repudiavam as práticas transgressoras
da vanguarda percebem que podem obter publicidade e lucro com o escândalo,
passando, assim, a incentivar e a financiar tais práticas. Nas palavras de van Toorn:
“o capitalismo global deu sinais de ser capaz de transformar suas limitações iniciais
em desafios que culminam em novos investimentos” (2013). Dessa maneira, as
práticas anteriores da crítica e do engajamento social, ao serem absorvidas pela
máquina capitalista contemporânea, se tornam rapidamente obsoletas.

É nesse contexto pós-crítico, de perda de sentido de um engajamento de


resistência ao status quo, que Roberto Somol e Sarah Whiting teorizam uma prática
arquitetônica projetiva; em consonância com o pensamento de muitos outros atores
dessa cena da nova geração de acadêmicos e arquitetos, como Michael Speaks,
Alejandro Zaera-Polo, Jeffrey Kipnis, Sylvia Lavin etc. Em um contundente esforço
edípico; inserida no ciclo eterno de tentativa uma geração superar à de seus mestres;
essa nova geração de teóricos e críticos defendem uma desvinculação à tradição
crítica – exemplificada nos trabalhos de Peter Eisenman, Bernard Tschumi, Daniel
Libeskind, Diller + Scofidio etc – que possui um discurso socioarquitetônico interno,

25
que insiste em um confronto, mas se abstém de criar e oferecer alternativas
melhores para a realidade; rejeitando, de acordo com van Toorn, uma “arquitetura
nascida do sofrimento ou da necessidade de sabotar as normas” (2013).

A prática projetiva rompe com a imposição de preconceitos ideológicos derivadas


dos sonhos utópicos da criticalidade. O projeto arquitetônico se articula com a
realidade encontrada no local, se afastando da teoria crítica e assumindo uma
postura de curadoria, pesquisando e analisando sistematicamente os mais variados
dados da realidade local, como o programa, uso e infraestrutura, economia, política,
arte, moda, tecnologia, tipologia, materiais, que são documentados e analisados
diagramaticamente, na tentativa de revelar e trazer à tona as possibilidades
latentes, a força e a beleza do projeto. Roemer van Toorn, no entanto, entende que
existe alguma ideologia implícita na mensuração e transmissão desses dados, mas
que as práticas projetivas ignoram essa dimensão ideológica, ocultando as diversas
contradições de implementação do projeto atrás do véu do estilo e da moda, numa
pretensão de tornar o projeto ideologicamente liso. A ativação dessas realidades
encontradas é, na media do possível, idealizada, assim:

se tudo corre bem na realização de um esquema projetivo, a


extrapolação inteligente de dados, a utilização da sensibilidade
estética, a transformação do programa e a tecnologia correta
podem ativar momentos utópicos. Mas trata-se de um utopismo
oportunista, que não constitui a principal motivação. (TOORN.
2013, p. 224)

Durante a crise do movimento moderno, Manfredo Tafuri desenvolve a ideia de


que a vanguarda modernista contribuiu para estimular uma situação de opressão e
manipulação social ao ajudar a acelerar a modernização capitalista através do
princípio vanguardista da montagem; ao invés de fomentar uma emancipação social,
como pretendia. Assim, van Toorn (2013) afirma que é criada uma postura de
“oposição permanente à sociedade capitalista” ao se perceber que “sonhos
esperançosos podem terminar em pesadelos”; mas que essa postura crítica, por estar
situada à margem social, muitas vezes era reservada à uma elite, forçando-a, assim,
a depender do trato “com coisas que lhe são repugnantes”.

26
Ao tentar romper com a lógica de exploração e opressão do sistema capitalista, a
arquitetura crítica possui uma suposta autonomia, ao mesmo tempo em que é
sentenciada a atuar dentro do sistema que a ameaça, por estar constantemente
desmascarando as forças a que se opõe. Assim, Roemer van Toorn conclui que a
prática arquitetônica crítica possui muito mais um caráter reativo do que proativo; o
criticismo se opõe às condições normativas e opera no sentido de desmascarar a
verdadeira faceta das forças opressoras dos sistemas de poder, muitas vezes através
de uma apropriação linguística e textual que estimularia o soerguimento de uma
conscientização política. A arquitetura crítica é destinada à leitura e se empenha em
seduzir e chamar a atenção do possível leitor/usuário; mas quando seu conteúdo
crítico não se encontra legível no objeto, a arquitetura falha.

Essa reatividade faz com que as práticas críticas desenvolvam um discurso


vitimizante frente à modernização, não dando margem para interpretações mais
razoáveis da realidade a fim de tornar o projeto mais adaptável à vida cotidiana.
Roemer van Toorn identifica aí uma das fraquezas da criticalidade ao reconhecer
que é “impossível conceber a modernização apenas como algo negativo”, afirmando
que críticos e intelectuais muitas vezes se utilizam de instrumentos como a retórica
e a autonomia da linguagem para se distanciar da experiência do sistema cotidiano
contemporâneo – que acreditam ser fundamentalmente corrupto – como se não
fizessem parte dele, mas que isso não passa de uma tentativa de “ignorar a
mediocridade de sua própria existência”. Roemer van Toorn sentencia:

As práticas críticas rejeitam e reagem sem sutileza alguma


contra as coisas positivas alcançadas na sociedade
contemporânea, tais como a vitalidade da cultura popular –
inclusive seu hedonismo, luxo e diversão. (2013, p. 227).

