Você está na página 1de 301

Antony Cutler

Barry Hindess
Paul Hirst
Athar Hussain

o CAPITAL
DE MARX
E O CAPITALISMO
DEHOJE
Volume I

, \.\V
,-rC'Q
V ' i * .<■» '

ZAHAR EDITORES
RIO DE JA N E IR O
Tradução:
Waltensir Dutra

Revisão Técnica:
Alexandre Addor
D o u to ra n d o em E co n o m ia pela
U n iv ersid ad e de P aris I (P a n th éo n -S o rb o n n e)

BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS SO CIAIS


E CONO M IA
ÍNDICE

Prefácio ..................................................................................................... 7

Parte I - VALOR
1. Valor, Exploração e Lucro .................................................. 17
Valor, troca e medida ...................................................... 18
O valor nos clássicos e em O C apital .....: . . . 25
Trabalho e força de trabalho, capital constante e
variável ............................................................................ 41
“ Exploração” e classes .................................................... 47
Produção e circulação ...................................................... 49
2. Bõhm-Bawerk e Hilferding .................................................. 52
Valor e preço ......................................................... ............ 54
Tempo de trabalho e utilidade
com o bases de teorias do valor ............................... 58
Oferta e procura ................................................................. 60
Redução do trabalho ...................................................... 62
A resposta de Hilferding ........... .................................... 66
3.1.1. Rubin - Ensaios sobre a Teoriado Valor de M a rx 71
Fetichismo ........................................................................... 73
Valor e equilíbrio ............................................................... 79
Trabalho abstrato e a forma do valor ...................... 85
Produção simples de mercadorias
e produção capitalista ............... .................................. 90
Apêndice: O Problema da Reprodução em O Capital .. 92

Parte II - O CAPITAL E AS LEIS TEN D EN CIAIS


4. Epistemología, Causalidade
e Leis Tendenciais .................................................................. 101
Comentários ........................................................................ 119
5. A Combinação Contraditória
das Forças e Relações de Produção ................................. 126
Forças, relações e história no “ Prefácio de 1859” . 126
A tendência histórica da acumulação capitalista . . . 133
Marx sobre a sociedade anônim a e o crédito ...... 142
6. A Lèi da Tendência Decrescente da Taxa de Lucro .. 146
Parte III - AS C LA SSES E
A ESTRUTURA DA FORM AÇÃO SOCIAL
7. Marxismo Clássico .................... ........................... ...................163
M odo de produção e form ação s o c ia l ........................ 163
Classes ................................................................................... 169
Classe com o unidade intersubjetiva ........... ..... ...... 173
Lukács: o conceito de sujeito de classe ................ 176
Classes com o efeitos da estrutura ............................ 181
Poulantzas: a contraposição de classe e estrutura 187
8. Determinação em Última Instância ............................... . 191
Concepções epistem ológicas da relação
entre o discurso e seus objetos ................................. 194
Conceitos, objetos de discurso e
suas condições de e x istê n c ia ....................................... 199
9. Modo de Produção, Formação Social, Classes ............. 205
C onceitos de m odo de produção e formação social 205
Classes econôm icas, política e cultura ........................ 213
Sumário e conclusão ........... ............................................. 219
10. Posse e Separação dos M eios de Produção .................. 224
Relações de produção ..................................................... 225
Posse e separação .............................................................. 229
Trabalhador e não-trabalhador .................................... 234
11. Agentes e Relações Sociais ................................................. 242
O conceito de agente com o sujeito ............................. 245
Agentes e as condições de sua e x istê n c ia .................. 251
Agentes e indivíduos hum anos .................................... 262
12. Relações Econômicas de Classes
e Organização da Produção ....................................................265
Trabalho produtivo e improdutivo ............................. 267
A dupla natureza da supervisão e administração .. 274
Administração e capital ................................................... . 277
13. C onclusão.................................................................. ............... 286
A estrutura da formação s o c ia l.................................... 286
Classes e agentes econôm icos . ...................................... 291
B ib lio g ra fia .......................... .................................................................... 300
Prefácio

A teoria econôm ica marxista teve um renascimento na última década.


As proporções e o vigor dos debates e discussões contemporâneos não
encontram iguais desde a passagem do século. Infelizmente, também é
certo que, apesar desse investimento de esforço, as questões elabora­
das no princípio deste século e as respostas que lhes foram dadas
continuam a determ inar o trabalho contem porâneo. Por exem plo,
as discussões das transformações nas relações sociais capitalistas que
são marcadas pelos conceitos de capital “m onopolista” e “ financeiro”
não fizeram, em substância, progressos além do que já haviam feito
Hilferding, Bukharin e Lênin. E há, sem dúvida, necessidade de maio­
res estudos. N ão apenas porque as formações sociais capitalistas e
suas inter-relações numa escala mundial se modificaram radicalmente
nesse intervalo, mas também porque.esses conceitos eram, sob muitos
aspectos, inadequados à época de sua formulação; A mais sistemática
dessas obras, Das Finanz Kapital, de Hilferding, publicada em 1910,
desenvolve em geral e sintetiza as posições em relação à moeda, capital
bancário, crédito e os efeitos da concentração e centralização do capi­
tal apresentadas em O Capital, e o faz à base de uma concepção da
produção m onopolizada, dominada pelo “capital financeiro” . Essa
concepção é desenvolvida sobre as formas clássicas da cartelização in­
dustrial e do controle pelo capital bancário, então predominantes na
Alemanha, e está intimamente ligada a esses aspectos. Bukharin e Lê­
nin seguiram Hilferding a esse respeito e desenvolveram, à base dessa
concepção da fase m onopolista do capitalismo, uma teoria da luta in1-
terimperialista das Grandes Potências. O imperialismo é concebido
com o a fase final do capitalismo e o resultado da evolução de tendên­
cias imanentes em sua estrutura básica. Aceita-se hoje geralmente
(por várias razões) que essa teoria do imperialismo já não é sustentá­
vel.
M as não se aceita, de forma alguma, que a teoria do capitalismo
m onopolista em que ela se baseia, ou algumas das modernas revisões
dessa teoria, também sejam insustentáveis. N ão se percebe que o mar­
8 PREFÁCIO

xismo não tem, atualmente, uma teoria adequada das modernas for­
mas monetárias, das instituições financeiras capitalistas e de seus dife­
rentes m odos de articulação nos sistemas financeiros das economias
nacionais capitalistas, e das formas de organização de empresas indus­
triais capitalistas em grande escala e os tipos de cálculo econôm ico que
empreendem. Essas deficiências são reais e destacadas. N ão podem ser
negadas simplesmente pela rejeição com o secundárias à determinação
das relações capitalistas na produção e exploração. Esse tipo de reação
e a posição teórica que a torna possível é uma das principais razões da
debilidade da teoria econôm ica marxista, quando frente a novas for­
mas de relações capitalistas contemporâneas que têm efeitos impor­
tantes. As deficiências que acabamos de mencionar explicam, em gran­
de parte, a incapacidade da teoria marxista de explicar as modificações
ocorridas nas formações sociais capitalistas desde o início do século.
Essa incapacidade revela-se pela esterilidade e dogm atism o das rea­
ções da maioria dos teóricos econôm icos marxistas à atual depressão,
com um suspiro de alívio pelo que é considerado com o a volta ao dia­
bo já conhecido, e, num número demasiado de casos, por uma busca
ansiosa de indícios do reaparecimento das tendências finais, por tanto
tempo adiadas.
N ão ocorreu apenas que as últimas gerações de marxistas se te­
nham mostrado incapazes de desenvolver as realizações de O Capital.
Foi o que fez Hilferding, e nisso está sua principal limitação. O Capital
não nos proporciona a base para o tipo de trabalho que necessitamos
empreender. Em áreas-chave da teoria, ele ou é inadequado no que
diz, ou impõe o silêncio pela intervenção de questões e conceitos aos
quais dá destaque. A teorização apresentada em O Capital, por exem­
plo, da moeda, crédito, organização e cálculo capitalistas é sériamente
inadequada. N ão se trata simplesmente de que as dificuldades em O
Capital se limitem ao que poderíamos considerar com o certas áreas es­
pecializadas da teoria. De fato, as dificuldades existentes nessas áreas
nascem principalmente dos efeitos de sua articulação à base de concei­
tos e problemas centrais ao discurso de O Capital.
Grande parte da esterilidade da moderna téoria econôm ica mar­
xista é um efeito do ponto de partida ao qual pretende ser fiel, O Capi­
tal (e o fato de ser essa “ fidelidade” , com freqüência, uma paródia, é
outra questão). M uitos dos conceitos e problemas centrais em O Capi­
tal, longe de constituírem um ponto de partida, são na realidade obstá­
culos a novos tipos de trabalho teórico que os socialistas devem em­
preender, para entender o capitalismo moderno. Delineem os aqui três
áreas de conceitos que tiveram efeitos limitadores na análise marxista
e que são discutidas neste livro:
1. A categoria do “valor” e as formas de análise da acumulação
capitalista com ela relacionadas. Esse tipo de análise limita efetiva-
PREFÁCIO 9

mente qualquer concepção da circulação baseada na moeda crediticia,


limita o papel do capital financeiro na redistribuição da mais-valia já
produzida e silencia sobre a discussão do alcance dos determinantes
dos lucros industriais capitalistas.
2. A concepção do m odo de produção capitalista como entidade
geral, envolvendo necessárias “ leis de m ovim ento” de aplicação geral.
Essa concepção predominou na discussão das formações sociais capi­
talistas. As estruturas específicas das econom ias nacionais capitalistas
são eliminadas com o objeto de teorização, e consideradas com o exem­
plos do capitalf.wí0-como-generalidade e de suas “leis”. Essa concep­
ção das “ leis de m ovim ento” canalizou as questões sobre a mudança e
o desenvolvimento nas formações sociais capitalistas em duas dire­
ções, a postulação de uma “ fase m onopolista” geral do capitalismo, e
a busca de “crises” e outros fenômenos finais com o efeitos gerais neces­
sários do m odo de produção capitalista. Am bas essas direções nos pa­
recem inúteis no exame dos tipos de questões sobre as formações so­
ciais capitalistas que devem ser úteis na formulação de um programa
estratégico socialista.
3. O m odo de discussão dos agentes econôm icos. Estes são conce­
bidos com o “ personificações” de funções econômicas às quais são da­
dos interesses e perspectivas definidos. Essa concepção de “ personifi­
cação” torna necessário aos agentes econôm icos serem confinados
aos indivíduos humanos, tornando também possível uma concepção
das relações sociais com o relações entre sujeitos humanos (mesmo
quando tais relações tomam uma forma fetichista). Essa concepção
torna impossível conceber agentes econôm icos que não sejam repre­
sentados diretamente por sujeitos humanos, e formas de cálculo eco­
nômico que não sejam dadas pela estrutura e que sejam diferentes en­
tre as empresas. Essa concepção dos agentes com o sujeitos humanos e
das relações sociais com o relações entre esses sujeitos possibilita uma
concepção “ sociologista” das classes de agentes econôm icos na qual
eles formam grupos de indivíduos com interesses definidos; tais grupos
e interesses são então representados na política e na ideologia.

Este livro começou num trabalho que tentava usar a teoria marxista
para formular um conceito do m odo de produção capitalista dom ina­
do pelo capital “ m onopolista” e “ financeiro” . Tornou-se logo eviden­
te, no curso desse trabalho, que tais conceitos nada tinham de adequa­
dos e que o próprio O Capital apresentava problemas reais, se quisés­
sem os entender várias questões sobre as formas econômicas predomi­
nantes nas formações sociais capitalistas contemporâneas que tínha­
mos formulado. Este livro resultou de um seminário que os autores
conduziram, nos dois últimos anos, e que tom ou a forma de duas tare­
fas à parte, mas relacionadas entre si, a crítica e modificação de O Ca-
10 PRE F Á CIO

pitai, e a análise das relações capitalistas contemporâneas, em particu­


lar a moeda e a política monetária estatal, bancos e crédito, institui­
ções e sistemas financeiros. Os resultados iniciais desse seminário es­
tão reunidos nos dois volumes deste livro, cujo conteúdo vamos deli­
near rapidamente.
O primeiro deles ocupa-se diretamente das três áreas de proble­
mas de O Capital, acima delineadas. Está dividido em três partes. A
primeira compreende uma crítica da categoria de “ valor” e da forma
pela qual ela domina as discussões marxistas sobre a distribuição do
produto entre os agentes e a natureza e os determinantes dos lucros
das empresas capitalistas. A segunda é uma crítica da concepção de
Marx das “ leis do m ovim ento” econôm icas e das suas conseqüências
teóricas. A terceira parte é uma discussão das classes e agentes eco­
nôm icos que desenvolve a crítica da teoria da mais-valia, feita na Parte
I, e a crítica da representação do processo ao sujeito ou agente econô­
mico, na Parte II. Portanto, este volum e limita-se, em essência, a uns
poucos problemas e conceitos-chave no discurso de O Capital. Ocu-
pa-se principalmente da situação desses conceitos e da pertinência de
tais questões. E o faz examinando com o certos, conceitos surgem no
discurso e quais as suas conseqüências sobre esse discurso. N ão pre­
tendemos rever e intervir diretamente nos vários debates técnicos sur­
gidos à base, e em torno, de conceitos com o “valor” e “ lei da tendên­
cia de declínio da taxa de lucro” . Isso porque estamos questionando a
base teórica desses debates. Este livro não pode ser considerado sim­
plesmente com o uma obra de “ Econom ia” marxista, isto é, uma con­
tribuição definida dentro de um determinado campo de problemas. É
principalmente um trabalho sobre a teoria marxista, uma tentativa de
analisar e redefinir o próprio campo dos problemas.
O segundo volume continua a crítica de O Capital e procura tam­
bém teorizar certas formas econôm icas capitalistas. Ocupa-se de três
questões principais. A primeira é uma discussão crítica da teoria da
moeda em O Capital e também um exame das condições de existência
e as conseqüências de sistemas de moeda crediticia. A segunda é uma
análise das diferentes formas de instituições financeiras capitalistas
(bancos, companhias de financiamento, companhia de seguros, etc.) e
procura explicar por que essas diferentes formas existem, examinando
as conseqüências dos modernos sistemas financeiros interligados, em
particular a questão da criação do crédito. A terceira é uma crítica da
concepção que tem Marx do cálculo dos capitalistas em O Capital,
uma tentativa de examinar as formas modernas de cálculo capitalista
empregadas pelas empresas e seus efeitos diferenciais (sobre estraté­
gias de investimento, taxas de lucro, etc.).
Esses dois volumes são considerados por nós com o o início de um
trabalho sobre esses problemas. N ão pretendemos oferecer uma análi-
PREFÁCIO 11

se geral do discurso de O Capital, nem uma investigação completa das


modernas econom ias capitalistas. A s implicações e conseqüências das
críticas que fizemos e as tentativas de teorização alternativa são, sem
dúvida, diversas, e não podem os no mom ento ter esperanças de desen­
volver e solucionar todas essas críticas. Essa é uma tarefa para o nosso
futuro trabalho e a base para a continuação desse discurso. D ada a
nossa rejeição da concepção racionalista do discurso teórico com o
unidade lógica (ver Hindess e Hirst, 1977), do efeito de seus conceitos
orientadores básicos, não poderíamos pretender §er possuidores das
conseqüências de nosso trabalho. Segue-se que estes dois volumes não
podem ser resumidos numa introdução abalizada que dê o seu impri-
m atur ao resto do texto.
N ã o pode também haver uma conclusão definitiva. Mas com o
este livro é escrito por socialistas interessados em produzir teoria rele­
vante para a luta pelo socialism o, algumas observações finais são, sob
esse aspecto, politicam ente necessárias, quaisquer que sejam suas limi­
tações. A o final do segundo volume tentam os delinear algumas das
implicações políticas de nosso trabalho. Em particular, examinamos a
importância do conceito de econom ias nacionais capitalistas com o ob­
jetos de análise e os m odos pelos quais a análise dessas formas pode
contribuir para a estratégia política das forças e partidos socialistas
nos Estados em questão.
Finalmente, devemos explicar que embora este texto seja produto
de um trabalho cooperativo, sua com posição é produto de uma divi­
são do trabalho. Os efeitos de que partes diferentes do texto foram
com postas por pessoas diferentes são vários; há mais repetições do que
se tivesse sido escrito por uma só mão, a ênfase e o estilo da exposição
diferem, e pequenas contradições são inevitáveis. Consideramos isso
com o de conseqüência secundária e sem dúvida um aspecto que não
vale a pena ressaltar, com uma atribuição de autorias. Todos os qua­
tro autores são responsáveis pelo formato básico e concordam quanto
à substância básica do texto.
As referências às obras citadas neste volum e são relacionadas no
final do livro.

ÜFBJ
INSTITUTO DE
FILO SO FIA Ç
CIÊNCIAS SO C IA IS
PARTE I

VALOR
Os capítulos desta parte são dedicados à discussão crítica do conceito
de “valor” . N o primeiro capítulo, a pertinência do tempo de trabalho
com o medida de distribuição do produto social no capitalismo é ques­
tionada, e em particular a pertinencia da avaliação das contribuições
do trabalho dos agentes para o produto com o um meio de explicar sua
distribuição entre diferentes categorias desses agentes. N o segundo e
terceiro capítulos são examinados os esforços de dois destacados pen­
sadores marxistas, R udolf Hilferding e I.I. Rubin, de defender a teoria
do valor de Marx contra ataques, notadamente os de Bõhm-Bawerk.
O que torna suas discussões de especial interesse é que ambos locali­
zam o conceito de “ valor” com o urna parte central da teoria marxista
da historia e da totalidade social, em lugar de se limitarem simples-
mente aos debates económ icos técnicos. Em conseqüência, podemos
deduzir de sua obra algumas das possíveis implicações que tem a cate­
goria de “valor” para a teoria marxista das relações sociais, comple­
mentando e reforçando nossa análise de O Capital de Marx. N um bre­
ve apéndice, o status da noção de reprodução, tal como postulado em
O Capital, é examinado.
D evem os fazer uma advertência. N ossa discussão do conceito de
“ valor” e as noções de uma “ lei do valor” em O Capital é critica, e não
procura reconstituir todas as referências ao “valor” na exposição de O
Capital. O uso que faz Marx desse conceito é, com freqüência, ambí­
guo, suas várias referências a uma “lei do valor” envolvem diferentes
formulações possíveis dessa “lei” e tais referências são, freqüentemen-
tes, marginais à argumentação principal. N ão há um tratamento sim­
ples, geral e sem ambigüidade do “valor” ou da “ lei do valor” (as for­
mas de sua oposição e seus diferentes m odos de expressão) em O Capi­
tal. O que fizemos aqui foi criticar uma concepção definida do valor e
da lei do valor que está presente no discurso de O Capital e mostrar
com o se relaciona com outros conceitos centrais naquele discurso, no­
tadamente a “mais-valia” e a “exploração” . Essa crítica nos leva à
conclusão de que esse conceito e os conceitos e problemas dele depen-
16 VA LO R

dentes devem ser rejeitados. Em conseqüência, consideramos redun­


dante uma revisão geral das referências de Marx, e da subseqüente lite­
ratura crítica, a essa questão. As implicações do abandono dos concei­
tos de “ valor” e “ mais-valia” para a análise.das classes são discutidas
em detalhe na Parte III deste volume.
Uma om issão, evidente e notável, deve ser explicada a esta altura.
Embora a crítica “ neo-ricardiana” da teoria marxista do valor e o re­
sultante debate tenham ocupado um lugar destacado na literatura con­
temporânea sobre essa questão, não se encontrará qualquer referência
a ela nesta parte do texto. Tal literatura é discutida num capítulo à
parte no Volume 2, que é uma revisão crítica das teorias dos preços de
reprodução, e em particular do trabalho de Sraffa.
C ap ítu lo 1

Valor, Exploração e Lucro

A “ teoria do valor” de Marx provocou um extenso debate entre os


ecopomistas, debate centrado sobre a possibilidade técnica, ou a vali­
dade empírica, do funcionamento do tempo de trabalho como a medi­
da das proporções em que as mercadorias são intercambiáveis. Assim,
por exemplo, objetou-se que essa medida está em contradição com a
teoria dos preços de produção e a formação de uma taxa média de lu­
cro no capitalismo, e que as mercadorias na verdade não se trocam em
razões determinadas pelos seus respectivos tempos de trabalho, que al­
gumas delas têm tempos de trabalho negativos, etc. Os defensores de
O Capital responderam a essas críticas, concentrando-se em geral na
refutação da noção de que a teoria do valor de Marx é principalmente
uma teoria da troca e do valor de troca, e insistindo em que o conceito
“valor” explica a maneira pela qual as relações de produção governam
as relações de troca. N ão obstante, o que é central na teoria do “va­
lor” é a função do tempo de trabalho com o um padrão social de medi­
da.
N este capítulo nos ocuparemos não desse debate, mas daquilo
que ele ignorou: a pertinência teórica e as condições de existência da
medida. Examinaremos por que a medida toma essa forma definida,
por que essa forma é considerada significativa e por que o problema
da medida é considerado com o significativo. Por que é o tempo de tra­
balho usado na produção de mercadorias (ou formas de não-
mercadoria do produto social) de significação teórica? Por que deve
ser mais importante do que, digamos, o peso das mercadorias? Por que
é o tempo de trabalho utilizado na produção empregado não só com o
a medida das razões em que as mercadorias são trocadas, mas com o
um recurso teórico para analisar a distribuição do produto social entre
os agentes? Se essas perguntas foram feitas até agora, serviram em ge­
ral apenas com o o prefácio para a repetição dos argumentos do pró­
prio Marx. Examinaremos aqui, porém, o discurso de O Capital, para
ver por que tais argumentos apresentados por Marx devem ser consi­
derados com o respostas a essas perguntas. Central para esse problema
18 VALOR

da forma pela qual o discurso define as respostas adequadas a ele é a


concepção apresentada em O Capital da natureza da operação de m e­
dida a ser realizada pela categoria do tempo de trabalho. “ Medida”
(nesse caso, a relação de fenômenos aparentemente distintos entre si
com o quantidades) não é uma simples noção não-teórica ou um sim­
ples exercício não-teórico. Para compreender o valor com o uma medi­
da em O Capital devemos compreender a concepção da troca na qual o
tempo de trabalho deve funcionar com o medida e a doutrina teórica
da medida adotada nessa concepção.

Valor, troca e medida


Marx apresenta o problema do valor de troca de uma maneira especí­
fica. Concebe a troca com o uma equação, com o sendo efetuada atra­
vés da identidade dos objetos trocados. A formulação da troca dessa
maneira leva diretamente a um paradoxo, o absurdo e a impossibilida­
de aparente da equação. Qual a possibilidade da forma de equação “x
mercadorias A = y mercadorias B ” (digamos, um quintal de ferro =
uma tonelada de carvão)? Por que um quintal de ferro seria igual a uma
tonelada de carvão? A equação supõe uma relação definida (uma iden­
tidade) entre as coisas trocadas, e não obstante essa relação não se
pode encontrar nas mercadorias em si mesmas (ferro = carvão?), ou na
razão em que são trocadas (um quintal = uma tonelada?). Os valores
relativos de troca de mercadorias são definidos e não obstante impene­
tráveis com o tal, com o meros valores relativos:
U m a d eterm in ad a m ercad o ria , um qu in tal de trigo p o r exem plo, é tro c a d a p o r x graxa
de sa p a to , seda ou z o u ro , etc. Em sum a, é tro c a d a p o r o u tra s m ercadorias nas p ro p o r­
ções m ais diversas. P o rta n to , o trigo tem m u ito s v alores de tro c a , e n ão ap en as um . M as
x grax a d e sa p ato , y seda ou z o u ro , etc., ca d a um rep re sen ta o v alo r de tro c a de um
q u in tal de trigo. P o rta n to ,[ eles]... devem , com o valores de tro c a , ser m u tu a m e n te subs­
tituíveis o u de id ên tica m agnitude. (O Capital, vol. I, ed ição P enguin, p. 127)

Mas essa magnitude, a unidade de medida na qual tais coisas são con­
tadas com o idênticas, não é dada nessas equivalências, e Marx diz:
Segue-se, em p rim eiro lugar, que os valores de tro c a de um a d eterm in ad a m ercad o ria
expressam alg u m a coisa igual e, em segundo, que o v alo r d e tro c a n ã o pode ser o u tra
coisa senão o m o d o d e expressão, a “ fo rm a d a ap a rê n c ia ” (Erscheinungsform ), de um
co n teú d o dele d istinguível. (Ibid., p. 127)

A equação é, em sua “ forma fenomenal” com o proporções de troca,


um efeito.
A s relações de troca “podem ser sempre representadas por uma
equação” :
O que significa essa equ ação ? Significa qu e um elem ento com um de m agnitude idêntica
existe em duas coisas diferentes, em um q u in tal de trigo e igualm ente n u m a to n e la d a de
VA LO R, EXPLORA ÇÃO E L U CRO 19

ferro. A m b o s são p o rta n to iguais a u m a terceira coisa, q u e em si m esm a n ã o é nem um a


nem o u tra . C a d a u m a delas, no q u e se relaciona com o seu v alo r de tro ca, deve p o rta n to
ser redutível a essa terceira coisa. (I b i d p. 127 - grifo nosso).

A equação (x mercadorias A = y mercadorias B) é possível porque essa


forma fenomenal é o efeito de uma identidade estabelecida entre duas
qualidades distintas (A e B, ferro e carvão) e suas quantidades relativas
(x e y, um quintal e uma tonelada) no terceiro termo. Nesse termo, xA
e y B representam quantidades iguais/idênticas da mesma substância
comum, e Marx insiste em que “os valores de troca de mercadorias de­
vem ser reduzidos a um elemento comum, do qual representam uma
quantidade maior ou m enor” (Ibid., p. 127). Marx, continuando, diz
que esse elemento comum não se pode identificar em nenhuma ’’pro­
priedade natural” das mercadorias, mas apenas na “propriedade de
serem produtos do trabalho” (Ibid., p. 128).
O interessante, no caso, não é que “trabalho” constitua a base do
“elemento com um ” , mas a noção desse elem ento comum em si mes­
mo. Marx concebe a troca com o uma equação, expressando os valores
de troca uma igualdade de propriedade das coisas trocadas (identidade
de seus tempos de trabalho). Daí o discurso em O Capital ser organiza­
do de forma a apresentar o problema da possibilidade dessa igualdade
das coisas em questão e de mostrar que ela é uma forma fenomenal
problemática, inexplicável em si mesma, e exigindo a ?ategoria do ter­
ceiro termo, para que seja possível. O terceiro termo e a discrepância
da forma física das coisas trocadas criam, com isso, o lugar para o
tempo de trabalho com o resposta.
Mas não é de m odo algum inevitável que a troca seja concebida
com o uma equação. A troca pode ser concebida com o equivalente, no
sentido jurídico, isto é, ambas as partes concordam com a equivalência
dos termos de troca e recebem o que lhes foi prometido, mas não como
uma equação (não havendo qualquer identidade substantiva entre as
coisas trocadas). Da mesma forma, nas teorias marginalistas a troca
não repousa sobre a identidade de alguma propriedade das coisas tro­
cadas, nem numa identidade das estimativas de utilidade relacionadas
com elas. A troca é possível porque a utilidade das coisas trocadas é
diferente para as partes interessadas na troca - essas diferentes utilida­
des se cruzam numa proporção definida, digam os o desejo de dispor
de um quintal de ferro em troca da utilidade de uma tonelada de car­
vão, e vice versa. Os valores relativos expressam ou medem as utilida­
des, mas as trocas são o produto de utilidades diferentes, e não idênti­
cas. A concepção de troca de M arx não é universal.
Suponhamos, novamente, que argumentemos que os valores de
troca relativos não sejam pertinentes. Se dermos dez cruzeiros por um
quintal de ferro, ou um quintal de sabão em pó, ou galão de vinho, o
20 VALOR

que significa isso? Que existe alguma relação necessária entre ferro, sa­
bão em pó e vinho, ou o fato simplesmente incidental de que Cr$ 10 de
dinheiro comprarão diferentes quantidades desses três produtos. Per­
guntar o que torna tais quantidades alguma coisa mais do que inciden­
tais (de pertinência teórica) é fazer uma pergunta sobre a necessidade
das proporções nas quais as mercadorias são trocadas, ver os valores
de troca com o representativos de alguma coisa geral e que os ultrapas­
sa. Buscar uma resposta geral à questão da necessidade dessas propor­
ções é insistir em que não são incidentais, é postular uma teoria de va­
lor. O marxismo e o marginalismo, por exem plo, partilham desse
problema e da necessidade de solucioná-lo.
A troca com o equação e a proporcionalidade de troca como ne­
cessidade são produtos de condições teóricas definidas, condições es­
sas que dão pertinência a certas indagações. Os marxistas consideram
natural ver a troca com o equação. Os econom istas supõem a necessi­
dade de uma teoria geral de preços e valores de trocas que lhes atribua
um .ríaru.vuniversal, uma função específica e uma origem definida. Es­
quecem, com freqüência, que tais questões são teóricas e não uma par­
te inevitável da natureza das coisas (e para as quais se devem procurar
respostas). É possível argumentar que os preços e os valores de troca
não têm funções gerais ou determinantes gerais e que não há, em geral,
necessidade das proporções em que são trocadas as mercadorias. Essa
modificação da pertinência dos problemas nos coloca não só fora da
teoria marxista do valor, mas também da teoria econôm ica convencio­
nal (voltaremos a esses assuntos mais adiante, nesta seção, e no Volu­
me 2).
O conceito de troca de Marx com o uma equação segue de perto
certos elementos importantes da teoria da medida de Hegel, tal com o
desenvolvida em A Ciência da Lógica (Livro I, seção 3). Fazer uma
breve exposição da posição de Hegel não será uma digressão. Hegel
discute a medida no contexto de sua doutrina do ser. A medida não é
uma mera operação formal, mas uma relação de significação ontológi­
ca definida. N a medida reconciliam-se os atributos do ser, quantidade
e qualidade. Para Hegel, a medida é a qualidade quantificada. É uma
expressão quantitativa de especificidades da existência (especificidade
na, e com o, quantidade). Hegel desenvolve uma teoria realista da me­
dida, na qual pretende definir as relações entre formas específicas de
quantidade e formas de ser. A natureza da medida varia com as dife­
rentes naturezas e divisões do ser: a matéria abstrata, o domínio da
mecânica (em que as “ diferenças qualitativas... são essencialmente de­
terminadas de m odo quantitativo” , Ciência da Lógica, p. 331), matéria
orgânica e inorgânica, e espírito, todos têm diferentes formas e capaci­
dades de medida determinadas pela sua forma de ser (a medida é em
VALO R, E XPL ORA ÇÃO E L U C R O 21

grande parte indeterminada no reino do espírito). A qualidade quanti­


ficada mostra o efeito determinativo de uma quantidade sobre unida­
des específicas do ser assim medido. A o contrário de uma teoria for­
malista da medida (na qual as diferenças de aplicação são determina­
das pelo propósito do medidor), essa relação não corresponde a toda
série de proporções possíveis, mas apenas a proporções determinativas
(isto é, aquelas nas quais a quantidade define a qualidade). Assim, um
homem pode perder cabelo sem ficar careca. Mas, a ,um certo ponto,
as mudanças quantitativas constituem uma mudança de qualidade,
uma mudança na natureza da coisa e, portanto, em sua medida. Um
homem que perde uma quantidade suficiente de cabelo se torna careca
e a quantidade de cabelo deixa de ser uma medida aplicável. N ão há,
na posição de Hegel, a possibilidade de aceitar a medida com o conven­
ção, com o simples padrão aplicado a coisas para finalidades específi­
cas. A posição de Hegel é muito diferente das doutrinas positivas ou
formalistas de medição. O mesmo ocorre com a teoria da medida de
Marx em O Capital, que corresponde, sob certos aspectos cruciais, à
posição da Lógica de Hegel.
“ N a medida, o m om ento qualitativo é quantitativo; a deter­
minação ou diferença é indiferente, não havendo por isso nenhuma
diferença negada” ( Ciência da Lógica, p. 330). Essa concepção da
relação de qualidade e quantidade serve para explicar a concep­
ção que tem Marx da troca com o equação. N a troca, as qualidades dis­
tintas dos objetos trocados são negadas em sua identidade òomo quan­
tidades. A identidade no terceiro termo, com o quantidades do terceiro
termo, é a negação da diferença qualitativa. É essa negação/transfor-
mação da qualidade em quantidade que torna a troca possível. Essa
medida, o terceiro termo, não é porém meramente convencional, sim­
ples quantidade que, pela identidade numérica, apaga a diferença. A
medida entre os termos qualitativamente distintos não é acidental,
mas expressa uma relação real. Para que objetos distintos sejam trocá­
veis, devem ser identidades reais; para que sua diferença seja negada, a
sua identidade se deve expressar em quantidades (idênticas) de uma
propriedade comum a todos eles. Essa propriedade deve ser quantitati­
va (transcender a diferença) e não obstante não ser indiferente (deve ex­
pressar propriedades reais dos objetos, propriedades de necessidade de
sua natureza com o objetos, com o produtos trocáveis).
Marx concebe a troca com o uma equação, com o a identidade de
mercadorias distintas num terceiro termo que é uma propriedade co­
mum a ambas. Por que deve a troca ser uma equação? Por que deve
uma propriedade definida (tem po de trabalho) ser a forma na qual ela
é realizada? Explicar por que a troca é concebida com o uma equação é
ultrapassar qualquer questão das proporções relativas nas quais as
22 VALOR

mercadorias são trocadas. A troca deve ser concebida com o uma


equação para que o discurso de O Capital produza seu conceito de va­
lor e tal conceito é necessário à teoria dá mais-valia. A troca deve ser
concebida em termos da equação dos tem pos de trabalho para que o
conceito de valor de Marx seja possível. Assim, o tempo de trabalho e
o valor, com o categorias, hegemonizam no discurso a análise da
proporcionalidade de troca. A troca é concebida com o uma equação
porque somente desse modo pode ser concebida com o a forma feno­
menal de uma identidade dos tempos de trabalho. A noção de uma
equação exige um terceiro termo e, por conseguinte, abre o espaço dis­
cursivo para o tempo de trabalho com o esse termo.
O que torna as razões nas quais as mercadorias são trocadas entre
si necessárias e não acidentais? O que torna essas proporções necessá­
rias as formas de equações de tempo de trabalho? Vemos aqui que em
O Capital o valor é um conceito que explica (dá uma forma definida a)
e vai além das relações de troca. A razão dessa proporcionalidade ne­
cessária na troca e essa equação de tempos de trabalho que lhe é subja­
cente é a “lei do valor” com o lei de distribuição do trabalho social.
Apesar da ambigüidade de suas várias formulações em O Capital, essa
“ lei” é um conceito que fornece os suportes nas relações sociais para a
concepção específica do valor na troca (equação) apresentada no volu­
me I, parte I. É uma “ lei” necessária a todos os sistemas de produção
social. N o caso dessa “lei” tomar a “ forma de valor” (valor na troca),
ela expressa a divisão e interdependência dos membros da sociedade
com o produtores independentes. Por que devem os membros dessa so­
ciedade ser unidos pela equação de seus trabalhos divididos? Essa divi­
são dos membros da sociedade é uma divisão de trabalhos que são in­
terdependentes, os produtos desses trabalhos devem ser trocados entre
,si. Por que devem ser igualados, e igualados com o tempos de trabalho?
Essas perguntas suscitam o problema da base da fo rm a da medida
(tempo de trabalho). Sua necessidade com o medida se justifica pelas
variantes da lei de distribuição do trabalho social. Discutiremos as
tentativas de Marx de explicar dessa forma a pertinência do tempo de
trabalho mais adiante neste mesmo capítulo (e as tentativas de Hilfer-
ding e Rubin em capítulos seguintes). A tese da necessidade das razões
nas quais as mercadorias são trocadas e de que há determinantes ge­
rais dessas razões nos leva além da troca em busca de uma base para
essa tese.
O conceito de Marx, da troca com o equação, torna possível um
conjunto definido de questões sobre lucros. Se o lucro for definido
com o a diferença entre o que se recebe pela venda de um produto e o
custo de sua produção, pode-se indagar então o que determina essa di­
ferença. Várias teorias econôm icas procuram uma única explicação ge­
VALOR, E XPLORAÇÃO E L U C R O 23

ral para essa diferença e tentam relacioná-la com as “ receitas” das di­
ferentes classes ou “ fatores” que entram na produção. Assim, o lucro
pode ser considerado com o retorno sobre o fator de produção “ capi­
tal” , com o a recompensa pela habilidade empresarial e com o uma
com pensação pelo risco corrido. Todas essas explicações são dom ina­
das por uma concepção do direito burguês, com a suposição de que o
“ lucro” é a “recompensa” pelos esforços feitos, oportunidades perdi­
das ou risco corrido: tais atos pelos possuidores de capital ou habili­
dade exigem recompensas de natureza proporcional ou equivalente.
Com o vimos, a parte I de O Capital considera a troca com o a equação
dos tempos de trabalho necessários à produção das mercadorias que
participam da troca. N ão há âmbito, no caso, para qualquer concep­
ção de serem as recompensas pelo “ risco” ou “ iniciativa empresarial”
acrescentadas ao custo de produção. Se o possuidor da mercadoria é
um não-trabalhador (com o é o capitalista, qua possuidor de capital),
então suas atividades não entram na determinação das razões de troca
das mercadorias. Se a troca é uma equação do tempo de trabalho (cus­
tos de produção expressos com o tempos de trabalho), de onde vem o
lucro? Se as razões de troca são determinadas pelos tempos de traba­
lho necessários à produção de uma mercadoria, então o “ lucro” deve
ser representado em tempo de trabalho (não pode surgir na troca, pois
as mais hábeis transações de troca não aumentam, de m odo algum, o
tempo de trabalho total). O C apital, concebendo a troca com o a equa­
ção dos tempos de trabalho, fixa assim a condição para a descoberta
da origem do lucro no tempo de trabalho. Marx argumenta que esse
lucro depende de uma troca anterior que tem a forma de equação (for­
ça de trabalho = salários), mas que tem efeitos diferentes de outras r
equações de troca (isto é, identidade das mercadorias trocadas). O lu­
cro resulta não da troca desigual de salários por força de trabalho, mas
da “exploração” dos trabalhadores que produzem as mercadorias - o
valor que é igual à sua força de trabalho (salário) é inferior ao que pro­
duzem com seu trabalho (o tempo de trabalho materializado no pro­
duto). É de grande importância, hessa concepção, o fato de que a troca
é uma equação, uma identidade de tempos de trabalho. É também im ­
portante a noção de que as contribuições de tem po de trabalho social­
mente necessárias dos produtores determinam as razões de troca das
mercadorias, que o produto pode ser representado com o (medido co­
m o) uma totalidade de tem pos de trabalho. Para que essa medida fun­
cione, o trabalho deve ser social (produção para troca) e tomar essa
forma social na troca.
A teoria do valor de Marx supõe, portanto, várias condições:
1. A tro c a é co n ceb id a co m o u m a equação.
2. A s razões pelas quais as m ercad o ria s são tro c a d a s (1 q u in ta l de ferro = 1 to n e la ­
d a de carv ã o = 1 alq u eire de trig o ) são necessárias e têm d eterm in an tes gerais.
24 VALOR

3. Esses d e te rm in a n te s são e n c o n tra d o s n a necessidade de d istrib u ir o tra b a lh o em


q u an tid a d e s a d e q u a d a s à s diferentes q u a n tid a d e s d o p r o d u to exigidas pela sociedade. '
4. E ssa d istrib u ição , q u a n d o há u m a divisão d o tra b a lh o e da p ro d u ç ã o b asead a na
p ro p rie d a d e p riv ad a, e q u a c io n a os tem p o s de tra b a lh o atrav és d as razões de tro c a dos
p ro d u to s.