As práticas arquitetônicas projetivas evitam resistir contra a realidade


cotidiana através de à prioris formais, como as práticas críticas. As práticas
projetivas analisam profundamente os dados obtidos e; a partir de microdecisões
tomadas em decorrência da manipulação diagramática desses dados; observam
cuidadosamente para onde tais informações podem conduzir formalmente o projeto
durante o processo de criação, manipulando continuamente os diagramas até que
uma forma satisfatória surja, em toda sua estranheza e beleza.

27
Observa-se nesse processo um hiper-racionalismo que leva o pragmatismo
projetual a extremos caricatos na tentativa de eliminar do projeto qualquer
subjetividade por parte do projetista. Para van Toorn, esse realismo extremo da
projetividade não considera qualquer consequência social decorrente do projeto, na
pretensão de não possuir qualquer alinhamento teórico ou político. As práticas
projetivas lidam apenas com as eminências da realidade do sistema contemporâneo;
com o ciborgue, a eficácia, a mídia, o dinheiro, o consumismo, o lazer, a moda. Esse
processo, na interpretação de van Toorn, leva a extremos as consequências da
mercantilização e da alienação, que são as grandes engrenagens da modernidade
contemporânea. Isso nos leva a um extermínio das ideias utópicas, por que:

Para as práticas projetivas, sonhar não é mais preciso, pois


nem mesmo nossos sonhos mais loucos são capazes de prever
como a realidade pode ser caótica, inspiradora, dinâmica e
libertadora. (2013, p. 228)

Ao contrário do distanciamento da realidade promovido pela criticalidade, as


práticas projetivas defendem um envolvimento, e até uma cumplicidade, com essa
realidade existente, numa tentativa de reorganizar as questões econômicas, sociais,
informacionais e de convivência impostas pelo sistema de poder atuante; o que seria
mais produtivo que sonhar com mundos utópicos que nunca hão de vir.

As práticas projetivas promovem um certo retorno às bases disciplinares da


arquitetura; através de uma postura de projeto mais pragmática e de uma
abordagem mais tectônica das possibilidades projetuais e uma preocupação com as
questões técnicas da edificação; sem deixar de levar em conta as ondas de influência
de outras disciplinas sobre a concretização do projeto. Para van Toorn, isso permite a
realização de uma arquitetura bela, mas sem as preocupações torturantes de se cair
nos efeitos colaterais da superficialidade.

Esse retorno a uma busca pela beleza arquitetônica, sem necessariamente uma
filiação a alguma teoria estética, levou Jeffrey Kipnis (2013) a desenvolver o conceito
de cosmético, em substituição ao tradicional conceito de ornamento, ao analisar a
obra dos arquitetos Herzog & de Meuron. Enquanto os ornamentos seguem como
objetos distintos, independentes, aplicados sobre determinado corpo; os cosméticos
agem sobre a pele, alterando dissimuladamente a aparência do corpo. Ou seja, o
28
cosmético não existe enquanto entidade separada, seu resultado só surge quando em
relação simbiótica o corpo. Sua ação é superficial; porém, seu efeito é profundo.
Kipnis afirma que essa abordagem cosmética oferece uma via alternativa de retorno
aos limites da disciplinaridade arquitetônica ao se concentrar em um limite
arquitetônico muito bem definido: a fachada. No caso da obra de Herzog & de
Meuron, essas intervenções cosméticas criam uma arquitetura estimulante,
sofisticada e elegante, com “uma astuciosa inteligência urbana e um poder de
atração intoxicante, quase erótico” (2013, p. 120); assim, para Jeffrey Kipnis, a obra
de Herzog & de Meuron se trata “simplesmente da arquitetura mais cool que há por
aí” (2013, p. 121).17

Com essas questões expostas, nos resta entender melhor quais são e como se
articulam as práticas arquitetônicas projetivas que podem exercer maior influência
na atualidade. Roemer van Toorn, baseado na recente produção arquitetônica
holandesa, identifica três correntes da prática projetiva; autonomia projetiva,
naturalização projetiva e mise-en-scène projetiva; que serão melhor conceituadas
nas próximas seções, em paralelo com as ideias de van Toorn.