Essas condições fazem do “valor” a medida das razões de troca entre


os produtos, a medida que torna essas trocas (razões) possíveis (comen­
suráveis). Isso define a fo rm a do padrão de valor (medida). Essas con­
dições também explicam a base dessa medida, porque ela, e somente
ela, é necessariamente a medida. Essa forma e essa base permitem a
Marx definir o problema dos determinantes do lucro de m odo a situar
sua origem nas contribuições de trabalho dos produtores para o pro­
duto. Vimos que a concepção da troca com o uma equação exige consi­
derações teóricas definidas. U m a vez problematizadas essas condi­
ções, todos os conceitos dependentes dessa concepção da troca estão
também am eaçados. Sem essa medida na qual as contribuições de tra­
balho dos agentes são expressas, não pode haver uma teoria efetiva da
mais-valia. N este capítulo, argumentaremos que considerar a troca
como uma equação é necessário quando se busca um tipo específico de
explicação para os determinantes dos lucros, o qual ligue o lucro às
contribuições de trabalho dos agentes. Se não se procura um determi­
nante único e geral dos lucros - rejeitando as explicações marxista e
ortodoxa de sua origem e aceitando que os lucros obtidos pelas empre­
sas capitalistas não têm uma “ origem” única (que não podem ser atri­
buídos a nenhuma categoria de agentes ou fatores no processo de pro­
dução, e são o produto de muitas determinações) - então não há uma
razão a priori para que a troca seja assim concebida. As razões nas
quais as mercadorias podem ser expressas entre si (por m eio da m oe­
da) não seriam, em conseqüência, razões necessárias. O abandono do
determinante único e geral dos lucros representa também o abandono
de um determinante único e geral dos preços, ou razões de troca.
N esta parte do livro, desafiaremos a noção de que o “ valor” é
esse determinante geral. Questionaremos as noções da pertinência do
tempo de trabalho para a determinação da quantidade do produto e
sua distribuição, que estão subjacentes à primeira noção. N ão é um
desafio ao funcionam ento técnico do conceito de “valor” com o medi­
da, é um desafio à sua função com o m edida. Esse desafio não se deve
fazer à base de alguma teoria geral alternativa dos lucros ou dos valo­
res de troca, e não envolve de m odo algum uma aceitação da teoria
marginalista, ou de qualquer outra teoria de preços. Dentro do círculo
de luta entre as teorias econôm icas marxista e “ burguesa” , o marxis­
mo tem sempre uma resposta, pois sua luta se faz num terreno comum
de problemas. Ele pode procurar justificar sua teoria geral do lucro
contra outras, e também sua teoria geral dos valores de troca e preços
VALOR, E XPL ORA ÇÃO E LU C R O 25

contra outras. Nossa crítica não parte de um ponto dentro do terreno,


mas questiona o próprio espaço da luta.

() valor nos clássicos e em O C apital


As histórias da Econom ia Política escritas por marxistas colocam
Marx, com freqüência, na posição de “ solucionador” de um problema
do valor já dado. Marx teria dado uma resposta! coerente aos proble­
mas que os clássicos haviam formulado, embora de maneira incom ple­
ta.
Num sentido, não há uma rigorosa teoria do valor antes de Marx.
Foi ele quem deu ao problema do valor e do tempo de trabalho com o
medida de sua magnitude um lugar central na Economia Política. Essa
posição central do valor em Marx modifica a significação das posições
que adotaram em relação ao valor autores com o Ricardo e Smith. O
valor era, até então, secundário ao problema da riqueza, a Economia
Política se interessava pelas diretrizes econôm icas e a administração
das econom ias nacionais. As questões de distribuição entre classes que
constituem a nação são o m odo pelo qual a natureza e fonte delucro
surgem com o problema. A teoria de Marx afasta esses problemas da
econom ia nacional - até então, questões de política comercial, im­
postos, regulamentação dos pobres e dos salários tinham um lugar
mais importante no discurso da Econom ia Política do que ocorre em
O Capital. Smith e Ricardo são discutidos nessa obra, mas apenas na
medida em que dão respostas a questões que se tornam pertinentes de
uma nova maneira em Marx, que têm um novo lugar discursivo. O Ca­
pital de Marx transforma a história da Economia Política, reordenan­
do os discursos e problemas dessa matéria no sentido de criar-lhe um-
campo próprio. O problema do valor nos clássicos é considerado aqui
não à la lettre, mas em sua relação com O Capital. O livro de Marx é
tanto contínuo da Econom ia Política (oferecendo soluções aos seus
problemas) com o constitutivo da tradição que pretende herdar (trans­
formando seus problemas e dando-lhes um novo lugar numa nova or­
dem discursiva).
N ão é por acàso que nos clássicos o problema do valor é comum
ao escambo e à troca de mercadorias. Em Smith e Ricardo (embora
nenhum deles tenha uma teoria do valor com o a de Marx - os três atri­
buem diferentes posições ao trabalho ou tempo de trabalho), a equiva­
lência na troca é considerada com o uma relação entre produtos do tra­
balho. O dinheiro, na medida em que é considerado, simplesmente ser­
ve de intermediário nas trocas dos produtos do trabalho e reflete as
correspondências desses produtos. O problema da necessidade do tra­
balho, ou tempo de trabalho, com o medida do “valor” é, portanto,
26 VALOR

formulado por todos os três (embora cada um deles tenha uma con­
cepção diferente da medida) em termos dos motivos pelos quais as
mercadorias são trocadas entre si em determinadas razões.
Uma maneira de formular o problema da necessidade da troca de
equivalentes (Smith, esforços equivalentes; Ricardo, tempo de traba­
lho) é supor uma divisão simples do trabalho entre produtores indivi­
duais independentes que trocam diretamente seus produtos entre si.
Smith e Ricardo se referem a essa economia imaginária, e nenhum de­
les desenvolve a argumentação que ela permite, em favor da necessida­
de de equivalência, e ainda assim nenhum deles pode contradizê-la. 1
D e acordo com essa argumentação, se certos produtores receberem
pelo seu tempo de trabalho menos do que o tempo de trabalho equiva­
lente em outras mercadorias (um elefante, produto de uma semana de
caçada, é trocado por um rato, que pode ser apanhado numa hora),
então a divisão do trabalho em que se baseia esse sistema de trocas
deve tornar-se problemática. As pessoas seriam incapazes de subsistir
com produtos que são dados em troca dos frutos de suas ocupações
presentes e poderiam limitar-se à produção de subsistência, ou passar
a outras linhas de produção (caçadores de elefantes se transformariam
em apanhadores de ratos). A diferenciação dos produtos por meio da
especialização social é assim supostamente ameaçada, se os equivalen­
tes (em algum sentido) não forem trocados. É a única resposta que se
poderia dar à pergunta: “ dada uma divisão social do trabalho, por que
as trocas que lhe unem as partes devem tomar a forma de equivalência
dos tempos de trabalho (esforços) dos produtores?” As trocas equiva­
lentes preservam a divisão do trabalho; essa resposta se faz necessária
pelo primado dos trabalhos independentes, e ao mesmo tempo inter­
dependentes, na questão. Essa resposta, que não é dada nunca por
Smith ou Ricardo, é básica para o problema do valor com o equivalên­
cia ou equação. Smith, Ricardo e Marx usam todos (com diferenças,
talvez) essa econom ia dos trabalhos independentes/interdependentes,
mediados pela troca, para examinar a questão do valor, examinar o
problema dos m otivos de razões necessárias e gerais pelas quais as
mercadorias (produtos do trabalho) são trocadas entre si. Marx desen­
volve e transforma essa resposta que não é dada nunca (explicitamen-

1 D evem os n o ta r q u e S m ith não faz n u n c a a p e rg u n ta fo rm u lad a aqui, em b o ra lhe dê


resp o sta. A d ivisão do tra b a lh o não é am eaça d a em seu discurso p o r ta l qu estão p o rq u e
su a situ ação com o conceito é um a resp o sta, é p rovidencial. A divisão do tra b a lh o ju stifi­
ca-se p o rq u e a u m e n ta de ta l m o d o a p ro d u tiv id a d e do tra b a lh o que n ão interessa aos
h o m en s a c a b a r com ela, e ela n ão p o d eria ser a b a n d o n a d a sem um em po b recim en to ge­
ral.
VALOR, EXPLORAÇÃO E LU C R O 27

te), dizendo que a equação dos tempos de trabalho pela troca, condi­
ção imposta por esses trabalhos independentes/interdependentes, é
uma forma de uma necessidade social universal: a alocação dos tem­
pos de trabalho para a criação de um produto social correspondente à
necessidade.
A explicação que dá Smith para a necessidade do valor encontra-
se em The Wealth o f Nations (A Riqueza das Nações). Smith explica a
troca com o motivada pelo interesse pessoal:
... o hom em tem necessidade quase co n stan te da aju d a de seus irm ão s e será inútil que a
esp ere pela sua b enevolência ap en as. T e rá certam en te m ais êxito se puder m o tiv ar o in­
teresse deles em seu favor e m o strar-lh es q u e é v a n ta jo so fazer o que lhes é pedido.
Q u em oferece a o u tro u m a p ech in ch a de q u a lq u e r tip o está p ro p o n d o isto: D ê-m e isto
q u e desejo, e te rá s aq u ilo q u e queres - tal é o significado de to d a o ferta sem elhante; é
dessa m an eira que co n seguim os uns d o s o u tro s a m aio r p a rte das coisas de que necessi­
tam o s. N ã o é d a ben ev o lência do açougueiro, do cervejeiro ou do p ad eiro que esp era­
m o s nosso ja n ta r , m as d e sua p re o c u p a ç ã o com o interesse p ró p rio . (Sm ith, W o rks, vol.
2 , pp. 2 1 - 2 .)

A troca é a satisfação mútua, motivada pelo interesse pessoal, de ne­


cessidades diversas, por meio dos objetos trocados. A divisão do tra­
balho surge dessa assistência mútua do interesse pessoal:
C o m o é p o r aco rd o , p o r tro c a e p o r co m p ra q u e conseguim os, uns dos o u tro s, a m aior
p a rte d o s b o n s serviços m ú tu o s de que tem os necessidade, é esse m esm o sistem a de tro ­
cas que d á ensejo, o rig inalm ente, à divisão do tra b a lh o . (Ibid., vol. 2 , p. 2 2 .)

Smith diz: “ O trabalho, portanto, é a verdadeira medida do valor de


troca de todas as coisas” (ibid., vol. 2, p. 44). Isso porque os homens,
agindo de acordo com o princípio do interesse pessoal, consideram seu
trabalho com o um custo e, portanto, valorizam o tempo e esforço exi­
gidos pela produção da mercadoria a ser trocada:

O preço real de tudo aquilo que toda coisa realm ente custa para quem a deseja adquirir é a
labuta e o esforço de adquiri-la. A q u ilo q u e tu d o vale realm en te p a ra quem o a d q u iriu , e
q u e deseja d isp o r dela ou tro c á -la p o r algum a o u tr a coisa, é a la b u ta e o esforço que
po d e p o u p a r, e que p o d e im p o r a o u tra pessoa. O qu e é co m p ra d o com dinheiro ou com
m ercad o rias é c o m p ra d o pelo tra b a lh o , ta n to q u a n to o q u e a d q u irim o s pelo tra b a lh o de
nosso p ró p rio c o rp o . A q u ele d in h eiro o u aquelas m ercad o ria s n o s p o u p am esse tra b a ­
lho. E n cerram o v alo r d e u m a certa q u a n tid a d e d e tra b a lh o que tro cam o s pelo que su­
p o sta m en te co n tém , n a época, o v alo r de um a q u a n tid a d e igual. O trabalho f o i o prim eiro
preço, o dinheiro de com pra original que fo i pago po r todas as coisas. N ã o foi p o r o u ro ou
p ra ta , m as pelo tra b a lh o , qu e to d a a riqueza do m u n d o foi a d q u irid a inicialm ente.... (/-
bid., vol. 2, p. 44 - grifos nossos.)

Robinson pagou a moeda do esforço em sua ilha. O trabalho, com o


esforço, tem um valor relativo às nossas necessidades. A decisão de
produzir mercadorias e a base sobre as quais são trocadas são equacio­
nadas por um subjetivismo rigoroso. O preço do esforço para nos sa­
tisfazermos e o preço da alienação de mercadorias para satisfazer ne­
28 VALO R

cessidades através de outras mercadorias são igualados. O valor de­


pende da estimativa de tempo e do esforço que cada pessoa empreen­
deu, medindo-se contra o seu interesse pessoal (contra seu desejo de
valor de uso) o custo da aquisição. Os trabalhos são equacionados na
troca porque, de outro m odo, não valeria a pena para uma das parteé
trocar. Os trabalhos são equacionados por suposição - o trabalho
com o medida de valor inclui a estimativa do esforço, dificuldade e ha­
bilidade por ele exigidos. O trabalho é uma medida subjetiva e conven­
cional, uma estimativa do valor com que concordam ambas as partes.
A “ lei do valor” smithiana (uma lei estabelecida pelo cálculo) preserva
a divisão do trabalho pelo interesse pessoal m útuo dos homens; pela
intercessão habitual de seus desejos e a gradual compreensão de que a
divisão do trabalho poupa esforço. Tal esforço só pode ser poupado se
trabalhos “equivalentes” forem igualmente recompensados. Sem isso,
o interesse pessoal da parte em desvantagem a levaria a retirar-se de
seus especialismos. Smith comenta:

N o estad o p rim itiv o e ru d e da sociedade, que an teced e ta n to a acu m u lação de esto q u e


com o a apropriação da terra, a proporção entre as quantidades de trabalho necessárias
p a ra a aq u isição d e d iferentes o b jeto s parece ser a única circu n stân cia q u e oferece q u al­
q u e r regra p a ra a tro c a desses o b jeto s en tre si. Se en tre u m a n ação de caçadores, p o r
exem plo, m a ta r um c asto r cu sta duas vezes o tra b a lh o de m a ta r um gam o, um casto r de­
veria n a tu ra lm e n te ser tro c a d o p o r, ou valer, dois gam os. É n a tu ra l q u e o p ro d u to de
do is d ias ou d u a s h o ra s de tra b a lh o valha d u as vezes m ais do que o p ro d u to de um dia
o u u m a h o ra de tra b a lh o . (I b i d vol. 2, p p. 70-1.)

Ricardo elimina as ambigüidades da teoria do valor-trabalho de


Smith, reduzindo a proporcionalidade de troca estritamente ao tempo
de trabalho. Ricardo rejeita decisivamente a posição de Smith, segundo
a qual o valor (para o comprador) inclui também aquilo que é recebi­
do em troca do tempo de trabalho, isto é, as mercadorias obtidas e a
estimativa que a pessoa faz delas. Essa “ confusão” na teoria do valor
de Smith, entre valor tal com o determinado pelo tempo de trabalho e
pela estimativa (utilidade) dos participantes na troca, é discursivamen­
te possível porque ambos estão unidos por um subjetivismo rigoroso.
Ambas as fontes de valor são concebidas em termos subjetivos. Traba­
lho e “ esforço” são identificados. Os diferentes trabalhos são iguala­
dos através da suposição daquilo que é razoavelmente equivalente. A
troca, com o todo intercâmbio humano, envolve a faculdade de julga­
mento e questões de interesse. Daí, o desejo que se tem de uma merca­
doria afetar a estimativa de seu valor e a disposição de empregar os
rendimentos provenientes do esforço para obtê-la. A “confusão" que
la/ Smith com o valor não é confusão, é um equívoco inevitável nos
cálculos dos sujeitos humanos em que Smith baseia sua teoria da tro­
ca. A econom ia de Smith se baseia nas Ciências Morais.
VA LO R, EXPLORAÇÃO E LU C R O 29

Ricardo ignora esse subjetivismo: não o critica ou rejeita explici­


tamente, nem o poderia. Em lugar disso, baseia a troca de equivalentes
em magnitudes iguais da mesma substância objetiva, o tempo de tra­
balho. A equivalência, para Ricardo, tem uma existência objetiva, não
é produto da suposição. Ricardo nega que a utilidade tenha qualquer
papel na determinação da magnitude do valor: “A utilidade, portanto,
não é a medida do valor trocável, embora lhe seja absolutamente es­
sencial” (Ricardo, Principies o f Political Econom y and Taxation (org.
por Sraffa), p. 1). Ricardo critica a restrição que faz Smith à lei rigoro­
sa da proporcionalidade do trabalho “ aquela antiga... fase da socieda­
de que antecede a acumulação de estoque e apropriação da terra” . O
lucro sobre o capital e a renda da terra não afetam ó valor relativo das
mercadorias independente do trabalho necessário à sua produção. A
lei do valor opera “em todas as fases da sociedade” (Ricardo a James
M ill, citado por Sraffa, Principies, p. xxxvii). O capital entra no valor
do produto em termos do tempo de trabalho necessário à sua produ­
ção e da taxa na qual é consum ido (ibid., cap. 1, seções iii e iv).
A necessidade de uma troca proporcional, alcançada pela corres­
pondência em termos de tempo de trabalho, não é justificada por Ri­
cardo com referência ao “ esforço” , à estimativa ou à ameaça para a
' divisão do trabalho imposta pela sua dependência do interesse pessoal
mútuo. Ricardo não justifica a lei do valor com o tal. Ele simplesmente
realiza certas exclusões analíticas (a utilidade não pode ser a base do
valor) e elimina as “incoerências” de Smith. Para Ricardo, o valor lo­
gicamente envolve a proporcionalidade dos tempos de trabalho, e o
trabalho é, logicamente, a única e objetiva “ substância” do valor. R i­
cardo, ao contrário de Smith, recusa-se a fundamentar a lei do valor
numa necessidade antropológica/m oral. O tem po de trabalho oferece
uma solução logicamente coerente para o problema da equivalência na
troca. A utilidade não o faz, nem certas mercadorias aparentemente
privilegiadas (trigo, ouro, etc.). Ricardo argumenta (seguindo Smith)
que, embora a natureza possa produzir valores de uso, somente o tra­
balho pode produzir o valor de troca (ibid., pp. 285-6). Com a exceção
da terra, todos os elementos que entram na produção são, em si mes­
mos, obtidos por, ou são produtos do trabalho (matérias-primas, fer­
ramentas, máquinas, etc.) e são trocados de acordo com seus tempos
de trabalho de produção. O trabalho é, portanto, o elemento básico na
produção social. Todas as mercadorias têm a propriedade comum de
serem produtos do trabalho. O trabalho é um equivalente possível por
ser universal, e negativamente privilegiado com o equivalente por não
ter concorrente. É essa a justificativa da lei do valor que se pode re­
constituir dos Principies. Mas ela não explica, considerando-se tudo o
que foi dito com o exato, por que o trabalho deve predominar com o a
substância subjacente ao valor de troca, por que as mercadorias devem
30 VALOR

ser trocadas segundo os tem pos de trabalho nelas incorporados, e o


que aconteceria se não o fossem! A resposta antropológica de Smith é
ignorada, mas nenhum substituto é oferecido. A explicação de Smith
tem a vantagem de proporcionar um mecanismo (por mais dúbio ou
improvável que seja) que mantém a lei do valor: os seres humanos, atra­
vés do cálculo e da interação, respeitam uma certa “regra” (iglialam es­
forços - da melhor maneira que se possa supor) para manter uma divi­
são do trabalho e, através dela, seu próprio interesse pessoal.
Marx reconhece o rigor analítico que é, ao mesmo tempo, a debi­
lidade teórica da posição de Ricardo, quando argumenta que este se
concentra exaustivamente na magnitude do valor e não indaga por que
a distribuição do produto toma essa form a. Tal crítica, expressa num
trecho fam oso de O Capital, vol. 1, é melhor desenvolvida nas Teorias
da M ais-Valia:
O m éto d o de R ica rd o é o seguinte: Ele com eça com a d eterm in ação d a m agnitude do va­
lo r d a m ercad o ria pelo tem p o de tra b a lh o e en tã o exam ina se as relações e categorias
eco n ô m icas contradizem essa d eterm in ação o u em que p ro p o rçõ e s a m odificam ... R ic a r­
do p a rte d a d eterm in ação dos valores relativos (ou valores de tro ca) das m ercadorias
p ela quantidade do trabalho... O c a rá te r desse “ tra b a lh o ” n ão é ex am in ad o m inuciosa­
m ente... M as R icardo não exam ina a form a - a característica peculiar do tra b a lh o que
cria valores d e tro c a ou se m anifesta nos v alores de tro c a - a natureza desse trab alh o .
P o r isso, não percebe a conexão en tre esse tra b a lh o e o dinheiro, ou que ele deve assum ir
a fo rm a de dinheiro. (Theoríes o f Surplus Valué, vol. 2, p. 164 - m o d ificad o , grifo no o ri­
ginal.)

Ricardo iguala o valor de troca e o valor com o categorias; para ele o


trabalho com o tal é a substância do valor. N ão explica por que a troca
de mercadorias nas razões proporcionais aos tempos de trabalho ne­
cessários à sua produção deve ser a forma de regulação da distribuição
do produto social.
Marx procurará explicar a fo rm a do valor (valor-em-troca) com o
conseqüência de certas relações sociais (as da produção de mercado­
rias), mas no contexto de uma lei geral do valor que se aplica a todas
as formas de produção. N o vol. 1 de O Capital, Marx começa com a
análise da mercadoria com o objeto de troca e com o problema de
com o é possível haver trocas equivalentes desses objetos. Ele apresenta
esse problema na forma de um terceiro termo (distinto desses objetos e
a eles aplicável) no qual ambos os objetos podem ser expressos como
iguais (idênticos no terceiro termo). Esse termo é o tempo de trabalho:
isso porque somente o trabalho humano no abstrato, destituído de
qualidades, independente dos valores de uso que produz, pode servir
com o um padrão universal e quantificável de valor. O valor de troca é
a forma fenomenal (x objeto A — y objeto B) de uma relação de identi­
dade (de tempos de trabalho). A té aqui, a argumentação de Marx é ne­
gativa, concernente aos méritos relativos do tempo de trabalho como
VALOR, EXPLORA ÇÃO E L U C R O 31

medida, comparado a outras medidas. Ele segue a linha de argumenta­


ção de Ricardo (com a diferença de que definiu a troca explicitamente
com o uma identidade de equação de tem pos de trabálho). Mas por
que os produtos do trabalho tomam essa forma (equivalencia na tro­
ca) e por que o fazem na forma de tempo de trabalho? Marx responde
à primeira pergunta tornando a fo rm a do valor condicional a certas re­
lações sociais, e responde à segunda através da categoria geral de “ va­
lor”, explicando que a divisão proporcional e a distribuição do traba­
lho é uma função econôm ica primária e essencial, qualquer que seja a
sua forma social.
Marx explica a necessidade da “ lei do valor” na seção 4 do capí­
tulo 1 de O Capital, sobre “ O Fetichismo das Mercadorias” . Ele se
opõe a qualquer explicação racionalista da troca em termos dos cálcu­
los da vantagem dos sujeitos humanos:
Os h o m en s n ã o co lo cam , p o rta n to , os p ro d u to s de seu tra b a lh o em relação uns com os
o u tro s co m o valores p o rq u e vêem esses objetos sim plesm ente com o revestim entos m a te ­
riais do tra b a lh o h u m an o h om ogêneo. O co rre o c o n trá rio : igu alan d o seus diferentes
p ro d u to s en tre si n a tro c a co m o valores, igualam seus diferentes tipos de tra b a lh o com o
tra b a lh o h u m an o . ( O Capital, vol. 1, edição P enguin, p. 166)

O valor é um “ hieróglifo social” : sua base no trabalho abstrato é per­


cebida por Smith e esse trabalho é erroneamente universalizado por
ele num atributo humano essencial. Para Smith, a forma do valor está
presente no rude com eço da sociedade; ele cria um cenário imaginário
no qual a propriedade privada e o trabalho dividido, característico da
produção de mercadorias, são pressupostos com o simples extensões
ou conseqüências de m otivos e atributos humanos básicos. Marx argu­
menta que, pelo contrário: “O caráter de valor dos produtos do traba­
lho humano só se consolida quando eles agem como magnitudes do
valor” (ibid., p. 167), isto é, quando funcionam com o os meios de ligar
os trabalhos divididos e de equipará-los.
Mas por que necessitam os trabalhos uma ligação na forma de
equação? Marx critica Smith por ter construído, em sua primitiva so­
ciedade de caçadores de gamos e castores, um “estado da natureza”
econôm ico, para tornar essenciais formas que são específicas à produ­
ção de mercadorias. O que Marx não critica é o que está em jogo nesse
cenário,, a troca de equivalentes (embora as concepções de Marx e
Smith dessa equivalência sejam diferentes). Marx não critica o proble­
ma da inter-relação dos trabalhos divididos envolvida nessa equivalên­
cia, mas simplesmente o m odo não-histórico (ou antes, históríco-
imaginário) de sua apresentação e a forma da própria equivalência (ela
se torna uma equação objetiva, e não uma equidade subjetiva). Em O
Capital a forma do valor (valor em troca) é um tipo particular de solu­
ção para um problema econôm ico universal, a alocação, do trabalho
32 VALOR

social em proporções necessárias para uma certa com posição do pro­


duto. A equação de tem pos de trabalho é necessária para que essa alo­
cação seja possível numa divisão de trabalho não-planejada entre pro­
dutores independentes (sem equivalência, acredita-se que essa aloca­
ção não dará “ certo”).
Para explicar a necessidade econôm ica da distribuição do tempo
de trabalho, Marx volta provocadoramente ao cenário imaginário:
C o m o o s e co n o m ista s políticos g o sta m de h istó rias de R o b in so n C ru so é, exam inem os
p rim e iro R o b in so n em su a ilha. E m b o ra seja p o u co exigente p o r n atu reza, a in d a assim
tem n ecessidades a satisfazer e deve p o rta n to d esem p en h ar certo s tra b a lh o s úteis de vá­
rios tip o s... A p esar da diversidade de suas funções p ro d u tiv a s, ele sabe q u e são apenas
d iferentes fo rm as de um m esm o R o b in so n , e p o rta n to ap en as diferentes m o d o s do tr a ­
b a lh o h u m an o . A p ró p ria necessidade o o b rig a a dividir seu tem p o com precisão entre
su as diferen tes funções. Se u m a d e te rm in a d a fu n ção o cu p a em su a ativ id ad e to tal m aior
esp aço d o q u e o u tra , depende da m ag n itu d e das dificuldades a serem su p e rad a s na c o n ­
secução d o s o b jeto s úteis visados... Seu livro de in v en tário contém um catálo g o dos o b ­
je to s úteis q u e possui, das várias o p eraçõ es necessárias à su a p ro d u ção , e finalm ente o
tem p o de tra b a lh o qu e as q u an tid a d e s específicas desses p ro d u to s em m édia lhe c u sta­
ram . ( O C apital, vol. 1, ed. P enguin, p. 170)

Esse exemplo serve parà apresentar a pertinência do valor como uma


categoria geral: “Todas as relações entre Robinson e esses objetos con­
têm todos os determinantes essenciais do valor” (ibid. ) . 2 O valor é a
mensagem dos livros de inventário que todas as sociedades mantêm,
embora tais livros sejam escritos em diferentes línguas. Todas as socie­
dades dividem o trabalho entre as diferentes tarefas a serem realizadas
e objetos a serem produzidos. Seja R obinson, uma família camponesa
ou uma sociedade de produtores associados, eles devem dividir corre­
tamente o trabalho necessário à reprodução da sociedade e seus
membros.
Com o Marx lembrava ao estupefato Kugelmann:
T o d o esse p a la v ró rio sobre a necessidade de p ro v a r o conceito de v alo r vem d a total ig­
n o rân cia ta n to d o a s su n to tra ta d o com o do m éto d o científico. T o d à crian ça sabe que
u m a n ação que deixasse de tra b a lh a r, n ã o digo p o r um a n o , m as m esm o p o r algum as se­
m an as, p ereceria. T o d a crian ça sabe tam b ém q u e as m assas de p ro d u to s q u e co rre sp o n ­
dem às d iferen tes necessidades exigem m assas diferentes e q u a n tita tiv a m e n te d eterm in a­
d as do tra b a lh o to ta l da sociedade. 6 evidente que essa necessidade d a distribuição do
tra b a lh o social em p ro p o rç õ e s d efinidas n ão p o d e ser elim in ad a p o r um a determ inada
fo rm a de p ro d u ç ã o social, m as ap en as m o d ifica r o m odo de sua ap arên cia. N ã o se pode
a c a b a r com n en h u m a lei n atu ral. (M a rx a K u g elm an n - 11 de ju lh o de 1868.)

2 M arx exagera aqui. H á um a diferença real e n tre a m an eira pela qual esse p roblem a
o co rre em fo rm as de p ro d u ç ã o m ercan til e n ão -m erc an til. A alo caçã o de R o b in so n é
u m a d istrib u ição d ire ta de tem po. N u m sistem a m ercan til, os produtos é q u e são distri­
b u íd o s e a alo caçã o do tem p o de tra b a lh o social é reg u lad a atrav és das razõ es nas quais
os p ro d u to s são tro c a d o s uns pelos o u tro s.
VAI OR, HX PLORAÇÁO H LU C R O 33

O valor de troca é o livro de inventário da produção de mercadorias.


Ao trocarem os produtos de seu trabalho co.mo equivalentes em tempo
de trabalho, os produtores independentes, às cegas e inconscientemen­
te, devem reproduzir as proporções do trabalho social objetivamente
necessárias a certa com posição e escala de produção. Marx não tem, é
claro; nada com o subjetivismo de Smith, com sua equação de tempos
de trabalho através dos princípios de cálculo da economia do esforço e
interesse pessoal. Marx explica, contudo, a necessidade de troca equi­
valente em termos de sua reprodução da divisão de trabalho. A troca
equivalente é considerada com o “ determinada formà” de uma “ lei na­
tural” universal. Violar a lei do valor é tornar problemática a divisão do
trabalho da sociedade e com isso a sua própria existência.
Além disso, para Marx a troca equivalente (identidade de tempos
de trabalho) é a forma de manifestação da lei geral do valor apenas
num tipo de econom ia, a produção simples de mercadorias. Os caça­
dores de gamo e castor de Smith recebem com Marx uma forma histo­
ricamente específica: uma sociedade caracterizada por uma divisão do
trabalho entre pequenos produtores independentes que são os donos
dos produtos de seu próprio trabalho. Esses produtos são trocados de
acordo com os tempos de trabalho necessários à sua produção. Nessa
sociedade, a troca é realizada, insiste Marx, através do dinheiro, em
vez de por simples barganha. O dinheiro é um meio de pagamento, mas
apenas porque é uma mercadoria com um valor que serve como medi­
da de valor. A forma de valor geral é a “expressão social” (O Capital,
vol. 1, edição Penguin, p. 160), ou “ résumé” (Aveling e M oore) do
mundo das mercadorias e do dinheiro, porque tom a o lugar da forma
geral, funciona com o um “ résumé” de todas as outras mercadorias,
com o a medida do valor. O dinheiro só pode ter essa função porque é
cm si mesmo uma mercadoria, o produto do trabalho, e tem um valor:
“ A medida dos valores mede mercadorias consideradas com o valo­
res... Mas ouro só pode servir de medida de valor porque é em si mes­
mo um produto do trabalho e, portanto, potencialm ente variável no
valor” (O Capital, vol. 1, edição Penguin, p. 192). O dinheiro é o meio
da troca de equivalentes. A s relações monetárias são relações de va­
lor. A estrutura da produção social é preservada aqui pela troca de
quantidades iguais de tem po de trabalho.
O capitalismo representa uma forma diferente de manifestação da
lei universal. A troca não é realizada em termos de quantidades iguais
de tempo de trabalho, mas através (excetuadas as flutuações) dos pre­
ços de produção. Os lucros, e não os valores, são igualados: as merca­
dorias não podem ser trocadas segundo o trabalho que encerram, para
que a mais-valia seja redistribuída entre os capitais, para assegurar
uma mesma taxa média de lucro. A s econom ias capitalistas distribuem
(“ redistribuem” ) o trabalho social de um m odo forçado e aproxima-
34 VALOR

tivo através da com petição e das crises. A “ lei do valor” já não toma a
forma de troca de equivalentes. O m etódico Robinson de Defoe é
substituído pelo Robinson demasiado humano de Tournier, que cons­
truiu seu barco e esqueceu da necessidade de lançá-lo à água. Marx
analisa, no caso do capitalismo, as relações sociais que, ao contrário
do conhecim ento de “toda criança” , não distribuem o trabalho com a
precisão e parcimônia de Crusoé, o Puritano, mas com a prodigalida­
de e desordem de Pantagruel - e, ainda assim, sobrevive.
N a verdade, por que deveria a questão da distribuição do tempo
de trabalho dominar a análise da troca? Por que deveria a questão da
distribuição do trabalho assumir a forma de proporcionalidade? É
simplesmente uma suposição de que a equação de tempos de trabalho
dos produtores seja necessária ou suficiente para sua reprodução (na
verdade, certos produtores poderiam não ser capazes de subsistir, mes­
mo dados os equivalentes de tempo de trabalho de seus produtos). A
noção de “ má distribuição” do trabalho social e suas conseqüências
supõe que o tem po de trabalho tenha uma pertinência central na deter­
minação do produto. Isso pode ser contestado e, mesmo se não o fos­
se, poder-se-ia argumentar que desvios substanciais da identidade dos
tempos de trabalho na troca não eliminariam a divisão do trabalho.

Os tempos de trabalho só são igualados na troca em certas relações


sociais de produção específicas. N a produção simples de mercadorias,
as contribuições (necessárias) de tempo de trabalho dos agentes deter­
minam a distribuição do produto, determinam as razões nas quais as
mercadorias são trocadas umas pelas outras. N o capitalismo, os agen­
tes produtores não são possuidores do produto e este é vendido pelas
empresas em trocas que não igualam os tem pos de trabalho. O valor
de troca e o valor não são diretamente correspondentes no capitalis­
mo. M as a análise da mais-valia exige que as concepções pertinentes a
um conjunto de relações sociais sejam estendidas ao outro. A produ­
ção do conceito de salários de mais-valia e o produto do trabalho de­
vem ser expressos e comparados como valores, devem ser mensuráveis
num termo comum a ambos (tempo de trabalho) e deve-se mostrar
que representam quantidades discrepantes desse termo. Também se
deve supor que as contribuições de tempo de trabalho dos agentes se­
jam uma medida pertinente da distribuição do produto. O produto
pode então ser atribuído ao trabalho, primeiro com o seu produtor, e
segundo, na relação do valor dos salários (trabalho necessário) e o va­
lor do produto (trabalho necessário + trabalho excedente). Se essa su­
posição não fosse pertinente, não haveria razão para relacionar os dois
aspectos. Esse correlacionamento dos salários com o produto do tra­
balho também supõe que as trocas de equivalentes de tempo de traba-
VALOR, EXPLORAÇÃO E LUCRO 35

lho são pertinentes (tornam possível todo o problema do "trabalho ex­


cedente” ): salário = “ trabalho necessário” (troca de equivalentes), o
restante do dia de trabalho é trabalho “excedente” que surge da não-
propriedade (venda da força de trabalho) e que é dado sem receber um
equivalente. Assim, são necessárias à formulação do conceito de mais-
valia: 1) trocas como equações de tempo de trabalho; 2) a pertinência
das contribuições de trabalho dos agentes; 3) a suposição, nessa base,
de que o produto do trabalho é a medida de sua recompensa.
Por que, na verdade, deve o problema dos “ rendimentos” ser con­
cebido em termos das contribuições de trabalho dos agentes? Dada a
suposição da proporcionalidade e a lei do valor, podemos ver por que
ela deve existir no sistema de produção simples de mercadorias. Mas
tais suposições não são necessárias, e suas condições são modificadas
no capitalismo. A Crítica do Programa de Gota mostra uma maneira
bem diferente de conceber a distribuição do produto e a questão dos
“ rendimentos” dos agentes. N a Crítica, Marx argumenta que a pro­
porcionalidade das recompensas ao tempo de trabalho gasto e a recom­
pensa igual para trabalhos equivalentes é um princípio burguês. Sua
conservação na primeira fase do socialismo é uma continuação neces­
sária da ideologia do direito burguês. Isso se deve ao fato de que o so­
cialismo exige um período de transição do capitalismo; a produtivida­
de social ainda é limitada. É um sistema sem o trabalho assalariado ca­
pitalista, mas que não obstante distribui o produto através de salários
monetários, sendo obrigado a racionar os meios de consumo produzi­
dos. N o caso, o princípio burguês de equivalência tem de ser conserva­
do; formalmente trabalhos iguais (tempos de trabalho idênticos) são
igualmente recompensados. Esse princípio, porém, só vigora para a dis­
tribuição dos meios de consumo entre os trabalhadores; a divisão do pro­
duto em meios de produção e meios de consum o, e a alocação dos
meios de consumo aos que são incapazes de trabalhar são determina­
das em base diferente. Além disso, assegura apenas uma igualdade for­
mal entre os trabalhadores (os tempos de trabalho, e não os trabalhos,
são recompensados de forma igual). N essa forma de sociedade o pro­
duto é apenas parcialmente distribuído segudo as contribuições de tra­
balho dos agentes, em outras formas não é absolutamente distribuído
nessa base. O ideal de Marx é uma sociedade que inscreve em sua ban­
deira: “ de cada qual segiindo sua capacidade, e a cada qual segundo
suas necessidades” (princípio admirável, a necessária pedra funda­
mente da ideologia socialista, mas que se acom oda mal à “lei natural”
formulada em O Capital).
N a Crítica, Marx argumenta que em todos os sistemas de produção
social é a fo rm a de distribuição dos meios de produção entre os agentes
que determina a distribuição do produto social entre eles e não as contri­
buições de trabalho desses agentes para o produto. N o conceito de Marx
36 VALOR

de produção simples de mercadorias o modo de distribuição decorre


da posse dos meios de produção por produtores diretos independentes
que são unidos numa divisão social do trabalho. A igualdade de direi­
tos corresponde à posse privada autônoma dos elementos dessa divi­
são do trabalho. O capitalismo transforma o direito igual numa ideolo­
gia - as relações de classe destróem a troca/associação independen­
te/interdependente entre membros da sociedade. Com o diz Marx na
Crítica, a distribuição do produto no capitalismo decorre da distribui­
ção dos meios de produção entre possuidores e não-possuidores.
N ão poderíamos, então, prescindir do problema de distribuição
segundo as contribuições de trabalho dos agentes na análise das eco­
nomias capitalistas? Seguindo a posição tomada na Crítica, não po­
deríamos adotar a opinião de que os trabalhadores obtêm os salários
em dinheiro que podem conseguir pela sua força de trabalho e os capi­
talistas obtêm o dinheiro (e nível de lucro) proporcionado pela venda
do produto? Essa distribuição resulta da distribuição dos meios de
produção, sem necessidade de qualquer referência às contribuições de
trabalho dos agentes para o produto. Som ente o sistema de produção
simples de mercadorias fundam enta a distribuição do produto nas contri­
buições de trabalho dos agentes e na fo rm a de trocas entre eles.
É o problema da origem do lucro nos papéis desempenhados pe­
las diferentes categorias de agentes que torna a consideração das con­
tribuições de trabalho e o uso continuado dos termos de valor necessá­
rios no discurso de O Capital. O Capital não pode aceitar essa referên­
cia a outro texto, à Crítica. Para o conceito de mais-valia é necessário
que a produção social seja concebida em termos derivados das trocas
de tempos de trabalho iguais, e a elas aplicáveis (por mais que essa
“ suposição” possa ser modificada mais tarde no discurso, não pode
ser abandonada no ponto de produção desse conceito), e que as contri­
buições das diferentes classes de agentes para o produto sejam consi­
deradas (o produto com o totalidade do valor deve ser atribuído aos
produtores diretos, sendo o capitalista um não-trabalhadcr).
A forma fenomenal do contrato salarial é a de uma troca igual.
N os termos de Marx, o valor da força de trabalho (o equivalente em
tempo de trabalho das mercadorias necessárias à sua reprodução) e o
valor dos salários recebidos por ela são iguais. Mas é a capacidade que
o operário tem de trabalhar que é comprada, não o trabalho suficiente
para produzir o equivalente do salário. O trabalhador não recebe no
valor do salário a totalidade dos valores produzidos por ele. o valor re­
presentado pelo trabalho que realmente exerce. O capitalista obtém,
pela forma salário, o direito de utilizar uma força criadora de valor,
um direito que o operário não pode exercer devido à sua não-posse dos
meios de produção. O capitalista possui e vende a totalidade do valor
VALOR, E XPL ORA ÇÃO E L U CRO 37