Figura 17 - Laban Dance Centre (Herzog & de Meuron – 2003)18

17 “Cool” pode ser traduzido como “descolado” ou “frio”, como vimos no capítulo anterior. É uma
das características perseguidas pelas práticas arquitetônicas projetivas.
18 Fonte: https://www.flickr.com/photos/gilesmcgarry/7541643312/

29
2.1. AUTONOMIA PROJETIVA

Focada principalmente em modelos geométricos, em interesses formais e no poder de


transmissão de informações através da estética; a autonomia projetiva busca criar
uma experiência de contato passiva com o usuário, transformando-o em observador.
Em uma estratégia de resgate disciplinar, a autonomia projetiva propõe o retorno à
autossuficiência das formas, cuidadosamente esculpidas e minuciosamente polidas,
fazendo uma arquitetura suave e de bom gosto; com uma aparência muitas vezes
modesta, mas atendendo as preocupações funcionais, econômicas, de eficiência e
sustentabilidade. A autonomia projetiva se limita a se preocupar com questões
culturais e econômicas estáveis – sem se preocupar com o movimento, com os
sonhos, o dinamismo e a complexidade – na tentativa de criar uma arquitetura
duradoura; nas palavras de Roemer van Toorn, uma arquitetura “teoricamente
capaz de durar séculos” (2013, p. 229).

Segundo van Toorn, o escritório Claus & Kaan demonstra essa atitude de
autonomia projetiva ao organizar sua arquitetura através de um processo
tipográfico, negando uma organização tipológica tradicional. O trabalho é feito
seguindo uma organização do ritmo dos espaçamentos entre elementos de diferentes
proporções; englobando todas as escalas de projeto, do volume total ao detalhe;
concedendo um tratamento artesanal aos elementos que se repetem; como portas,
janelas, colunas, painéis; fazendo van Toorn comparar o trabalho dos arquitetos com
o de tipógrafos.

Figura 18 – Escritórios Municipais de Breda – Fachadas (Claus & Kaan – 2003)19

19 Fonte: http://archinect.com/clausenkaanarchitecten/project/municipal-offices-breda-the-
netherlands
30
Em uma entrevista a revista Hunch, em 2003, os arquitetos do Claus & Kaan
declararam não estar interessados em formas e materiais incomuns, em projetar
objetos esteticamente complicados; o campo de trabalho dos arquitetos envolve
materiais, estruturas e técnicas corriqueiras. Claus & Kaan buscam criar espaços
que eliminem a controvérsia e inspirem confiança, valorizando os volumes
prismáticos, a luz, a beleza e o estilo; negando a subversão e o radical. O resultado é
uma elegância minimalista, derivada da atenção meticulosa aos detalhes e da
linguagem abstrata, que, nas palavras de Roemer van Toorn, emprestam aos
projetos “um certo brilho autossatisfeito e estiloso” (2013, p. 230); como no edifício de
escritórios municipais, em Breda, com sua fachada em um padrão destacado de
barras pretas finas, criando um minimalismo chique, que foge da vulgaridade com
sua perfeição abstrata.

Figura 19 – Escritórios Municipais de Breda (Claus & Kaan – 2003).20

20 Fonte: http://archinect.com/clausenkaanarchitecten/project/municipal-offices-breda-the-
netherlands
31
A busca pela autonomia projetiva também pode ser observada na obra de
Neutelings Riedijk, com sua arquitetura bem humorada e dramática; diferente da
seriedade, do puritanismo e do decoro da obra de Claus & Kaan; que procura contar
uma história para o público através de formas marcantes, como os meios da cultura
de massas. Segundo Roemer van Toorn, a arquitetura atinge novos patamares
dramáticos com as construções humorísticas, robustas e bizarras do escritório que
trazem certo surrealismo cotidiano aos usuários; que, no caso, também são meros
observadores. A obra se integra no teatro da vida cotidiana; mas como ator principal,
não apenas como suporte cênico. Nas palavras de van Toorn, “Neutelings Riedijk
não estão interessados na própria vida, mas na autonomia do cenário contra qual ela
se desenrola” (2013, p. 230). Ao contrário da arquitetura crítica, o escritório não
subverte a linguagem, as normas e os valores sociais a partir desses fortes elementos
conceituais, mas, na verdade, produz uma arte pop inofensiva ao status quo; sem
segundas intenções como a obra de Andy Warhol, por exemplo; projetando edifícios
autônomos, singulares, divertidos, fáceis de lembrar; um cenário perfeito para os
logotipos dos clientes.

Figura 20 – College of Shipping & Transport (Neutelings Riedijk – 2001)21

21 Fonte: http://www.neutelings-riedijk.com/index.php?id=13,234,0,0,1,0
32
2.2. MISE-EN-SCÈNE PROJETIVA

Ao contrário do que acontece na autonomia projetiva, os projetos criados pela lógica


da mise-en-scène22 projetiva não são apenas para serem contemplados, mas sim para
serem experimentados ativamente pelo usuário como parte do cenário teatral da
realidade contemporânea. O contato com a realidade cotidiana continua sendo o
principal objetivo dessa prática projetiva e dá-se ao agregar sincronicamente
diferentes realidades mundanas em uma espécie de performance teatral através dos
interstícios do capitalismo tardio.