assim produzido e recebe o equivalente em dinheiro por ele (um equi­


valente m odificado para o capitalista individual pelos efeitos da mé­
dia). Essa totalidade vendida inclui uma parte para a qual não foi
dado nenhum equivalente na compra da força de trabalho. A mais-
valia não surge, com o tal, em nenhuma das transações de mercadorias
que precedem ou seguem a sua produção. Em conseqiiência, o produ­
to do trabalho “ não-pago” dos operários serve para explorá-los no fu­
turo na forma de capital. Essa crítica da essência interior da produção
capitalista só é possível se a troca de equivalentes for considerada
com o a forma social predominante e tomar a forma de trocas de quan­
tidades iguais de tempo de trabalho.
Se adotarmos para o capitalismo a posição tomada na Crítica
sobre as relações entre a posse dos meios de produção e a distribuição
do produto, i. é, se a contribuição de trabalho dos agentes não for a
base da distribuição, então essa contribuição e a noção de trabalho
“ não-pago” não são pertinentes. Os operários recebem salários com o
conseqüência de sua separação (não-posse) dos meios de produção. O
papel que o trabalhador desempenha na produção é irrelevante para a
form a de distribuição. A noção de trabalho “ não-pago” só pode surgir
supondo-se a pertinência das diferentes condições de distribuição -
aplicando-se o princípio da proporcionalidade das recompensas às
contribuições reais em trabalho. Aquilo que os trabalhadores produ­
zem com o seu trabalho e o status desse trabalho (se constitutivo ou
não de valor) adquirem então pertinência para a distribuição. A con­
tribuição dos agentes para o produto só se torna pertinente se supuser­
mos que as relações de distribuição em vigor podem ser consideradas
com o relações nas quais o produto circula com o mercadorias na for­
ma de quantidades equivalentes de tempo de trabalho. Pode-se m os­
trar então que a posse capitalista dos meios de produção contradiz es­
sas relações de circulação: isso porque a forma de troca que envolve a
força de trabalho e o capital variável torna possível a criação de traba­
lho “ não-pago” , tempo de trabalho dado sem que haja pagamento de
qualquer equivalente. O conceito de trabalho “ não-pago" ou "exce­
dente" significa um trabalho além do tempo de trabalho necessário
para produzir o valor equivalente ao salário. Tal conceito envolve a
suposição de que a equivalência é a forma geral de troca com essa ex­
ceção (crucial): se não é a forma geral, por que essa divergência (incal­
culável de qualquer m odo, já que o valor não seria um padrão social)
deve ser mais significativa do que qualquer outra?
O conceito de “valor" (tempo de trabalho) e a suposição de que
as relações de valor governam a troca de mercadorias permitem a
Marx explicar a origem e a natureza do lucro. Permitem-lhe atribuí-lo
a uma categoria definida de agentes que o produ/em e não o possuem.
Permitem-lhe caracterizar as formas concretas de distribuição (lucros.
38 VALOR

rendas, salários) em divisões de uma totalidade do valor produzido pe­


los trabalhadores, produto do tempo de trabalho pago e não-pago. Se­
gundo essa suposição, a mais-valia é igual ao lucro (com os preços de
produção, a totalidade da mais-valia e a totalidade dos lucros capita­
listas se equivalem). A mais-valia, repetimos, surge na diferença entre
o valor da força de trabalho e o valor do produto criado pelo trabalho
realmente realizado. Essa análise das duas quantidades não pode fun­
cionar sem a suposiçãp de termos de valor em tempo de trabalho e que
estes constituam a base do cálculo. Para que se mostre que as duas so­
mas não são iguais (valor de salários - valor criado pelo trabalho) é
necessário que termos comparáveis existam em ambos os lados (salá­
rios e o produto podem ser expressos com o quantidades da mesma
medida). Quando a suposição de que o tempo de trabalho é a “substância
do valor” é posta de lado, então os dois lados da equação se tornam inco­
mensuráveis. Não é uma questão técnica de cálculo em termos de preço
versus term os de valor, mas uma questão das condições teóricas de exis­
tência do cálculo. A ligação dos dois lados da equação depende do concei­
to da fo rça criadora de valor que tem o trabalho. Com esse conceito, a
análise da exploração poderia ser feita quando preços e valores se des­
viarem de forma ordenada (as relações de valor governam as relações
de preços). Se forem eliminadas as suposições da força criadora de va­
lor do trabalho e a pertinência da troca de equivalentes, o resultado se­
rá que a análise deixa de ser possível. N ão há razão para se considerar
o trabalho com o origem do lucro, o lucro com o produto do trabalho
“não-pago” .
A análise do valor pode examinar a exploração na produção capi­
talista por causa do conceito do poder criador de valor do trabalho e
da suposição de que as mercadorias, apesar da discrepância, “ repre­
sentam” valores. Isso significa que, para o objetivo da análise da ex­
ploração, as diferenças entre produção e circulação são apagadas, ou
antes, que as categorias da troca são interiorizadas dentro da produ­
ção. O valor do produto existe independentemente das flutuações do
mercado - a exploração pode ser calculada no nível da produção
quando os valores do trabalho necessário e do capital constante são
conhecidos. A incapacidade de vender o produto, ou de vendê-lo a um
preço adequado, é a incapacidade de realizar a mais-valia na forma de
lucro (a realização é uma complexidade introduzida numa fase poste­
rior da exposição). A realização é uma questão diferente da explora­
ção e não a modifica na análise de Marx, como tampouco a muda a re-
distribuição da mais-valia que ocorre através da igualação a uma taxa
de lucro média.
Pode-se argumentar, com o forma de defesa da categoria, que o
“valor” é simplesmente um meio de calcular a exploração. Pode-se
considerá-lo com o uma abstração necessária para tornar visível um fe­
VALOR, EXPLORA ÇÃO E LUCRO 39

nômeno que, de outro modo, continuaria invisível. É insustentável


uma articulação dessa posição com os outros conceitos de O Capital.
lila contradiz radicalmente a teoria da medida e o conceito de valor
como medida nele expostos. Tal teoria concebe o valor com o uma ca­
tegoria teórica (uma forma que existe abstratamente), mas não com o
uma abstração da realidade. Com o os outros conceitos em O Capital, é
parte de um processo de raciocínio abstrato que se assenhoreia da rea­
lidade no pensamento. As relações de valor não são visíveis, não são
formas fenomenais, mas são reais, são uma condição fundamental da
produção e são operativas devido à interseção da produção e da troca.
O valor é um conceito que representa (no pensam ento) uma efetivida­
de real, a determinação de tempo de trabalho socialmente necessário.
As relações de valor são calculáveis por serem reais (o cálculo técnico
c, porém, perfeitamente secundário à argumentação de Marx, que se
contenta em usar números arbitrariamente atribuídos para os seus ob­
jetivos de exposição teórica). Se essas relações existissem apenas com o
valores atribuídos (tempos de trabalho assim atribuídos poderiam en­
tão ser “ necessários” apenas para os objetivos teóricos em questão e
não socialmente necessários), então não poderiam governar causalmen­
te as relações sociais. A concepção de valor como medida, em O Capital,
assim o supõe. A suposição de que o valor predomina socialmente
com o medida real (que as mercadorias são direta ou indiretamente de­
terminadas, nas razões pelas quais são trocadas, pelos seus tempos de
trabalho socialmente necessários, e são calculáveis em seus equivalen­
tes de tempo de trabalho) é necessária tanto para a teoria de Marx de
relações de troca como para sua teoria da mais-valia. Tal suposição
depende de outra, de que somente o trabalho humano tem capacidade
de criar valor e toma a forma de valor em relações sociais definidas.
Essa teoria do valor e da capacidade de criar valor é formulada em O
Capital à base das relações sociais da produção simples de mercadoria
e em seguida estendida ao capitalismo.
Sabemos que O Capital argumenta que as relações de valor são
subjacentes ao sistema de preços de produção que determinam as rela­
ções de troca no capitalismo: a produção social ainda é regulada pelos
tempos de trabalho necessários à produção de mercadorias. Sabemos
também que a teoria do valor supõe que os tempos de trabalho são
equiparados através das razões de troca das mercadorias (embora eles
tornem possíveis tais razões). Marx tem, portanto, de estabelecer uma
conexão entre as formas de troca, produção e valor no capitalismo
para que sua teoria da exploração e acumulação seja possível nesse sis­
tema. A teoria depende de uma categoria (valor na forma de valor)
elaborada à base de relações sociais de troca que são diferentes das re­
lações do capitalismo.
40 VALOR

A s trocas no capitalismo não são a equação de tempos de traba­


lho. N o s capítulos subseqüentes desta parte, sobre Hilferding e Rubin,
examinaremos com mais detalhe com o Marx procura ligar as relações
de troca e seus determinantes de valor no capitalismo. Vamos, agora,
apenas observar que esse problema não é imaginário, criado pelos
críticos “ burgueses” . M esm o aceitando a “ lei do valor” geral proposta
em certas seções de O Capital (todas as sociedades devem ter um meca­
nismo para assegurar a distribuição do tempo de trabalho, de m odo a
produzir uma certa com posição do produto), não fica claro por que a
operação dessa “ lei” deve exigir a troca de quantidades iguais de tem­
po de trabalho. Marx procura argumentar isso para um sistema de tra­
balhos divididos/interdependentes, mas não mostra por que essa rela­
ção deve desaparecer ou ser impossível com discrepâncias de uma or­
dem considerável em relação à igualdade. M esmo que a produção ca­
pitalista fosse regulada, a longo prazo, por modificações na produtivi­
dade do trabalho, esse regulador (uma forma da lei geral do valor)
pode operar com trocas de quantidades radicalmente discrepantes de
tempo de trabalho. A má distribuição do trabalho social (m étodos de
produção obsoletos) sofre, em última análise, a pena das crises e da
competição: o tem po de trabalho opera pela discrepância em relação à
igualdade. A teoria da mais-valia supõe, porém, que os termos da
equação de troca são aplicáveis ao capitalismo; tempos de trabalho
idênticos são trocados em relações de desvio ordenado. Estamos ob ­
servando que essa forma de medida só é aplicável com essas modifica­
ções se sua base for pertinente. N ão podemos entender por que a “lei
do valor” em sua forma geral (quaisquer que sejam os méritos dessa
concepção) deve necessitar do valor na forma de valor, valores de tro­
ca com o identidades de tempo de trabalho, ou com o modificações or­
denadas deles.
A apresentação da fo rm a do valor é um artifício brilhante pelo
qual Marx evita uma teoria do valor da substância do trabalho (que
universalizaria a forma). A insistência em que o valor e o valor de tro­
ca são distintos no capitalismo e a teoria dos preços de produção per­
mitem a Marx evitar as dificuldades de uma teoria simples dos preços
baseados no trabalho em condições capitalistas. Essa análise substitui
a forma de valor com o a forma imediata do processo de troca. A com ­
binação da análise do valor e a análise da circulação capitalista é
problemática. A conservação da análise de valor deve reduzir as rela­
ções capitalistas de circulação a uma simples forma fenomenal ou ex­
pressão de relações de valor ou os “ fenôm enos” devem tornar proble­
máticas as condições de equivalência de troca necessárias à “essência” .
Argumentaremos no Volume 2 que o conceito de valor constitui um
obstáculo para a análise da circulação do dinheiro no capitalismo.
VALOR, EXPLORAÇÃO E LUCRO 41

Trabalho e força de trabalho, capital constante e variável


A distinção entre trabalho e força de trabalho é a base da argumenta­
ção de que a forma salário não representa, em seus efeitos, uma troca
de equivalentes. Isso devido à dupla natureza da mercadoria envolvida
na forma salário (força de trabalho) com o um valor de troca e um va­
lor de uso. A força de trabalho é consumida com o trabalho concreto.
Mas todas as mercadorias envolvem uma diferença entre seus va­
lores de troca e sua utilidade.
O que torna singular a mercadoria força de trabalho? Temos
aqui, pela frente, não somente a fo rm a da medida de equivalência, mas
também seu fundamento; aquilo que necessita da forma e de sua sin­
gularidade com o o único padrão de valor. A distinção entre capital
constante e capital variável baseia-se na proposição de que a mercado­
ria envolvida na forma salário tem uma dupla natureza, como valor de
troca e valor de uso, e que é diferente de todas as outras mercadorias.
Há uma discrepância geral entre valores (universais e equivalentes na
forma - representando quanta de um único padrão) e o valor de uso
(heterogêneo, não-equivalente, útil, por causa de suas formas distintas
e específicas de uso). O valor de uso da mercadoria força de trabalho é
diferente de todos os outros porque se transforma, no consumo, na
substância do próprio valor (tempo de trabalho), sendo capaz, portan­
to, de ser representado com o valor. Marx argumenta que os meios de
produção e máquinas são capital constante porque, sendo vendidos
aos seus valores, podem ter somente o valor neles encerrado (x traba­
lho passado) transferido para o produto pelo trabalho recém-aplicado
empenhado no processo de produção no qual funcionam com o meios.
As máquinas são apenas “ trabalho m orto” , sem qualquer capacidade
de criar valor: “A maquinaria, com o todo outro componente do capi­
tal constante, não cria um valor novo, mas transfere seu próprio valor
para o produto que ajuda a fazer” (O Capital, vol. 1, ed. Penguin, p.
509 ).
A distinção entre o capital constante e o variável se fundamenta
na negação de todos os outros elementos do processo de produção, ex­
ceto o tempo de trabalho, com o pertinentes à teoria do valor. Por que é
a capacidade de trabalho uma mercadoria singular? Porque o tempo
de trabalho é a substância do valor. Essa “substância” não é um atri­
buto ontológico do trabalho como tal, é uma função do trabalho que
produz mercadorias. A forma de valor do tempo de trabalho é uma
função do fato de que os produtos do trabalho entram num processo
social de troca. Marx não pode explicar o predomínio do padrão de
valor por referência à natureza do trabalho humano em geral. N ão é
por ser o trabalho humano constitutivo do produto que ele é a subs­
tância do valor.
42 VALOR

Marx distingue entre a produtividade do trabalho e sua capacidade


de criar valor. A produtividade do trabalho, a massa de valores de uso
produzida por um certo número de horas de trabalho, é uma função
dos meios de produção que emprega. Marx define da seguinte maneira
a produtividade do trabalho:
P o r um a u m e n to na p ro d u tiv id a d e d o tra b a lh o , e n ten d em o s u m a alteração no processo
de m o d o a e n c u rta r o tem po de tra b a lh o socialm ente necessário à p ro d u ção de um a
m ercad o ria , e a d o ta r um a d e te rm in a d a q u a n tid a d e de tra b a lh o com o p o d er de p ro d u zir
u m a q u a n tid a d e m aio r de v alo r de uso. (Ib id ., p. 431)

A massa dos valores de uso mede a produtividade do trabalho. O valor


do tempo de trabalho é distribuído sobre essa massa, e, à medida que
essa massa aumenta, cai o valor de cada uma das unidades que a com ­
põem. D iz Marx: “ O valor das mercadorias é inversamente proporcio­
nal à produtividade do trabalho” (ibid., p. 436). Os meios de produção
determinam a produtividade do trabalho. O valor dos meios de produ­
ção e o valor unitário dos produtos por eles criados dependem das
unidades de tem po de trabalho encerradas na produção desses meios e
na produção de cada unidade do produto.

Marx reconhece, portanto, que os meios de produção e as formas


de organização da produção (divisão do trabalho, cooperação) são as
fontes de modificações na produtividade do trabalho. Marx trata a ca­
pacidade produtiva das máquinas, sua capacidade de trabalho, como
uma força da natureza. A diferença entre o custo de uma máquina e a
capacidade de trabalho dessa máquina é o “ serviço gratuito” que a
máquina realiza. D iz Marx:
T a n to no caso d a m á q u in a com o da ferram en ta, verificam os q u e depois de d esco n tar
seu cu sto m édio d iário , isto é, o v alor qu e tran sm item ao p r o d u to pelo seu desgaste m é­
d io... elas realizam seu tra b a lh o g ra tu ita m e n te , co m o as fo rças n a tu ra is que já existem
sem a in terv en ção do tra b a lh o h u m a n o . Q u a n to m a io r a eficiência p ro d u tiv a d as m á ­
q u in as, c o m p a ra d a com a d as ferram en tas, m aio r a p ro p o rç ã o desse serviço g ra tu ito .
S o m en te n a in d ú stria em g ra n d e escala o hom em conseguiu fazer com q u e o p ro d u to de
seu tra b a lh o p assad o , tra b a lh o que j á foi ob jetifica d o , p reste serviços g ra tu ito s em g ra n ­
de escala, co m o u m a força d a n atu re z a . (Ibid., p. 510)

Para Marx, essa diferença entre o custo da máquina e a sua capacidade


significa que o produto não pode ter no trabalho a sua origem: o tra­
balho hum ano já não é o determinante primário da transformação das
matérias-primas num produto. A capacidade produtiva de uma má­
quina é determinada pelas suas características técnicas e não pelo tra­
balho que foi necessário para fazê-lo (esse trabalho determina o seu va­
lor). O valor encerrado na máquina (seu custo para o seu consumidor
produtivo) é transmitido, fragmentado, aos produtos que cria durante
sua vida ativa normal; a massa desses produtos não é determinada por
esse valor.
VALOR, EXPLORA ÇÃO E LUCRO 43

A capacidade produtiva da técnica age sobre as relações de valor


das maneiras seguintes:
1. A produtividade de um processo de produção determina o
componente de valor unitário do produto; a capacidade do processo
determina o número de unidades do produto pelo qual a totalidade do
tempo de trabalho empregado deve ser distribuída. Portanto, a produ­
tividade afeta o valor relativo por unidade de produto de diferentes
maneiras de fazer a mesma mercadoria, ou uma mercadoria semelhan­
te. A produtividade age sobre as relações de valor reduzindo o com po­
nente de tempo de trabalho por unidade do produto, “ barateando-o”
(em termos de valor).
2. É o tempo de trabalho que atribui valor aos produtos. Para
qualquer processo, é necessário um certo número de horas de trabalho
para uma determinada quantidade do produto. Os aumentos da pro­

DEPART 4 MENT'_ DF HISTORIA


dutividade contribuem para reduzir esse total. Se a quantidade do pro­

MESTRADO - U F. fi. J.
duto criado não aumenta proporcionalmente, não só o com ponente de
valor por unidade cai, mas também o total do valor absoluto (horas de
trabalho) declina.
Segue-se que se o trabalho humano fosse excluído do proces­
so de produção, ou reduzido a uma quantidade infinitesimal, então, de
acordo com a teoria do valor, os produtos desse processo seriam com o
frutos da natureza, valores de uso, mas sem um valor. N o Grundrisse,
Marx considerou essa possibilidade. A maquinaria automática subor­
dina o trabalhador ao processo de produção, reduzindo-o a um sim­
ples mom ento consciente (supervisão) num mecanismo objetivo criado
pelo conhecim ento científico e o poder com binado do trabalho social
cooperativo. O termo “ processo de trabalho” tornou-se um nome ina­
dequado: “ de maneira alguma a máquina surge com o o meio de traba­
lho do operário individual... O processo de produção deixou de ser um
processo dominado pelo trabalho com o sua unidade governante”
(Grundrisse, caderno de notas VI, 692-3). O capitalismo, ao criar no
mecanismo autom ático a forma objetiva de dom ínio sobre o trabalha­
dor adequada à sua existência com o capital, com o trabalho morto,
cria as condições de sua própria dissolução. O trabalhador e o tem po
de trabalho tornam-se insignificantes em relação à capacidade produ­
tiva conjunta da sociedade representada no capital:
Nu p ro p o rç ã o em q u e o te m p o de tra b a lh o - a sim ples q u a n tid a d e de tra b a lh o - é p o s tu ­
lada pelo cap ital co m o o único elem ento d e te rm in a n te , n aq u e la p ro p o rç ã o o tra b a lh o
d ireto e sua q u a n tid a d e d esap arecem co m o o p rin cíp io d e te rm in a n te da p ro d u ç ã o - da
criação d os v alo res de uso - sendo red u zid o q u a n tita tiv a m e n te a um a p ro p o rç ã o m en o r,
e q u a lita tiv a m e n te a um m o m e n to indispensável, d ecerto , m as su b o rd in a d o , em co m ­
paração com o trabalho científico geral, aplicação tecnológica das Ciências N aturais, de
um lad o , e com a força p ro d u tiv a geral qu e nasce da c o m b in a ç ã o social na p ro d u ç ã o to ­
tal, d o o u tro lad o - c o m b in a ç ã o q u e surge com o o fru to n a tu ra l d o tra b a lh o social (em -
44 VALOR

b o ra seja um p r o d u to histó rico ). O cap ital fun cio n a, assim , no sen tid o de sua p ró p ria
d isso lu ção co m o fo rm a d o m in a n te de p ro d u ç ã o . (I b i d c a d e rn o de n o ta s V II, p. 700)

As relações de valor (relações baseadas em tempo de trabalho) se tor­


nam irrelevantes a esse mecanismo produtivo com binado. O produto
social é devido m enos aos trabalhos diretos dos homens do que ao co­
nhecimento científico associado e à aplicação técnica da humanidade.
As relações de valor são ameaçadas com irrelevância pela indetermi-
nação do tempo de trabalho direto para a produção social. A natureza
com binada e cooperativa, socializada, da produção, torna irrelevante
a forma de propriedade capitalista porque torna irrelevante a divisão
da sociedade em produtores privados separados. O capitalismo, pelas
forças da concorrência, desloca o trabalho do processo de produção,
barateando o produto e, em última análise, desloca a si próprio. Seria
de supor, pela posição de Marx no Grundrisse, que o socialismo pode­
ria prescindir da lei do valor em ambos os sentidos usados em O Capi­
tal, com o uma lei de proporcionalidade na troca e com o uma lei de
distribuição do trabalho social.
Vimos que Marx rejeita qualquer teoria simples do valor com o
proveniente da substância do trabalho. Mas enquanto o valor de troca
é uma forma produzida por certas relações sociais, sendo efetiva atra­
vés das relações de troca, o valor toma o tempo de trabalho com o seu
padrão, devido ao papel central que tem na determinação do que é
produzido e em que quantidades. Por que devem os produtos das uni­
dades independentes de produção ser trocados em proporções deter­
minadas diretamente (produção simples de mercadorias) ou determi­
nadas indiretamente (capitalism o) pelos tem pos de trabalho necessá­
rios à sua produção? Porque o tempo de trabalho é o determinante da­
quilo que pode ser produzido. O produto social deve ser expresso em
termos de tempo de trabalho porque o trabalho de transformação é
sua condição primacial de existência. A lei do valor com o uma lei geral
de distribuição do trabalho social deve atribuir essa posição ao traba­
lho - a forma do valor é uma modalidade de representação dessa de­
terminação, que se faz necessária pela produção privada e socialmente
dividida.
O produto só pode ser uma função do tempo de trabalho se os
elementos no processo de sua produção puderem ser reduzidos a ter­
mos de tempo de trabalho e nele expressos. A ação do trabalhador di­
reto determina o ritmo de funcionamento de cada um desses elemen­
tos, sendo estes em si mesmos produtos dos processos de trabalho an­
teriores e, em conseqüência, o produto dos processos pode ser atribuí­
do em sua magnitude à duração e intensidade do trabalho. Os efeitos
da maquinaria, organização de produção (divisão do trabalho, coope­
ração e m étodos de funcionamento) e produção conjunta significam
VALOR, EXPLORA ÇÃO E LUCRO 45

que essa relação já não é válida. O que e quanto é produzido já não é


uma função do tempo de trabalho, mas da produtividade técnica do
processo em questão. A força de trabalho é reduzida a um “ fator” no
processo, um elemento que pode ser necessário, mas subordinado, e
i|iie não lhe determina a capacidade produtiva. A lei do valor opera
(com o o exemplo de Robinson mostra) para assegurar uma certa com ­
posição do produto total. Em condições nas quais a força de trabalho
é apenas um “ fator” , é a distribuição e organização dos meios de pro­
dução que determinam um certo tamanho e com posição do produto
lotai.
Mesmo supondo que os efeitos radicais da organização da produ­
ção e sua técnica fossem confinados ao capitalismo industrial, seguir-
se-ia, ainda assim, que a base para a lei do valor (com o uma lei de dis­
tribuição do trabalho social) se torna irrelevante diante desse sistema
de produção. N ão só o capitalismo modificaria a fo rm a do valor (troca
de equivalentes), mas também solapa a base sobre a qual essa forma (e
todas as outras manifestações da lei geral) se fundamentam.
Para justificar a lei do valor como lei de proporções de troca,
Marx argumenta que a troca toma a forma de uma equação medida
com o tal num terceiro termo. Poder-se-ia argumentar que a situação
<lo trabalho no processo de produção é irrelevante e que a teoria do
valor se baseia no fato de que os tempos de trabalho podem ser equi­
parados porque lhes pode ser atribuída uma forma quantitativa abs­
trata, ao passo que aos valores de uso não se pode. Essa defesa solapa a
lei do valor com o uma lei geral de distribuição do trabalho social. Há
dois argumentos contra essa linha de defesa da forma do valor. O pri­
meiro é a possibilidade de uma teoria da utilidade das proporções de
troca - e examinaremos isso mais detalhadamente ao discutirmos
Bõhm-Bawerk. O segundo é que essa defesa supõe a necessidade de
que a troca tome a forma de uma identidade de tempos de trabalho.
Hssa necessidade nos leva de volta à lei geral do valor (minada por essa
defesa). O único argumento possível a essa suposição é o de que, a me­
nos que “equivalentes” sejam trocados, a distribuição do trabalho so­
cial cria problemas para a divisão social do trabalho. Encontramos
esse argumento acima e ó examinaremos, novamente, em relação ao
seu uso por Hilferding e Rubin. Repetiremos simplesmente que não se
segue, de m odo algum, que a produção social tenha necessariamente
de entrar em colapso se não forem trocados equivalentes, ou o traba­
lho for “ mal distribuído” . A ameaça de colapso, além disso, não pode
exigir as condições que eliminem tal ameaça, exceto por meio de um
mecanismo teleológico, ou a postulação de uma “natureza humana” .

A explicação que Marx dá à centralidade do tempo de trabalho não se


baseia numa simples ontologia do trabalho humano. Ela encerra o pri-
46 VALOR

made do trabalho direto no processo de trabalho, mas, com o já vimos,


tanto no Grundrisse com o em O Capital, Marx argumenta que esse pri­
mado é afastado no capitalismo. Muitas justificativas contemporáneas
da lei do valor são, no fundo, filosófico-antropológicas. Encerram a
concepção do trabalho humano dos M anuscritos de 1844. Levam-nos
de volta ã concepção do trabalho com o autocriação humana, à noção
do homem com o seu próprio produto, e do trabalho com o uma ativi­
dade ontologicam ente única com o poder derivado da natureza, mas
que age sobre ela e a transforma. O trabalho com o constitutivo do
produto é uma posição plausível apenas se todas as máquinas e técni­
cas forem concebidas com o extensões da ferramenta artesanal, e os
operários que trabalham com máquinas com o os agentes diretos da
transformação do produto,
N ão obstante, no capítulo XV de O Capital, “As Máquinas e a
Indústria M oderna” , Marx vai além dessa ideologia do homo fa b e r e
argumenta que à medida que a produção capitalista se desenvolve os
trabalhadores são reduzidos ao papel de agentes do processo (isto é
visto, com freqüência, com o a “alienação” do homem na produção
maquinizada - uma “alienação” que Marx não rejeita resolutam ente-
e que revela, no caso, as proporções em que o homem é considerado
com o o sujeito ou origem do processo de produção). Um a vez elimina­
dos os limites da teoria do valor, então torna-se possível corrigir e de­
senvolver a análise que faz Marx da fábrica com o um processo com ­
plexo e coletivo de produção. Se reconhecermos que a agência de
transformação da matéria-prima é o processo com plexo (inclusive
cada um de seus elem entos necessários, máquinas, o trabalhador cole-'
tivo, técnicas e conhecimentos), então o produto resultante só pode'
ser atribuído ao próprio processo (e a todas as suas efetividades com ­
binadas), e não ao trabalho ou tempo de trabalho apenas. Tal concep­
ção torna possível a investigação das formas distintas desses proces­
sos, a efetividade diferencial dos m étodos de funcionamento, e assim
por diante. Essas análises não foram feitas, tendo sido afogadas pela
concentração no trabalhador direto e na produção da mais-valia rela­
tiva (ver, por exemplo, Labour and M onopoly Capital, de Braverman).
A capacidade que tem o processo de criar produtos de com posi­
ção e qualidade que são distintos das matérias-primas não constitui a
base para uma nova teoria do valor. Um a vez afastados os termos do
valor, a questão de com o a eficiência relativa dos processos de produ­
ção é avaliada se torna séria. Essa dificuldade, contudo, provavelmen­
te não será razão suficiente para conservar esse conceito problemático.
A distinção entre capital constante e variável depende, em última
análise, da teoria do valor e da noção da capacidade que tem o traba­
lho de criar valor. Essa distinção e a que se faz entre trabalho e força
de trabalho são diferentes e têm sortes diferentes. T rabalho/força de
VALOR, EXPLORAÇÃO E LU C R O 47

trabalho é um m odo de apresentar a relação entre salários e o processo


de produção; tem certa pertinência, mesmo se abandonados os termos
de valor. A força de trabalho, a mercadoria vendida por salários, é de­
terminada pelo custo de produção do trabalhador (que pode ser ex­
presso em termos de não-valor) e outros fatores. Os determinantes do
nível salarial (preço da força de trabalho) não têm relação direta com a
contribuição do trabalhador para o produto. Essa diferença dos deter­
minantes de salários e do papel do trabalhador no processo de produ­
ção é um efeito necessário da separação das fases de circulação (ven­
da/com pra da força de trabalho) e produção (consum o produtivo da
força de trabalho com o meio de produção) envolvidas na forma de sa­
lário; ela expressa a separação entre os trabalhadores e os meios de
produção. Quando os termos de valor são abandonados, essa distin­
ção entre o trabalho e a força de trabalho se torna um modo de apre­
sentar as relações de produção envolvidas na forma de salário no capi­
talismo. Já não é, porém, o meio de demonstrar uma troca “ desi­
gual” e, portanto, a fonte do lucro. Quando os termos de valor são
abandonados, com o vimos, a relação entre trabalho “necessário” e
trabalho “excedente” se torna.incalculável.
Com o conseqüência dessa incomensurabilidade dos salários e da
contribuição dos operários para o produto, a noção de “exploração”
se torna insustentável. A noção de “ mais-valia” ou trabalho “ não-
pago” em O Capital não acarreta a noção proudhoniana de que ele
deveria na realidade ser pago - não poderia ser “ pago” sem se abolir a
forma salário e, com o a Crítica mostra,’ mesmo sob formas socialistas a
contribuição do trabalhador não lhe pertence integralmente. Acarreta,
porém, a posição de que a parte “ não paga” é calculável, e a unidade de
cálculo é um padrão social de medida (os termos de valor tornam os
salários e o produto do trabalho mensuráveis com o somas desse pa­
drão). Se esse padrão de medida não prevalece, então os conceitos de
“exploração” e “ mais-valia” perdem sua base teórica. Seu lugar no
discurso se torna problemático porque não são termos morais ou polí­
tico-polém icos, mas categorias teóricas da Economia Política. Sua im ­
portância depende de dar a um fenômeno objetivo uma medida real.

“ Exploração” e classes
Pode-se considerar que, se a. “exploração” se torna incalculável (em
termos de uma medida socialmente predominante representada em
conceitos teóricos), então toda a base do sistema capitalista de rela­
ções de classe se torna problemática. N ão há razão para esse medo. As
classes de agentes econôm icos são definidas pela sua relação com os
meios e condições de produção (com o possuidores e não-possuidofes)
e não pela parte do produto com que se espera que contribuam.
48 VALOR

As relações capitalistas de produção incluem a separação entre os


operários e os meios de produção, a forma de salário e a distribuição
do produto (inclusive os meios de produção) através da troca de mer­
cadorias. Essa com binação da separação (não-posse) e a forma salário
cria uma classe operária, no sentido de agentes obrigados a vender sua
força de trabalho para obter os meios de subsistência. Os diferentes ra­
mos da produção, as formas técnicas da produção e as formas de orga­
nização da produção distinguem essa classe de trabalhadores assala­
riados em funções e especialismos econôm icos distintos: coordenado­
res, funcionários técnicos, trabalhadores “ qualificados” , atendentes
de máquinas, artesãos, etc. As formas de circulação e a existência de
mercadorias não-industriais também criam especialismos. A forma so­
cial dessa distribuição da classe operária em níveis distintos é variável.
As relações capitalistas de produção significam a separação entre
os operários e os meios de produção por uma forma de propriedade,
más não significam, èm geral, uma classe de capitalistas, no sentido de
agentes que são donos dos meios de produção com o sua propriedade
privada e retiram seus fundos de consumo dos lucros obtidos com essa
propriedade. Em condições de socialização do capital (os fundos de
capital resultam da centralização dos depósitos e da venda de merca­
dorias financeiras pelas empresas capitalistas de financiamento) e de
empresas capitalistas com o trustes (propriedade supra-individual), en­
tão essa classe, concebida com o um grupo de agentes humanos, não
precisa existir. Em lugar dela, funcionários remunerados efetuam a
com binação desses meios de produção com a força de trabalho, e ope­
ram com o agentes exigidos péla estrutura da separação, servindo à
forma de posse exclusiva para a qual trabalham. Os capitais (e não os
capitalistas) são os agentes da posse necessários às relações capitalistas
de produção (dependendo do contexto econôm ico e político/jurídico,
podem tomar a forma de sujeitos econôm icos humanos ou não-
humanos).
Eliminar a noção de “exploração” com o categoria econôm ica
não elimina as bases econôm icas da divisão dos agentes em classes.
N ão elimina as relações de produção capitalistas. Primeiro, vamos in­
sistir novamente em que para Marx a “exploração” é uma categoria de
Economia Política que representa uma conexão interna do sistema de
produção capitalista, e não uma forma fenomenal que seja representa­
da para os agentes (de outro m odo, haveria uma via direta para a ciên­
cia). A exploração é encoberta pela forma salário (aqui, é uma form a),
disfarçada com o uma troca de equivalentes. Se não for assim represen­
tada não pode, como categoria, ser efetiva com o uma causa da luta de
classes - e Marx não faz a luta de classes depender da consciência da
exploração. C om o ligação interna, é efetiva através de seus efeitos;
ora, esses “efeitos” existem* quer a “exploração” exista ou não, ou
VALOR, EXPLORAÇÃO E L U CRO 49

seja calculável. A luta de classes econômica no capitalismo surge da


natureza “ antagônica” da separação entre a força de trabalho e os
meios de produção (“ antagonism o” é usado aqui no sentido definido
em Hindess e Hirst, Pre-Capitalist M odes ofP roduction). Examinemos
os elementos dessa separação:
1. A s co n d içõ es de existência do tra b a lh a d o r dependem de sua co m b in ação com os
m eios de p ro d u ç ã o , c o m b in ação essa que n ão está ao seu alcance e d epende de c o n d i­
ções an árq u ic a s d a tro c a de m ercad o rias;
2. A “ a n a rq u ia ” d a p ro d u ç ã o cap italista (a relação en tre ís, p ro d u ç ã o e a circulação)
p ro d u z necessariam en te desem prego e o u tra s m odificações q u e os tra b a lh a d o re s (consi-
(d era d o s exclu siv am en te com o agentes) n ão po d em co n tro lar;
3. A p ro d u ção cap italista n ão é g o v ern ad a p o r critérios de utilidade social;
4. O nível d e sa lário s n ão é d a d o , m as é o b jeto d e luta.

Essas condições explicam a existência da luta de classes econômica.


Também explicam a razão pela qual, a fim de superar os efeitos da
anarquia e a rejeição de prioridades socialmente necessárias na produ­
ção, as relações de produção capitalista devem ser ultrapassadas. Es­
sas condições afetam todos os trabalhadores assalariados em graus va­
riáveis. A noção de “exploração” não se aplica a todos os trabalhado­
res assalariados (por exem plo, os trabalhadores “ improdutivos” não
produzem mais-valia e não podem ser explorados). Além disso, em
suas aplicações vulgares, constitui a base de uma ideologia essencia-
lista da classe trabalhadora, centrada no trabalho “ produtivo” (explo­
rado).
Essa posição coloca um problema importante para a análise: os
determinantes da diferenciação da “classe operária” (definida pela
forma de salário) em especialismos econôm icos e frações sociais distin­
tos, em particular a existência daquilo que foi convencionalmente cha­
mado de estratos “ pequeno-burgueses” de especialistas e funcionários.
A noção de “ exploração” não resolveu esse problema. Na verdade, a
teoria da “exploração” criou o essencialism o e o sociologism o que
procuram identificar as forças sociais e ocupações politicamente diver­
gentes com efeitos imediatos das relações de produção. A teoria da
“exploração” essencializa as classes com o forças sociais e políticas de­
terminadas no nível econôm ico. Esse essencialism o e esse sociologis­
mo podem ser vistos com demasiada clareza nas atuais tentativas de
distinguir as classes utilizando os conceitos de trabalho produtivo e
improdutivo.

Produção e circulação
Resta-nos examinar a relação entre produção e circulação, uma vez
afastados os termos de valor.
50 VA LO R

Antes de continuarmos, vamos deixar claro que existem dois


níveis de análise da questão da produção/distribuição (circulação)
em O Capital. O primeiro nível, que envolve a teoria do valor e da ex­
ploração, tem duas fontes: primeira, a teórica, a contestação dos
problemas da troca de equivalentes e a fonte de lucros tal com o desen­
volvida na Economia Política clássica; segunda, a ideológica, a contes­
tação da econom ia vulgar (e a vulgaridad.e dos clássicos), que repre­
senta diretamente (segundo Marx) as ilusões das formas fenomenais, a
troca de mercadorias com o uma troca igual e os lucros com o a “re­
com pensa” do capital. O esotérico e o vulgar são solucionados numa
mesma resposta por Marx, ele “ resolve” o problema teórico e destrói
as ilusões passando a relações exigidas pela produção (mais-valia, acu­
mulação). Isso elimina o problema clássico da distribuição e ao mes­
mo tempo os absurdos da vulgaridade. O segundo nível de análise
nada tem a ver com o problema clássico da distribuição das “ receitas”
das classes e suas fontes. Relaciona-se com a estrutura da produção
capitalista; a produção e a circulação (distribuição) são consideradas
com o elementos com binados e contraditórios de um processo com ple­
xo. Enquanto no primeiro nível de análise a produção é privilegtàda (é
o nível da própria realidade, o local de explicação do erro), no segun­
do nível não é mais determinante do resultado do processo (um ciclo
distinto de circulação, produção, circulação) do que a circulação, que
está ligada a ela.

Tendo argumentado que a distribuição (circulação) do produto


não corresponde às contribuições dos agentes, que a “exploração” é
incalculável e que a mais-valia não é a fonte do lucro, estamos a gran­
de distância de O Capital. Pode-se objetar que isso significa a inexis­
tência, agora, de base para a distinção entre formas capitalistas e não-
capitalistas (por exemplo, socialistas). N ão se ocupa a Crítica explici­
tamente da relação entre produção e distribuição no socialismo? Sem
dúvida, o m odo de produção capitalista necessita ser reconceptualiza-
do para que se façam essas m odificações teóricas e essas omissões.
C om e ilustração, demarcaremos as econom ias capitalista e socialista
de forma muito provisória.
O capitalismo pode ser definido com o segue:

1. D eterm in a a se p ara ção en tre os tra b a lh a d o re s e os m eios de p ro d u ç ã o (n a form a


de p ro p rie d a d e legal e posse efetiva pelos ag en tes d a p ro p ried ad e ).
2. D eterm in a a c o m b in a ç ã o d o s tra b a lh a d o re s com os m eios de p ro d u ç ã o atrav és
d a fo rm a salário.
3. E ssas d u as condições levam à d istrib u ição d o s m eios de re p ro d u ç ã o da força de
tra b a lh o na form a d e m ercad o rias.
4. A p ro p rie d a d e dos m eios de p ro d u ç ã o é se p a ra d a em “ ca p ita is” d istin to s e a exis­
tência de fo rm as d istin tas de co m b in açõ es d o s m eios de p ro d u ç ã o e da força de tr a b a ­
lho, "e m p re sa s” .
VALOR, EXPLORA ÇÃO E LUCRO 51

5. A relação en tre p ro d u ç ã o e distrib u ição to m a , p o rta n to , a form a de circu lação


<lc m ercad o rias en tre 0 5 cap itais se p ara d o s e en tre tra b a lh a d o re s assalariados e capitais,
a d istrib u ição d os m eios de p ro d u ç ã o e co nsum o o co rre pela circu lação de m ercad o ria s
(nu m ed id a em q u e o s cap itais n ã o pro d u zem seus p ró p rio s m eios de p ro d u ção ).

() processo de construção de relações socialistas de produção deve


compreender a transformação dessa dupla separação, entre os traba­
lhadores e os meios de produção, e das empresas entre si. Essas duas
separações são mutuamente condicionais. A separação entre os traba­
lhadores e os meios de produção no nível da empresa (através do tra­
balho assalariado) fortalece as formas mercantis (trabalho assalariado
como mercadoria - compra das mercadorias com salários). A separa­
ção entre as empresas limita a sua posse prática pela coletividade. Essa
posse só pode tomar a forma de unificação das empresas através de
sua direção efetiva por meio do planejamento. A posse dos meios de
produção empregados pelas empresas, com o propriedade cooperativa
ou no nível da decisão cotidiana, pelo pessoal diretamente empregado
nas fábricas, não estabelece o controle de um sistema de produção so­
cial cada vez mais cooperativo e coordenado. Essa posse exclui ainda
os trabalhadores cujo lugar na divisão de trabalho está fora dessas uni­
dades de produção (professores, enfermeiras, funcionários administra­
tivos, etc.). O planejamento, para que seja o instrumento da posse efe­
tiva (direção dos meios de produção) pelos órgãos da coletividade e
ainda servir ao povo, deve ter uma forma e um conteúdo democráti­
cos. Deve sér uma atividade do Estado, na qual o povo e seus desejos
estejam efetivamente representados: uma direção estratégica da econo­
mia que segue as linhas gerais das necessidades populares. Tal repre­
sentação exige participação. Charles Bettelheim se esforçou muito
para estabelecer uma concepção semelhante da posse socialista e do
planejamento socialista. Embora Economic Calculation and Forms o f
Property conserve categorias do valor, mostra com bastante clareza as
conseqüências das duas separações. A concepção que tem Bettelheim
da URSS com o um país de capitalismo de Estado não é partilhada por
nós. Mas sua análise das duas separações deixa bem claras as conse­
qüências políticas e econôm icas do arremedo e aviltamento da dem o­
cracia popular naquele país: seu próprio nom e, uma união de repúbli­
ca soviéticas, tornou-se uma base de crítica do atual regime. Voltare­
mos a esses assuntos, que desenvolveremos em maior detalhe, na Par­
te III, Capítulo 13.

UFBJ_
I INSTITUTO D l
1 f il o s o f ía e
leiÊNOASSOCIAtS
Capítulo 2

Bõhm-Bawerk e Hilferding

Karl M arx e o Fim de Seu Sistem a, de Bõhm-Bawerk, é um trabalho


excepcional na literatura sobre a teoria do valor, pela ira e desprezo
que provocou entre os marxistas. N ão se poderia esperar que um desa­
fio teórico fundamental de um importante representante da “ escola
psicológica", que havia sido Ministro da Fazenda da Áustria-
Hungria, fosse muito bem recebido. Mas a reação é sintomática de ou­
tra coisa. Economistas marxistas da estatura de Hilferding e Bukharin
sentiram a necessidade de responder. A natureza da reação nasce do
lato de haver elementos na crítica de Bõhm-Bawerk que não podem
ser respondidos ou esconjurados.
Isso só se torna claro se lermos o texto fora da luta partidária que
provocou, e independentemente de certas pretensões que expressa. O
discurso desse texto deve ser submetido a uma análise cuidadosa para
que se vejam as questões irrespondíveis que levanta. Os críticos mar­
xistas consideram o texto com o uma emanação de uma “ posição” na
teoria econôm ica e se concentram nos defeitos dessa posição e na per­
cepção errônea de Marx que dela resulta. Bõhm-Bawerk tem realmen­
te uma posição, e isso produz uma concepção da prática da “crítica”
adequada a obras de ciência econôm ica. O Capital é concebido como
um “ sistem a” , uma estrutura lógica de conceitos que tenta explicar as
aparências das econom ias capitalistas e, portanto, especialmente a na­
tureza das relações de troca. A crítica tem duas armas principais, a
análise da coerência lógica (que é útil, mas secundária, Karl M a rx and
the Close o fh is System , p. 64) e a correspondência com os fatos da ex­
periência. A explicação de Marx é incoerente com os fatos da expe­
riência e se torna incoerente em suas tentativas de conciliar a explica­
ção e a realidade. A teoria do valor de Marx é concebida com o análo­
ga às teorias econôm icas e com petindo com elas; deve apresentar uma
explicação coerente dos fatos da troca: “Qual então, perguntamos, é o
principal objetivo da lei do valorl" É nada menos do que a elucidação
das relações de troca de mercadorias, tal com o nos parecem na reali­
dade (ibid., p. 34).
HOI I M- BAWERK e hilferding 53

Os marxistas não têm dificuldades em responder a essa concepção


dc uma “crítica” . O objetivo de Marx não é a “elucidação das relações
dc troca... tal com o nos parecem na realidade” , é uma análise das rela­
ções sociais de produção capitalistas e seus efeitos. Hilferding dá essa
resposta de m odo claro e competente. Também nega a pertinência da
epistemología positivista, què, ao restringir o critério de validade à ex­
periência, condena a análise a continuar permanentemente no nível
das formas de aparência do capitalismo, e a não poder penetrar nas
determinações interiores dessas formas. O debate epistem ológico é
aberto, e impossível de encerrar no caso. Bõhm-Bawerk pode negar a
pertinência da distinção form a/determ inação interior, insistindo em
que tudo o que existe está presente na experiência. Essa discussão é in­
terminável.
A discussão se processa também em terreno comum. Hilferding
aceita a concepção que Bõhm-Bawerk tem de O Capital com o um “sis­
tema” e a teoria de valor com o seu núcleo. Portanto, ele equipara de
forma constante a demonstração de que a troca não pode explicar as
relações sociais capitalistas, classificando a teoria da estrutura do
modo de produção capitalista com o uma teoria das condições sociais
de existência da troca capitalista de mercadorias, com uma defesa da
teoria do valor. Hilferding também trata o texto de Bõhm-Bawerk
como parte de um “ sistema” , considerando sua crítica de Marx com o
uma emanação das posições de sua própria teoria. Assim, argumenta
cie, Bõhm-Bawerk não vê a diferença entre valor e preço. Para a teoria
da troca do próprio Bõhm-Bawerk não há realmente diferença. M as
cie reconhece que a diferença existe para Marx - e examina detalhada­
mente a tentativa feita em O Capital de relacioná-los.
J.
D ois pontos decorrem dessa dupla identificação de Hilferding. A
teoria do valor e a teoria do m odo de produção capitalista em O Capi­
tal são inseparáveis. A substância da crítica de Bõhm-Bawerk é idênti­
ca à sua concepção de “ crítica” . É essa dupla identificação que torna o
debate inevitável e de importância central para os marxistas. Propo­
mos questionar ambas as partes dessa identificação. Dessa maneira, é
possível reconhecer a existência de pontos críticos sérios no texto de
Bõhm-Bawerk, que eles questionam a teoria do valor, mas que não
significam o fim do “ sistem a” de Marx. O Capital não é um sistema;
não é a presença coerente no discurso de uma ordem de conceitos lógi­
ca, única e unitária, é-a co-presença de diferentes questões, conceitos e
respostas. A teoria do valor está intimamente ligada a grande parte da
exposição em O Capital, muitos conceitos e problemas devem ser rejei­
tados juntamente com ela, mas nem todos. Afirm am os que a estrutura
das relações sociais capitalistas não só pode ser analisada sem a teoria
do valor, mas que essa teoria é na realidade um obstáculo a tal análise.
54 VALOR

C om o marxistas, não tem os medo em aceitar o desafio critico que


Bõhm-Bawerk apresenta. M as aceitar algumas de suas críticas não é
aceitar a sua “crítica” . Tais críticas não são emanações da concepção
de com o uma crítica deve ser realizada. São produtos do trabalho teó­
rico crítico de Bõhm-Bawerk sobre O Capital. N ão podem ser reduzi­
das a efeitos de sua posição epistem ológica ou à sua própria teoria do
valor. As questões que ele formula e que criam problemas sérios para a
teoria do valor em O C apital são “invisíveis” para os críticos marxistas
porque eles partilham da dupla identificação de Hilferding. Isso torna
a sua relação com Bõhm-Bawerk hostil, pois, “invisíveis” ou não, es­
sas questões não desaparecem. A identificação de O Capital com a teo­
ria do valor, e das críticas de Bõhm-Bawerk com sua própria concep­
ção de “crítica” , elimina completamente a possibilidade de se reconhe­
cer tais questões e enfrentá-las.

Valor e preço
Bõhm-Bawerk está certo ao argumentar que a teoria do valor deve ex­
plicar as relações de troca que predominam realmente no capitalismo.
Se as necessidades da distribuição do trabalho social governam todas
as formas de distribuição, então devem explicar a circulação capitalis­
ta. O conceito de “ valor” é apresentado por Marx em relação com o
problema da troca de equivalentes. Explica com o é possível haver tro­
cas, concebendo-as como equações (identidades de tempo de trabalho).
Se essas relações de troca não forem trocas de quantidades equivalen­
tes do padrão de valor, então a relação desse padrão com a troca, e
portanto toda a sua pertinência, se torna problemática. A s relações de
valor devem ser subjacentes às relações de preço, ou governá-las, de al­
guma forma sistemática no capitalismo para que a teoria do valor te­
nha qualquer pertinência para este. Bõhm-Bawerk questiona as con­
dições de correspondência das categorias de valores e preços, mais-
valia e lucro, e pergunta com o podem os primeiros governar os segun­
dos. N ã o é um problema criado por ele, mas um problema central à
forma na qual O Capital foi escrito.
D iz Marx: “O lucro total e a mais-valia total são quantidades
idênticas” (O Capital, vol. 3, edição Kerr, p. 204). São iguais em ter­
m os de valor (com o totalidades de tempo de trabalho), mas diferentes
na forma (um é uma forma fenomenal, a outra, não). Essa diferença de
valores e preços cria uma questão séria sobre o status do valor. Ela não
é levantada, com o tal, por Bõhm-Bawerk, mas é uma questão que tor­
na vitais e explosivos os problemas de correspondência por ele levan­
tados. Se as mercadorias são trocadas de acordo com preços de produ­
ção, então os processos de troca e circulação no capitalismo não são
HOllM-BAWERK e hilferd in g 55

conduzidos em termos de equivalentes de valores. A s mercadorias são


l roçadas em proporções que refletem .a quantidade discrepante do
padrão de valor, que não equipáram diretamente os tempos de traba­
lho. O valor não é, portanto, determinado diretamente pela troca dos
produtos do trabalho. A s relações de valor estão agora fora da esfera da
circulação (na melhor das hipóteses, elas a governam). As condições de
produção de mais-valia determinam sua distribuição diferencial entre
os capitais; essa distribuição diferencial é então redistribuída pelos ca­
pitais com o uma taxa média de lucro igual. O valor é aqui ameaçado
com uma perda da fo rm a de valor - a forma de valor determina as ra­
zões de trabalho abstrato das mercadorias através das proporções de
Iroca de seus produtos. Os trabalhos tomam uma forma de valor atra­
vés dos efeitos do processo de troca. Se o processo de troca não cor­
responde aos termos de valor (medidos em tempo de trabalho) e as ca­
tegorias de valor governam a troca, então o valor (trabalho abstrato)
deve ser determinado no processo de trabalho. O trabalho no processo
de trabalho no capitalismo já tem a forma de trabalho abstrato, sendo
comensurável com outros trabalhos (em unidades da mesma medida,
lempo de trabalho). A circulação simplesmente redistribui com o lucro
;i mais-valia produzida em outro lugar com o valor. Isso significa ou
que o trabalho abstrato existe no nível de produção (os efeitos da cir­
culação governam o processo de produção, tornando-se necessidades
de produtividade que governam o processo de circulação e, em última
análise, o determinam) ou o trabalho deve ser uma substância que por
si mesma representa valor. Marx insiste em que os trabalhos são equi­
parados através da troca de seus produtos em proporções definidas:
O s h om ens n ã o co lo cam , p o rta n to , os p ro d u to s de seu tra b a lh o em relação e n tre si
co m o valores p o rq u e vêem esses o b jeto s sim plesm ente co m o revestim entos m ateriais do
trab alh o h u m a n o h o m o gêneo. O c o rre o co n trário : ig u a la n d o seus diferentes p ro d u to s
cn lre si com o v alores, eles igualam seus diferentes tip o s de tra b a lh o com o tra b a lh o h u ­
m an o (O C apital, vol. 1, ed ição P enguin, p. 166)

O trabalho no processo de produção só pode ser contado com o traba­


lho social abstrato pela aplicação a ele dos resultados (passados ou
previstos) do processo social de troca.
Pode-se argumentar que o tempo de trabalho regula a produção e
através dela, em última análise, as proporções em que as mercadorias
são trocadas. A lei do valor na troca é modificada no capitalismo (seus
conceitos só valem estritamente para a produção simples de mercado­
rias). Mas como o tempo de trabalho regula a produção e através dela
a troca? Através de m odificações na produtividade do trabalho. D ado
que as trocas não são conduzidas em termos de valor, então a produti­
vidade deve afetar as relações de troca através de modificações nos
custos. Salários por unidade do produto, despesas gerais por unidade,
e assim por diante, caem. M as o trabalho que produz essas m odifica­
56 VALOR

ções na estrutura de custos também pode ser considerado simplesmen­


te com o trabalho concreto. Se o tempo para a produção de um metro
de algodão é reduzido a um quarto por uma invenção técnica, então
tantas horas a menos de fiação ou tecelagem são necessárias por uni­
dade, tantas horas a menos de salários dos fiandeiros ou tecelões por
unidade. As modificações na produtividade e seu efeito sobre os pre­
ços podem ser explicados sem a teoria do valor. N ão precisamos supor
que o tempo de trabalho seja constitutivo do valor para explicar as
modificações nos custos provocadas pela inovação técnica.
Se o processo social de troca não marca o trabalho com a forma
de valor, então o trabalho deve possuir essa forma através da articula­
ção da circulação e o processo de trabalho. Os efeitos dessa articula­
ção (m odificações nos custos e preços) podem ser explicados sem a
teoria do valor. Com o já vimos, os termos de valor são essenciais para
a teoria da exploração. A discrepância de valores e preços, a expulsão
do valor (troca de equivalentes no padrão de valor) de um lugar direto
no processo de troca, cria problemas sérios para a aplicação da teoria
na análise da produção capitalista. A atenção de Bõhm-Bawerk para
com a discrepância toca um ponto delicado da teoria do valor.
Voltem os diretamente a Bõhm-Bawerk. Ele examina em certo de­
talhe os quatro argumentos que, na sua opinião, Marx apresenta para
explicar a correspondência entre valores e preços. Se eles realmente
funcionam em O Capital com o “ argumentos” é, em certos casos, ex­
tremamente duvidoso. Vamos examiná-los um a um.
1 A so m a to ta l de to d o s o s preços c o rre sp o n d e à so m a de to d o s os valores. N a m esm a
p ro p o rç ã o em q u e um a p arte das m ercad o ria s é ven dida acim a de seu valor, o u tr a p arte
será v en d id a ab a ix o do seu valor. (O Capital, vol. 3, edição K err, p. 185)
... n a p ro p o rç ã o em que hou v er d em asiad a m ais-valia n u m a m ercad o ria , h a v e rá m uito
p o u ca em o u tra , e p o r ta n to os desvios do valor qu e se o cu ltam nos preços de p ro d u ç ã o se
cancelam recip ro cam en te. N a p ro d u ç ã o ca p ita lista co m o um to d o “a lei geral m antém -
se como a tendência governante” , so m e n te de u m a m an eira m u ito com plexa e a p ro x im a ­
da, com o a m édia constantem ente em m odificação de flutuações perpétuas. (Ibid., p. 90)

Bõhm-Bawerk é mordaz quanto a esse “ argumento” . 1 Primeiro, sim­


plesmente presume termos de valor. A questão é com o os preços e valo­
res se correspondem ou relacionam nas relações de troca. Se as rela­
ções de valor governam os preços, devem regular sua distribuição e ter
com eles uma relação definida. A correspondência das duas totalida­
des ou universos (em si mesmo nocional) nada diz sobre a distribuição:

1 H ilferd in g afirm a não se tratar de um a rg u m en to , m as ap en as de u m a conseqüência


lógica d a teo ria do valor. C o m o con seq ü ên cia lógica, n ão p o d e senão “ p re su m ir” os te r­
m o s d e valor.
BÕH M -BAW ERK E H IL F E R D I N G 57

L ogo, p o rém , q u e ex am in am o s to d a s as m ercad o rias com o um todo e so m am o s os p re­


ços, devem os necessariam ente ev itar ex am in ar a s relações existentes d e n tro desse to ­
d o .,.. D e q u a lq u e r m o d o , q u a n d o pedim os info rm açõ es so b re a tro ca de m ercad o ria s
em E co n o m ia P olítica, n ão é resp o sta dizerem -nos o preço to ta l q u e obtêm q u a n d o to ­
m a d a s em co n ju n to . (K arl M a rx and the Close o f his S y s te m , p. 35)

A posição de Marx sobre as médias é tratada também com pouca com ­


placência. Bõhm-Bawerk diz: “Aqui, Marx confunde duas coisas mui­
to diferentes: uma média de flutuações, e uma média entre quantidades
permanente e fundamentalmente desiguais” (ibid. , p. 37). A média sim­
plesmente explica com o os lucros podem ser “ anulados” para corres­
ponderem aos termos de valor. Esse exercício aritmético não pode
mostrar com o as relações de valor governam preços e lucros. C om o
Bõhm-Bawerk diz, não há “ flutuação” entre valor e preço, não há des­
vios, há diferença. Essa diferença é sistemática e precisa ser explicada
por um mecanismo.
2. (Este é o quarto ponto de Bõhm-Bawerk, mas é incluído aqui
por decorrer do primeiro.)
A tax a m édia de lucro q u e d ete rm in a o preço de p ro d u ç ã o deve, p o rém , ser sem pre a p ro ­
x im ad am en te igual ao v o lu m e de m ais-valia que se atrib u i a um cap ital com o u m a p a rte
a líq u o ta d o cap ital social to ta l.... O ra, com o o v alo r to tal d as m ercad o ria s g o v ern a a
m ais-v alia to ta l, e esta, p o r su a vez, d eterm in a o vo lu m e do lucro m édio e c o n seq ü en te­
m en te a tax a d e lucro geral - co m o um a lei geral ou lei qu e g o v ern a a flu tu ação - a lei do
v alo r reg u la o preço d e p ro d u ção . (O C apital, vol. 3, edição K e rr, p p . 211-12)

Pretende-se que o valor total das mercadorias governa a mais-valia to­


tal, com o se segue:
Ele determina o valor dos meios de subsistência e, portanto, do
trabalho necessário total (depois de deduzida a parte do capital cons­
tante que entra no valor dos produtos), é o total do qual esse trabalho
necessário é deduzido para dar a mais-valia total. Mais-valia total =
lucro total: portanto ela determina o volume de lucro a ser distribuído
entre os capitais (e, através de seu efeito sobre essa magnitude, a taxa
de lucro). Essas correspondências só existem se os termos de valor fo­
rem supostos: não explicam como as relações de valor são pertinentes
ou como podem ser pertinentes se não são estabelecidas diretamente
no processo de troca através das proporções pelas quais os produtos
são trocados. Também isso é uma conseqüência lógica da teoria do va­
lor e não um mecanismo pelo qual ela governa o processo capitalista
de circulação.
3. A lei do valor opera na produção simples de mercadorias e no
período de formação do capitalismo, mas é suplantada no capitalismo
desenvolvido. Bõhm-Bawerk desenvolve uma argumentação detalha­
da contra essa tese, que Hilferding responde com êxito. A questão, po­
rém, é que ela seria irrelevante com o “ argum ento” . N ão explica a rela­
ção entre valor e preço no capitalismo.
¿8 VALOR

4. (Este é o argumento que Bõhm-Bawerk cita em segundo lugar):


Este é o único exemplo de um possível mecanismo nos quatro “ argu­
mentos” citados por Bõhm-Bawerk. Em geral, é o único argumento
forte que poderia haver, e a ele aludimos acima.
A lei do valor governa os preços de produção, já que as modifica­
ções no tempo de trabalho necessário à produção faz com que o preço
de uma mercadoria caia em relação às outras. Bõhm-Bawerk argu­
menta que não é apenas o tem po de trabalho que faz isso. A s modifi­
cações do período de trabalho também reduzem a parte do capital
constante por unidade do produto, reduzem os custos gerais e portan­
to os preços. Pode-se objetar que Marx não está tentando explicar to­
das as modificações de preços, mas simplesmente expor o efeito da
produtividade do trabalho (com o faz Hilferding). Mas isso seria igno­
rar a questão. O exemplo de Bõhm-Bawerk mostra o fato de ser possí­
vel tratar as m odificações nos preços (neste nível) em termos das modi-
ficações nos custos de produção. O tempo de trabalho (tempo de tra­
balho concreto) é uma fonte dos custos, em paridade com outras. Para
negar isso, é necessário apresentar outros argumentos além desse cita­
do acima que explica por que somente o tem po de trabalho é a medida
do valor e som ente o trabalho é constitutivo do valor. O capital cons­
tante pode ser então, em última análise, reduzido a termos de traba­
lho, a “ trabalho m orto” . A poupança no capital constante simples­
mente reduz a parte do valor armazenada nele, que é transferida para
o produto. Isso nos faz voltar ao debate central básico, sem o encerrar.

Tempo de trabalho e utilidade


como bases de teorias do valor
O conceito de “ valor” de Marx surge em relação com o problema de
uma troca de equivalentes. Marx deve considerar a troca com o uma
equação. Marx busca o terceiro termo no qual duas mercadorias dife­
rentes em substância e qualidade podem ser consideradas com o “ i-
guais” , o que torna possível sua troca com o equivalentes. Bõhm-
Bawerk desafia a exaustividade da busca que faz Marx desse terceiro
termo: “ Por que então... não pode o princípio do valor residir em
qualquer dessas propriedades comuns, bem com o na propriedade de
serem produtos do trabalho?” (Karl M arx and the Close o fh is System ,
p. 75). Marx exclui todas as qualidades físicas dos bens que os levam a
ser valores de uso por serem heterogêneas e incomensuráveis. Mas
Bõhm-Bawerk diz que os valores de uso não são meramente específi­
cos; pode-se fazer abstração de suas formas físicas específicas e consi­
derar todos os valores de uso com o unificados pelo fato de terem utili­
dade (são objetos de necessidade ou desejo). E novamente: “ A pro-
BÕHM-BAWERK. E H IL F E R D IN G 59

priedade de ser escasso não está em proporção à procura comum a to­


das as mercadorias trocáveis?” (ibid., p. 75). Os valores de uso, argu­
menta Marx, são específicos, discrepantes e não-quantificáveis. Mas,
diz Bõhm-Bawerk, tanto o trabalho com o a utilidade têm seus aspec­
tos qualitativos e quantitativos. O trabalho são horas de tecelagem, de
costura, etc., bem com o horas de tempo de trabalho abstrato. D a mes­
ma forma, a utilidade pode ser quantificada. O desejo de alguns consu­
midores ou de todos eles é maior, em relação a essa mercadoria, do
que em relação àquela, ou a outra. A utilidade é medida nas mercado­
rias de que os consumidores estão dispostos a abrir mão para obter
outra mercadoria (dinheiro é uma expressão geral das utilidades). A
utilidade e a escassez poderiam explicar as proporções de troca das
mercadorias. Por que são inferiores ao trabalho? Marx não responde.
Simplesmente rejeita a questão do valor de uso na determinação da
forma física das mercadorias.
A resposta de Hilferding a essa observação simplesmente evita a
questão. Diz ele:
É u m a p ré-co n d ição d a possibilidade de tro ca de m ercad o ria s que elas possuam u tilid a­
de p a ra o u tro s, m as, co m o p a ra m im são d estitu íd as de utilidade, o v alor de uso de m i­
n h as m ercad o rias n ão é, em nenhum sentido, u m a m edida nem m esm o de m inha estim a­
tiva individual do valor, e a in d a m enos é um a m ed id a de q u a lq u e r estim ativa objetiva de
v alor. N ã o aju d a n ad a dizer que o valor de uso consiste na cap acid ad e dessas m ercad o ­
rias de serem tro c a d a s p o r o u tra s, pois isso sim plesm ente im plicaria que a a m p litu d e do
“ v alo r de uso” é ag o ra d e te rm in a d a pela am p litu d e do v alo r de tro c a , e n ão a am p litu d e
do v alo r de tro c a pela am p litu d e d o v alo r de uso. (H ilferding, B õhm -B aw erk's C riticism
o f M a rx (org. Sweezy), p. 126; publicado juntam ente com Bõhm-Bawerk, K arl M a rx
and lhe Close o f his S y s te m )

Segundo Hilferding, as mercadorias são destituídas de utilidade para


seu produtor (não têm valor de uso para ele, ele não dispõe de medida
de sua utilidade independente da troca). A utilidade não explica as
proporções da troca porque estas são essenciais no estabelecimento
daquilo que é a utilidade (utilidade e troca estão relacionadas num
círculo vicioso). Essa crítica ignora a natureza e a situação de uma teo­
ria da troca baseada na utilidade. O valor na teoria da utilidade é
“ subjetivo” . Em contraste, diz Hilferding: “ O trabalho é... uma mag­
nitude objetiva, inerente nas mercadorias e determinada pelo grau de
desenvolvimento da produtividade social” (Karl M a rx/B õhm -
B aw erk^ Criticism, p. 186). A dupla subjetivo-objetivo de Hilferding
mostra-nos a diferença dos critérios a que uma teoria do valor pode ter
de atender. Hilferding mede a teoria da utilidade pelo padrão da teoria
do valor-trabalho e a considera deficiente. Mas a noção de que uma
teoria do valor deve estabelecer o terceiro termo (no qual as mercado­
rias são equivalentes) independentemente dos resultados de trocas es­
pecíficas é imposta por Hilferding. Ela não critica uma teoria utilitária
60 VALOR

do valor de troca, com o tal (simplesmente nos diz que não é uma teo­
ria do valor com o a de Marx).
Evidentemente, as trocas são necessárias a uma teoria do valor-
utilidade - ela é, com o Hilferding reconhece, apenas uma teoria do va­
lor de troca. A trocâ envolve a interação de dois objetos capazes de ser
utilidades e dois estimadores do valor (utilidade) desses objetos. Cada
utilidade é medida na outra - as trocas encerram sempre uma disposi­
ção de abrir mão de alguma coisa para obter outra coisa. É certo que
ambas as utilidades são medidas nos objetos pelos quais são trocadas
- dependem da troca com o sua medida (as mercadorias têm uma utili­
dade para seus possuidores - essa utilidade é medida em outras merca­
dorias de uma qualidade de natureza, ou quantidade, pela qual eles
não as trocarão). A utilidade deve ser relativa às trocas, com o uma teo­
ria do valor de troca - ela explica as trocas com o uma interação de de­
sejos ou necessidades. Em última análise, as proporções de troca são
determinadas pelos respectivos desejos das respectivas utilidades.
A objeção de Hilferding é em essência epistemológica - relacio­
na-se com o status da explicação (seu “subjetivismo”) e o problema ex­
plicado (valores de troca). Ele não critica uma teoria utilitária da troca
com o tal. Embora, é claro, ela possa ser criticada e de forma devasta­
dora. N ão questionam os a resposta de Hilferding no interesse dessa
teoria. Mas a sua crítica é pouco hábil, pois não trata da posição do
conceito de valor de uso na teoria do valor de Marx. Veremos, ao dis­
cutirmos Rubin, que Marx não pode dispensar a categoria do valor de
uso com o parte central da teoria do valor com o lei de distribuição do
trabalho social.
Para explicar a pertinência do tempo de trabalho com o terceiro
termo, Marx teria de explicar por que a distribuição do produto toma
a forma de uma lei de distribuição do trabalho social. N o livro 1,
com o já vimos, ele afirma a necessidade e o primado dessa lei, mas não
justifica a sua necessidade.

Oferta e procura
Bõhm-Bawerk acusa Marx, com razão, de incoerência na questão da
oferta e procura. D e um lado, Marx critica o valor explicativo desse
conceito e, de outro, o utiliza em pontos centrais de sua teoria.
Marx nega a pertinência geral da oferta e procura para a explica­
ção dos preços. D iz ele:
Se a p ro c u ra e a o fe rta se eq u ilib ram , deixam de agir. Se duas fo rm as agem igualm ente, e
em direções o p o sta s, se neutralizam - n ã o pro d u zem nenhum resu ltad o , e fenôm enos
q u e o correm nessas condições devem ser explicados p o r algum outro m eio que não essas
forças. Se a o ferta e a p ro c u ra se cancelam m u tu am en te, e n tã o deixam de explicar qual­
quer coisa, não a feta m o valor de mercado, e nos deixam to talm en te no escuro q u a n to às
BÕHM-BAWERK. E H IL F E R D IN G 61

razões pelas quais o v alor de m ercado se deveria expressar nesta, e não em o u tra, som a
de d in h eiro . ( O Capital, vol. 3, edição K err, pp. 223-4)

Bõhm-Bawerk não tem problemas para demolir essa argumentação.


Primeiro, a oferta é sempre igual à procura num determinado preço:
É certo que, q u an d o u m a m ercad o ria é vendida pelo seu valor h ab itu al de m ercado, a ,
o ferta e a p ro cu ra devem , num certo sentido, equilibrar-se; isto é, a esse preço, é real­
m en te p ro cu ra d a a m esm a q u a n tid a d e d a m ercad o ria que é oferecida. M as isso não
o co rre ap en as q u a n d o as m ercad o ria s são vendidas a um v alor norm al de m ercado, m as
a q u alq u er v alo r de m ercado que sejam vendidas, m esm o q u an d o se tra ta de um v alor ir­
reg u lar e variável. (K arl M a r x / B õhm -B aw erk's C riticism , p. 94)

Em segundo lugar, a noção de que quando oferta e procura são iguais


deixam de agir é específica a uma teoria definida de preços e suas fun­
ções. Bõhm-Bawerk tem uma teoria geral das funções dos preços que é
diferente; nela a função geral atribuída aos preços é a de igualar a ofer­
ta e a procura. Para ele, oferta e procura são quantidades elásticas, de­
terminadas direta ou indiretamente pelas utilidades. A oferta e a pro­
cura efetivas não são dadas, mas formadas nas relações de troca; a
oferta e a procura efetivas se igualam a um determinado preço. Essa
condição (oferta = procura) é um efeito dos movimentos de oferta-
procura (e seus determinantes). O preço é determinado pela relação da
oferta e da procura - tal “ equilíbrio” é um efeito das forças que agem
mutuamente e não uma suspensão dessas forças.
Diz Bõhm-Bawerk:
S u p o n d o ser apenas a p arte bem -sucedida da o ferta e da p ro cu ra , em equilíbrio q u a n ti­
tativ o , que afeta a fixação de um preço, é errô n eo e pou co científico supor que as forças
q u e se m an têm recip ro cam en te em equilíbrio “ deixam de ag ir” . Pelo co n trário , o estado
de eq u ilíb rio é p recisam ente o resultado de sua ação, e q u an d o é necessário dar um a ex­
p licação p ara esse estado de equilíbrio com to d o s os seus detalhes - dos quais um dos
m ais d estacad o s é a a ltu ra do nível em que o equilíbrio foi en co n trad o - ela certam ente
n ão p o d erá ser d a d a d e o u tra form a senão pela ação dessas duas forças. (Ibid., p. 95)

Bõhm-Bawerk não acredita que a oferta e a procura sejam forças auto-


explicativas. Elas têm seus determinantes (são para ele predominante­
mente psicológicos): “ N ão é absolutamente minha opinião que uma
explicação realmente completa e satisfatória da fixação de preços per­
manentes esteja contida na referência à fórmula de oferta e procura”
(ibid., p. 97).
Duas concepções diferentes da pertinência dos preços enfrentam-
se aqui. Para Marx, a função primária dos preços no capitalismo é
equiparar as taxas de lucro em diferentes ramos da produção, e entre
capitais de diferentes com posições orgânicas. Essa função é na realida­
de desempenhada quando a oferta e a procura se igualam (a oferta e a
procura sendo consideradas com o quantidades objetivas que corres­
pondem a certa com posição do produto social). Quando essa função é
alcançada, os preços deixam de agir, para Marx. A sua posição quanto
62 VALOR

ao papel dos preços em seu próprio sistema não pode servir de base
para uma crítica de outras teorias diferentes de preços ou de valores.
Ele-tenta usá-la assim. A o rejeitar o argumento de Marx, não há razão
para aceitarmos a teoria geral do preço de Bõhm-Bawerk ou qualquer
outra.
A concorrência é central para a teoria do valor de Marx e para a
teoria dos preços de produção. N a produção simples de mercadorias, a
concorrência dos produtores do mesmo ramo socializa os efeitos da
troca - forçando os produtores a se adaptarem ao tempo de trabalho
fixado com o necessário através da quantidade de outros produtos que
recebem em troca dos seus. Em nossa discussão de Rubin, veremos
que a procura socialmente necessária im põe as condições de concor­
rência aos produtores, definindo a “ superprodução” e a “ subprodu-
ção” . A concorrência deve ser relativa às condições de mercado esta­
belecidas pela relação oferta/procura. D a mesma forma, a concorrên­
cia entre capitais leva à formação de uma taxa média de lucro igual. O
capital se movimenta livremente para igualar as taxas de lucro, entran­
do em setores onde os lucros são elevados, e deixando aqueles onde
são baixos. A oferta de capital, e sua procura efetiva, é relativa às ta­
xas previstas de retorno sobre o capital. Marx, com o Bõhm-Bawerk,
postula um sujeito econôm ico racional (o investidor capitalista) que
maximiza o retorno sobre o seu capital. Bõhm-Bawerk tem razão ao ar­
gumentar que Marx não teoriza rigorosamente a “ concorrência”
com o um processo do mercado, mas tende a usar a teoria da oferta e
da procura de uma forma suposta e pouco rigorosa.

Redução do trabalho
Bõhm-Bawerk problematiza a redução que Marx faz do trabalho qua­
lificado a “ trabalho médio simples” . Argumenta também que diferen­
tes formas concretas de trabalho recebem diferentes recompensas. A
redução do trabalho feita por Marx na realidade funciona sobre as ta­
xas de salário - trata o trabalho “ qualificado” com o um múltiplo do
não-qualificado. Isso é possível porque o trabalho “ qualificado” ga­
nha uma certa proporção a mais do que o não-qualificado e portanto é
considerado com o representando tanto mais trabalho médio simples.
Bõhm-Bawerk objeta: “ Marx certamente diz que o trabalho qualifica­
do ‘conta’ com o trabalho não-qualificado multiplicado, mas ‘contar
com o’ não é ‘ser’, e a teoria trata do ser das coisas” (K arl M a r x /Bõhm-
B aw erk’s Criticism, p. 82). Os diferentes trabalhos são relacionados
através de suas recompensas, e suas recompensas são tomadas das
condições de troca predominantes:
... o p a d rã o d e red u ção é d e te rm in a d o exclusivam ente petas p ró p ria s relações reais de
HÕH M - B A W E R K E H I L F E R D I N G 63

Iroca... N essas circunstâncias, qual é o significado do recurso ao “ valor” e ao “ processo so­


cial" com o fato res d eterm in an tes do p a d rã o de red u ção ? À p arte q u alq u er o u tra coisa,
isso significa sim plesm ente qu e M arx está a rg u m e n ta n d o de m odo to ta lm e n te circular.
( I h i d p. 83)

Os salários qualificados são divididos pelos não-qualificados - um sa­


lário é dividido por outro. Isso é possível aritméticamente, mas não
prova que o trabalho qualificado seja simplesmente um tanto de traba­
lho não-qualificado “concentrado” , prova apenas que os salários dife­
rem nessa proporção.
Hilferding tem a seguinte resposta para os'argumentos de Bõhm-
Bawerk. Primeiro, afirma corretamente que não há uma relação neces­
sária entre o valor da força de trabalho (salários) e o valor criado pelo
dispêndio dessa força. N ão podem os, com o Bõhm-Bawerk tenta fazer,
considerar o salário do trabalhador qualificado com o um efeito de sua
capacidade superior de criar valor. Essa objeção de Hilferding é válida
em termos da teoria do valor-trabalho, mas, supondo-se uma teoria do
valor-utilidade e tratando-se de artesãos que vendem os produtos de
seu trabalho, Bõhm-Bawerk pode argumentar que o trabalho de um
Cellini cria objetos de maior utilidade (valor estético para os conhece­
dores) do que o trabalho de um ourives comum e, em conseqüência,
recebe maior recompensa (os conhecedores estão dispostos a abrir
mão de mais utilidades para obter o Cellini do que um trabalho co­
mum). Isso não significaria que um Cellini assalariado recebesse todo
o valor superior de seu produto. O trabalho qualificado e o não-
qualificado diferem, argumenta Hilferding, em termos dos custos de
sua reprodução. U m a parte maior de trabalho não-qualificado entra
na criação de um trabalhador qualificado do que na de um não-
qualificado - esse custo de produção em trabalho se reflete no salário.
Isso supõe que os termos de redução do trabalho operam, que pode­
mos tratar a força de trabalho qualificada com um certo volume de
trabalho não-qualificado nela investido. Segundo, Hilferding argu­
menta que Bõhm-Bawerk tem uma teoria positivista da medida.
Bõhm-Bawerk pede que Marx prove sua posição por referência a de­
terminadas taxas de salário - mas Marx não se interessa por essas dife­
renças salariais imediatas. Seu objetivo é mostrar que a longo prazo os
salários obedecem à teoria do valor, que a força de trabalho qualifica­
da tem seu valor m odificado com os custos de sua produção e que as
forças de trabalho mudam de valor em função das modificações de
produtividade, e que novos processos de trabalho “ desqualificam” o
trabalhador e reduzem o valor de sua força de trabalho.
Dizer que Bõhm-Bawerk, devido ao seu positivism o, ignora o
efeito das relações de valor sobre os salários é também, necessariamen­
te, afirmar que se pode dar uma explicação desse efeito. Os salários
têm determinantes de valor e devem, a longo prazo, conformar-se a
64 VALOR

eles. A força de trabalho é uma mercadoria e deve ser governada pela


lei do valor. Marx sustenta que a força de trabalho tem um valor (o va­
lor de seus meios de reprodução), que esse valor é determinado social­
mente (pela produtividade do próprio trabalho e por circunstâncias
histórico-culturais), e que o trabalho médio simples tem uma forma
social objetiva (corresponde às realidades da mobilidade de trabalho
no capitalismo). Os salários podem, portanto, ser analisados em e re­
duzidos a termos de valor. Para se argumentar isso, duas equivalencias
devem ser criadas: a primeira, entre as taxas de salário de trabalhado­
res não-qualificados e os meios de subsistência mínimos históricos pre­
dominantes; a segunda, entre o trabalho não-qualificado e o trabalho
médio simples.
A primeira equivalência supõe que as taxas salariais dos trabalha­
dores não-qualificados refletem o valor da força de trabalho; corres­
pondem aos custos de reprodução do trabalhador (mínimo histórico
de subsistência). A obtenção da média dos efeitos das modificações na
procura de trabalho num determinado período dará o nível de salário
predominante. Isso supõe que a existência de uma população exceden­
te relativa e a concorrência no mercado de trabalho mantêm a taxa no
mínimo histórico necessário (é uma suposição dúbia, pois implica que
a população e a procura de trabalho são determinadas por leis econô­
micas); de outro modo, a força de trabalho não-qualificada seria ven­
dida consistentemente acima de seu “valor” .
A segunda equivalência é porém crucial para qualquer redução
calculável do trabalho, e não meramente para uma redução positivis­
ta. Torna possível a comparação de um determinado trabalho - o tra­
balho não-qualificado conta como trabalho médio simples. A o fazer
essa suposição, e supondo também que o trabalho qualificado seja di­
ferente do não-qualificado (a longo prazo) segundo o custo de sua re­
produção, então as diferenças salariais servem com o o padrão de redu­
ção: um salário pode ser dividido pelo outro. Os salários refletem o
processo social. Mas o trabalho não-qualificado pode ser contado
como trabalho médio simples? N ão será o trabalho “ não-qualificado”
simplesmente uma categoria de classificação para diferentes tipos de
trabalhos concretos? O trabalho dos operários de construção e o de la­
vadores de pratos são “ não-qualificados” , e não obstante essas dife­
rentes formas concretas de trabalho não são cambiáveis entre si. Têm di­
ferentes mercados de trabalho; diferentes condições de entrada e ofer­
ta de trabalho. A diferença não é simplesmente uma diferença na for­
ma material do trabalho. Essas ocupações formam divisões distintas
do mercado de trabalho e da força de trabalho, e em conseqüência as
taxas salariais de trabalhadores “ não-qualificados” diferem ampla­
mente. O trabalho “ não-qualificado” só existe com o uma categoria
Il(')l I M-BAWlíRK . H l l l l . l K R D I N G 65

iiiiilári;) cm relação ao trabalho “qualificado". Os trabalhos agrupados


soh essa classificação são trabalhos concretos não-homogêneos, e não
irabalho médio simples hom ogêneo e intercambiável. Bõhm-Bawerk
nrto faz diretamente essa observação, que solapa a calculabilidade da
redução de trabalho em princípio. Bõhm-Bawerk levanta a questão de
que a teoria do valor-trabalho exige uma unidade não-diferenciada
como sua medida, e que os trabalhos são, porém, distintos na forma e
remuneração. Marx efetua a redução de alguns desses trabalhos a uma
base suposta, mas essa redução é, na verdade, o uso de um tipo de tra­
balho (“ não-qualificado” ) e seus salários para servir de unidade de ou-
tro.
O trabalho “ qualificado” , pode-se argumentar, obtém sua vanta­
gem salarial não de seu maior custo de reprodução, mas (em geral) de
uma posição superior de barganha. A questão da determinação do va­
lor da força de trabalho não pode ser examinada apenas em relação
com a teoria do valor. Ela suscita questões sobre a natureza do merca­
do de trabalho, do exército industrial de reserva e dos determinantes
dos salários. Essas questões não podem ser solucionadas no nível do
conceito geral do m odo de produção capitalista, como O Capital pro­
cura fazer (ver Parte II).
Concentramo-nos nas críticas do texto de Bõhm-Bawerk que de­
vem ser levadas a sério. Além delas, há numerosas outras, improce­
dentes, e que já foram exaustivamente examinadas, não havendo ne­
cessidade de acrescentar nada às observações de Hilferding sobre o as­
sunto. U sam os as questões de Bõhm-Bawerk sobre os problemas da
teoria do valor de um m odo bastante diferente do uso que ele mesmo
lez delas: servem com o um ponto de partida em relação a certos
problemas. Bõhm-Bawerk não podia oferecer alternativa a O Capital.
Hilferding tem razão ao argumentar que ele não tem concepção da
análise que Marx faz da estrutura do m odo de produção capitalista.
Limita sua análise à crítica do valor com o uma teoria “econôm ica” .
Só os marxistas 2 podem fazer um exercício construtivo da rejeição da

! N ã o d izem os isso n u m se n tid o exclusivo e sectário - q uerem os dizer ap en as que


aqueles que co m p reen d eram as posições teóricas de M a rx e estão dispostos a um tra b a ­
lho teó rico em relação a elas po d em p ro d u zir p ro g resso s reais nessa área. A fidelidade
sectária n ão p o d e senão p re ju d ic a r a p rá tic a a b erta, h o n esta e crítica necessária ao p ro ­
gresso teó rico . Isso exige a discussão séria de críticos que são sérios. Bõhm -B aw erk le­
vou O Capital a sério - a leitu ra qu e faz d as p artes q u e co n sid ero u relevantes p a ra a te o ­
ria “ eco n ô m ica” (livro 1, p a rte 1, e livro 3, p artes I—111) é m eticulosa e segue o discurso
de M a rx d e p erto . H ilferding reconheceu isso e ren d eu -lh e h o m enagem (K arl M a r x /
B õhm -B aw erk's Criticism , p. 122) - m as, p a ra m u ito s m arx istas m o d ern o s, ele n ão é dig­
no de q u alq u er co n sid eração .
66 VALOR

teoria do valor de Marx, porque somente eles podem desenvolver e


expandir, com o conseqüência, a teoria das relações sociais capitalis­
tas de Marx. N ão o farão, se deixarem de reconhecer e simplesmente
rejeitarem o que é sério na crítica negativa de adversários como Bõhm-
Bawerk.