Mas o grande teatro orquestrado pela mise-en-scène projetiva não nos permite
sonhar com realidades alternativas, com mundos utópicos. De acordo com Roemer
van Toorn, a mise-en-scène projetiva observa a realidade com uma pretendida
neutralidade, o que transforma a cidade em uma grande tabela de dados que são,
então, sistematicamente idealizados e superestimados através de métodos de análise
que permitem a integração e inter-relação dos mais variados elementos disponíveis.
Busca-se, assim, inovadoras soluções formais que resolvam as demandas da
realidade cotidiana; como no caso do BasketBar, em Utrecht, do NL Architects.

Figura 21 – BasketBar (NL Architects – 2003)23

22Do dicionário Aurélio: Mise-en-scène: s.f. (pal. fr.) Realização cênica ou cinematográfica de uma
obra lírica ou dramática, de um cenário. / Fig. Apresentação dramática e arranjada de um aconte-
cimento. / Encenação.
23 Fonte: http://www.nlarchitects.nl/project/92/slideshow
33
O BasketBar é construído a partir da extensão da laje de uma livraria em um
complexo universitário, constituído de um bar no térreo e uma quadra de basquete
em sua cobertura. O inteligente uso do espaço, ao dar uma função adicional à
cobertura do bar, cria, segundo van Toorn, uma “deliciosa e absurda justaposição de
dois mundos bastante diferentes” (2013, p. 231).

A mise-en-scène projetiva encara a vida com alegria e otimismo ao solucionar os


problemas da realidade cotidiana, que está em constante mudança. Roemer van
Toorn define esses projetos como “espaços roteirizados” (idem), capazes de conduzir
nossa experiência através de um determinado caminho. Ao contrário da autonomia
projetiva, a mise-en-scène projetiva não se interessa pela força da autonomia
tipológica, mas sim nos devaneios sociais. Os objetos são encarados do ponto de vista
sociológico, como portadores da cultura e do modo de vida cotidianos. Assim, a
arquitetura, como produtora de sentido cultural e social, projeta fragmentos da
realidade contemporânea na objetualidade, ampliando a expressão da vida cotidiana
através dos cenários espetaculares montados pelos arquitetos a partir da reprodução
da lógica oculta da sociedade contemporânea.

Roemer van Toorn cita o escritório MVRDV como outro grupo de arquitetos com
uma ideologia projetual que vai ao encontro da mise-en-scène projetiva. O MVRDV
consegue entrelaçar diferentes programas de maneira compacta, criando interiores
infindáveis; no que os arquitetos chamam de “caixas famintas” – ou seja, “caixas que
têm fome de combinar diferentes programas numa paisagem única” (2013, p. 231).
Diferentemente do Neutelings Riedijk; que contam uma história à distância do seu
usuário/observador, através de suas formas representativas; o MVRDV agrega o
usuário como ator principal da sua narrativa de ficção científica sobre a realidade
oculta no cotidiano do capitalismo tardio, através da tradução do programa
arquitetônico em uma experiência espacial cuidadosamente coreografada.

Essas narrativas ocultas da realidade cotidiana podem ser percebidas em


projetos como o Pig City, em Roterdã (não executado). A Holanda é a maior
exportadora de carne suína da Europa, com mais de 16 milhões de porcos criados em
milhares galpões espalhados pelo interior do país. O MVRDV propõe, então, unificar
as criações, confinando os porcos em altos edifícios no porto de Roterdã, acreditando

34
ser mais eficaz e humanitário. Roemer van Toorn diz que o efeito de uma encenação
tão pragmática e surreal como essa é impactante:

De repente – e sem nenhum juízo de valor –, a existência de um


número maior de porcos do que de pessoas na Holanda e o fato
de que os porcos podem ser felizes em edifícios altos com vista –
parece razoável (2013, p. 232).

Dessa forma, as fábulas do capitalismo contemporâneo, ocultas na nossa


realidade cotidiana, são reveladas através da imaginação oportunista do MVRDV.
Roemer van Toorn levanta a questão sobre se essa representação fantástica da
realidade realmente se “interessa por um mundo melhor ou se seu objetivo consiste
em expor o nosso Admirável Mundo Novo”, e completa:

Sonhar com utopias perdeu seu atrativo. O cotidiano é tão rico


em fantasias que sonhar com um mundo diferente, além
daquele que existe, não é mais necessário. Assim como Steven
Spielberg, os arquitetos precisam criar novas representações
que possam ser apreciadas por todos (idem).

Figura 22 – Pig City (MVRDV – 2000)24

24 Fonte: http://www.mvrdv.nl/projects/181_pig_city/
35
2.3. NATURALIZAÇÃO PROJETIVA

Para a naturalização projetiva o que está em jogo é a operacionalidade e o


desempenho da materialidade da arquitetura. Segundo Roemer van Toorn, ao
contrário da mise-en-scène projetiva; que se concentra em projetar significados sobre
as coisas; a naturalização projetiva entende que as coisas possuem um significado
inerente, que podem ser sensíveis ou ativos, e exploram a transmissão desse
significado na tentativa de desencadear processor no olhar e no corpo do usuário.