A resposta de Hilferding
N ão .vamos examinar aqui a resposta de Hilferding a Bõhm-Bawerk;
já fizemos acima referência a alguns de seus pontos, e alguns outros se­
rão tratados em maior detalhe em nossa discussão de Rubin. Vamos
concentrar-nos aqui na concepção que Hilferding tem da luta crítica
em que está empenhado e na relação que isso estabelece entre a teoria
de Marx e a intervenção de Bõhm-Bawerk em seu texto.
Hilferding começa estabelecendo o lugar do crítico na moderna
ciência econôm ica - explicando por que uma crítica de Marx deveria
ser importante para Bõhm-Bawerk. A Economia burguesa vulgar ig­
nora Marx, ou se limita à injúria ideológica. Abandonou qualquer ten­
tativa de explicar a totalidade das relações econômicas de forma rigo­
rosa e teórica. A escola psicológica é a exceção notável a essa degene­
ração:
O s p a rtid á rio s dessa escola se assem elham aos econom istas clássicos e aos m arxistas po r
se em penharem em ver os fenôm enos econôm icos a p artir de um a perspectiva unitária.
O p o n d o -se a o m arxism o com u m a teoria circu n scrita, sua critica tem um c a rá te r siste­
m ático, e sua a titu d e crítica lhes é im p o sta p o rq u e eles p a rtira m de prem issas totalm en te
diferentes. (Karl M a rx /B o h m -B a w e rk 's C riticism , p. 122)

O caráter, tanto da crítica com o da contracrítica, está delineado. A


crítica desafia Marx de uma certa posição; ela o vê através das lentes
refrangentes e deformadoras de suas “premissas totalmente diferen­
tes”. A contracrítica será, essencialmente, um mapeamento dessa dife­
rença de premissas, traçando linhas entre as posições opostas, e m os­
trando as percepções errôneas que resultam do ponto de vista das pre­
missa opostas. A resposta de Hilferding é essencialmente uma tentati­
va de reduzir as críticas de Bõhm-Bawerk a uma série de erros de per­
cepção condicionados, não-reconhecimentos de aspectos centrais da
teoria de Marx e má percepção de outros aspectos. Responder a
Bõhm-Bawerk é apresentar a própria teoria de Marx, a partir de suas
premissas próprias, e levar a guerra ao campo adversário, desafiar as
premissas da “escola psicológica” e seus efeitos teóricos.
O terreno do confronto é o da teoria do valor-utilidade contra a
teoria do valor-trabalho. Hilferding começa tentando dar à utilidade o
seu lugar no marxismo. A utilidade não tem, em seu equivalente mar­
xista (valor de uso), nenhum lugar real na ciência social:
B Õ H M -B A W E R K . e h il f e r d in g 67

A m ercad o ria é u m a u n id a d e de valor de uso e de valor, m as podem os considerá-la sob


dois asp ecto s diferentes. C o m o coisa n a tu rai, é o b je to d a ciência n atu ral; com o coisa so­
cial, é o o b jeto d e u m a ciência social, o o bjeto da E co n o m ia P olítica. O ob jeto da E co­
nom ia P olítica é o asp ecto social da m ercad o ria, dos bens, na m edida em que constitui
um sím bolo da in terco m u n ic ação social. P o r o u tro lado, o aspecto n a tu ra l d a piercado-
ria, seu v alo r de uso , está fo ra d o d o m ín io da E co n o m ia P o lítica. (Ibid., p. 130)

Temos aqui uma oposição entre a forma social/sim bólica (objeto da


Economia Política) e as propriedades naturais da coisa (objeto da
ciência natural). O valor de uso é excluído da teoria econômica. Tor-
na-se alguma coisa incidental, material e técnica em relação ao pro­
cesso de troca social/sim bólico. Hilferding adota a posição radical de
que a Economia Política tem por objeto a fo rm a da intercomunicação
social, não o conteúdo desse processo (Stoffsw echsel). Poi* essa posição,
o conteúdo seria excluído da Economia e com ele qualquer explicação
sobre a razão da produção de certas mercadorias, as quantidades nas
quais são produzidas e os determinantes do consum o das mercadorias.
Hilferding não mantém essa posição, nem poderia fazê-lo dé forma
coerente.
Para ele, os valores de uso são individuais, antes que sociais: “ Um
valor de uso é uma relação individual entre uma coisa e um ser huma­
no... exclusivamente em sua individualidade pode um valor de uso ser
medida de qualquer estimativa pessoal de valor” (ibid., p. 131). Com o
tal, é a-histórico e associai, e qualquer teoria do valor nele baseada
deve partilhar desses atributos:
T o d a teo ria d o v alo r que p a rte do valor de uso, isto é, das qualidades n a tu ra is de um a
co isa... p arte d a relação individual en tre um a coisa e um ser h u m an o , em lugar de p artir
das relações sociais d os seres h u m an o s en tre si. (Ibid., pp. 132-3)

Isso se baseia nos binôm ios individual-social, natural-social. O valor


de uso nasce dos atributos naturais das coisas e só existe para os in­
divíduos. N a posição de Hilferding, isso é absurdo e contraditório;
para ele, uma certa distribuição do trabalho, e portanto de seus produ­
tos, é socialmente necessária e em toda sociedade os produtores estão
sempre associados, qualquer que seja o m odo de associação. Os valo­
res de uso só podem ser socialmente úteis aos indivíduos sociais. D e
onde, então, vem o estigma de naturalidade? Ele surge porque a procu­
ra e a utilidade devem ser declaradas não-pertinentes. A utilidade não
pode ter um lugar nas relações sociais sem fazer da procura um deter­
minante daquilo que é consum ido e, portanto, em última análise, do
que é produzido (com o iremos ver ao discutirmos Rubin).
Essa caracterização do valor de uso com o natural/individual
pode ser facilmente refutada pelos teóricos da utilidade. A teoria utili­
tária supõe, necessariamente, uma variedade de utilidades, o cálculo
dos valores e prioridades entre coisas. C om o uma teoria de troca, ela
68 VALOR

supõe (com o já vimos) a definição de utilidades nos objetos pelos


quais um bem será trocado. As utilidades são relativas ao processo so­
cial de troca e são medidas em outras utilidades. A teoria utilitária su­
põe um sujeito universal, o sujeito calculador do desejo e da necessida­
de. Economizar e maximizar a satisfação das utilidades, distribuir re­
cursos escassos segundo prioridades, é um atributo humano universal.
Mas se a utilidade é a-histórica e eterna, não o será também o traba­
lho?
C om o explica Hilferding a pertinência geral da teoria do valor?
Afirmando que o trabalho é o elemento constitutivo na sociedade hu­
mana: “ M arx... parte do trabalho em sua significação com o o elemen­
to constitutivo na sociedade humana, com o o elemento cujo desenvol­
vimento determina, em última análise, o desenvolvim ento da socieda­
de” (Ibid., p. 133). E continua:
... n o p rin cíp io do v alo r ele c o m p reen d e o fa to r (tra b a lh o )... p o r cu ja o rg an ização e
energia p ro d u tiv a a vida social é cau salm en te c o n tro la d a . A idéia eco n ô m ica fu n d am en ­
tal é, em co n seq ü ên cia, idêntica à idéia fu n d a m e n ta l da co n cep ç ão m aterialista d a h istó ­
ria. (Ibid., p 133)

A um naturalismo associai contrapõe-se um materialismo histórico/


social. Mas quais as bases desse materialismo? O trabalho é o elemen­
to constitutivo na sociedade: os hom ens, à falta de uma determinada
natureza e dependendo dos meios de subsistência para viver, fazem-se
a si mesmos ao produzirem seus m eios de subsistência. N o caso de H il­
ferding, essa constitutividade baseia-se numa Antropologia engelsia-
na/neodarwiniana, e não numa Antropologia hegeliana. Faz, não obs­
tante, do trabalho uma necessidade antropológica trans-histórica. O
trabalho é constitutivo devido à natureza humana (materialismo-
naturalismo) e o é através da história (é uma necessidade trans-
histórica, eterna). O binôm io eterno/natural também pode ser im pos­
to ao marxismo.
A esse nível de “premissas” , uma A ntropologia enfrenta a outra:
hom o economicus versus homo faber. Hilferding procura dar ao marxis­
mo uma situação privilegiada através dos binôm ios natural-social, in­
dividual-social, eterno-histórico. Esses binôm ios são problemáticos, e
nenhum privilégio é possível no terreno onde um essencialismo (do su­
jeito) enfrenta outro (a humanidade com o sujeitos trabalhadores).
Convencido da “ objetividade” de sua posição, Hilferding não pode re­
conhecer a impossibilidade de uma m etafísica da Econom ia Política.
Os essencialismos podem apenas rivalizar-se uns com os outros.
O “ valor com o sím bolo” surge em condições sociais definidas.
Refletindo a atom ização social da produção causada pela propriedade
privada e pela produção privada. O “ valor com o sím bolo” é a maneira
pela qual a necessidade social de uma certa divisão do trabalho, uma
U O H M -B A W ER K e h il f e r d in g 69

distribuição do trabalho em proporções definidas, é imposta aos pro­


dutores. A ordem simbólica do valor representa o que é manifesto e
imediatamente compreensível na produção socializada:
A sociedade atribuiu, p o r assim dizer, a cada um de seus m em bros a quota de trabalho so­
cial necessária à sociedade; especificou a cada indivíduo quanto trabalho ele deve gastar. E
esses indiv íd u o s esq u eceram qual era a sua q u o ta e só a redescobrem no processo da
vida social. (Ibid., p. 134)

O simbolismo do valor lembra aos produtores atomizados que são


membros da sociedade, impõe-lhes as exigências da sociedade. O valor
é o mecanismo que, providencialmente, dá à produção atomizada o
efeito de produção socializada: impõeíuma necessária divisão social do
trabalho. Examinaremos mais detalhadamente essa lei teleológica do
valor quando discutirmos a obra de Rubin e mostraremos então que
ela exige um conceito que não é em nada estranho ao marginalismo, o
“equilíbrio” .
Essa providencial lei do valor governa as relações sociais capita­
listas. Leva a um sistema providencial de preços de produção. Hilfer­
ding argumenta que a oferta e a procura são epifenómenos. A oferta e
a procura se igualam em certo nível de preço devido a certas necessida­
des da produção capitalista.
P ara que o cap italista p o ssa c o n tin u a r a p ro d u zir, deve ser capaz de vender as m ercad o ­
rias a um preço q u e seja igual a o seu preço de cu sto m ais o lucro m édio. Se n ão puder
o b ter esse preço... o pro cesso de rep ro d u ç ão se detém , e a o ferta é reduzida ao p o n to em
que as relações e n tre a o fe rta e a p ro c u ra to rn a m possível realizar tal preço. A ssim , a re­
lação en tre a o ferta e a p ro c u ra deixa de ser u m a sim ples q u estão de acaso: percebem os
que ela é reg u lad a pelo preço de p ro d u ç ã o , que co n stitu i o cen tro em to rn o do qual os
preços de m ercad o flu tu a m ... A ssim , o preço de p ro d u ç ã o é u m a con d ição da o ferta, da
rep ro d u ç ão das m ercad o rias... pois só en tã o p o d e o cu rso do m o d o de p ro d u ç ã o ca p ita ­
lista c o n tin u ar im p e rtu rb a d o , e som ente en tão p o d e o co rre r a rep ro d u ç ão p erp étu a,
atrav és d o p ró p rio cu rso do processo de circulação, das precondições sociais de um
m o d o de p ro d u ção cu ja fo rça m o triz é a necessidade do capital de criar m ais-valia. (/-
bid., pp. 194-5)

Os preços de produção são “preços de equilíbrio” para o m odo de


produção capitalista. Somente através dessa estrutura de preços po­
dem as relações de produção capitalistas ser preservadas; somente os
“ preços de equilíbrio” proporcionam uma taxa média de lucro igual,
de modo que todos os setores do capital se possam reproduzir (e eles
são interdependentes). N o conceito de “ equilíbrio” , vemos a esperan­
ça econom icista de um fim das relações de produção capitalistas. O “e-
quilíbrio” , o estado da vitalidade do capitalismo, é também a sua
ameaça de morte.
Se forem ameaçadas as condições de equilíbrio, a não-reprodução
sistemática se torna possível, uma não-reprodução sistemática que so­
lapa as relações de produção. Esta fantasia é o aspecto sombrio de um
70 VAI OR

funcionalismo - a morte que aguarda o organismo quando seus meca­


nismos vitais são inibidos. Baseia-se numa interdependência orgânica, a ne­
cessidade de uma certa divisão do trabalho. Mas o capitalismo deixou
desaparecerem, o tempo todo,certos ramos da produção e criou outros
novos. Grupos inteiros de indústrias sofreram taxas de lucro abaixo da
média e prejuízos durante décadas. A com posição da divisão do traba­
lho social se modifica constantemente e por vezes de maneira maciça.
Se as econom ias capitalistas sobrevivem, será porque novos “ e-
quilíbrios” são constantemente restabelecidos? Mas, se assim é, ne­
nhuma “estrutura de equilíbrio” da divisão do trabalho é necessária.
A posição de Hilferding sobre os preços de produção revela sua con­
cepção econom icista das condições de existência das relações capitalis­
tas de produção. Essas relações não dependem de algum “ estado” da
econom ia. Operam (com efeitos variáveis) em todos os estados da eco­
nomia. Essas relações só podem ser substituídas por práticas (econôm i­
cas e políticas) que construam outras relações de produção. O funcio­
nalismo e o econom icism o encerrados na “ lei do valor” são expostos,
com demasiada clareza, nesse trecho de Hilferding.
Capítulo 3

/./. Rubín - Ensaios sobre


a Teoria do Valor de Marx

O texto de Rubin é, possivelmente, a mais séria e sistemática tentativa


de apresentar e defender a teoria de valor de Marx, fora do próprio O
C apitai Rubin tom a a mesma posição de Hilferding sobre o status teó­
rico do problema do “valor” . Esse problema não é exclusivamente
preocupação de uma ciência da “ Econom ia” especial e independente,
cujo objeto é explicar ou expor os fenôm enos que ocorrem no processo
de troca. O valor é um problema que interessa à efetividade de relações
sociais de produção específicas. Ê parte da teoria do materialismo his­
tórico, que, ao contrário da “ Econom ia” , se ocupa das condições de
existência e dos efeitos das relações sociais com o um problem a. A E co­
nomia Política teórica é uma ciência subordinada ao materialismo his­
tórico; ocupa-se, com o a “ Econom ia” , de um tipo de sistema de pro­
dução social apenas - a econom ia m ercantil/capitalista. O materialis­
mo histórico proporciona à Economia Política a base para uma análi­
se crítica das relações sociais m ercantis/capitalistas, ao contrário da
Economia Política burguesa, ou “econom ia” , que toma essas relações
com o um ponto de partida sobre o qual não há necessidade de refle­
xão.
Críticos com o Bõhm-Bawerk deixam de reconhecer a forma teóri­
ca que Marx dá ao problema do valor. O objeto de Marx é visto erro­
neamente por esses críticos - criando objeções improcedentes. Bõhm-
Bawerk critica Marx pelas contradições inerentes a uma teoria dos
preços baseada no valor-trabalho equiparando o objeto de Marx com
o seu próprio objeto. Rubin questiona a afirmação de Bõhm-Bawerk
de que Marx deduz o valor do trabalho do problema da troca de equi­
valentes. A apresentação de Marx do problema e seu método de análi­
se são diferentes - o processo de análise não pode ser equiparado ao de
exposição. Bõhm-Bawerk identifica análise e exposição porque conce­
be o m étodo de Marx com o uma dedução lógica. Marx não chega aos
seus resultados pela simples abstração lógica, mas pela penetração da
essência das relações sociais do capitalism o. Essa penetração exige o
método dialético, o único capaz de respeitar as complexidades e con-
72 VALOR

tradições na própria realidade. N a análise (ao contrário da exposição)


Marx não parte da troca: as relações de troca são efeitos de relações
sociais de produção bem definidas: “ A teoria do valor-trabalho não é
baseada numa análise das transações de troca com o tais em sua forma
material, mas numa análise das relações de produção sociais expressas
nas transações” (Essays on M a r x s Theory o f Value, p. 62). Marx não
pode tomar as relações de troca com o um problema em si mesmas por­
que elas são efeitos, somente a análise da produção em suas formas so­
ciais definidas torna possível uma apresentação adequada do proble­
ma do valor.
Bõhm-Bawerk questiona a teoria marxista do valor porque os
tempos de trabalho não explicam os preços pelos quais certas merca­
dorias (obras de arte, parcelas de terra) são trocadas. M as a teoria do
valor-trabalho não se empenha em estabelecer o trabalho com o a
“substância” que torna possível e explica todas as trocas. O dinheiro é
a forma material na qual as trocas de equivalentes são feitas na socie­
dade m ercantil/capitalista. Essa forma não está isenta de efeitos: “A
forma material tem sua lógica própria e pode incluir outros fenômenos
que ela expressa numa determinada formação econôm ica” (ibid., p.
46). Daí poder o dinheiro ser usado para comprar quadros a preços
que não têm relação com o tempo de trabalho neles materializado, ou
mercadorias com o a terra, produtos da natureza que não têm valor.
Essas trocas são efeitos derivados da forma material de troca num tipo
de sociedade bem definido. A teoria do valor se ocupa dessas relações
sociais, com a troca dos produtos do trabalho. A categoria de “valor”
é uma parte da lei de distribuição do trabalho social e não simplesmen­
te um m eio de explicar a possibilidade de troca de todas as mercado­
rias:
... M a rx an a lisa o a to de tro c a ap en as na m ed id a em q u e d esem p en h a um papel especifi­
co n o p ro cesso de re p ro d u ç ã o e está in tim am en te ligado a esse p rocesso. A teo ria d o va­
lo r de M a rx n ã o an alisa to d a tro c a de coisas, m as ap e n a s a tro c a q u e ocorre: 1) n u m a so­
ciedade mercantil-, 2) e n tre produtores a u tô n o m o s de m ercadorias; 3) q u a n d o está ligada
ao processo de reprodução de um a d e te rm in a d a m an eira, re p re se n ta n d o assim u m a das
fases d o processo de re p ro d u ç ã o . A in terlig aç ão d o s processos de tro c a e d istrib u ição do
tra b a lh o n a p ro d u ç ã o n o s leva... a n o s co n c e n tra rm o s no v alo r dos p ro d u to s d o tr a b a ­
lho (em o p o siç ão a bens n a tu ra is q u e têm um p reço ...) e e n tã o so m e n te nos p ro d u to s
q u e p o d em ser rep ro d u z id o s. (Ibid., p p. 100-1)

A posição central dos produtos reproduzíveis do trabalho não é uma


“exclusão” ou “ lim itação” da teoria de Marx, mas a sua força: Marx
explica, pela teoria do valor, a articulação da produção e distribuição,
a posição central da distribuição do trabalho social para o processo de
reprodução.
O m étodo de Marx difere não só do método de Bõhm-Bawerk, re­
presentante da “ Econom ia” neoclássica, mas também do método do
TEORIA DO VALOR DE MARX 73

economista clássico. A teoria do valor de Marx é diferente das teorias


clássicas, e até mesmo de seu representante mais sofisticado, David Ri­
cardo. Marx investiga as condições sociais da existencia das relações
econôm icas e suas formas sociais:
A leo ria eco n ó m ica de M arx tr a ta precisam ente d as “ diferenças de fo rm a” (fo rm a s eco ­
n óm icas sociais, relações de p ro d u ç ã o ) qu e se desenvolvem , na realidade, à b ase d e cer­
tas co n d içõ es técn ico -m ateriais, m as que n ão devem ser co n fu n d id as com elas. £ p reci­
sam en te isso que rep resen ta a form ulação m etodológica to ta lm e n te nova d o s p ro b lem as
eco n ó m ico s que é a g ran d e c o n trib u iç ã o de M arx... A ate n ç ã o d o s E co n o m istas C lássi­
cos se v oltou p ara a d esco b erta da base técn ico -m aterial d asT o rm as sociais q u e aceita­
vam com o d a d a s e n ão sujeitas a m aio r análise. {Ibid., p. 42)

A Economia Política clássica realiza a operação analítica de reduzir as


formas ao seu conteúdo. Assim, ela reconhece o trabalho com o a
“ substancia” da permutabilidade. Reduz o valor a trabalho. Ignora o
problema da form a do valor, e não indaga por que esse conteúdo
(“ trabalho” ) toma essa forma (a troca proporcional de produtos do
trabalho). O trabalho é considerado com o uma “ substância” que ex­
plica a troca e os preços, estabelecendo-se o determinante das propor­
ções de troca com o quantidades dessa substância. Isso deixa de lado o
fato de que o trabalho não é, como ta l, valor. A Economia clássica
não distingue entre o trabalho abstrato e o concreto - concebe o “va­
lor” com o uma substância de trabalho presente na mercadoria com o
um efeito do processo de trabalho. N ão é essa a posição de Marx, diz
Rubin. N ão só ele não tem uma teoria do valor-trabalho do preço no
capitalismo com o também não tem uma teoria do valor baseada na
substância do trabalho. O método analítico reduz a forma i o conteú­
do, as relações sociais (que aceita com o dadas) à técnica. D iz Marx:
A E co n o m ia P olítica realm en te a n aliso u , e m b o ra de fo rm a incom pleta, o v alo r e sua
m ag n itu d e, e d esco b riu o q u e está p o r trá s dessas form as. M a s ja m a is p e rg u n to u p o r
que o tra b a lh o é rep re sen tad o no v alo r de seu p r o d u to e o tem p o de tra b a lh o p ela m ag ­
n itu d e d aq u ele valor. (O Capital, vol. 1, ed ição K e rr, p. 80)

Somente o materialismo histórico e o m étodo dialético podem respon­


der a essas perguntas.

Fetichismo
O conceito do fetichismo das mercadorias é o ponto de partida de R u­
bin em sua análise da teoria do valor. Ele aceita com convicção os ele­
mentos hegelianos em O Capital e vê seu m étodo com o dialética. A
teoria do fetichismo não trata de ilusões geradas na experiência das
pessoas pelas relações sociais capitalistas. O fetichismo não é uma apa­
rência das coisas, uma ilusão enganosa, mas corresponde a proprieda­
des reais de sua essência. O fetichismo das mercadorias é baseado nas
74 VALOR

necessidades objetivas da existência de relações sociais m ercantis/capi­


talistas. Em condições de propriedade privada e troca de mercadorias,
os produtores independentes estão ligados entre si simplesmente pelas
vendas e compras. O trabalho “ privado” só se torna trabalho social
(relaciona-se com os trabalhos e mercadorias de outros produtores)
pela trocà. A troca/equiparação dos produtos do trabalho é a forma
pela qual o trabalho dos homens tom a uma forma social numa econo­
mia mercantil. A divisão social do trabalho é mediada e realizada atra­
vés do mercado, ao passo que numa econom ia não-mercantil o traba­
lho é diretamente social, sua forma é o produto de decisões sociais
conscientes e de necessidades expressas. Num a econom ia mercantil as
relações entre “coisas” (mercadorias - a equiparação de coisas como
proporções na troca) é a forma tom ada pelas relações entre os homens
- “ relações entre pessoas adquirem a forma de equiparação entre coi­
sas” (E ssays, p. 16). As ligações entre os produtores são estabelecidas
pela transferência e equiparação de seus produtos (a vida social é me­
diada pelo que Marx chama de Stoffsw echsel, a troca de matéria). Os
homens se enfrentam com o sujeitos econôm icos, com o possuidores de
coisas, com o compradores e vendedores:

n a so c ied ad e m ercan til-ca p italista, os in d iv íd u o s isolados são relacio n ad o s diretam en te


en tre si p o r d e te rm in a d a s relações de p ro d u ç ã o , n ã o com o m em b ro s d a sociedade, n ão
co m o p essoas q u e o cu p am um lu g ar n o processo social de p ro d u ç ã o , m as com o d o nos
de d e te rm in a d a s coisas, com o “ rep re se n ta n te s sociais” de d iferentes facções da p r o d u ­
ç ã o .'E s s a “ p e rso n ificação ” , na q u al crítico s de M arx viram alg u m a coisa de in co m ­
p reensível e a té m esm o m ística, in d ico u um fen ô m en o m u ito real: a dep en d ên cia d as re­
lações d e p ro d u ç ã o e n tre pessoas da fo rm a social das coisas (fato res de p ro d u ç ã o ) que
lhes p erten cem , e que são p erso n ificad as p o r elas. (Ibid., p. 21)

A “ reificação” das relações de produção entre as pessoas na experiên­


cia tem uma base objetiva, refletindo a natureza complexa da própria
realidade. A “ reificação” não é uma simples aparência, é a forma ma­
terial real de interação social, tornada necessária por determinadas re-
laçõds de produção.
As relações de produção entre as pessoas determinam a fo rm a so­
cial das coisas, mas essa forma, uma vez estabelecida, im põe sua neces­
sidade aos indivíduos; as relações entre os indivíduos só são possíveis
através das formas sociais das coisas. A “reificação” existe porque só a
forma m aterial/social é visível e as relações de produção entre pessoas
que a produzem só são visíveis nessa forma, em seus efeitos: “ somente
a... personificação das coisas... está na superfície da vida econôm ica e
pode ser observada diretamente... Esse aspecto do processo está rela­
cionado diretamente com a psique dos indivíduos e pode ser observa­
do diretamente” (£jsaj>í, p. 25). Rubin reconhece que a teoria do feti-
T EO R IA D O V A LO R D E M A R X 75

chismo exige que formas observáveis das coisas sejam criadas pela
própria realidade e colocadas ao alcance da experiência dos sujeitos. O
“ fetichismo” é urna forma de experiência essencial. Essa posição exige
a estrutura sujeito/objeto do processo empirista de conhecimento: um
sujeito com determinada capacidade de “ experiência” , que internaliza
o que lhe é dado pelo objeto. A presença desse sujeito de experiência
indica a presença do sujeito em outro sentido. A teoria do fetichismo
depende das oposições social/m aterial, coisa/pessoa. Por que devem
as mercadorias ser concebidas com o “ coisas”?
O lugar do sujeito na teoria do fetichismo surge quando examina­
mos as questões de com o e por que as relações'de produção entre pes­
soas tomam a forma de relações entre coisas. Rubin diz:
Esse asp ecto d o p ro cesso , isto é, a “ reificação ” d as relações de p ro d u ç ã o en tre pessoas, é
o resu ltad o hetero g ên eo de u m a m assa de tran saçõ e s, d e a to s h u m a n o s que são dep o si­
tad o s uns so b re o s o u tro s. É o resu ltad o de um processo social que se d esenrola “ p o r
trás das su as co stas” , isto é, um resu ltad o q u e n ão foi fixado an tecip ad am e n te co m o m e­
ta. (Ib id ., p. 25)

As relações têm as suas condições de formação:


Q u a n d o um d e te rm in a d o tip o de relações de p ro d u ç ã o e n tre pessoas ainda é ra ro e ex­
cepcional n u m a so cied ade, n ã o p o d e im p o r um c a rá te r social d istin to e p erm a n e n te aos
p ro d u to s d o tra b a lh o que nela existem ... Essas relações são freqüentem ente repetidas,
to rn am -se co m u n s e se d ifu n d em num d eterm in ad o am b ie n te social. E ssa “ cristaliza­
çã o ” de relações de p ro d u ç ã o en tre pessoas leva à “ cristalizaçã o ” d as c o rre sp o n d en tes
fo rm as sociais en tre coisas. (Ibid., p. 23).

Vemos aqui a base de todo o problema da “ reificação” e da oposição


entre coisa/pessoa que lhe é central, o conceito de interação social es­
pontânea ou não-mediada. As interações humanas espontâneas se tor­
nam regulares e “cristalizadas” , “ por trás das costas dos hom ens” to­
mam, com o conseqüência imprevista de suas ações, formas que eles
não podem controlar. Essa doutrina da “ alienação” é central para o
conceito de “ reificação” - supõe a possibilidade da presença da essên­
cia do sujeito para ele próprio, tom ando os seus produtos e interações
então uma forma não-mediada. Em contraste com as relações sociais
“ reificadas” estão as relações nas quais a vida social é pura intersubje-
tividade - a divisão social do trabalho é o produto de decisão comunal
consciente. As relações sociais de produção desaparecem no sujeito
coletivo.
A oposição coisa/p essoa é uma oposição crítica (“crítica” no sen­
tido usado pela filosofia crítica hegeliana de esquerda). Supõe que as.
“coisas” existem porque sua forma social/hum ana não é manifesta,
sua forma com o produtos do trabalho, com o trabalho social. Supõe
que as formas de intersubjetividade pura constituem a base para a
crítica das formas “ reificadas” . Por que, porém, devemos considerar
as mercadorias com o “ coisas” , e não com o partes de um processo so-
76 VALOR

cial de troca? Por que, porém, devemos supor que a divisão social do
trabalho e as formas sociais dos produtos do trabalho não tomam for­
mas definidas em sociedades socialistas e comunistas (formas que são
“independentes da vontade” dos produtores)? As relações sociais de
produção e as formas de tomada de decisão comunal numa sociedade
comunista terão uma existência social objetiva, a divisão social do tra­
balho se imporá aos indivíduos através de formas da necessidade. Por
que essas formas sociais não devem ser consideradas “com o coisas” e
opostas às pessoas?
A teoria da reificação/alienação supõe um sujeito essencial, pes­
soas/coletivos, que são potencialmente os autores não-mediados de
seus atos. Esses sujeitos essenciais ou constitutivos são a origem de re­
lações sociais e são inquestionáveis com o origem. As pessoas são es­
senciais e irredutíveis, as “coisas” são efeitos secundários e devem sçr
reconhecidas com o os produtos alienados das pessoas. Estas têm um
status ontológico privilegiado: daí a força crítica da distinção coisa/
pessoa. Se as pessoas não fossem sujeitos constitutivos e as “coisas”
não fossem a forma reificada de seus produtos, então a distinção pes­
soa/coisa não poderia ser teoricamente privilegiada, mas apenas etica­
mente. As pessoas seriam então simplesmente preferíveis às coisas. A
distinção exige que as pessoas sejam sujeitos constitutivos, ontologica-
mente singulares com o criadores de seus produtos. As coisas não são
constitutivas, não criam pessoas, mas as pessoas criam (na forma alie­
nada) as coisas. Essa distinção nos remete de volta à singularidade on­
tológica que encontramos antes: o Homem com o origem, o hom o fa -
ber.
Rubin não desenvolve essas im plicações dos conceitos. Usa as
distinções coisa/pessoa, m aterial/social, com o categorias críticas sem
entrar em seus fundamentos crítico-filosóficos. Essas implicações fo­
ram, prudentemente, deixadas sem desenvolvimento - sua obra, tal
com o está, provocou a acusação de “ idealismo menchevizante” . (D e­
vemos notar que Rubin, com o Abram Deborin e muitos outros, foi di­
famado pelos sectários materialistas vulgares da vida intelectual sovié­
tica. Com o mesmo vigor que rejeitamos as categorias usadas por Ru­
bin, devemos elogiar-lhe a seriedade, o rigor e a coragem. Ele foi mais
um dos numerosos marxistas capazes que tiveram morte precoce e in­
justificável nas mãos de Stalin e da N K V D . Foi preso para implicar
seu patrono, David Raisanov, com quem Stalin tinha velhas contas a
acertar; ver R. Medvedev, L et H istory Judge, pp. 132-6.)
A distinção m aterial/social possibilitou a distinção de Rubin:
conteúdo (social) - forma (material), técnico (pressuposição) - social
(articulação de pressuposição). Os objetos sociais recebem lugares nes­
se sistema. Por que deveria o dinheiro ser considerado com o a forma
I liO R IA D O V A L O R D E M A R X 77

“ material” de uma relação social? Por que ela não é social? D o mesmo
modo, a diferença entre um quadro e a terra é reduzida a uma diferen­
ça m aterial, diferença de forma natural e não diferença de utilidade so­
cial. Novam ente, a tecnologia é considerada com o m aterial/técnica,
articulada com relações sociais de produção com o seu “pressuposto” e
não com o parte delas. Essa distinção m aterial/social permite que ele­
mentos das relações sociais (dinheiro, tecnologia) sejam colocados
fora das relações sociais ou lhes seja atribuída uma posição secundária
com o suas formas materiais de expressão. N o caso do dinheiro, o es­
paço do “ social” é reservado ao que está subjacente às relações de va­
lor de troca monetária. A distinção m aterial/técnica permite a Rubin
neutralizar alguns dos efeitos do marxismo vulgar, atribuindo à técni­
ca status de um “pressuposto” de certas relações sociais, e não de cau­
sa direta e primária. A técnica tem de se desenvolver até um certo nível
para possibilitar certas relações sociais. São, porém, as relações sociais
de produção que determinam essaS formas sociais.
A tecnologia está subjacente à lei do valor e a afeta: a tecnologia,
modificando a produtividade do trabalho, afeta as condições de troca
e as proporções nas quais as mercadorias são trocadas. N ã o determina
a forma na qual elas se tornam sociais nem determina diretamente o
próprio processo de troca. Rubin, com isso, evita uma teoria do valor
de simples proporcionalidade de troca, embora conservando a autono­
mia dos processos das relações sociais de produção com referência à
determinação direta pela técnica de produção. Com efeito, essas cate­
gorias restringem o social às relações sociais de produção (a “ relações
entre os hom ens”) e à essência dessas relações, e não às suas formas
materiais de expressão. Essas categorias indicam o privilégio concedi­
do ao nível em que a teoria do valor é operativa. A técnica e as formas
materiais da troca recebem uma posição secundária, antecipadamente,
por m eio dessas categorias (os marxistas vulgares e econom istas com o
Bõhm-Bawerk não percebem a essência das relações sociais) - a essên­
cia das relações sociais é a forma pela qual os trabalhos do homem se
tornam sociais, se unem uns aos outros. A lei do valor se ocupa essen­
cialmente da distribuição do trabalho social - trocas, dinheiro e preços
são apenas as formas de expressão materiais que essa distribuição
toma na sociedade m ercantil/ capitalista. O ponto de partida de R u­
bin, a teoria do fetichismo, e sua categoria central, coisa/pessoa, não é
portanto acidental.
A apresentação de Rubin do papel da teoria do fetichismo em O
Capital é, em geral, exata. A tentativa feita em Lire “Le C apital" para
eliminar esse conceito do discurso de Marx é, no mínimo, problemáti­
ca. Primeiro, o fetichismo é conhecido com o uma excrescência ideoló­
gica numa problemática que sob outros aspectos é científica. Sua ex­
clusão se fundamenta numa divisão epistem ológica geral de conheci-
78 VALOR

mentos em conhecim entos ideológicos e científicos. Central a essa di­


visão é a concepção do lugar do sujeito dentro do conhecimento; con­
ceitos que atribuem um papel constitutivo real ou potencial ao sujeito
são ideológicos. O fetichismo é um desses conceitos. Segundo, o feti­
chismo só pode ser rejeitado à base da enfatização de outros conceitos
da relação do processo com os agentes que se encontram combinados
com ele em O Capital.
O fetichismo é possível com o conceito em O Capital devido à for­
ma pela qual o problema do valor de troca é apresentado. Os traba­
lhos divididos de produtores socialmente atom izados mas interdepen­
dentes são unidos por meio da equação dos produtos de seus trabalhos.
As relações entre os homens tomam a forma de relações entre coisas.
Althusser vê o fetichismo com o um resíduo ideológico cuja rejeição
envolve uma mutação no discurso, envolve a generalização da posição
tomada em O Capital sobre a representação do processo para os agen­
tes. Isso é concebido com o parte de uma causalidade estrutural anti-
humanista, operativa em todos os m odos de produção, que assegura
em seus efeitos sobre os agentes as condições de operação da estrutura
(agentes funcionando com o suportes). A rejeição implica evitar qual­
quer contraposição no discurso da posição desses suportes com a posi­
ção dos sujeitos numa sociedade sujeita à direção coletiva consciente.
N o discurso de O Capital, o espaço dessa contraposição não foi elim i­
nado. O sujeito vazio, necessário para o processo capitalista de repre­
sentação, pode ser considerado com o um sujeito esvaziado de seu po­
tencial pela alienação, uma alienação que é a condição de existência
desse processo. Os sujeitos vazios (passivos) necessários à produção de
mercadorias e ao capitalismo serão substituídos no socialism o pelo su­
jeito constitutivo integral, os membros da humanidade estarão ligados
numa coletividade consciente.
Althusser rejeita essa concepção. A causalidade estrutural anti-
humanista acentua a concepção da totalidade, com o uma entidade que
assegura as suas próprias condições de existência, encerrada no con­
ceito de fetichismo. Nega a noção de um tipo diferente de totalidade e
causalidade, necessário para que o fetichismo funcione com o um con­
ceito crítico. N a Parte II deste volume questionam os esse conceito de
totalidade que as teorias do fetichismo e da causalidade estrutural par­
tilham - uma totalidade que necessariamente (em seu conceito) asse­
gura suas próprias condições de existência. A “ elim inação” por
Althusser do fetichismo do discurso de O Capital só é possível porque
ele conserva o conceito da representação do processo para os agentes.
Rejeitamos tanto o conceito de fetichismo com o a concepção geral que
tem O Capital da representação do processo para os agentes. Isso devi­
do aos problemas criados pelas concepções de totalidade e causalidade
necessárias a ambas as posições.
TEO R IA DO VALOR DE M A RX 79

Valor e equilíbrio
“ Valor” é um conceito da Economia Política marxista e expressa “re­
lações sociais entre pessoas” . Rubin explica seu objeto:
Se a b o rd a m o s a teo ria d o v alo r desse p o n to de vista, e n tã o e n fre n ta m o s a tarefa de d e ­
m o n stra r q u e o valor: 1) é u m a relação social en tre pessoas 2) que assum e um a fo rm a
m aterial e 3) se relacio n a com o processo de p ro d u ç ã o . (E ssays on M a rx 's T heory o f Va­
lue, p. 63)

Marx começa O C apital com um exercício de abstração. Considera as


trocas de mercadorias com o anteriores à e independentes da produção
capitalista. Usa o conceito da produção simples de mercadorias para
delinear sua teoria do valor. Concebendo uma economia de produto­
res que estão separados e são formalmente independente entre si,
Marx pode examinar os efeitos da forma mercantil de relação entre
eles com o produtores, sem as complexidades introduzidas pela relação
trabalho assalariado/capital. Os produtores são separados entre si e
independentes, com o então seus trabalhos podem tomar uma forma
social e útil? Uma econom ia mercantil coloca a divisão social do tra­
balho e sua com posição proporcional com o um problema:
T o d o sistem a de tra b a lh o dividido é ao m esm o tem p o um sistem a de tra b a lh o distribuí­
do... N u m a eco n o m ia m ercan til, ninguém c o n tro la a distrib u ição do tra b a lh o en tre os
vário s ram o s d a p ro d u ç ã o e as diversas em presas... A p ro d u ç ã o de m ercadorias é um sis­
tem a de eq u ilíb rio co n sta n te m e n te p e rtu rb a d o ... M as, se assim é, então como a econom ia
m ercantil continua a e x is tir com o um a totalidade de diferentes ram os de produção que se
com plem entam ? (G rifo nosso) (Ibid., p. 64)

A resposta de Rubin a essa pergunta é uma lei teleológico-


funcionalista do valor, baseada no conceito de uma proporcionalidade
de “equilíbrio” dos trabalhos socialmente necessários. As relações de
valor expressam diretamente essa proporcionalidade em relações de
troca, em preços médios:
Em con d içõ es de u m a eco n o m ia sim ples de m ercad o ria , os preços m édios dos p ro d u to s
são p ro p o rc io n a is a o seu valor de tra b a lh o . Em o u tra s p a la v ra s, o v alo r rep resen ta
aq u ele nível m édio d e p reço s em to rn o d o qual flu tu a m os p reço s do m ercado e com o
qu al o s p reço s co in cid iriam se o trabalho social fosse dividido p ro p o rc io n a lm e n te entre
os v ário s ram o s d a p ro d u ç ã o . A ssim , um estad o de eq u ilíb rio seria atingido en tre os ra ­
m o s d a p ro d u ç ã o . (Ibid., p. 64)

As proporções nas quais as mercadorias são trocadas são o modo pelo


qual a sociedade ajusta os volumes de trabalho empregados nos vários
bens às suas necessidades desses bens: “ As proporções quantitativas
nas quais as coisas são trocadas constituem expressões da lei de distri­
buição proporcional do trabalho social” (ibid., p. 105). O equilíbrio
entre os volumes de trabalho empregados na produção é obtido pela
troca. Na troca, a sociedade expressa seu julgam ento sobre a distribui­
ção do trabalho existente. A anarquia é a forma da ordem na produ­
80 VALOR

ção de mercadorias. O equilíbrio perturbado é o mecanismo de resta­


belecimento do equilíbrio:
A ten d ên cia de restabelecer o eq u ilíb rio é p ro v o cad a p o r m eio d o m ecanism o do m erca­
d o e d o s p reços de m ercad o ... O desvio dos preços de m ercado em relação ao s valores é
o m ecan ism o pelo q u al a su p e rp ro d u ç ã o e a su b p ro d u ç ã o são elim in ad as e é estabeleci­
da a ten d ên cia p ara a re sta u ra ç ã o do equ ilíb rio en tre os ram o s da eco n o m ia n acio n al. (/-
bid., pp. 64-5).

Esse mecanismo é auto-regulador, os desvios são autocompensadores


e criam desvios corretores na outra direção que tendem a restabelecer
o equilíbrio:
Se to d o desvio tendesse a um desenvolvim ento in in te rru p to , en tã o a c o n tin u a ç ã o d a
p ro d u ç ã o seria im possível; a eco n o m ia social, baseada na divisão do tra b a lh o , d esm o ro ­
n aria. N a realidade, to d o desvio d a p ro d u ção , seja p a ra cim a ou p a ra baix o , p ro v o ca
fo rças que detêm esse desvio e d ã o origem a m o v im en to s na d ireção o p o sta . ... A s flu­
tu açõ es d o s preços de m ercado são na realid ad e um b a rô m e tro , um in d ic a d o r do pro ces­
so de d istrib u iç ã o do tra b a lh o social que o c o rre nas p ro fu n d ez as da eco n o m ia social.
M a s é um barôm etro excepcional, um barôm etro que não só indica o tem po, m as tam bém o
corrige. (G rifo nosso) ([bid., p p . 77-8)

O conceito central na teoria do valor de Rubin é o de “ equilíbrio” .


Esse conceito equivale a uma distribuição proporcional do trabalho da
sociedade, de m odo a produzir exatamente as quantidades adequadas
da variedade adequada de bens. É um “estado definido teoricamente” ,
o centro em torno do qual se movimentam todas as flutuações:
O v alo r de m ercado c o rre sp o n d e ao estad o teo ricam en te definido de eq u ilíb rio en tre os
d iferen tes ram o s d a p ro d u ção . Se as m ercad o ria s forem ven d id as de a c o rd o com os va­
lores d e m ercad o , e n tã o o estad o de eq u ilíb rio é m a n tid o , isto é, a p ro d u ç ã o de um de­
te rm in a d o ram o não se expande nem c o n tra i às expensas de o u tro s ram o s. O equilíbrio
entre os diferentes ram os de produção, a correspondência da produção social com as neces­
sidades sociais e a coincidência d o s p reço s de m ercad o com os valores de m ercad o - to ­
dos esses fato res são in tim am en te relacio n ad o s e co n co m itan tes. (G rifo nosso; ibid., p.
178)

A posição de Rubin o leva à dificuldade de que o valor parece depen­


der da procura, as necessidades sociais parecem determinar as propor­
ções pelas quais as mercadorias são trocadas. Ele procura argumentar
o contrário, que o equilíbrio depende da produtividade relativa entre
os ramos da produção e entre empresas dentro dos ramos: “ o
equilíbrio depende... do nível de desenvolvimento das forças produti­
vas” (ibid., p. 179). O “ valor das necessidades sociais ou procura” tem
uma forma objetiva, mas o nível da procura depende do desenvolvi­
mento das forças produtivas e estas, por sua vez, dependem da técnica:

O estad o da tecn o lo g ia d eterm in a o valor do p ro d u to , e o v alo r p o r sua vez d ete rm in a o


valor de procura n o rm al e a c o rre sp o n d e n te quantidade norm al de oferta, se su puserm os
um d e te rm in a d o nível de necessidades e um d e te rm in a d o nível de re n d a da p o p u lação .
(Ibid., p. 190)
I'EORIA DO VALOR DE MARX 81

A renda e as necessidades dependem ambas das forças produtivas. R u­


bín argumenta que “o equilibrio entre a procura e a oferta ocorre se há
um equilibrio entre os vários ramos da produção” . Sua tentativa de
negar a dependencia do valor em relação à procura e ao processo so­
cial de troca é, evidentemente, urna tentativa de rebater as acusações
de “ idealism o” : com o iremos ver, sua concepção do valor torna as
proporções do valor dependentes das relações de troca (isto é a sua
grande força).
Apesar da tentativa de Rubin de evitar certas conseqüências de
sua posição, o conceito de equilibrio que ele usa supõe que urna certa
com posição do produto social é necessária. Quer exista ou não uma
“ função de procura” independente, certos bens erti certas quantidades
são concebidos com o necessários e essa com posição proporcional re­
gula a com posição real, punindo a superprodução com termos de tro­
ca desfavoráveis em relação a outros bens e estimulando a subprodu-
ção com termos favoráveis de troca. Na forma dos argumentos de Ru­
bin, essa com posição proporcional se impõe com o uma pauta de pro­
cura necessária; a proporcionalidade é regulada através dos efeitos das
vendas e compras no mercado. Essa pauta só pode ser uma estrutura
de necessidades realizadas “ espontaneam ente” com o a resultante ou
soma objetiva de escolhas dos indivíduos; de outro m odo, as “ necessi­
dades” se realizariam sem um mecanismo. Essa pauta de procura não
é realmente independente, mas tem determinantes sociais. A “ esponta­
neidade” é um efeito de causas sociais básicas. Essas escolhas e essa
procura dependem da renda e das necessidades dos homens: ambas
são determinadas, em última análise, pelas forças produtivas e em
qualquer m om ento correspondem, em gera), à com posição real da
produção. A procura e as necessidades mudam à medida que a produ­
tividade e os produtos se modificam também. Isso significa que poten­
cialmente qualquer com posição do produto social é possível (produtos
e técnicas não são dados - a produção não tem uma determinada es­
trutura necessária) e toda com posição é necessária num certo momen­
to. A posição de Rubin parece envolver a concom itante de que a pro­
dução determina o consum o. Isso significaria que tudo o que é produ­
zido é consum ido, o que não só é evidentemente falso, mas também
contraria a sua argumentação. Qualquer composição seria proporcio­
nal. O valor e a procura não ajustariam a produção à “ necessidade” .
Voltam os à autonom ia da necessidade. Esta ou deve tomar a for­
ma de uma “ procura” autônom a, ou deve de alguma maneira modelar
o desenvolvimento das próprias forças produtivas. Isso significa que
certas com posições da produção são necessárias; a produção tem real­
m ente uma estrutura necessária de com posição que lhe é imposta, uma
estrutura selecionada dentre todas as possibilidades de desenvolvimen­
82 VALOR

to. À medida que os produtos e técnicas se desenvolvem, devem ser


modelados pelas necessidades humanas: nem todos os produtos e téc­
nicas possíveis são criados ou introduzidos. A longo prazo, as forças
produtivas se desenvolvem de m odo a desenvolver também as capaci­
dades e necessidades da humanidade, e isso porque o agente de seu de­
senvolvim ento é a própria humanidade. A técnica não se desenvolve
ao acaso. As necessidades humanas exercem um processo de seleção
natural sobre a com posição da produção. Mas esse argumento não so­
luciona a dificuldade de Rubin. Tais necessidades não podem, exceto
num sistema de produção socializada, determinar diretamente os pro­
dutos e quantidades desses produtos fabricados. Num a econom ia de
mercado, esse processo de seleção deve se dar através do mercado.
Quer queira ou não queira, Rubin tem de invocar a autonomia da pro­
cura. Somente dessa maneira pode uma certa com posição ser necessá­
ria e desempenhar o papel de uma com posição de equilíbrio. Quer
queira ou não, a posição de Rubin acarreta uma norma que regula
os bens e quantidades produzidos através de sua forma com o procura
expressa no mercado. Somente dessa maneira podem as proporções de
troca dos produtos ser concebidas com o causadoras (através das flu­
tuações) de uma distribuição necessária do trabalho social (“necessá­
ria” no caso refere-se à necessidade de uma certa com posição resultan­
te desse trabalho). O problema da fonte ou determinantes dessa procu­
ra continua. Vimos que ela não pode vir diretamente da produção sem
que qualquer com posição se torne tão proporcional quanto qualquer
outra. Só pode vir da “ mão oculta” , inconsciente e providencial, pela
qual a humanidade escolhe no mercado o que é bom para ela.
O conceito de “ equilíbrio” usado por Rubin (e Hilferding) não é
uma importação, um empréstimo tom ado à Economia burguesa estra­
nho ao marxismo. Vimos que Marx concebe a lei do valor com o uma
lei de distribuição do trabalho social na Parte I do livro 1. N o livro 3,
ele amplia sua posição (parte VI, capítulo XXVII): ali, como Rubin,
Marx relaciona o conceito de proporcionalidade com o conceito de va­
lor de uso.
O m esm o é válido p a ra to d a divisão de tra b a lh o d en tro da sociedade com o um to d o .... É
o tra b a lh o necessário à p ro d u ç ã o de d eterm in ad o s artig o s, à satisfação de algum a neces­
sid ad e p a rtic u la r da sociedade p o r esses artigos. Se essa divisão for p ro p o rc io n a l, então
os p ro d u to s d o s vários g ru p o s são vendidos aos seus v alores (num a fase p o ste rio r de de­
sen v o lv im ento, são vendidos aos preços de p ro d u ção ). É realm en te o efeito d a lei de va­
lor, n ão com referência a m ercad o ria s o u artig o s específicos, m as a ca d a p ro d u to to tal
d as d e te rm in a d a s esferas sociais de p ro d u ç ã o to rn a d a s in d ep en d en tes pela divisão do
trab alh o ; de m o d o que n ão só n ão é u sa d o m ais do q u e o tem p o de tra b a lh o necessário
p a ra cad a m ercad o ria específica, m as tam b ém som ente a q u a n tid a d e p ro p o rc io n a l ne­
cessária do tem p o de tra b a lh o to ta l é co n su m id a nos v ário s gru p o s. P ois c o n tin u a sendo
v álid a a co n d ição de que a m ercad o ria rep re sen ta v alo r de uso. M as se o v alor de uso
d as m ercad o ria s específicas d epende de satisfazerem elas u m a d eterm in ad a necessidade,
TEORIA DO VA LO R DE MARX 83

en tão o valor de uso da m assa do p ro d u to social depende de satisfazer ele a necessidade


social q u an titativ am en te definida de cada tipo d eterm in ad o de p ro d u to de m an eira ad e­
q u ad a, e de ser o trab alh o , p o rta n to , distrib u id o p ro p o rc io n a d a m e n te entre as d iferen ­
tes esferas de aco rd o com essas necessidades sociais.,.. A necessidade social, isto é, o va­
lor d e uso co m o escala social, surge aqui com o o fato r d eterm in an te do volum e de te m ­
po de tra b a lh o social to tal em pregado nas várias esferas de p ro d u ção . (O C apital, vol. 3,
edição de M oscou, em inglês, pp. 620-1)

Anteriormente (no Capítulo 1), ao discutirmos a troca de equivalentes,


consideramos uma lei do valor funcionalista com o uma lei de propor­
ções de troca relacionada com o tempo de trabalho. Elefantes e ratos
são trocados em certas proporções para manter seus respectivos caça­
dores em seus lugares na divisão do trabalho. A desproporcionalidade'
dos tempos de trabalho tornava problemática a divisão do trabalho. A
necessidade da com posição da divisão do trabalho foi, na ocasião,
aceita sem discussão. Aqui, vemos Rubin e Marx expressarem uma lei
funcionalista de outro ângulo. Certas qualidades de certos bens são
exigidas, e, dados os tem pos de trabalho necessários para produzir es­
ses bens, certas quantidades de trabalho devem ser distribuídas. As ra­
zões de troca são determinadas pelos tempos de trabalho necessários à
produção das mercadorias e pela procura dessas mercadorias. Os bens
não têm valor se não forem procurados. Diz Marx: “Som ente uma cer­
ta quantidade de...[um bem 1 ê necessária à satisfação das necessidades
sociais. A limitação que ocorre no caso se deve ao valor de uso” (O Capi­
tal, livro 3, p. 621).
O emprego por Marx do conceito de valor de uso é, no caso, equi­
valente a procura. Marx não dá uma explicação rigorosa do conceito
de valor de uso. Mas a “ utilidade” das mercadorias deve ser seu uso
para os agentes que as compram. As quantidades desejadas depende­
rão de sua utilidade para o agente e das condições de aquisição. A pro­
cura regula a com posição do produto e as quantidades (em qualquer
estágio da produtividade social) procuradas. Procura/utilidade tem
um lugar crucial e oculto na teoria do valor. O “valor de uso” é o equi­
valente do conceito burguês clássico de “ utilidade” , pela sua circulari­
dade. O que se procura tem um valòr de uso e o tem na medida em que
certas quantidades são necessárias. Isso equivale simplesmente a dizer
que aquilo que é comprado é desejado e que as quantidades nas quais é
desejado afetam os preços. Quando a produção e o consumo são equi­
valentes entre si, a proporcionalidade do valor predomina (a oferta e a
procura nada explicam, no caso). A análise de Marx da procura é mui­
to menos sistemática do que a dos econom istas neoclássicos, pois
quaisquer que sejam os limites e absurdos do marginalismo ele tenta
apresentar uma teoria da preferência.
Marx, com o Rubin, não tem posição quanto aos m otivos pelos
quais uma certa com posição (produtos e quantidades) é necessária,
84 VALOR

além de dizer que é desejada, e que as flutuações do mercado procu­


ram estabelecê-la. Mas qualquer com posição é então necessária. A
proporcionalidade do valor se centra na média das flutuações de pre­
ço. Marx recua para uma generalização sobre as médias ao procurar
formular a relação entre preços e valores (O Capital, livro 3, p. 90). A
teoria do valor se baseia na necessidade de uma certa com posição, mas
com efeito qualquer economia existente deve expressar essa com posi­
ção com o seu núcleo, com posição essa constantemente buscada e res­
tabelecida através dos desvios. A circularidade da teoria marxista da
procura (“valor de uso”) nos permite argumentar que qualquer com ­
posição é uma com posição necessária. Pode-se argumentar a sua exis­
tência através das flutuações, e a sua revelação quando estas são nive­
ladas obtendo-se sua “ média” . Isso significa que essa variante da teo­
ria marxista do valor postula um funcionalismo (uma certa com posi­
ção é necessária numa econom ia, essa com posição regula a produção)
e em seguida faz com que qualquer econom ia existente revele essa fun­
cionalidade (ela deve ter uma estrutura de com posição, já que a produ­
ção tem de ser regulada - esses bens não seriam comprados se não fos­
sem valores de uso). O “equilíbrio” é um conceito que em suas formu­
lações mais vigorosas envolve a teleologia: é um “estado” definido da
econom ia (concebido com o necessário à sua existência ou com o tendo
certos efeitos desejáveis), que é buscado ou alcançado (em formula­
ções teleológicas) por certos mecanismos necessários (por exemplo,
procura/flutuações do mercado). N o marxismo, esse estado de “e-
quilíbrio” é vazio - com exceção das crises finais, todas as economias
estão sempre no processo de ajustar a produção às proporções exigi­
das pela necessidade de valores de uso da sociedade. Rubin prestou-
nos um grande serviço ao ressaltar o que é secundário no discurso de
O Capital e ao dar a essa posição o conceito adequado da teoria neo­
clássica.
Há outras objeções a essa teoria do valor baseada na com posição
proporcional. Se tomada rigorosamente, ela pretende explicar por que
certos bens são produzidos em certas proporções relativas, e também
explicar as m odificações nas razões de troca entre eles com o função do
restabelecimento da proporcionalidade. A procura afeta, portanto, e
diretamente, as razões de troca, procurando fazer voltar a produção a
uma certa com posição. A sociedade é indiferente às técnicas pelas
quais uma determinada com posição do produto é atingida. Se os bens
forem produzidos nas proporções “ certas” , então não haverá tendên­
cia para que a procura provoque m odificações nas razões de troca des­
ses bens. É evidente que certas quantidades de certos bens podem ser
produzidas por métodos diferentes de produção, envolvendo números
diferentes de trabalhadores e totais diferentes de horas de trabalho.
N o que concerne à sociedade, desde que x cadeiras, y botas e z latas de
T E O R IA D O V A L O R D E M A R X 85

comida de cachorro sejam produzidas, as técnicas e os tempos de tra­


balho são. irrelevantes - a estrutura da procura não mudará porque a
produção modificou os tempôs de trabalho relativos entre os bens. A
/trocura é indiferente às m odificações na distribuição do trabalho, se es­
sas distribuições diferentes ainda continuarem a produzir a m esm a com ­
posição do produto. A procura apenas restabelece uma determinada
com posição com determinadas técnicas. Com o podem os, então, consi­
derar a com posição com o parte de uma lei de “ distribuição” do traba­
lho social? A distribuição não é determinada pela com posição.
É um truísmo dizer que certo número de trabalhadores é necessá­
rio para produzir certos bens em certas quantidades, com uma deter­
minada intensidarde de trabalho e uma determinada técnica. Um certo
volume de “ trabalho concreto” é necessário: tantas horas de caça e
tantos caçadores. Essã distribuição não é uma função necessária da
com posição do produto, pode ser produzida com totais muito diferen­
tes da força de trábalho e distribuições m uito diferentes dos trabalha­
dores entre os ramos. A com posição não regula a escolha da técnica (e
portanto a distribuição do trabalho). A s técnicas não se determinam a
si mesmas.
Os problemas para a teoria do valor com o uma lei de “distribui­
ção” do trabalho social são os seguintes: qual a relação entre as razões
de trabalho abstrato estabelecidas no processo de troca e a distribui­
ção da produção, e qual a relação entre estas duas e a com posição do
produto expressa na procura?
Para responder a essas perguntas devemos examinar os conceitos
de trabalho abstrato e a forma do valor.

Trabalho abstrato e a forma do valor


Vimos que Rubin argumenta que a lei do valor age para corrigir exces­
sos no trabalho distribuído para a produção de certos bens por meio
de modificações nas relações de troca desses bens com outros. A equa­
ção das mercadorias entre si (x mercadorias a = y mercadorias b) é um
meio de distribuição do trabalho. Os trabalhos (incomensuráveis em
forma concreta) são equiparados através da troca: “ [ O trabalho] só
se torna social porque é equiparado a algum outro trabalho, e essa equi­
paração é realizada por meio da troca” (Essays on M a rx ’s Theory o f
Value, p. 66). A equiparação ocorre através das quantidades nas quais
os produtos de diferentes tipòs de trabalho são trocados: diferentes ti­
pos de trabalho são socializados através da relação de seus produtos
entre si.
Ê o trabalho abstrato que constitui a base da teoria do valor de
Marx que rejeita uma teoria do valor simples, baseada na substância
do trabalho: “O trabalho, em si, não dá valor ao produto, mas somen-
86 VALOR

te aquele trabalho que é organizado em determinada fo rm a social (na


forma de uma econom ia mercantil)” (ibid., p. 68). O valor não é ine­
rente às coisas, não é uma substância plantada “ dentro” delas pelo
trabalho concreto de fazê-las, mas antes produto de um complexo pro­
cesso social. O trabalho em si, com o trabalho concreto, não é a subs­
tancia do valor: a atividade concreta de trabalhar não pode nunca atri­
buir valor ao produto. Somente no processo de troca e através dos pro­
dutos do trabalho trocados entre si é que o trabalho que dá origem a es­
ses produtos recebe a forma de trabalho criador de valor. A equação
dos produtos do trabalho (x mercadorias a = y mercadorias b) estabe­
lece uma relação de equivalência entre os trabalhos que os produzem:
Podem os ver que a prim eira propriedade do trabalho abstrato consiste no fato de que ele
só se to rn a social se for igual. S ua segunda p ro p rie d a d e consiste no fato de que a e q u ip a­
ração d o tra b a lh o é realizada pela e q u ip a ra ç ã o d a s coisas. (Ibid., p. 98)

A fo rm a de valor, o valor de troca, é o m odo de existência do trabalho


com o trabalho social; os tem pos de trabalho são relacionados através
das relações de troca de seus produtos:
N essa form a “ m ercan til” de eco n o m ia, o tra b a lh o social necessário ã p ro d u ç ã o de um
d e te rm in a d o p ro d u to não se expressa d iretam en te em u n id ad es de tra b a lh o , m as in d ire­
tam en te, n a “ form a de v alo r’’, n a fo rm a de p ro d u to s q u e são tro c a d o s pelo d a d o p ro d u ­
to. (Ibid.. p. 115)

O valor na troca não é, porém, arbitrário. Quando as flutuações arbi­


trárias são niveladas pela média, vemos que os bens realmente são tro­
cados em proporções definidas. Por exemplo, uma cadeira e um par de
sapatos são trocados entre si. Por quê? O valor na troca dá uma forma
social (ele expressa através das razões de troca dos produtos) às reali­
dades do processo de produção e à divisão do trabalho. Trabalhos
concretos não podem ser equiparados com o tal, uma hora de trabalho
de sapateiro nada tem em comum com uma hora de carpintaria. Se
uma cadeira e um par de sapatos são trocados, é porque custa aos seus
produtores um dia de tempo de trabalho para fazê-los. O tem po de
trabalho torna-se uma abstração, independentemente de sua forma de
trabalho. O trabalho abstrato é possível (pode ser formado nos produ­
tos de troca) porque os produtores são iguais e porque uma sociedade
de produtores de mercadorias faz do trabalho uma abstração (os ho­
mens podem praticar diferentes artesanatos, modificar sua forma de
trabalho). Esses dois fatos tornam possível e ameaçam a divisão do
trabalho. Os homens devem continuar iguais para que o sistema da
troca de valor funcione, e, com o podem deixar qualquer ramo da pro­
dução, a divisão do trabalho pode ser problematizada.
N ossa discussão de uma lei funcionalista do valor no Capítulo 1,
“ Valor, Exploração e Lucro” , será lembrada. Um sapato e uma cadei­
ra são trocados porque ambos encerram um dia de tempo de trabalho.
T E O R IA DO V A L O R D E M A R X 87

Mas se a confecção de uma cadeira passar a exigir apenas dez minutos,


e o sapato continuar exigindo um dia, então as razões de troca de sa­
patos por cadeiras devem ser modificadas. As realidades do tempo de
trabalho são expressas na forma de valor. De outro modo, a divisão
do trabalho é ameaçada - nosso sapateiro terá de trabalhar com o um
louco para mobiliar sua sala dejantar, enquanto o carpinteiro desfruta
o luxo do lazer. Se as razões de troca não se modificarem com as m odi­
ficações dos tempos de trabalho da produção de bens, então certos
produtores sofrerão (nossos infelizes caçadores de elefantes, por exem­
plo), e seu lugar na produção será ameaçado.
Por que deve isso ser importante? Voltem os a outra parte do fun­
cionalism o de lei da'com posição proporcional do valor. A divisão do
trabalho reflete uma certa com posição necessária do produto - não
pode ser problematizada. A sociedade ajustará, através de suas neces­
sidades de sapatos e cadeiras, a razão de troca entre sapatos e cadeiras.
Isso mostra, porém, que a procura afeta o valor. Há algo mais em jo ­
go, no caso. Suponham os que é adotada uma técnica que reduz o tem­
po de produção de uma cadeira a segundos. Com o será feita a troca
entre cadeiras e sapatos? Isso depende principalm ente da procura. Sa­
bemos que o trabalho em si não tem valor - embora sejam necessários
muitos meses de trabalho para produzir determinado bem, ele poderá
não valer nada, se não tiver um “valor de uso” . Mas o que queremos
dizer com isso, quando afirmamos que algo tem um “ valor de uso”?
Marx tende a usar o conceito com o se tivesse um sentido não-
comparativo e não-quantitativo - com o se alguma coisa só tivesse va­
lor de uso em si mesma (e não em relação a outras coisas) e com o se
não fosse possível haver maior ou menor quantidade dele, de acordo
com as circunstâncias. N a explicação que Rubin dá da teoria de Marx,
porém, isso não funciona dessa forma. N a verdade, deve haver graus
de utilidade social ou utilidade de um bem em relação à oferta, e de
utilidade entre um bem e outro. Voltando às nossas cadeiras, se a pro­
cura que a sociedade faz delas excedeu, até agora, a oferta, então um
aumento nessa oferta significará que sua estrutura de produção foi, até
agora, “ desproporcional” . A sua razão de troca com os sapatos de­
penderá, agora, da procura de sapatos - e suponham os que esta é pro­
porcional à necessidade. A razão de troca de cadeiras e sapatos cairá
(de outro m odo, a produção de sapatos será ameaçada). Se ela não for
“proporcional” (superprodução ou subprodução de sapatos), então os
sapatos subirão ou baixarão em relação à procura, numa certa razão
com os tem pos de trabalho despendidos. Se os sapatos forem super-
produzidos, serão trocados por cadeiras em termos tais que reduzirão
o número de sapateiros a um nível no qual a divisão do trabalho é
ameaçada e a procura de sapatos modifica novam ente as razões de tro­
ca. Em tudo isso, a oferta e a procura são os determinantes cruciais e
88 VALOR

as razões de troca (bem por bem) dependem delas e não especificamen­


te do tempo de trabalho. Este só entra com o determinante pelo fato de
que se for contraditado a oferta baixará e a divisão do trabalho estará
ameaçada.
Seria possível conduzir esta análise inteiramente em termos de
oferta/procura eem termos das razões de troca entre bens, em relação
às necessidades de seus produtores, sem referência aos termos de tem­
po de trabalho. Os conceitos de equilíbrio são compatíveis tanto com
uma teoria do valor marginalista, quanto com uma teoria do valor ba­
seada no tem po de trabalho. Deve ficar claro que o marginalismo
pode tentar “explicar” a com posição do produto em termos da oferta
e procura e que a teoria do valor-trabalho não pode prescindir da pro­
cura com o um de seus determinantes cruciais (e ocultos).
A resposta crítica clássica aos nossos argumentos é que eles se re­
lacionam com as modificações na oferta e na procura. O que acontece
se a oferta e a procura forem iguais, se for alcançada uma condição de
equilíbrio? Por que então as mercadorias são trocadas entre si em pro­
porções definidas? Terá isso relação com o tempo de trabalho necessá­
rio à sua produção? Será mesmo? À parte os argumentos de Bõhm-
Bawerk considerados acima, a combinação da proporcionalidade do
valor e uma com posição necessária do produto cria problemas espe­
ciais. Essa posição não leva em conta as quantidades agregadas procu­
radas e sua relação com as técnicas de produção. Se a sociedade preci­
sa de 1.000.000 de sapatos (um dia por cada sapato), 1.000.000 de ca­
deiras (meio dia para cada cadeira), e 1.000.000 de latas de comida de
cachorros (um décimo de dia para cada lata), com o serão essas merca­
dorias distribuídas? Somente 100.000 sapatos podem ser trocados pe­
las latas, e apenas 500.000 sapatos pelas cadeiras - o que acontece com
os outros 400.000 sapatos? A sociedade deve passar 1.000.000 dias fa­
zendo sapatos, 500.000 fazendo cadeiras e 100.000 fazendo comida de
cachorro, porque essas são as quantidades necessárias e num dado m o­
mento somente as técnicas utilizadas estão disponíveis. D e fato, as ra­
zões de troca não podem corresponder aos tempos por unidade na
produção se a massa de utilidade exigida pela com posição deve ser res­
peitada. A com posição do produto (“valores de uso” necessários) de­
termina as proporções relativas dos bens porque determina as quanti­
dades deles que são desejadas. Se os trabalhos forem relacionados
através de seus produtos, então são as condições de procura e troca que
determinarão as razões de troca desses produtos. As mercadorias não
serão trocadas “ pelos seus valores” (em quantidades estritamente rela­
tivas aos tempos de trabalho em questão) até m esmo na produção sim ­
ples de mercadorias. O tempo de trabalho só afetará a troca se afetar a
oferta em relação à procura, causando a superprodução ou a subpro-
dução, alterando a escassez das mercadorias. O papel do tempo de tra-
I E ORIA D O V A L O R D E M A R X 89

halho dependeria das m odificações na oferta em relação à procura - se


os sapateiros forem im possibilitados de produzir, isso tornará os sapa­
tos escassos e portanto provocará o aumento de suas razões de troca
com outras mercadorias.
N ão há meio pelo qual a teoria marxista do valor possa eliminar o
papel central da oferta e procura (Bõhm-Bawerk tinha razão ao notar
a dependência de Marx da “ concorrência” para explicar várias ten­
dências e efeitos do m odo de produção capitalista). Vimos que a pro­
cura não pode ser considerada com o simples função da produção. Se a
procura (necessidade de valores de uso) correspondesse à produção,
então o que foi produzido seria consum ido. Da mesma forma, a “ren­
da” não pode ser vista com o função da produção, já que "renda” é
uma função das razões nas quais os produtos são trocados (a renda en­
volve a realização dos produtos em outros: nem todos os produtos, ad­
mite Marx, têm valor).
Voltemos à pergunta que fizemos à página 85. N ão há' relação
necessária entre as proporções de bem trocados entre si, e o número de
horas de trabalho necessárias à sua produção. A estrutura da procura
(com posição do produto) subverte na realidade qualquer relação con­
sistente entre tempos de produção por unidade e o número de unida­
des de um bem que são obtidas por um outro.
Recapitulando esse ponto, examinemos o conceito de tempo de
trabalho socialmente necessário. Rubin diz, de forma reveladora:
do is d isp ê n d io s de tra b a lh o sã o co n sid erad o s co m o iguais se criam q u an tid ad es iguais
de u m d eterm in ad o p ro d u to , em b o ra d e fato esses d isp ê n d io s de tra b a lh o possam ser
m u ito diferen tes en tre si, em term o s da extensão d o tem p o de tra b a lh o , intensidade, etc.
(Essays, p. 157)

Esse conceito explica que os produtores, em qualquer ramo de produ­


ção, estão relacionados entre si pelas condições de produção impostas
através do processo de troca. A troca socializa a produção, impondo
condições de troca de produção aos produtores. Se um sapato é troca­
do por dois quilos de cereal e um sapateiro incompetente leva duas se­
manas para fazer um, então ele deve ajustar seu padrão de vida de
acordo. Por que um sapato é trocado por dois quilos de cereal é outro
problema. Já vimos que essa troca não é simplesmente relativa ao nú­
mero de unidades de trabalho existente em dois quilos de cereal e um
sapato. As proporções em que os bens são trocados são determinadas
principalmente pela procura (com posição do produto necessário) e so­
mente numa extensão limitada pelos tem pos de trabalho em questão
(na medida em que afetam a escassez). Esses argumentos não são uma
tentativa de substituir a teoria marxista do valor por uma teoria mar-
ginalista do valor. Fica claro, pelo que dissemos no Capítulo 1, que
consideramos a troca de equivalentes (identidades de tempo de traba-
90 VALOR

lho) com o um problema desnecessário e que exige que a econom ia rea­


lize certos estados de coisas necessários (preserve uma certa divisão so­
cial do trabalho). A procura não é um problema alheio à teoria mar­
xista (ele é formulado nos conceitos de com posição e valor de uso). A
teoria do valor-trabalho, para que não seja uma simples teoria do va­
lor baseado no trabalho com o substância, deve admitir o papel crucial
da procura, se for combinada (com o deve ser) com uma noção de uma
com posição necessária do produto social. Ê certo, porém, que o papel
da procura não é o mesmo que no marginalismo.

Produção simples de mercadorias e produção capitalista


N ossa discussão do texto de Rubin limitou-se, até agora, à teoria do
valor na produção simples de mercadorias. C om o se relaciona essa
discussão com o capitalismo? O capitalismo modifica o funcionamen­
to da lei do valor. Já não é uma econom ia de produtores independen­
tes que recebem a forma de valor de seu trabalho em outros produtos
do trabalho. A lei da distribuição do trabalho social já não opera
com o quando os produtores possuem seus próprios meios de produ­
ção. Enquanto os valores são trocados por valores na econom ia mer­
cantil simples, os produtos no capitalismo são vendidos a preços de
produção (custos de produção mais lucro médio). Capitais iguais têm,
portanto, taxas de lucro iguais, não obstante a sua com posição orgâni­
ca. Rubin comenta: “Com o ambas as mercadorias foram produzidas
por capitais iguais, elas são igualadas entre si no mercado, a despeito
do fato de serem produzidas com quantidades desiguais de trabalho”
(Essays, p. 231). A distribuição do trabalho se efetua pela distribuição
do capital. Essa distribuição do capital e indiretamente uma função da
produtividade do trabalho. M odificações na taxa média de lucro resul­
tam de m odificações na taxa ou massa da mais-valia total, sendo estas
“ provocadas, em última análise, por modificações na produtividade do
trabalho e, em conseqüência, por modificações no valor de certas mer­
cadorias” (ibid., p. 249). O valor, ou a produtividade do trabalho, ain­
da regula a distribuição do trabalho através de relações sociais capita­
listas. A proporcionalidade estrita do valor na troca não se aplica, mas
as relações de valor (produtividade do trabalho) regulam, apesar dis­
so, a distribuição do trabalho social: “Se a lei das proporções quantita­
tivas de troca é modificada na troca capitalista, em comparação com a
troca simples de mercadorias, o aspecto qualitativo da troca é o mes­
mo em ambas as econom ias” (ibid., p. 93).
A tentativa de Rubin de salvar o lado “ qualitativo” da teoria do
valor no capitalismo significa que ele tem de recorrer, crucialmente, às
duas posições que formam a base de sua argumentação:
TEORIA DO VALOR DE MARX 91

1) que a sociedade exige uma certa com posição do produto e, daí, uma certa distribuição
do trabalho;
2) que as m odificações no valor d os produtos são determ inadas pelas m odificações na
produtividade d o trabalho.

A explicação que ele dá do papel do valor no capitalismo simplesmen­


te desloca a troca direta de quantidades equivalentes de tempo de tra­
balho em favor de uma distribuição do trabalho feita por intermédio
dos lucros capitalistas. Ela se baseia nas duas proposições que mostra­
mos ser problemáticas.
A pêndice

O Problema da “Reprodução ” em O Capital

Que lugar ocupa o problema da “ reprodução” na ordem discursiva de


O CapitaP. Qual a sua localização teórica com o problema? C om o essa
localização afeta a forma pela qual é apresentada? A “ reprodução” é
apresentada no livro 2, O Processo de Circulação do Capital, sob o títu­
lo “A Reprodução e a Circulação do Capital Social T otal” . O
problema surge devido à natureza das relações capitalistas de circula­
ção. Sua forma é característica do capitalismo, não constituindo uma
“ necessidade” universal de todas as econom ias. (Marx não examina a
reprodução em geral, exceto no sentido truísta de que “todas as socie­
dades devem renovar seus meios de produção”). O problema se rela­
ciona com os efeitos das formas de circulação no nível da economia: as
relações de classes e empresas entre si, consideradas com o uma totali­
dade. As formas de circulação, com o O Capital, livro 1 e livro 2, parte
1, mostra, são o m odo de existência das relações de produção, todas as
relações existindo na forma de vendas e compras, e se efetivando atra­
vés delas. O problema implícito na análise da “ reprodução” é o da efe­
tividade das relações de produção/circulação no nível do capital social
total, não sendo nada mais do que a análise das formas e efeitos da
própria circulação.
Por que deve a “ reprodução” surgir com o um problema específi­
co do capitalismo? As relações de produção capitalistas envolvem os
dois elem entos seguintes: a separação entre os trabalhadores e os
meios de produção, e sua ligação com eles através da forma salário; e a
separação entre as empresas entre si e sua ligação através de trocas de
mercadorias em série. As econom ias capitalistas têm uma estrutura de­
finida, uma divisão do trabalho social em ramos distintos da produ­
ção, mas essa estrutura existe através do mecanismo de vendas e com ­
pras. A reprodução se ocupa das relações entre a divisão do trabalho
social, empresas e classes, efetuadas através da troca de mercadorias:
1. Separação entre os trabalhadores e os m eios de produ^So - com o aquela p arte do
cap ilal m o n e tá rio tran sferid o ao s tra b a lh a d o re s na form a de sa lário s " v o lta ” ao s cap i­
tais em q u estão , atrav és do sistem a de tro cas de m ercadorias?
PRO BLEM A “ DA R E P R O D U Ç Ã O " 93

2. A se p ara ção d as em presas entre si - com o essa “ anarquia” , a divisão com plexa
d a p ro d u ç ã o em ram o s e em p resas, resu lta, atrav és d a série n ão -p lan ificad a de v endas e
co m p ras, n u m a d istrib u iç ã o do p ro d u to tal que as em p resas po d em ren o v ar seus m eios
de p ro d u ção ?