Enquanto a mise-en-scène projetiva se ocupa em projetar roteiros acerca da


sociedade, da política, do poder, da globalização etc. sobre os objetos, criando
cenários brutos e inacabados que dependam da atuação do usuário; a naturalização
projetiva cria uma arquitetura fluida e polida que possui, segundo van Toorn, uma
“superfuncionalidade que gira em torno do movimento da auto-organização e da
interatividade” (2013, p. 234).

Escritórios de arquitetura que desenvolvem uma prática alinhada à


naturalização projetiva, como o NOX Architekten e o FOA, não estão interessados
na tecnologia apenas como um instrumento de regulação funcional e de conforto,
mas sim como uma força desestabilizadora capaz de proporcionar uma variedade de
potencialidade e acontecimentos inesperados. A naturalização projetiva alimenta um
envolvimento com os avanços tecnológicos da biologia, da geologia, criando uma
arquitetura não convencional que, de acordo com Roemer van Toorn, abrange varias
formas e escolas; possuindo como elemento comum a semelhança formal com
estruturas, processos e formas biológicas. Em uma apresentação sobre a filosofia de
projeto do NOX, o arquiteto Lars Spuybroek explica o trabalho do escritório:

Com a fusão fluida da pele e do ambiente, do corpo e do espaço,


do objeto e da velocidade, também fundiremos o plano e o
volume, o piso e a divisória, a superfície e a interface,
abandonando a visão mecanicista do corpo em favor de uma
versão mais plástica, líquida e tátil, em que haja uma síntese
entre o olhar e a ação.25

25 Retirado do site: http://www.archilab.org/public/1999/artistes/noxa01en.htm. Acessado em:


01/07/2014.
36
A naturalização projetiva aprendeu com os processos biológicos, geológicos e
históricos que os processos mutáveis criam sistemas muito mais complexos,
inteligentes e refinados do que as ideias prontas e estáticas jamais poderiam fazer.
Assim como acontece na natureza, as propriedades das edificações concebidas sob
essa prática projetiva se alteram de acordo com as condições existentes. Roemer van
Toorn explica que uma fachada, por exemplo, não é meramente uma casca, mas sim
“uma pele com determinada espessura, que muda em resposta às atividades
internas, à luz, à temperatura e às vezes até às emoções” (2013, p. 233).

Esses conceitos se tornam claros em projetos como a D-Tower, na cidade de


Doetinchem, na Holanda, projetada pelo NOX. O projeto se trata de uma torre de
doze metros de altura em formato de bolha que fica conectada a um site na internet
onde os habitantes podem responder a um questionário sobre seus sentimentos do
dia: felicidade, amor, ódio, medo. Os resultados são transformados graficamente em
paisagens no site e determinam as cores das luzes que iluminam a torre; azul,
vermelho, verde e amarelo; fazendo com que os cidadãos da cidade saibam qual
emoção foi mais intensamente sentida pelos habitantes da cidade naquele dia.

Figura 23 – D-Tower (NOX Architekten – 2003)26

26 Fonte: http://openbuildings.com/buildings/d-tower-profile-2269
37
Roemer van Toorn explica que os projetos que seguem essa ideia de
naturalização projetiva funcionam como corpos sem cabeça, seguindo uma complexa
lógica biomecânica. Os dados mensuráveis coletados, aliado com um conjunto
tecnológico, concebe um sofisticado mecanismo que encaminha os diversos fluxos de
pessoas, informações, carros etc. “como glóbulos vermelhos de sangue através e em
torno do organismo do edifício” (2013, p. 234). Ao contrário de projetos como os do
MVRDV, na naturalização projetiva o projeto se esquiva de propagar um significado
cultural por meio de uma impressão impactante.

Essa fluidez operacional e livre de obstáculos pode ser vista em projetos como o
Terminal de Yokohama, projetado pelo FOA, no Japão. Durante a Bienal de Veneza,
quando o projeto foi apresentado, os arquitetos do FOA exibiram imagens de um
escaneamento corporal juntamente com o projeto de um dos terminais, sugerindo
que o raciocínio projetual se assemelharia a lógica do corpo. As “manipulações
genéticas” de dados e tecnologias feitas pela naturalização projetiva resulta em
formas que causam certo estranhamento; o que ajuda a evitar, segundo van Toorn,
um julgamento preliminar do projeto como bom ou mau, bonito ou feio. Roemer van
Toorn nos diz que esse julgamento é adiado:

O edifício rejeita o consumo imediato sob a imagem do símbolo


ou mito; antes, convida as pessoas a usarem-no, a interpretá-lo,
a travar relações, a penetrar em um fluxo de estímulos
organizados pela matéria. Mais do que nunca um edifício é
capaz [...] de se comportar como um organismo (2013, p. 234).

A naturalização projetiva não oferece uma representação favorável ou contrária


a qualquer coisa, não oferece uma capacidade reflexiva. A inteligência de projeto27
dessa prática está justamente em estimular processos já abertos, de modo que
possam funcionar automaticamente, conforme os fluxos impostos pelo status quo.