Diz Marx:
Já n ã o n o s p o d em o s satisfazer, com o fizem os na an álise d o v alo r do p ro d u to do cap ital
in d iv id u al, com a su p o sição de q u e o capitalista ind iv id u al p o d e p rim e iro tra n sfo rm a r
as p a rte s co m p o n en tes de seu cap ital em dinheiro, pela v enda de suas m ercad o rias, e em
seguida reco n v ertê-las em cap ital p ro d u tiv o p o r n o v as co m p ras dos elem entos do p ro ­
d u to n o m ercad o . N a m ed id a em qu e esses elem entos de p ro d u ç ã o são, p o r n atu re z a ,
m ateriais, rep resen tam um co m p o n en te do cap ital social, tal com o o p r o d u to a c a b a d o ,
q u e p o r eles é tro c a d o e p o r eles su b stitu íd o . Em sen tid o o p o sto , o m ovim ento d aq u ela
p a rte d o p ro d u to -m e rc a d o ria social consum ido pelo tra b a lh a d o r no disp ên d io de seus
salário s, e pelo cap italista no disp ên d io de sua m ais-valia, n ã o só fo rm a p a rte in teg ran te
do m o v im en to d o p ro d u to to ta l, m as se co m b in a co m os m ovim entos dos cap itais in d i­
v id u ais, e p o rta n to esse p rocesso n ão se pode explicar pela sua sim ples suposição. ( O
Capital, livro 2, p. 393)

A “reprodução” se relaciona com a articulação da produção generali­


zada de mercadorias (P G M )/troca generalizada de mercadoria
(TG M ) que é a estrutura do capitalismo. Os “esquemas de reprodu­
ção” são o artifício discursivo por meio do qual Marx demonstra as
propriedades das relações capitalistas de circulação. Marx supõe certas
condições com o uma maneira de demonstrar com o operam a distri­
buição dos meios de produção às empresas e a circulação do capital
adiantado em salários. Os “ departamentos” e as classes são relaciona­
dos numa série “ fechada”'de trocas, uma circulação completa do pro­
duto total dentro de um período de tempo definido (um ano). Isso per­
mite uma apresentação sinóptica da estrutura P G M /T G M , estando
cada setor simultaneamente relacionado com o seguinte, numa série
fechada de trocas.
A noção familiar de um “ciclo de reprodução” surge com o resul­
tado desse artifício, isto é, supondo-se que as condições dessa resolução
sinóptica do produto social realmente funcionam, e supondo-se a exis­
tência de um período definido de giro ou renovação do capital social
total. Parafraseando Marx, esse processo não pode ser suposto sem
que seja explicado. Teríamos de demonstrar que esse ciclo funciona
(por exem plo, os fisiócratas concebiam a produção social como basea­
da num ciclo anual determinado pela colheita). Se não, então não ha­
verá necessidade de conceber a “ reprodução” com o um processo espe­
cial, uma “ renovação” da econom ia. O conceito de um ciclo depende
da imposição de um período de tempo ao processo de circulação; im­
põe-se esse período com o uma necessidade social em que devem ser
“ som adas” as trocas de mercadorias da totalidade. Se tal necessidade
não for suposta, então ao término de qualquer período escolhido
com o medida haverá sempre trabalhadores com meios de pagamento
94 VALOR

não-despendidos, empresas com capitais monetários ainda não-


investidos, ou com produtos não-vendidos, ou esperando .meios de
produção. Diríamos que não há nenhum “ciclo” ou período de repro­
dução para o capital social total (embora as empresas realmente traba­
lhem em ciclos comerciais e de investimento, estes nunca “somam”
numa escala social). N ão há processo de reprodução distinto do pro­
cesso continuado de circulação de mercadorias, o processo que é a for­
ma de existência das relações de produção capitalistas. Sejamos claros:
não negamos a efetividade do processo de circulação ao nível do capi­
tal social total (isso seria negar qualquer efetividade às relações de pro­
dução da econom ia, o que é absurdo), mas negamos a noção de que
ela tome a forma de uma “ renovação” periódica sinóptica da produ­
ção.
Certos economistas (que sob outros aspectos são hostis a Marx,
com o Samuelson) elogiaram os esquemas de reprodução em O Capi­
tal, livro 2, por verem neles um estado de “equilíbrio” da econom ia -
uma proporcionalidade de setores necessária. Essa posição é adotada,
com o já vimos, por marxistas com o Hilferding e Rubin. Nada poderia
estar mais longe da verdade:
M as, na m edida em que ap en as tro cas u nilaterais são feitas, um certo núm ero de com ­
p ra s ap en as, de um lado, e um certo n ú m ero de vendas apenas, do o u tro , ... o equilíbrio
só p o d e ser m a n tid o n a su p o sição de que o v alo r d as c o m p ra s u n ilaterais e o das ven­
d as são iguais. O fato de ser a p ro d u ç ã o de m ercad o ria s a fo rm a geral de p ro d u ç ã o ca­
p italista im plica q u e o papel nela d esem p en h ad o pelo d in h eiro n ã o é ap en as o de um
m eio de circu lação , m as tam bém de cap ital m o n etário crian d o certas condições de troca
n o rm al p eculiares a este m odo de p ro d u ç ã o e p o rta n to a o cu rso n o rm al d a re p ro d u ­
ção ... con d içõ es que se tran sfo rm am em o u tra s ta n ta s condições de m ovim ento an o r­
m al, em o u tra s ta n ta s possibilidades de crises, já que o p ró p rio equ ilíb rio é um acidente
devido à natu reza esp o n tân ea dessa p ro d u ç ã o . (O C apital, livro 2, pp. 494-5)

Embora Marx use a noção de ciclo, não atribui nenhum resultado ou


efeito necessário ao processo de circulação. A reprodução não é uma
“necessidade” assegurada por um mecanismo providencial que dê o
resultado desejado ao processo de circulação. A circulação pode pro­
duzir “crises” (discrepâncias sistemáticas entre vendas e compras); tais
crises não significam um “ fracasso” das relações de produção capita­
listas (nenhum colapso do capitalismo), mas registram apenas uma m o­
dalidade específica da efetividade dessas relações. A estrutura da pro­
dução capitalistà (ramos, empresas, níveis de emprego) existe através
da circulação de mercadorias; ela registra, portanto, os efeitos do pro­
cesso de circulação. As “proporções necessárias” à reprodução da es­
trutura existente dos meios de produção não se impõem como necessida­
des ao processo de circulação. A circulação envolve dinheiro e, como
reconhece Marx, é uma característica da troca monetária o fato de não
envolver a simultaneidade de venda/com pra em ambos os lados da
P R O B L E M A DA “ R E P R O D U Ç Ã O ” 95

troca (com o no escambo), não sendo necessário que as vendas sejam


seguidas de compras. Daí a possibilidade de discrepâncias ou crises.
Marx reconhece que a análise do valor não oferece o m eio de
apresentar o problema da relação entre produção e circulação (“repro­
dução” ):
E n q u a n to ex am in am o s a p ro d u ç ã o de v alor e o v alo r do p ro d u to do capital in d iv id u al­
m en te, a fo rm a c o rp ó re a d as m ercad o ria s p ro d u z id a s foi indiferente à análise... E ssa
m an eira sim p lesm ente fo rm al de a p rese n ta ção já n ão é a d e q u a d a no estu d o do cap ital
social to tal e d o v alor de seus p ro d u to s. A reco n v ersão de um a p a rte do v alor do p ro d u ­
to em cap ital e a tran sferên cia da o u tra p a rte p a ra o co n su m o individual do cap italista ,
bem co m o d a classe o p e rá ria , form am um m o v im en to d e n tro do v alor do p ró p rio p ro ­
d u to , no qu al o resu ltad o do cap ital agregado e n c o n tra expressão; e esse m ovim ento n ão
é ap en as um a su b stitu ição de valor, m as tam b ém de m aterial, estan d o p o rta n to tã o liga­
d o com as p ro p o rç õ e s relativas d o s co m p o n en tes do v alo r do p ro d u to social to ta l q u a n ­
to com o seu v alor de uso, su a fo rm a m aterial (O C apital, livro 2, p. 394)

Marx reconhece aqui o problema da composição do produto total, que


se diferencia em certos produtos distintos (“ valores de uso” ) em certas
proporções. Ele não toca na questão dos determ inantes dessa com posi­
ção e sua relação com a circulação. Parece argumentar, porém, que há
uma relação determinada entre a reprodução dos componentes pro­
porcionais do valor do total e os com ponentes materiais proporcio­
nais. Essa posição, com o já vimos, é adotada por Hilferding. Se essa
“ lei do valor” funcionasse, representaria realmente um estado de “e-
quilíbrio” da economia: proporcionalidade de valores e valores de uso
necessários à produção, equilíbrio sincrónico de todas as trocas e seus
efeitos. Marx oferece, porém, os meios de questionar essa “ lei” .
A análise do valor não pode fixar os termos do problema de “re­
produção” que Marx levanta (as formas de articulação da produção e
circulação). A teoria do valor supõe que equivalentes é que são troca­
dos, sendo todos os valores equivalentes partes alíquotas idênticas da
totalidade dos valores (produto total). É a composição da produção,
sua divisão em quantidades de produtos distintos, e sua distribuição,
que estão em jogo. É a circulação dos meios de pagamento e os deter­
minantes do “ retorno” dos meios adequados para que os capitais
comprem novamente as condições de produção que estão em jogo. A s
características e quantidades dos produtos, o dinheiro com o meio de
troca/m eios de pagamento, são centrais para o problema da “ repro­
dução” . Quantidades de bens, somas de dinheiro, são condições neces­
sárias da existência das empresas, necessárias nessa fo rm a específica, e
não com o “ valores” . Os termos de valor disfarçam esse problema, eles
se relacionam com equivalentes (identidades), independentemente da
forma, enquanto o problema da “ reprodução” se relaciona com dife­
renças nos produtos e exige precisamente a forma de dinheiro. Somente
supondo que a “ lei do valor” garante a distribuição dos meios de
96 VALOR

produção e os meios de sua compra, ou que as formas de distribuição


devem respeitar as proporções de valor rigorosas (o que é a mesma
coisa) - isso envolve uma lei funcionalista do valor - é possível reduzir
os determinantes que participam da “ reprodução” a termos de valor.
N ada exige que os "valores” produzidos sejam com prados ou que o
“valor” na forma de dinheiro modifique sua forma. Negar isso é negar
a efetividade específica das relações capitalistas de produção, no inte­
resse de uma "lei do valor” hipostasiada, uma “ lei" que deve ter meca­
nismos de efetividade independente dessas relações, e que a elas se
sobreponha.
PARTE II

O CAPITAL
E AS LEIS TENDENCIAIS
Um breve comentário sobre o .status de nossa discussão das leis ten-
denciais" se faz necessário aqui. Ocupamo-nos, nesta parte do texto,
do conceito de “ lei tendencial” com o tal, com suas condições teóricas
de existência e seus efeitos. O objetivo desta parte é questionar a con­
cepção de causalidade social implícita na noção de “ lei tendencial” e
que a torna possível. Interessam-nos, em particular, as conseqüências
que essa concepção tem para a análise das formações sociais. Em nos­
sa discussão crítica do conceito geral, certas “ leis tendenciais” são
incluídas apenas para o desenvolvimento da argumentação contra esse
conceito, e com o ilustração. N ão fazemos aqui nenhum exame exaus­
tivo de determinadas “ leis” tendenciais, suas condições de funciona­
mento e os debates que as cercam. Dada a natureza de nossa crítica do
conceito geral, não há pertinência em considerarmos, neste contexto,
todos os casos de “ leis” que nele se enquadram. “ Leis tendenciais” es­
pecíficas são discutidas neste volume e no segundo quando têm rele­
vância direta para a argumentação.
Uma implicação de tal discussão deve ser esclarecida antes das
discussões e conclusões do segundo volume. A rejeição do conceito de
causalidade implícita na noção de “leis tendenciais” tem conseqüências
muito definidas para as tentativas de periodizar o sistema capitalista.
Concepções de uma fase de “ m onopólio” , ou fase “ industrial adianta­
da” do capitalismo têm geralmente dependido de alguma tese da inter­
ligação e maturação dos efeitos de certas leis tendenciais (por exemplo,
concentração e centralização, desenvolvim ento das forças produtivas)
produzirem uma mutação significativa na estrutura desse m odo de
produção. O que está em jogo, aqui, é a idéia de que as efetividades ne­
cessárias postuladas num conceito geral do m odo de produção capita­
lista podem ser, direta ou indiretamente, “ mapeadas” nas formações
sociais capitalistas. É essa noção de causalidade que criticamos e rejei­
tamos. Segue-se dessa rejeição que não pode haver uma periodização
necessária e geral das formações sociais capitalistas no nível de um
conceito do m odo de produção capitalista. Em nossa concepção, a pe­
100 "O C A P ITA L" E AS LEIS TENDENCIA1S

riodização exigiria especificar mudanças nas condições nas quais as re­


lações capitalistas de produção estão asseguradas em formações so­
ciais definidas e a natureza dos efeitos dessas modificações sobre tais
relações. A natureza dessas m odificações não pode ser especificada
sem referência àquelas condições e, em conseqüência, não podem ser
generalizadas num estágio “ m onopolista” ou qualquer outro tipo de
estágio.
Capítulo 4

Epistemología, Causalidade
e Leis Tendenciais

A Contribuição à Crítica da Economia Política, o Grundrisse e O Capi­


tal têm em com um , em substância, a mesma concepção do conheci­
mento científico das relações sociais e a maneira de proceder na pro­
dução de tal conhecim ento. Essa concepção pode ser considerada
com o urna epistem ología, isto é, uma concepção de uma relação neces­
sária e geral entre um processo de conhecim ento (qualquer que seja a
sua concepção) e um objeto que lhe é exterior (qualquer que seja a sua
concepção) e nessa relação o primeiro corresponde a, ou assimila, o se­
gundo. Tal epistem ología é elaborada para um conhecimento defini­
do, a Economia Política, e não com o uma doutrina filosófica geral do
conhecimento. Serve para definir e diferenciar uma concepção do
“ m étodo” da Econom ia Política: esse “ m étodo” é uma maneira neces­
sária de proceder na análise e investigação de m odo que esse conheci­
mento econôm ico assimile seu objeto. Essa forma de conhecim ento e o
“m étodo” a ela correspondente estão prefigurados na “ Introdução de
1857” à Contribuição. N osso objetivo, aqui, será investigar o conceito
de “ lei tendencial” em O Capital. Para isso, é necessário examinar a
concepção de uma forma de processo de conhecim ento na qual tais
“ leis” sejam consideradas com o produtos possíveis e necessários de tal
processo. E por isso que dedicamos muita atenção ao texto de 1857.
Uma palavra de advertência é necessária aqui. Ou antes, muitas
palavras, dada a influência do racionalismo althusseriano sobre con­
cepções e práticas de leitura. Essa advertência é necessária porque nos­
so tratamento da relação entre a doutrina epistemológica e os outros
conceitos em O Capital não segue o tratamento da concepção raciona­
lista do discurso. O discurso de O C apital não deve ser concebido
com o a emanação de uma doutrina epistem ológica que forma os “ con­
ceitos básicos” dos quais derivam logicamente todos os outros. Na
concepção racionalista do discurso toda a “ lógica” de O Capital seria
concebida com o imanente em seus “conceitos básicos”, e primeiro en­
tre esses conceitos estaria o da relação entre conhecimento e ser. Em
nossa concepção, o discurso escrito sob o signo de uma doutrina epis-
102 “O CA P ITA L" E AS LEIS T EN D E N C IA IS

tem ológica não está “ logicamente atadp” por ela. Na concepção ra­
cionalista, posições “discrepantes” são interpretadas com o interven­
ções externas, ha ordem “ lógica” dos efeitos dos conceitos básicos, de
outros conceitos e seus efeitos (assim, por exemplo, na concepção de
Althusser, as ideologias intervêm no discurso para constituir obstácu­
los aos efeitos lógicos da cientificidade, e'tais obstáculos podem ser re­
movidos por urna crítica que reconhece a externalidade desses concei­
tos e, ao removê-lo, remove também seus efeitos negativos). As doutri­
nas epistem ológicas não têm, em nossa concepção, efeitos discursivos
necessários.
Mas argumentamos em outras obras (Hindess, 1977a, Hindess e
Hirst, 1977) que as doutrinas epistem ológicas não têm efeitos discursi­
vos necessários. Um conceito epistem ológico da relação entre conheci­
mento e ser é necessariamente geral: especifica a forma de relação en­
tre o ser (a categoria geral daquilo que é externo ao conhecimento e-
conhecido por ele) e o conhecim ento (o processo de assimilação do
ser na ordem de seu reconhecimento). As doutrinas epistemológicas
são concepções dessa relação geral. Com o tal, pretendem estabelecer a
forma geral que todo ser deve tomar e o fazem especificando-a com o a
forma adequada a uma concepção definida do processo de conhecia
mento. Elas não constituem as entidades particulares de que falam ou­
tros discursos teóricos definidos. Essas últimas entidades são especifi­
cadas em formas muito distintas de discurso, por meio de conceitos e
problemas que não são epistem ológicos e que não são derivados de
conceitos e problemas epistem ológicos. As entidades assim concebidas
não precisam ter um status epistemológico, com o objetos externos ao
discurso e aos quais ele corresponde. Essas entidades - relações de
produção, fótons, etc., - não precisam ser assimiladas a nenhuma cate­
goria geral de ser. Assim , um problema com o a tendência à queda da
taxa de lucro não pode ser derivado ou deduzido da concepção do pro­
cesso de conhecim ento adotada no texto em que foi apresentado. Tais
entidades são concebidas em doutrinas epistemológicas com o varian­
tes ou exemplos do conceito geral do ser; mas essa assimilação depen­
de de se aceitar com o válido o empreendimento epistem ológico. O Ca­
pital não pode ser concebido com o uma extensão da epistem ologia em
cujos termos está escrita, sendo o todo unido por um único discurso
logicamente coerente. Os conceitos epistem ológicos não são “concei­
tos básicos” no sentido racionalista.

Assim, limitar radicalmente os efeitos discursivos dos conceitos


epistem ológicos não é eliminá-los. As doutrinas epistemológicas não
têm efeitos lógicos e necessários sobre os textos escritos sob o seu sig­
no. A relação entre esses conceitos e os outros conceitos no texto em
que estão escritos é determinada pelas condições específicas da escrita
EPISTEMOLOGIA, CA U SA L ID A D E E LEIS T EN D E N C IA IS 103

e não por propriedades lógicas inerentes nos próprios conceitos. Eles


não asseguram que o discurso substantivo do texto se conforma com
os protocolos estabelecidos em seus conceitos epistemológicos. D aí, se
demonstrarmos uma forma de congruência entre uma concepção da
relação entre o conhecim ento e o ser, uma concepção da forma de de­
senvolvimento de conceitos e a apresentação de problemas, e conceitos
e entidades definidos, essa congruência deve ser compreendida como
um efeito do discurso no qual é produzida (o que torna possível essa
combinação, por mais “contraditória” que pareça). É um efeito das
condições do discurso e da sua forma com o um todo, não sendo um
efeito necessário (é específico a essas condições e não tem validade
com o tal assegurada numa lógica), nem um efeito de qualquer nível
particular de conceitos naquele discurso (não há “conceitos básicos”
privilegiados contra o discurso e outros conceitos, em termos dos
quais o todo deva ser lido). O conceito de “ lei tendencial” desenvolvi­
do em O Capital não pode ser concebido com o tornado necessário
pela epistem ología de O Capital, m esm o que haja uma relação defini­
da com ele. Além disso, não há um conceito simples e singular de
“ lei” , mas uma variedade de possíveis posições, determinada pela con­
textura do discurso; essa complexidade se torna maior à medida que
“ leis” específicas são elaboradas em partes do texto diferentes e que
têm diferentes status e objetivos. N esse com plexo de discursos, certas
consequências “ lógicas” da doutrina epistem ológica adotada geral­
mente em O Capital, e das concepções da lei tendencial, são rejeita­
das e negadas. Essas rejeições não constituem “ obstáculos” ou “ intru­
sões” , são a forma pela qual o discurso procede e produz seus efeitos.
Essas rejeições não são privilegiadas, simples negações daquilo que re­
jeitam. A rejeição dessas possíveis conseqüências e a substituição por
outras posições têm efeitos reais, e portanto em sua reação contrária
essas posições possíveis são de significação discursiva.
Qual a doutrina epistem ológica sob cujo signo foram escritos es­
ses três textos tão diferentes? Ê a concepção do conhecimento familiar
e notória pela sua reconstrução em Pour M a rx e Lire “Le C apital”, a
“ apropriação do concreto no pensam ento” . O esboço de Marx dessa
doutrina na “ Introdução de 1857” ilustra a concepção da relação entre
conhecim ento e ser e o m étodo de trabalho em Economia Política mui­
to bem associado a ela.
Naquele texto, o “método científico correto” (Marx, “Introdução
de 1857”, p. 206) é concebido como analítico/abstrato. Compreende a
formação de conceitos gerais por um processo de raciocínio (que ocor­
re em abstração do concreto) e a concretização dos conceitos através
de seu desenvolvim ento e elaboração nesse processo de raciocínio. O
concreto é “ apropriado” por um m étodo que leva “ de definições abs­
tratas através do raciocínio à reprodução da situação concreta” (ibid.).
104 “ O CA PITA L" E AS LEIS T E N D E N C iA lS

Um processo que ocorre no pensamento produz o concreto na ordem


do conhecimento, tal com o os processos que ocorrem na realidade
produzem o concreto na ordem de sua existência. O conhecimento
deve ser concebido com o um processo que produz um efeito; esse pro­
cesso é uma forma de raciocínio e o efeito é reproduzir o concreto den­
tro do pensamento: “ o método de passar do abstrato para o concreto é
simplesmente o modo pelo qual o pensamento assimila o concreto e o
reproduz com o uma categoria mental concreta” (Ibid.). O conheci­
mento é um processo (raciocínio), que tem um status ontológico defi­
nido (ocorre numa esfera distinta chamada “ pensamento” ); esse pro­
cesso tem um efeito sobre o objeto com um status ontológico diferente
(o “concreto"), e o efeito é “ assimilar” esse último objeto dentro da
primeira esfera, “ reproduzindo” o último objeto (é ele mesmo), mas
no m odo adequado à esfera do “ pensamento” , com o uma “categoria
mental concreta” .
A correspondência entre o conhecimento e seu objeto é a corres­
pondência dos produtos de dois processos ontologicam ente distintos
que produzem seus resultados de m odos diferentes: a evolução de con­
ceitos na abstração, através do raciocínio, e a evolução do concreto
através de cadeias definidas de causalidade histórica. São os produtos
que correspondem e não os processos; o processo de raciocínio não se­
gue a ordem real de formação do concreto, não reflete a história do
concreto. O concreto que o pensamento apropria é uma totalidade,
uma totalidade cuja existência corrente é diferente das circunstâncias
de sua formação. A correspondência entre as duas ordens, o conheci­
mento e o concreto, é possível, apesar de suas naturezas e modos de
formação diferentes, porque ambas têm a propriedade comum de ser
sintéticas. Em O Capital, Marx define um processo com o “ uma síntese
de muitas determinações” . N o texto de 1857, o produto do “processo
de evolução do próprio mundo concreto” é concebido com o essa
síntese, uma totalidade social com uma efetividade interna e distinta
das circunstâncias de sua formação. O conhecimento é concebido
igualmente com o um processo sintético: “ O conceito concreto é con­
creto por ser uma síntese de muitas definições, representando assim a
unidade de diversos aspectos” (Marx, “Introdução de 1857”, p. 206). A
síntese de definições compreende a síntese de determinações, a corres­
pondência é a da ordem de uma totalidade com outra totalidade. Se o
concreto não fosse sintético, formado num todo ordenado, não seria
acessível à representação numa totalidade racional de conceitos. O ser
não poderia ter uma ordem adequada à razão. O pensamento pode
realizar-se em sua própria esfera, pelas suas próprias leis, e ainda assim
corresponder à realidade, porque aquilo que é formado pela fusão de
diversas circunstâncias não é em si mesmo circunstancial. A totalidade
é conhecível com o tal.
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L ID A D E E LEIS T E N D E N C IA IS 105

Uma com binação sintética de elem entos corresponde a outra e a


representa. Tendo sintetizado a síntese concreta, o pensamento possui
a chave das circunstâncias de suas existências. Compreendendo a arti­
culação dos elementos na totalidade e pela totalidade, o pensamento
pode ver o que é pertinente nas circunstâncias que constituem os pro­
cessos específicos de formação daquela totalidade na realidade. D aí o
aforismo muito citado de Marx: “A anatom ia do homem é a chave da
anatomia do m acaco” . Compreendendo a hierarquia de determina­
ções e seus efeitos, o pensamento pode determinar o que é significativo
cm qualquer situação concreta na qual a totalidade existe e é operati­
va.
Marx, ao especificar o método adequado à Economia Política,
também especifica a natureza geral dos objetos de que essa disciplina
se deve ocupar. A forma do ser assimilada e reproduzida no pensa­
mento é um sistema de relações sociais. Tal sistema é o objeto signifi­
cativo da Econom ia Política, proporcionando em sua sistematicidade
aquilo que deve ser conhecido sobre o processo de sua própria forma­
ção e o que deve ser conhecido sobre as condições nas quais existe.
Essa articulação de elem entos num todo, que pode ser refletida no
pensamento, é o que é significativo em relação ao ser. Por implica­
ção, ela não esgota o ser social, a totalidade de circunstâncias passadas
e presentes, mas é privilegiado dentro dela. Além disso, o pensamento
assimila o concreto, reproduz o ser dentro de si mesmo. Assim, Marx
cm 1857 concebe o “ método científico correto” na Economia Política
com o sendo o desenvolvim ento de totalidades concretas de relações
sociais (concretas no pensamento com o o são na realidade) por um ra­
ciocínio que parte de conceitos abstratos simples. Essa concepção de
método não está deslocada em O Capital, escrito com o um processo de
conhecim ento, com o a apresentação do raciocínio pelo qual um objeto
definido (a totalidade) é assimilado, isto é, o m odo de produção capi­
talista. Esse objeto é real, um sistema sintetizado em conceitos. E uma
existência (com pleta, com suas determinações) capaz de ser expressa
na razão. As relações sociais capitalistas são um objeto unitário capaz
de existência nas formas especificadas pela abstração.
Para perceber a significação desse último ponto devemos voltar à
discussão geral da epistem ología. A s epistem ologías postulam uma
forma definida de relação entre o ser e o conhecimento e, porque se
ocupam do problema da validade do conhecim ento, uma explicação
da adequação (ou inadequação) dessa relação e as razões por que é ne­
cessária. Um a forma definida de conhecim ento corresponde a um ob­
jeto a ela exterior: o conhecim ento e o objeto devem existir em formas
adequadas entre si para que a correspondência seja possível. O objeto
deve ter um status adequado às formas do seu conhecimento. Assim,
as variantes indutivistas do positivism o tendem a supor a possibilidade
106 " O C A P IT A L ." L AS LKIS T t N D h N C ¡AIS

de conhecim ento pelo reconhecimento dos objetos de sensação, indivi­


duais e distintos. Ou, tom ando um exemplo em que a relação é de ina­
dequação, uma relação determinada pela natureza do objeto, Weber
concebe o conhecim ento das relações sociais com o necessariamente li­
mitado pelo fato de que constituem uma esfera de objetivos humanos.
Esse último exemplo ilustra uma propriedade das doutrinas epistemo­
lógicas, de que, ao especificarem a relação entre conhecimento e ser,
especificam também a forma geral do ser conhecido e demarcam, dessa
maneira, todas as existências que podem ser conhecidas. Assim, mes­
mo quando a adequação de uma forma definida de conhecimento é ne­
gada, ou radicalmente limitada, as doutrinas epistemológicas preten­
dem especificar o que não pode ser (adequadamente) conhecido e por
que não pode ser conhecido. O ser é uma categoria geral no discurso
epistem ológico, é tão geral quanto as formas de conhecimento. Para
cada forma existente são postuladas entidades que têm um status geral
e com um . Em certas epistem ologías, essa referência ontológica neces­
sária pode ser delimitada ou nominalizada dizendo-se que tais entida­
des existem para o conhecimento e que só podem ser conhecidas como
tais através das formas possíveis do conhecim ento. Mas isso são tenta­
tivas de ressalvar a relação necessariamente envolvida na especificação
de qualquer forma geral de conhecimento, um processo que apropria,
ou corresponde a, entidades que existem fora dele. Quando essa refe­
rência é delimitada, então geralmente o efeito de correspondência é en­
fraquecido ou sujeito a um questionamento cético. Paradoxalmente,
isso tem o efeito de desvalorizar todos os possíveis conhecimentos de­
finidos e de subordiná-los ao próprio discurso epistem ológico (esse
discurso é o único que não é enfraquecido e negado em relação aos
seus objetos). Em geral, portanto, as doutrinas epistem ológicas estabe­
lecem um conceito definido da natureza e limites do objeto que o co­
nhecimento especificado nelas pode conhecer.
O objeto de O Capital é o m odo de produção capitalista. N ão é
um país capitalista definido, sua população, comércio, as leis que re­
gulam seu comércio, etc., mas o capitalismo em geral, que é o objeto a
ser conhecido. O capitalismo é um sistema econôm ico, uma totalidade
de relações sociais, que pode ser assimilado abstratamente. O capitalis­
mo é uma totalidade concreta. “De te fabula narratur”; de ti está escri­
to, porque o objeto de pensamento de O Capital, o modo de produção
capitalista e suas leis econôm icas de movimento, apropria uma reali­
dade, essas leis sendo a forma de ação concreta de tal realidade. O ca­
pitalismo não se limita à Inglaterra, ou a qualquer das circunstâncias
definidas de sua existência concreta. A Inglaterra simplesmente ilus­
tra, num contexto específico, o funcionamento da lógica e as leis de
m ovim ento do sistema. Esse sistema tem condições particulares de gê­
nese na Inglaterra, mas o importante é o efeito geral do sistema consti-
EPISTEMOLOGIA, C A U S A L ID A D E E LEIS T E N D E N C IA IS 107

tuído. Esses efeitos são os mesmos na Alemanha e na Inglaterra e


agem para eliminar os efeitos de sistemas sociais anteriores e das cir­
cunstâncias de gênese. A Inglaterra não é aquilo que Marx oferece
com o futuro para os alemães, mas os efeitos do capitalismo na Ingla­
terra. A síntese concreta, o capitalismo, tem efeitos que lhe são neces­
sários, que se originam dele com o sistema e que fazem dele um siste­
ma. O capitalismo, uma generalidade independente das condições es­
pecíficas em que atua, é a totalidade concreta sintetizada no pensa­
mento. Como o objeto real é existência em generalidade, ele pode ser
compreendido em conceitos gerais (sintetizados na abstração).
O objeto concreto de O Capital é uma generalidade, mas uma ge­
neralidade concreta, racional na forma e nos efeitos, que pode ser assi­
milada abstratamente. O conceito de capitalismo assimila as determi­
nações e os efeitos do sistema concreto. Para que seja possível um co­
nhecimento desse tipo, com o resultado de um processo de raciocínio
abstrato, esses efeitos devem ser racionais e necessários, devem decor­
rer do sistema com o conseqüências lógicas de um conceito. A catego­
ria de “ leis de m ovim ento” compreende uma certa classe desses efeitos
necessários, os que se desenvolvem com acentuada efetividade à medi­
da que o sistema se desenvolve também.
O que são esses efeitos, porém, não pode ser derivado dessa con­
cepção do modo de produção capitalista com o objeto de um processo ,
de conhecimento definido. Para que tais efeitos fossem dados no con­
ceito desse processo, todo o discurso de O Capital teria de formar um
todo lógico coerente. O discurso de O Capital não é esse todo e não
pode ser compreendido à base das suposições racionalistas de coerên­
cia e hierarquia lógica. Os efeitos das “ leis de m ovim ento” e, na verda­
de, o conceito geral dessas leis, não são desenvolvidos sem ambigüida­
des ou com coerência, no discurso de O Capital, que apresenta uma
concepção de efetividade que corresponde ao processo de conhecim en­
to com o um processo de raciocínio, mas essa concepção não hegemo­
niza, de m odo algum, análises específicas dos supostos efeitos defini­
dos.
Para examinar o conceito de efetividade que possibilita a noção
de “ leis de m ovim ento” que podem ser compreendidas abstratamente,
teremos de examinar primeiro uma concepção do modo capitalista de
produção apresentada em O Capital. Posteriormente, limitaremos sua
relação ao discurso com o um todo, m ostrando que ela não desempe­
nha o papel de “ conceito básico” que governa todas as partes menos
“gerais” de tal discurso.
Nessa concepção, O Capital apreende a essência das relações so­
ciais capitalistas. Todas as sociedades capitalistas possíveis são sim ­
plesmente as localizações ou realizações específicas desse sistema eco­
nômico e de seus efeitos necessários. M esmo essa concepção da posi-
108 “ O CA P ITA L ” E AS LEIS T EN D E N CIA IS

ção geral do objeto conhecido não nos pode dizer quais serão tais efei­
tos. Ela não determina, nem pode determinar, se tais efeitos são a evo­
lução necessária da estrutura na direção de um fim (seja a estagnação,
colapso ou supressão) ou sua auto-reprodução. Essa ontologia geral
nos diz apenas que os efeitos do sistema seguem-se necessariamente
dele, e têm a mesma forma geral, não havendo nenhuma outra ordem
possível de efeitos que os contradiga. Qualquer que seja a natureza es­
pecífica dos efeitos ou tendências, estes se realizariam necessariamen­
te, podendo ser considerados com o simples concretizações de potencia­
lidades presentes na unidade do ser em questão (capitalismo) e com ­
preendidos (antecipadamente) em seu conceito. Essa concepção da
tendência com o um efeito necessário imanente no ser do objeto pode
ser encontrada em concepções diferentes, e politicamente opostas, de
O Capital. Para um certo tipo de Sociologia ou Economia antimarxis­
ta, Marx arriscou “previsões” , isto é, um curso necessário de aconteci­
mentos, miséria, depressão permanente, polarização de classes, etc., e
essas “ previsões” foram refutadas pelo não-aparecimento de tais fenô­
menos. Certos marxistas responderam que esses acontecimentos ne­
cessários foram simplesmente adiados e que, com o tempo, ocorrerão.
Esta época é a época da notória “ negação da negação” : as tendências
imanentes, finalmente presentes, anulam seus próprios efeitos, pois a
sua efetividade final é a sua própria autodestruição. Para esse marxis­
mo, o capitalismo desaba em conseqüência da realização de suas ten­
dências: na estagnação provocada pela taxa decrescente de lucro, nas
crises e depressões produzidas pelo aumento da miséria e pelo subcon-
sumo, o capitalismo se torna impossível.
Mais adiante, examinaremos em detalhe o mais famoso dos tre­
chos que sustentam essa leitura, livro 1, cap. 32, “A Tendência Históri­
ca da Acumulação Capitalista” . Também examinaremos o mecanismo
crucial dessa ação transformativa das tendências, o conceito de Marx
das forças e relações de produção que entram em contradição. Argu­
mentaremos que nenhuma dessas concepções mantém no discurso
uma concepção desenvolvida de tendência realizada necessariamente,
e certamente não a de uma tendência que leve à dissolução das rela­
ções sociais capitalistas.
D issem os acima que o conceito do efeito necessariamente realiza­
do envolvido no conceito do capitalismo com o um sistema sintetizado
na razão não dá a fo rm a desse efeito. A forma de efetividade ensaiada
no livro 1, capítulo 32, não é a única forma de efeito necessário. Outros
efeitos do sistema, que não são evolucionário-tendenciais, mas sincrô-
nico-estruturais, têm o mesmo status como efeitos imanentes no siste­
ma e especificados em seu conceito. Enquanto as formas de efetividade
suposta na “negação da negação” são questionadas ou ignoradas em
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E LEIS T E N D E N C I A I S 109

outras partes do discurso de O Capital, alguns dos efeitos sincrónicos


são mantidos por todos os três livros com notável coerência.
A o examinarmos esses efeitos sincrónicos, devemos notar, pri­
meiro, que o assimilado no pensamento é um sistema de relações so­
ciais. Isso pode parecer óbvio, mas o objeto conhecido (relações entre
os homens) afeta o processo de conhecimento pelo qual é conhecido, e
a concepção do objeto no processo de conhecimento afeta as relações
entre os homens que podem ser especificadas nesse processo. Essa co­
nexão dupla e recíproca do processo de conhecimento e conceito do
objeto se localiza em torno do conceito de ideologia. A concepção ge­
ral do objeto na epistemología, sob o signo da qual O Capital foi escri­
to, é o de uma entidade cujos efeitos são dados em seu conceito. O sis­
tema na realidade a ser conhecido em O Capital é o sistema de produ­
ção e distribuição de um tipo de econom ia. Isso significa que os efeitos
da econom ia devem estar presentes em seu conceito. Aqui, a concep­
ção epistemológica do objeto é reforçada por uma teoria específica da
causalidade, o materialismo histórico. N essa teoria, a econom ia é o
determinante primário das relações sociais: “O m odo de produção da
vida material condiciona o processo da vida social, política e intelec­
tual em geral.” Esse primado significa que o econômico pode ser ela­
borado na ordem do pensamento de m odo autônom o das outras rela­
ções sociais. Na verdade, já que o econôm ico determina essas outras
relações na última instância, deve ser conceituado e sua efetividade re­
conhecida antes que qualquer análise científica dessas outras relações
seja possível. N essa ordem de análise, a ordem causal no real é respei­
tada, e, ao mesmo tempo, os efeitos dessa ordem sobre o conhecimen­
to são evitados. Pois, se o nível econôm ico condiciona os elementos in­
telectuais na realidade social, pode impor esse condicionamento ao co­
nhecimento. Daí a necessidade de uma abstração que reconstrói a or­
dem causal do real no pensamento. O processo de conhecimento e o
processo causal no real estão unidos de m odos definidos: o primado
do sistema econôm ico e a necessidade de seus efeitos tornam possível
um certo tipo de conhecim ento (síntese do concreto na abstração), e
também tornam esse tipo de conhecim ento necessário (abstração da
imediação do concreto - reconhecim ento/abstenção da ordem causal
do concreto). A doutrina epistem ológica e o materialismo histórico in­
teragem e reforçam-se mutuamente de formas definidas.
Esse reforço pode ser resumido com o se segue: primeiro, a econo­
mia cria certos efeitos necessários que proporcionam (através de seu
primado causal) suas condições não-econôm icas de existência, e, se­
gundo, uma ordem definida de pensamento se faz necessária pela or­
dem do real, necessária a fim de corresponder ao real (primado do eco­
nômico) e necessária para evitar que certos efeitos do real interrom­
pam a ordem de pensamento (daí a abstração do pensamento, a auto-
110 O CA P ITA L ” E AS LEIS T EN D E N C IA IS

nomia das duas ordens). A ideologia é assim duplamente significativa


para o conhecimento marxista. E um dos efeitos necessários do siste­
ma, tornando possível esse sistema com o relações sociais, e é um efeito
possível sobre o conhecim ento que im põe uma certa forma e ordem ao
pensamento (científico).
O sistema assimilado em pensamento é de relações entre homens,
relações sociais com efeitos intersubjetivos. Os efeitos do sistema são
as maneiras pelas quais os homens são ligados entre si no trabalho,
troca, etc. Os homens partilham da ordem de pensamento. Para que o
capitalismo seja um sistema de relações entre homens, deve afetar a
maneira pela qual esses homens percebem e agem. Isto é, em termos
teóricos, a econom ia deve assegurar suas condições ideológicas de
existência. E deve fazê-lo porque certos efeitos lhe são necessários
com o sistema e tais efeitos ocorrem através de relações entre os h o­
mens. Porque o capitalismo é um sistem a, certos atos definidos são
exigidos dos homens que o vivem; porque seus efeitos são necessários
em seu conceito esses atos devem ocorrer independentemente da vonta­
de desses homens, e em conseqüência o condicionam ento de sua von­
tade é necessário. Daí a teoria da ideologia ser necessária a um concei­
to do sistema de relações sociais no qual certos efeitos são conseqüên­
cias necessárias do sistema.
Em O Capital a estrutura das relações sociais exige formas defini­
das e necessárias de representação do processo econôm ico para os se­
res humanos que servem com o seus agentes em suas relações mútuas.
Formas definidas de cálculo são necessárias ao capitalista com o agen­
te e ao capitalismo (por exemplo, a teoria do preço de custo). Repre­
sentações definidas das relações sociais são necessárias para que sejam
relações possíveis, para que sua essência antagônica seja disfarçada (a
aparência do salário com o um contrato igual, etc.). O Capital estabele­
ce o conceito de fo rm a s fenom enais, formas de representação do pro­
cesso econôm ico que são um efeito necessário do sistema e uma parte
dele, uma condição de sua sistematicidade. Essas formas fenomenais
criam percepções e relações sociais que correspondem a realidades e
produzem efeitos reais. Essas formas não são meras aparências, ilu­
sões, falsas em essência. O que torna ideológica a experiência obtida
através dessas formas de representação é que essas representações são
elementos do sistema e determinadas por ele, mas são experimentadas
na çonsciência com o a realidade in toto.
Esses efeitos são gerados com o experiência. Segue-se que os sujei­
tos humanos devem ser concebidos de maneira que possam apoiar a
categoria de experiência. A experiência em questão tem seus conteú­
dos especificados em geral (abstratamente) no nível do conceito do
modo de produção capitalista. Esses conteúdos são específicos por na-
tureza (as percepções definidas que apóiam um modo de cálculo) e
EPISTEMOLOGIA, C A U S A L ID A D E E LEIS T EN D E N C IA IS 111

universais (ocorrem da mesmo forma definida em todos os capitalis­


mos). O conceito de m odo de produção capitalista especifica, portanto,
suas condições ideológicas de existência com o efeitos concretos inva­
riantes do sistema. E o faz em geral independentemente da forma pela
qual homens específicos se associam numa sociedade e são educados
com o membros dessa sociedade. Para que o capitalismo se imponha
assim em geral, os homens devem ser concebíveis em geral (sujeitos
com atributos adequados ao capitalismo). Um conceito geral do so­
cial, com efeitos necessários, exige um conceito geral do sujeito, capaz
de ser suporte a tais efeitos. O sujeito aqui postulado é o sujeito aberto
aos efeitos da experiência, sujeitos com uma capacidade de reconheci­
mento que pode internalizar as experiências que o sistema gera para
eles, sujeitos vazios, que podem fazer dessa experiência o terreno e o
conteúdo de sua ação. Qualquer sujeito colocado adequadamente no
sistema sentirá essa experiência de forma adequada e agirá adequada­
mente. O Capital, com o uma teoria do funcionamento da economia,
exige uma A ntropologia definida.
O capitalismo com o sistema é visto, assim, com o criador de “efei­
tos de experiência” , representações de si mesmo que são auto-
inteligíveis com o experiência. Essés efeitos correspondem a um siste­
ma de “ lugares” , isto é, loci específicos para agentes do sistema, loci
que impõem necessidades de ação independentes da vontade desses
agentes. A esses lugares correspondem sujeitos humanos, cada qual
uma tabula rasa, derivando da experiência o consentimento e as bases
para sua ação. É através do processo de representação que os homens
entram em relações que são independentes de sua vontade, mas isso
porque sua vontade é dependente dessas relações.
Essa auto-efetividade da econom ia na criação de suas próprias
condições intersubjetivas de existência pode ser chamada de economi-
cismo. O primado do econôm ico gera um conceito necessariamente su­
bordinado do sujeito humano - um receptáculo adequado aos efeitos,
dessa causalidade. Constitui também um. conceito geral do sujeito,
universalmente pronto a receber esses efeitos necessários. Com o o
conteúdo do sujeito é interiorizado dentro do sistema, assim o concei­
to de sujeito que o apóia é geral e vazio. Isso é reconhecido com fre­
qüência por comentaristas humanistas com o a alienação do homem
no capitalismo, mas é um efeito da concepção de Marx do capitalismo
no discurso. Efeito que coincide com a concepção do capitalismo
com o uma unidade do ser capaz de expressão abstrata. Esse economi-
cismo da ação do sistema não pode ser dispensado para que os efeitos
do sistema possam ser designados através de um processo de raciocí­
nio.
O capitalismo envolve portanto certos efeitos universais e neces­
sários, efeitos que representam relações sociais para seus agentes e