Rem Koolhaas critica esse posicionamento puramente instrumental e


estritamente operacional do grupo de arquitetos ligados às práticas da naturalização
projetiva, afirmando que esse grupo de arquitetos possui uma pretensiosa postura

27Conceito desenvolvido por Michael Speaks, que acredita que a “inteligência de projeto” substi-
tuiu a teoria como conceito norteador da arquitetura no início do século XXI. Para Michael
Speaks, a teoria perdeu o contato com a prática e não tem mais nenhuma consequência para ela.
38
antissemântica em um momento em que a semiótica se encontra mais vitoriosa do
que nunca. Para Koolhaas, “a crítica semântica talvez seja mais útil do que jamais
foi” (KOOLHAAS apud VAN TOORN. 2013. p. 240).

A naturalização projetiva manipula as questões da realidade de forma


localizada e precisa, através de uma perspectiva maquínica; fazendo com que,
através de avançadas soluções construtivas, os fluxos dos consensos vigentes
percorram suas trajetórias estabelecidas, em um sistema auto-organizativo. A
naturalização projetiva se concentra em abstrações orgânicas e se esquece de levar
em conta que a apropriação de um projeto depende das relações criadas entre
determinado comportamento social e as narrativas sobre os usos e as objetividades
do projeto. Para Roemer van Toorn:

As naturalizações projetivas tendem a deixar de lado o fato de


que são nossos atos e comportamento social, e não nossos
corpos biológicos, que constituem nossas identidades (2013, p.
235).

Figura 24 – Terminal Internacional de Yokohama (FOA – 2002)28

28 Fonte: https://www.flickr.com/search/?tags=yokohamaportterminal&sort=relevance
39
3. RUMO A QUE?

É bastante clara a tentativa de superação de uma geração anterior por parte dessa
nova geração de arquitetos e críticos; que se esforçam em identificar e combater o
que eles chamam de arquitetura crítica – seguido de um ataque à própria teoria.
Parte dessa nova geração defende a implementação de uma prática pós-crítica, ou
projetiva, que, segundo Reinhold Martin (2013), se compromete com formas de
produção arquitetônica de fundo afetivo, sem se envolver com a oposição, com a
resistência ou com a crítica; sendo, portanto, uma prática arquitetônica não utópica.
No entanto, George Baird, em um artigo para a Harvard Design Magazine (2004),
nos diz que, mesmo com toda a diligência, esses arquitetos falham em produzir um
projeto afirmativo e efetivo, se contentando com adjetivos rasos como relaxado,
tranquilo, cool29. Baird, então, questiona sobre o que esses arquitetos esperam
produzir como forma de discurso; a partir de quais critérios a geração dos pós-
críticos espera ser julgada, além da simples acomodação e aceitação às normas
sociais, econômicas e culturais vigentes?

Roemer van Toorn entende que a discussão não é se a arquitetura deve ou não
participar do capitalismo tardio, afinal isso já é um fato. A questão é a maneira com
que as relações com o mercado são desenvolvidas. Ao invés de tentarmos adivinhar o
futuro, devemos ficar atentos ao desconhecido à espreita. Roemer van Toorn (2013)
defende um rompimento com o criticismo, a paixão pela realidade e um retorno as
possibilidade projetivas da arquitetura, enquanto disciplina, para que se possa
aproveitar plenamente as possibilidades intrínsecas à modernidade reflexiva.
Entretanto, as questões éticas, políticas e culturais não podem ser gerenciadas
apenas em termos pragmáticos, técnicos ou estéticos.

As práticas projetivas concebem espaços arquitetônicos a partir dos substratos


usados pelos sistemas dominantes; estando, dessa maneira, limitada a criar uma
arquitetura que atenda, principalmente, as necessidades de conforto de uma classe

29 Frio/Descolado
40
média global. Segundo van Toorn, a classe média sofre do medo de enfrentar o
desconhecido e está preocupada em manter os processos que asseguram seus
privilégios, sua identidade, seus direito de poder, seu individualismo, consumo, luxo,
diversão, e toda a infraestrutura que dá o suporte necessário para que essa dinâmica
ocorra. Esse despótico sistema da diferença e dos direitos individuais menospreza a
noção de que é fundamental levar em conta os interesses coletivos da população
mundial. Roemer van Toorn defende que nós devemos recuperar o paradigma da
igualdade e da responsabilidade supraindividual, em contraposição à construção
desse paradigma da diferença, ingenuamente acatado pelas práticas projetivas.

As práticas projetivas partem do princípio de que a arquitetura é uma


plataforma aberta e hipoteticamente neutra ao se relacionar com o mercado;
correndo o risco de ser vítima da voracidade cega da economia global, da ditadura
estética, da tecnologia e do pragmatismo ao criar um subterfúgio projetual sem
consciência e ideais políticos, nem consciência sócio-histórica. O arquiteto retrocede e
limita sua prática aos elementos específicos à disciplina, sem força para assumir as
responsabilidades e guiar as diretrizes projetuais em determinada direção; deixando
as consequências políticas e éticas do projeto livres para serem reguladas pelo
mercado. De acordo com Roemer van Toorn, sob esse ponto de vista, as práticas
arquitetônicas projetivas são formalistas.

O poder de testar e desenvolver realidades ao longo do processo de projeto é


uma das grandes qualidades das práticas projetivas, mas essas práticas deixam de
perceber que a incorporação dos sonhos utópicos no exercício projetual são
fundamentais para se criar uma dimensão que vá além do status quo. Segundo
Roemer van Toorn (2013, p. 236):

É a interação entre o sonho da utopia e a realidade que poderia


ajudar a prática projetiva a desenvolver uma nova perspectiva
social. A prática projetiva deveria ceder ao fascínio de encontrar
um modo de influenciar o capitalismo rumo à democracia.

São os sonhos utópicos que nos oferecem parâmetros de referência para as ações
políticas e nos ajudam a realizar diagnósticos isentos sobre a realidade presente. É
esse distanciamento da realidade extrema que nos ajuda a perceber que a supressão
de diretrizes políticas e sociais cria ela mesma uma diretriz política e social; é o
41
distanciamento provocado pelas utopias que nos faz identificar nossos julgamentos
de valor e preconceitos implícitos e inevitáveis.

No começo dos anos 2000, parece haver uma linha tênue entre o pós-criticismo,
o pragmatismo e certo relativismo acrítico, que direciona os arquitetos a uma
aceitação arbitrária das regras da economia global vigente. Em um artigo publicado
em 2004, o filósofo Slavoj Žižek, um marxista não ortodoxo, conjura a dramática
imagem de um “yuppie lendo Deleuze”; a partir da qual propõe discutir como a
máquina capitalista contemporânea absorve rapidamente todo discurso crítico e de
vanguarda, disfarçando-o sob um espectro de pluralidade e diferença. Žižek afirma
enxergar certas afinidades entre as máquinas desejantes deleuzianas, produtoras de
afeto, e os dispositivos de desejos exemplificados pela publicidade.

A imagem reducionista de um “yuppie lendo Deleuze” é bastante contundente


para ilustrar a abordagem dessa nova geração pós-crítica – ou pós-teórica –
justificada na dificuldade operativa de transpor para a prática a complexidade da
teoria. Para Reinhold Martin, a demonstração mais clara da eficácia política da
arquitetura contemporânea e teoricamente informada foi o debate gerado em torno
do futuro do terreno do antigo World Trade Center.

Quatro meses após os atentados de 11 de Setembro, em janeiro de 2002, o


galerista Max Protetch organiza uma exposição em Nova York para apresentar ao
público 56 propostas para o local onde ficava o World Trade Center. Segundo
Reinhold Martin, existia ali um esforço bruto de explorar a oportunidade única de
realizar uma visão heroica – “pós-Saddam e pós-moderna?” (2013) – mas que estava
em paralelismo com “a crescente bazófia com a política externa americana” (2013).

O projeto apresentado pelo Foreign Office Architects (FOA), uma torre


ondulante, foi acompanho do comentário:

Nem pensemos em recordar... Para quê? Temos um excelente


terreno em uma excelente cidade, e a oportunidade de voltar a
ter o edifício mais alto do mundo em Nova York. Os prédios
tinham 1,3 milhão de metros quadrados de espaço de trabalho,
e isso é um bom tamanho para recuperar para Nova York o que
a cidade merece. (FOA apud MARTIN. 2013. p. 269)

42
Para Reinhold Martin, essa amnésia voluntária não se refere apenas a uma
rejeição aos imperativos da memorialização, mas também a uma cegueira deliberada
em relação às condições históricas das quais o 11 de Setembro faz parte. O
argumento de fim da história, em favor da construção de um novo tipo histórico ou
um novo tipo de edifício, explora de maneira exemplarmente pós-critica a ideia
neoliberal relativa às novas oportunidades oferecidas pela globalização técnico-
corporativa. De acordo com Martin, o compromisso dos profissionais que atuam
nessa nova ordem mundial se limita em favorecer o surgimento do novo, sem
analisar ou considerar as narrativas históricas sobredeterminadas.

Uma postura semelhante pode ser vista no projeto de Greg Lynn, um protótipo
de arranha-céu defensável. Lynn baseia seu projeto em diretrizes adquiridas
empiricamente sobre a eliminação das fronteiras entre o conflito militar global e a
vida cotidiana. Contudo, ao invés de rejeitar e resistir a essa realidade, o projeto
naturaliza essa situação de guerra total; para Lynn, é inevitável a transferência do
pensamento militar para a vida cotidiana.

Mas Reinhold Martin considera o coletivo United Architects a “versão oficial da


imagem hilária de Žižek sobre um ‘yuppie lendo Deleuze’” (2013. p. 270). Os
conceitos norteadores do coletivo começam a ficar visíveis logo no nome adotado,
uma arguta fusão entre Estados Unidos e as Nações Unidas; um híbrido que se
dissolve e se transforma em uma multinacional. Em cumprimento ao tema proposto
de construção de uma unidade na diversidade, o coletivo transforma em retórica o
avanço solene – fúnebre? – e apresenta um projeto com “Torres Unidas”, em uma
“visão audaciosa do futuro”, empregada a “recuperar o orgulho local”. O projeto é
composto por um único edifício contínuo, diferenciado em cinco torres interligadas,
se transformando em um monumento à diversidade corporativa, internalizando a
concepção, já naturalizada, de expansão do capitalismo global, sob a forma de um
inexorável desdobramento evolucionário sobre o terreno, no que Martin chama de
“diferença dentro da continuidade” (2013. p. 270), e completa:

Ao reagir docilmente ao apelo por uma “visão” arquitetônica,


enquanto permanecem inteiramente cegos em relação ao pacote
que produzem, esses arquitetos, e outros, se colocam numa

43
posição de complacência dócil diante dos imperativos de uma
nação em guerra. (2013. p. 271)

Reinhold Martin afirma que o projeto transmite a impressão inconsciente de


uma família de arranha-céus dando as mãos diante dos gêmeos ausentes,
desencadeando uma dinâmica espontânea paralela à que organizou a militarização
subsequente, quando os delírios da política americana transforaram Osama em
Saddam. Para Martin:

Nessa arquitetura que misturava espiritualidade e marketing,


oferecida pelos United Architects, prognosticava-se afetiva e
esteticamente a violenta ironia da alegação de que os Estados
Unidos estavam agindo moralmente no lugar das Nações
Unidas (para se tornarem, de fato, as Nações Unidas), ao
invadir o Iraque. (2013. p. 271)

Os arquitetos pós-críticos se revelaram demasiadamente inclinados a promover


os desdobramentos políticos de uma guerra virtual que se transformaria em
realidade, ao acatarem com tanto ardor as circunstâncias do progresso cultural e
arquitetônico pelo seu valor em si. Segundo Reinhold Martin, essa não é apenas uma
“reprise sórdida do que Walter Benjamin já denominara estetização da política. Foi a
estética como política” (2013. p. 272).

Dessa forma, Reinhold Martin defende a retomada das utopias como paradigma
conceitual para a prática arquitetônica, mas não como uma invocação de um mundo
perfeito, uma totalidade impossível, mas como uma interpretação literal das origens
etimológicas do não lugar; que não é nenhum lugar por ser idealizado ou inacessível,
mas sim porque, em um modelo simétrico perfeitamente espelhado, também é todo
lugar.

Jacques Derrida; filósofo criador do pensamento desconstrutivista e grande


influenciador da obra de Peter Eisenman; considera a utopia como um espectro, um
fantasma que incorpora outros mundos possíveis na realidade cotidiana, e não um
sonho de outros mundos. Reinhold Martin acredita que o pós-criticismo – ou
realismo – trabalha sistematicamente para exorcizar os fantasmas da utopia, como
pode ser percebido nos projetos do concurso para o terreno do antigo World Trade

44
Center. Mas Martin nos diz que, como qualquer outro fantasma, a utopia jamais
morre completamente: ela sempre volta para assombrar os projetos arquitetônicos já
estabelecidos e os que ainda estão por vir. Martin aspira por um realismo utópico,
crítico e mundano, que ocupe a cidade global ao invés da aldeia global, que
transgrida os códigos da disciplina ao mesmo tempo em que os defenda; que não seja
utópico por ter sonhos impossíveis, mas sim porque “reconhece que a própria
realidade é – precisamente – um sonho demasiadamente real inculcado por aqueles
que preferem aceitar um status quo destrutivo e opressor” (2013. p. 274). Nas
palavras de Roemer van Toorn:

Se sonhássemos com novas formas de democracia,


desenvolveríamos perspectivas para nos livrar do atual tédio
político, da atividade cega do mercado e da incessante
contemplação dos nossos próprios umbigos. (2013. p. 236)

Figura 25 – Novo World Trade Center (United Architects – 2002)30

30 Fonte: http://www.moma.org/modernteachers/files/1610244ca3115e997a.jpg
45
CONCLUSÃO

Ao longo desse trabalho temos uma visão geral dos conceitos que delineiam as
práticas arquitetônicas críticas e projetivas, construídos através de aproximações e
digressões interdisciplinares.

Podemos perceber que o pragmatismo extremo e a paixão pela realidade, que


estão no cerne das práticas projetivas, acabaram por desenvolver uma prática
arquitetônica reacionária e conservadora, mimetizado sob o discurso de uma
arquitetura visionária. Na tentativa de criar uma arquitetura sem diretrizes
políticas, acaba-se por se fazer uma arquitetura alinhada ao mercado e que
impulsiona o poder de um status quo destrutivo e opressor.

O repúdio aos sonhos utópicos, praticado pelos pós-críticos, deve ser repensado;
porque, somente assim, poderemos começar a repensar os conceitos de democracia e
a construir uma realidade menos opressiva. Uma recuperação da utopia é
fundamental para que possamos fazer um diagnóstico isento do presente e traçar
quadros de referência para as ações políticas para, assim, podermos projetar uma
realidade que vá além do status quo.

46
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