I ÍBSTITSJTO m
í FILOSOFIA 6
Ig lêN C iA SSoa
112 “ O C A P I T A L ” E AS LEIS T E N D B N C I A I S

constituem form as de cálculo. A existência desses efeitos co n ­


diciona o método teórico de trabalho na própria Economia Políti­
ca. O Capital foi concebido da maneira pela qual está escrito, com o sé-
guindo uma ordem necessária de desenvolvimento de conceitos. O ra­
ciocinio que penetra o objeto tem urna forma teórica necessária e urna
ordem teorizada de apresentação. O conhecim ento se processa numa
ordem definida para evitar os efeitos do processo de representação
criado pelo sistema que ele busca assimilar. Assim, é necessário com e­
çar com conceitos abstratos (“ valor” com o conceito geral) e com as
formas mais simples (por exem plo, escambo) e não com relações so­
ciais capitalistas tal com o são representadas na consciência dos agen­
tes. A concepção de Marx do método é sistematicamente antipositivis-
ta; contém uma rejeição radical da validade de qualquer conhecimento
que funcione através das formas dadas à experiência.
Examinamos os efeitos sincrônico-estruturais a fim de colocar
mais claramente o que está em jogo nos efeitos concebidos com o “ten-
denciais” , que formam as “ leis de m ovim ento” da estrutura. A fim de
compreender o problema criado por essas “ leis” , devemos considerar
o que resulta das duas circunstâncias seguintes, em O Capital: que a
ordem de raciocínio é teorizada com o a ordem de produção do conhe­
cimento; e que as formas concretas de aparência são concebidas como
as últimas partes do sistema a serem conhecidas teoricamente, são co­
nhecidas com o o produto de conceitos mais gerais que são suas condi­
ções de possibilidade com o conhecim ento.
O Capital é concebido operando com o um discurso por um duplo
processo teórico. Procede através do desenvolvimento de formas con­
ceptuais do simples para o complexo; esse desenvolvimento de formas
é o processo pelo qual o pensamento é concretizado. Esse processo dis­
cursivo que faz surgir o com plexo-concreto no desenvolvimento de ca­
tegorias apóia outro processo no qual a abstração constrói as determi­
nações interiores do sistema e passa a ligá-las de uma forma determi­
nante com as formas fenomenais encontradas na experiência. A se­
qüência de formas, simples -* com plexo, e a conexão da estrutura inte­
rior e as formas fenomenais estão ligadas num único processo lógico
de discurso. Esse processo de complexificação-concretização tem uma
forma e uma ordem lógica necessária (dialética). O efeito das sucessi­
vas relações lógicas entre conceitos é a assimilação da totalidade em
sua concretitude. A ordem discursiva é parte de um processo de conhe­
cimento e as conseqüências lógicas têm o efeito de assimilação. Assim,
em O Capital uma das leis tendenciais, a da taxa decrescente de lucro,
ocorre em conseqüência de certos conceitos, está ligada a certa posição
no discurso. Os conceitos que a precedem e são necessários à sua for­
mulação (“ com posição orgânica do capital” , etc.) não são em si mes­
mos conceitos epistem ológicos (e têm problemas não-epistem ológicos
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E L EIS T E N D E N C I A I S 113

com o sua fonte). N ão obstante, operam dentro de uma concepção do


discurso na qual a “ lógica” dos conceitos, suas conseqüências quando
dispostos de uma certa maneira, não pode ser considerada com o in­
conseqüente.
Eçsa noção de uma tendência à queda da taxa de lucro, possibili­
tada pela disposição de certos conceitos, é concebida em O Capital
com o um processo (de qualquer natureza, assunto que examinaremos
mais adiante) que ocorre na realidade. É difícil dentro da concepção
do discurso com o assim ilação através da dialética colocar de lado al­
guma coisa com o apenas uma possível conseqüência do desenvolver
conceitos de uma certa maneira. Fazê-lo seria minar a própria concep­
ção do conhecim ento com o um processo de com plexificação-
concretização. A margem para tal atitude não existe no método de
produzir conhecim ento, e esse m étodo é tentado no discurso de O Ca­
pital. Veremos que o discurso de O Capital rejeita a concepção dessa
lei com o uma tendência realizada, mas não a desconta com o uma ten­
dência real no sistema. Assim , a concepção dominante do processo de
conhecim ento dentro do qual O C apital está escrito tem realmente
efeitos possíveis definidos sobre as “ leis tendenciais” desenvolvidas
no discurso, tanto em sua forma com o leis (efeitos necessários do siste­
ma) com o nas condições de seu aparecimento (efeitos conceptuais são
efeitos de assimilação e não podem ser ignorados) no discurso.
Vimos que O Capital apresenta uma concepção do conhecim ento
na qual:
1. O co n h ecim en to assim ila um sistem a co n creto e seus efeitos n u m processo de
ab straçã o .
2. O sistem a é um sistem a eco n ô m ico cujos efeitos d eterm in am em últim a análise o
cu rso d a vida social.
3. O pro cesso d e a b s tra ç ã o /a ss im ila ç ã o tem u m a ordem teó rica definida, e as c o n ­
seqüências d o s co n ceito s são efeitos de assim ilação.

Segue-se que a efetividade social em geral deve estar dada no conceito


do nível econôm ico. O conceito do m odo capitalista de produção se­
ria, portanto, se tais teses fossem corretas, diretamente “mapeável”
nas formações sociais capitalistas concretas. Essas formações sociais
representariam graus de realização dos possíveis efeitos do sistema em
estados de coisas concretos. O grau de realização dependeria, em últi­
ma análise, da forma de temporalidade do processo que gera tais efei­
tos. Todas as formações sociais capitalistas, dependendo de sua “ ma­
turidade” , devem no fim produzir os m esmos estados de coisas. Esta­
mos familiarizados com essa concepção a partir de versões vulgares da
teoria marxista das crises (teorias de subconsum o ou de deficiência do
lucro ou de lucro excedente). Ela ilustra os efeitos do privilégio teóri­
co/causal do nível econôm ico, associado a uma concepção do conhe­
cimento com o existência abstrata. O conhecim ento marxista assimila
114 O C A P I T A L ” E AS L E IS T E N D E N C I A I S

o concreto no pensamento, a totalidade social completa com os deter­


minantes e efeitos de sua sistematicidade. O conceito de totalidade so­
cial é um conceito geral, e também o são todos os conceitos de siste­
mas económ icos definidos. Todas as totalidades sociais são determina­
das pelo seu nivel económ ico, em sua forma e seus efeitos primários.
Todos os capitalismos são igualmente determinados pela estrutura do
modo de produção capitalista. Essa especificação é possível devido ao
privilégio ontológico geral concedido ao econôm ico na totalidade e às
próprias totalidades. Os objetos significativos encontrados no conhe­
cim ento social são totalidades, unidades definidas do ser, e esses obje­
tos finitos (que um sua forma transcendem as circunstâncias concretas
de sua existência) são definidos por uma única ordem geral de causas.
Os limites dessas totalidades podem ser especificados abstratamente
porque são generalidades concretas. A abstração nos dá a essência do
concreto porque seus determinantes, em sua forma geral, não depen­
dem de circunstâncias localizadas no tempo e no espaço.
O “ m apeam ento” do conceito sobre o concreto, a aceitação com o
necessidades existentes dos efeitos especificados no conceito, é possível
porque o conceito registra um privilégio ontológico, isto é, o primado
necessário e universal de uma certa ordem de causas e forma de orga­
nização da matéria sobre todos os fenôm enos de seu cam po (no caso,
o social). Daí, dentro desta concepção do conhecimento e seus objetos,
ser possível passar (no pensamento) dos conceitos gerais de certos ti­
pos de relações sociais para certos estados de coisas definidos. Marx
insiste em que se trata de um processo de conhecer, assimilar para den­
tro do pensamento um objeto que existe fora dele. N a “ Introdução de
1857” , Marx insiste em que esse processo não é a geração do real pelo
pensamento. Foi essa a grande ilusão de Hegel, a dificuldade central
no m étodo hegeliano que exige sua “ inversão” . A realidade pode ser
resumida em abstração e conceitos mapeados de volta ao real, mas é
produzida por si mesma. Seu sumário é possível porque ela produz a si
mesma em generalidades concretas que podem ter expressão no pensa­
mento. O m étodo de Hegel é viável quando transformado pela inver­
são, o pensam ento assimila uma realidade que é dialética na forma e
evolução e, portanto, racional em sua realidade. A especulação é a in-
teriorização da existência no pensamento, como espiritualidade. A
ciência é o reflexo da racionalidade da existência (uma racionalidade
contraditória, dialética) na abstração.
N o ensaio “Contradição e Sobredeterminação” , Althusser procu­
rou mostrar que a metáfora da inversão deve sempre produzir uma
continuidade impossível entre Marx e Hegel. Isto é, impossível quando
se quer separar radicalmente o m étodo de Marx do idealismo hegelia­
no. Para o racionalismo althusseriano o discurso é a emanação de uma
problemática, e central numa problemática é a doutrina do método
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E LEIS T E N D E N C I A I S 115

(essa doutrina forma o nível de conceitos básicos que determinam a


cientificidade ou não do discurso). A continuidade do método seria,
portanto, a continuidade do discurso com o um todo. Althusser está
certo quanto à continuidade da “inversão” . O método que seria pro­
duzido por esta “ inversão” (materialização da dialética) envolve uma
modificação de entidades espirituais para entidades materiais com o
objetos de seu conhecimento, e a transformação do processo de conhe­
cimento, de uma geração especulativa do objeto para a sua assimila­
ção científica. N ão obstante, essa m odificação é possível devido à na­
tureza dialética do objeto: as entidades materiais consistem em unida­
des do ser com uma forma racional governada por leis gerais.
N ão importa se Marx produz realmente, ou não produz, seu mé­
todo pela “ inversão” de Hegel, se isso é uma metáfora ou se o Hegel
de Marx é o “ verdadeiro” Hegel ou não. Tais questões realmente im­
portam para a concepção racionalista do discurso e para a história das
idéias. A primeira vê os conceitos com o dotados de efeitos necessários
e formando uma hierarquia. Qualquer continuidade deve implicar a
continuação dos efeitos plenos do discurso; daí, a necessidade do “cor­
te epistem ológico” de Althusser ser uma separação radical. Quando os
althusserianos procuram, mais tarde, estabelecer uma continuidade
entre Marx e Hegel, são forçados a süpor a cientificidade daquele mé­
todo (isso tem uma ilustração clássica no trabalho de Lecourt, “ Lênin,
Hegel, Marx” ). O último concebe “ idéias” com o entidades com um
significado determinável, cuja história com o continuidade ou descon-
tinuidade pode, portanto, ser conhecida. Para nós, uma possível rela­
ção entre dois conjuntos de conceitos epistem ológicos nada sugere
sobre a totalidade dos discursos dos quais tais conceitos supostamente
provêm. Conceitos epistem ológicos não formam um nível privilegiado
de discurso.

Mas deixemos essa digressão, retornando à linha principal da ar­


gumentação. Para que se possa realizar a operação de “ mapeamento” ,
o conceito deve ter interiorizado os limites de seu objeto concreto e
esse objeto deve ter limites adequados a uma determinada abstração.
Para que os efeitos das relações sociais sejam especificados (limitados)
em seu conceito, devem ser dados na totalidade concreta conceituada
(com o potencialidades que são efeitos potenciais necessários). O capi­
talismo, por exemplo, é uma totalidade cujos efeitos estão encerrados
em si mesma e estão presentes com o potencialidades a partir do mo­
mento de sua existência com o totalidade. Essa concepção da totalida­
de é possível qualquer que seja a natureza dos efeitos, desde que pos­
sam tomar a forma de necessidades imanentes. Tais efeitos estão sem­
pre presentes na totalidade, deriváveis do conceito daquilo que ela é.
Daí a totalidade ter de ser concebida com o um ser acabado, que con-
116 “ O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

tém a si mesmo dentro de si mesmo e revela sua natureza com o seus


efeitos.
O conceito do m odo de produção capitalista, se essa lógica fosse
seguida no discurso e nele esgotada, implicaria:
1. A p resença necessária de certos estad o s de coisas co m o co nseqüências potenciais
d e n tro d o sistem a.
2. Q u e a n a tu re z a e os lim ites do sistem a estão p resentes nele (são a su a sistem atici-
d ad e) a p a rtir do m o m e n to de sua co n stitu ição . O sistem a deve ser com o é em seu co n ­
ceito p o rq u e esse co n ceito assim ila o co n creto . D a í a possibilidade de especificação do
concreto fu tu r o , a p a r tir d o conceito d a to talid ad e.

Se essa lógica fosse a substância do discurso teórico marxista, então


corresponderia às suas caricaturas: suas caricaturas m arxistas no evo­
lucionismo e economicismo; e suas caricaturas antim arxistas na crítica
reacionária do historicismo com o inevitabilidade histórica (Berlin,
Popper). O ser acabado, presente em seu conceito, revelaria e realizaria
esse acabamento em eventos definidos. Tais posições são caricaturas
do discurso marxista, mas não são paródias impossíveis. Por que são
caricaturas? Sem dúvida, não porque a lógica que delineamos acima
não seja possível com o uma conseqüência das posições tomadas na
“ Introdução de 1857” , o “ Prefácio de 1859” e O Capital. É porque es­
sas conseqüências não esgotam o discurso, porque são rejeitadas, con­
dicionadas e contraditadas por ele. Essas posições (que criam mar­
gem para tal lógica) não são um nível privilegiado que im ponha e rea­
lize suas conseqüências no discurso, sendo essas conseqüências efeitos
necessários. Paradoxalmente, essa hierarquia seria apenas uma repeti­
ção de seus conceitos básicos. Tais conceitos não são o nível gerativo
suposto pelo racionalismo, e não podem amarrar as outras regiões do
discurso porque não as podem produzir. Tais regiões não são uma ex­
tensão lógica da doutrina epistem ológica e suas implicações ontológi­
cas. A hegemonia da doutrina significaria a sua ausência. Por que não
são paródias? Porque as rejeições e contradições não eliminam tais po­
sições, com binam -se com elas no discurso. O discurso é escrito com o
tais posições e sua restrição/evasão.
N ão há uma “ rejeição” única dessas conseqüências. C om o pode­
ria haver, se um “ autor” (o sujeito constitutivo mítico do texto) re­
cuasse das conseqüências de sua doutrina, reconhecendo que havia ido
“ longe demais” numa certa direção e, com o um monarca absolutista,
retirasse as “cartas patentes” dos conceitos ofensores. Essas rejeições e
contradições, etc., ocorrem em muitos locais discursivos distintos.
Igualmente, a posição assim ressalvada reaparece em outros pontos. O
discurso de O C apital é escrito através de e como tais presenças e rejei­
ções. O que as determina, e a forma de sua combinação, só pode ser re­
solvido pela análise do próprio discurso, das questões que levanta e
I P IS T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E L EIS T E N D E N C I A I S 117

lenta responder das condições de conceituação e conexão dos concei-


los assim produzidos. C om o falta ao discurso a forma necessária im­
posta pelo racionalismo ou o “significado” manifesto da história em-
pirista das “ idéias” , essa análise não pode ser terminada numa “ con­
clusão” definitiva.
As conseqüências “ lógicas” (possíveis) para o discurso marxista
da assimilação do concreto no pensamento e o primado causa) geral
dos aspectos econôm icos são negadas, rejeitadas, condicionadas e afir­
madas em vários locais. Aqui, com o ilustração, vamos comparar cer­
tos segmentos dos escritos de Marx e Engels. A primeira comparação:
1. C om a m o d ificação d a b ase econôm ica, to d a a im ensa su p e re s tru tu ra se tra n sfo r­
ma m ais o u m en o s rap id am en te... N e n h u m a ordem social p erece antes q u e to d as as for­
ças p ro d u tiv a s p a ra as q u ais h á lu g ar nela se te n h a m desenvolvido. (P refácio de 1859)
2. A situ ação eco n ô m ica é a base, m as os vário s elem entos da su p e re stru tu ra ... tam ­
bém exercem su a in fluência so b re o curso d as lu tas h istó ricas e em m u ito s casos p re d o ­
m inam na d eterm in ação de su a fo rm a . H á um a in teração de to d o s esses elem entos nos
quais, em m eio a u m a série in term inável de acidentes... o m o v im en to econôm ico final­
m ente se afirm a co m o n ecessário. D e o u tra fo rm a, a ap licação da te o ria a q u alq u er
p erío d o d a h istó ria seria m ais fácil do q u e a so lu ção de u m a sim ples eq u açã o do p rim ei­
ro grau. (Engels a J. Bloch, 21-22 de setem b ro de 1890)

A segunda comparação:
1. De te fa b u la narratur... T ra ta -se de q u e essas p ró p ria s leis, essas tendências, fu n ­
cionam com u m a necessidade férrea na d ireção de resu lta d o s inevitáveis. O país m ais de­
senvolvido in d u strialm en te ap en as m o stra, ao m enos d esenvolvido, a im agem de seu
pró p rio fu tu ro . (P refácio à p rim e ira edição alem ã de O C apital, 1867).
2. M as isso é m u ito pou co p a ra o m eu critico. Ele sente que tem de m etam o rfo sear
m eu esboço h istó rico d a gênese d o cap italism o n a E u ro p a O cid en tal n u m a teoria histó-
l ico-filosófica d o cam in h o q u e to d o p o v o está fad a d o a trilh a r, q u aisq u er que sejam as
circu n stân cias h istó ricas em que se en co n tre. A ssim , eventos n o tav elm en te análogos,
m as que o co rrem em am b ien tes diferentes, levam a resu ltad o s to ta lm e n te diferentes.
Pelo estu d o d e ca d a u m a dessas fo rm as de evolução, se p ara d am en te, e em seguida pela
sua c o m p aração , p o d em o s e n c o n tra r facilm ente a p ista p a ra esse fenôm eno, m as ja m a is
chegarem os a isso u sa n d o com o chave m estra u m a te o ria geral histórico-filosófica, cuja
v irtu d e su p rem a co n siste em ser sup e r-h istó rica. (M arx a O techestvenniye Z a p iski, n o ­
vem bro de 1877).

Mas poderíamos perguntar ao Marx de 1877: o que é a teoria do pri­


mado do nível econôm ico (universal a todas as formações sociais), se
não supra-histórica? Da mesma forma, a carta de Engels a Bloch sim­
plesmente condiciona e com plica, embora em última« análise restabele­
ça o primado do econôm ico. C om o poderia esse primado (necessário,
e não simples generalização) ser explicado, exceto além da história que
ele torna possível (em sua condição, a evolução da matéria organiza­
da, e no produto dessa evolução, a espécie humana com o consumidora
de energia)?
Vejamos o que acontece quando outros níveis sociais ou “ambien­
tes históricos” entram em cena para condicionar um determinismo geral
118 O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

do económ ico, que tem o efeito de reduzir a historia a alguma coisa


com o a aritmética escolar. Primeiro, esses “ acidentes” , “ ambientes
históricos” e outros níveis sociais simplesmente complicam o determi­
nismo do econômico, exercido através deles e contra eles. Os estados de
coisas dados no conceito do nível econôm ico são, de fato, realizados
em última análise, mas somente depois de uma demora imposta pelo
movimento num m eio resistente de circunstâncias e causalidades sub­
sidiárias. Mas, paradoxalmente, o privilégio ontológico geral do eco­
nôm ico surge fortalecido desse encontro. Segundo, esses “ acidentes” ,
“ ambientes históricos” e outros níveis em outro caso realmente negam
de forma substancial, ou reorientam o econôm ico, impedindo a pro­
dução de estados de coisas dados em seu conceito. Como explicar isso,
se devemos ao m esm o tempo conservar o conceito de um sistema eco­
nômico determinante? Com a velha ironia, feita convencionalmente às
expensas dos marxistas esquemáticos vulgares, “ a realidade mostrou-
se mais com plexa”? Mas, nesse caso, o conceito se torna um modelo. O
conceito torna-se agora abstrato para o concreto, os seus efeitos po­
dem ser com plicados e talvez contraditados pelo concreto. Propõe um
curso possível de eventos que podem ou não realizar-se, dependendo
dos efeitos de condições “concretas” que são externas ao conceito.
Esse m odelo pode ter duas formas teóricas. A primeira é a da ge­
neralização. Isso poderia ser formulado assim: “As relações econôm i­
cas tendem a determinar os eventos em grau maior do que outras rela­
ções sociais” . Mas há um corolário: “ Por vezes, elas não determi­
nam” . N ão pode haver um privilégio geral para o econôm ico nessa po­
sição, sua significação causal está em jogo em cada caso específico.
Quaisquer relações sociais ou circunstâncias ou qualquer combinação
delas podem ser determinantes, em qualquer caso concreto. As genera­
lizações não podem ser produtos de uma concepção do conhecimento
na qual este assimila o concreto no pensamento. O conhecimento ge­
neralizante simplesmente abstrai a partir do que aconteceu. A segunda
forma teórica seria a de que o conhecimento realmente assimila o con­
creto no pensamento, mas apenas de forma parcial. Assim, o conheci­
mento pode assimilar nas categorias da razão apenas sistemas e outras
relações sociais capazes de expressão abstrata. Outras condições, con­
cretas, são demasiado particulares, demasiado condicionadas pelo
tempo e espaço, para serem expressas dessa maneira. Estas últimas con­
dições concretas podem, por vezes, ser decisivas em relação às primei­
ras.
Que confronto estranho se processa nesta última forma! Um con­
fronto entre tendências ou efeitos “ abstratos” , e não obstante reais,
conseqüências de sistemas tal com o apreendidos em seu conceito, e
condições “ concretas” demasiado específicas para serem abstraídas.
Essas tendências “ abstratas” do m odelo são efeitos reais que existi-
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E LEIS T E N D E N C I A I S 119

riam na forma em que são teoricamente reconhecidos, se não fosse


pela ação de forças neutralizantes “concretas” , fora do modelo. Com
efeito, um tipo de determinação concreta confronta-se com outro. Se
as forças neutralizantes realmente neutralizam, então aquilo que neu­
tralizam não pode ser privilegiado. N ão tem, nesse caso, privilégio
causal. Por que então é privilegiado? Porque seu conceito o especifica,
com o tal. O conceito pretende assimilar o concreto no pensamento,
mas só pode produzir determinadas abstrações para uma parte do que
existe; não obstante, para essa parte, deve produzir uma análise geral e
necessária da efetividade. O resultado é uma combinação instável do
privilégio e sua contradição. As entidades privilegiadas têm um absur­
do status “ menor” com o efetividades necessárias na abstração que po­
dem ser negadas no efeito. A noção de assimilação é parte de uma
doutrina epistem ológica que não pode introduzir facilmente elementos
de provisoriedade ou falsificabilidade na relação que estabelece entre o
conhecim ento e o concreto.
Essa doutrina especifica uma relação entre conhecimento e ser
dentro da qual, dada a racionalidade do conceito, não há problema de
sua “ aplicação” ao concreto. A realidade será o que o conceito diz
porque já o é em essência ou in potentia. Essa relação entre conheci­
mento e ser só pode ser restringida às expensas da incoerência episte­
mológica da doutrina. Tal coerência só pode ser mantida preservándo­
se a necessidade de um certo conjunto de efeitos com o produtos de
causas privilegiadas. Essa coerência não pode ser mantida em condi­
ções discursivas definidas. Envolve a simples repetição da posição pro­
gramática da doutrina, uma repetição que elimina os problemas cria­
dos por outras formas de discurso, problemas que exigem alguma ou­
tra resposta que não a dada pelo postulado de um nível causai privile­
giado. Para que se mantenha a coerência, será necessário esquecer
conceitos e problemas não-epistem ológicos definidos existentes no dis­
curso. O privilégio de uma certa relação entre conhecimento e ser, no
discurso, e o privilégio de uma certa doutrina geral da causalidade, as­
sociada com ela, criam esse impasse. C om o se concebe com o privile­
giada, a doutrina não pode acomodar discursos ou causalidades parale­
las; ou o discurso que incorpora essa doutrina deve sacrificar o privi­
légio, restringindo-o, ou deve sacrificar o que está além da doutrina,
regiões de problemas e conceitos que não são puramente
epistemológicos.

Comentários
N ão será aquilo que chamamos de “privilégio” do nível econôm ico a
base teórica do marxismo? N ão assinala Marx com o sendo sua desco­
berta original científica de importância as “ leis de m ovim ento” econô-
120 “ O C A P I T A L ” E AS LEIS T E N D E N C I A I S

micas do capitalismo? N ão leva a rejeição desse “privilégio” a um plu­


ralismo eclético na causação social, com um deslize necessário ao em­
pirismo multifatorial da Sociologia? A o formularmos tais perguntas
antes de outros, prevemos um escândalo, o escândalo de marxistas
negarem o primado geral da determinação pelo “econôm ico” .
Deixem os claro que o terreno da crítica do marxismo clássico que
palmilhamos não é o do debate entre m onism o e pluralismo. Esse de­
bate é uma luta de posições opostas, mas teoricamente equivalentes,
sendo ambas doutrinas gerais da causalidade. O que estamos questio­
nando não é sim plesm ente a causalidade econôm ica monista do mar­
xismo, m as a pertinência m esm a de todas essas categorias gerais de cau­
salidade e o privilégio que atribuem a certas ordens de causas, em contra­
posição a outras.
Examinemos o que implica a noção de uma ordem geral de causas
dentro de uma certa esfera de explicação:
1. A categoria de “causa” envolve, apesar da possibilidade de
graus de efetividade e de ação recíproca, a ação de uma entidade distin­
ta sobre outra.
2. Essa separação é necessária para que as forças atuantes possam
ser identificadas e recebam uma forma geral.
3. Em conseqüência, as entidades em existência devem estar sepa­
radas em classes distintas, necessárias a serem identificadas com o
atuantes ou atuadas, e a ordem de ser em questão é dividida em subor-
dens que formam as classes da doutrina causal, por exemplo, econôm i­
ca, espiritual, política, etc.
4. Um a certa hierarquia de relações pode então ser estabelecida
nas relações entre essas classes; assim, uma classe pode ser concebida
com o necessariamente predominante sobre as outras e com o atuante
sobre elas (é privilegiada e singular sob esse aspecto).
5. Esse status privilegiado pode ser condicional (é uma generaliza­
ção, é partilhado com outras entidades) ou geral, uma relação necessá­
ria e inalterável entre as entidades em questão.
6. U m a dominância necessária de certas entidades sobre outras
suscita o problema do fundamento dessa dominância (deve ter condi­
ções dessa necessidade), e a fonte dessa dominância pode ter base em
alguma outra ordem de causas (a natureza, por exemplo) fora da or­
dem em questão (a social) ou pode-se afirmar que essa fonte é desco­
nhecida ou incognoscível.
Várias observações podem ser feitas aqui: a) tais doutrinas da
causalidade são concebidas com o aplicáveis a todos os discursos no
seu campo, e válidas para todos eles; b) essas doutrinas especificam as
entidades que podem ser encontradas, as classes em que tais entidades
são distribuídas, e as relações entre elas, dentro de seu dom ínio de
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E L EIS T E N D E N C I A I S 121

aplicação; c) a relação do domínio da doutrina com outros domínios é


levantada com o uma questão pelo problema da fundamentação; d) é
também levantada a questão da interseção das causalidades que ope­
ram nesses dom ínios distintos (por exemplo, a relação entre a natureza
e o social). Um a doutrina da causalidade que envolve uma conexão ge­
ral e necessária entre entidades (qualquer que seja sua forma) tem as­
sim implicações ontológicas definidas e impõe protocolos ontológicos
à natureza e limites das entidades que podem ser encontradas no co­
nhecimento. Essa doutrina é uma teoria geral da causalidade. Estabe­
lece as formas de conexão possíveis num domínio em geral, não sendo
a análise determinada de qualquer conexão definida. Tais doutrinas
estabelecem uma forma de conexão com o um protocolo privilegiado.
Apesar da concepção racionalista do discurso, os problemas e as
conexões substantivos estabelecidos em qualquer discurso não são um
efeito de qualquer doutrina de causalidade que pretende determinar
que ligações são ou não possíveis, dentro do domínio em questão.
Qual, então, é a pertinência dessas doutrinas gerais da causalidade?
Não são geradoras de outros níveis do discurso ou das conexões neles esta­
belecidas. Por exemplo, certas análises marxistas específicas podem ser
conduzidas sob a rubrica tanto do monismo como de alguma forma de
pluralismo. Muitos discursos marxistas começam pela afirmação do pri­
mado necessário do econômico, e em seguida o subvertem ou transfor­
mam totalmente a entidade-categoria do “econômico” de modo que seja
compatível com as conexões que estabelecem. Assim, essas doutrinas de
modo algum definem o conteúdo das análises que vão além da repetição
da doutrina, ou do modo pelo qual elas resolvem problemas.
As concepções pluralistas da causalidade diferem das monistas,
não na distribuição de entidades em classes, não na postulação de co­
nexões de entidades em relações de hierarquia (uma domina a outra),
mas na fo rm a e estabilidade dessas relações de hierarquia. As doutrinas
pluralistas de causação histórico/social negam a validade do monis­
mo, quanto a esse ponto. Insistem numa pluralidade <^e relações dominan­
tes entre entidades seja de um modo cético, em que nenhuma ordem geral
definida de prioridade pode ser validada, ou de um modo dogmático, onde
certas relações plurais são gerais e necessárias (por exemplo, mudanças
econômicas e mudanças espirituais devem ocorrer juntas). O pluralismo
especifica certas entidades e uma hierarquia variável ou combinada
entre elas. De fato, muitas das conexões definidas entre entidades es­
pecificadas em análises específicas poderiam coexistir com doutrinas
gerais de causalidade monistas ou pluralistas.
As doutrinas monistas têm a tarefa mais difícil de estabelecer o
primado de uma única classe de entidades. Os m onismos podem afir­
mar a necessidade desse primado ou estabelecê-lo com o uma generali­
zação a partir de algum grupo de fenômenos. Um a generalização pode
122 “ O C A P I T A L " E AS LEIS T E N D E N C I A I S

ser refutada e por isso tal primado está sempre ameaçado. Um monis­
mo que insista na necessidade desse primado, e especialmente que o
fundamente na ação de alguma outra ordem de causas, não pode viver
com “exceções” , com o o podem as generalizações. Essas “ exceções”
negam sua necessidade. Os discursos evidentemente escritos sob a égi­
de de doutrinas monistas podem, porém, viver com a discrepância
(não estão limitados pela necessidade da coerência): a doutrina pode
parecer, no discurso, ora com o uma necessidade, ora como uma gene­
ralização, e as “exceções” ou contradições evidentes são perfeitamente
possíveis, e podem ser acomodadas. Além disso, doutrinas monistas
específicas, tal com o desenvolvidas no discurso, criam geralmente o
espaço para um certo pluralismo e mobilidade em sua hierarquia de
relações entre entidades (por exemplo, o trecho da carta de Engels a
Bloch, citada acima). O espaço entre doutrinas pluralista e monista, à
medida que se desenvolvem no discurso, é muito reduzido, não haven­
do certamente nenhuma muralha chinesa entre elas, com o se poderia
“ logicamente” supor.
As doutrinas causais gerais são subvertidas nas limitações que
pretendem impor ao discurso de explicação, de dois modos; primeiro,
pelas formas de mobilidade e restrição das relações de hierarquia exa­
minadas acima, criando com isso uma abertura que pode acomodar
discrepâncias e contradições, e, segundo, pelas discrepâncias entre a
especificação das classes de entidade que estabelecem e sua hierarquia,
e as entidades e conexões entre elas especificadas nas análises específi­
cas de determinados problemas. O que acontece geralmente no caso
dessa discrepância é que a abertura a acomoda, ou que o discurso sim­
plesmente a ignora e mantém que uma é consistente com a outra, ou
é um efeito dela. As doutrinas causais podem emprestar seu signo a
ligações entre fenôm enos que não têm relações necessárias com elas
(caso em que não se trata de uma discrepância específica, mas de uma
não-correspondência). Também podem ser usadas com o protocolos
para questionar conexões discrepantes ou diferentes, classicamente
quando um discurso procura legislar limites a outro, ou negar-lhe vali­
dade. Essa negação levanta questões de epistemología (m odo de pro­
va), da legitimidade dessa legislação. Cria terreno para um debate
sobre os critérios do conhecimento, e com o tais debates não podem ser
nunca solucionados exceto por decreto, os protocolos só podem ser
impostos por decreto.
Argumentamos que as doutrinas causais gerais não são necessá­
rias à análise discursiva específica e que, portanto, a questão da prece­
dência de uma doutrina sobre outra não é pertinente. Tais doutrinas
não produzem e não podem forçar (de nenhuma forma válida ou efeti­
va) as entidades e as conexões entre elas que os discursos dedicados à
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E L EIS T E N D E N C I A I S 123

análise de problemas específicos produzem. Esses problemas têm as


suas condições de existência próprias, diversas. Tais doutrinas criam,
quando são mais do que um signo à entrada de um discurso, questões
de correspondência entre as conexões de natureza geral e as conexões
específicas. Tais questões de correspondência são pertinentes às dou­
trinas gerais, relacionam-se com o m odo pelo qual inserem suas cate­
gorias em outros elem entos do discurso. Assim, as categorias podem
ser “empurradas” sob aqueles elementos, de modo a serem apontadas
com o exemplos ou em anações das doutrinas causais gerais.
Argumentamos que essas doutrinas gerais e as questões que le­
vantam podem ser esquecidas sem perda e com a vantagem de evitar
os debates e problemas criados exclusivamente pela sua presença. Tais
doutrinas não criam, e não podem criar, qualquer problema discursivo
específico (por exemplo, com o a moeda de crédito difere em suas con­
seqüências do dinheiro mercantil, ou porque diferentes tipos de insti­
tuições financeiras capitalistas existem e o que resulta dessa diferença
- são duas questões cruciais discutidas em nosso segundo volume) nem
oferecer os meios para a sua solução. Elas nem mesmo criam o “con­
texto teórico” para essa solução. Assim, a noção do primado geral do
“econôm ico” não cria, de maneira alguma, as condições para se pen­
sar num sistema no qual o produto circula mediante vendas e compras
num meio monetário não-mercantil, ou para se tratar das conseqüên­
cias de um aumento da capacidade de criar crédito pelas instituições fi­
nanceiras capitalistas. As formas dessa doutrina constituíram de fato
obstáculos à análise dessas questões, ressaltando o primado da produ­
ção a tal ponto que esses problemas são considerados com o pouco im­
portantes (por exemplo, insistindo em que o dinheiro mercantil deve
predominar) ou impossíveis.
A doutrina da causalidade - o primado geral da determinação do
econôm ico - é uma arma de um conflito há muito solucionado, um
conflito contra as filosofias espiritualistas da história. O campo desse
conflito foi, necessariamente, de epistem ologías e doutrinas da causali­
dade. Supor que, se colocarm os tal arma no museu, os horrores da es­
piritualidade e da teologia desabarão sobre nós é absurdo. Depende
totalmente do discurso que estam os conduzindo. Uma teoria espiri­
tualista do capital financeiro dificilmente será uma perspectiva. A al­
ternativa espiritualista é séria apenas no dom ínio das teorias gerais da
causalidade histórica, sendo precisamente esse dom ínio que nos pro­
pom os avaliar.

Voltando diretamente à questão das “ leis tendenciais” , diríamos


que há três posições sobre a natureza e o status dessas leis desenvolvidas
em O Capital, que essas posições se combinam de diferentes maneiras,
124 “ O C A P I T A L ” E AS LEIS T E N D E N C I A I S

e que juntas formam a noção complexa e contraditória de “ lei tenden-


cial” no discurso de O Capital. Essas posições são as seguintes:
1. Essas leis são concebidas com o parte da classe de efeitos sistê­
micos que são necessariamente realizados. A o contrário dos efeitos en­
volvidos na representação do processo aos agentes, que são constantes
estruturais, os efeitos tendenciais são realizados progressivamente
através da existência e desenvolvimento do sistema. São tendenciais
pelo fato de se realizarem progressivamente e com crescente efetivida­
de. A concentração e centralização de capitais, a socialização dos
meios de produção e o exército industrial de reserva são todos conce­
bidos dessa maneira em certas partes do texto - notadamente no livro
1, capítulo 32. Tais concepções de tendências com o processos realiza­
dos progressivamente são, porém, mais ou menos exclusivamente con­
finadas a declarações gerais ou programáticas. Elaborações discursi­
vas específicas de formas tendenciais, tentativas de apresentar sua na­
tureza e ação (em relação a outros conceitos e efeitos), geram uma for­
ma diferente de “ lei” .
2. As tendências também são concebidas com o efeitos da estrutu­
ra, que são concretos, conseqüências de relações que estabelecem pres­
sões no sentido de certos estados de coisas, mas que, através da ação
das próprias pressões, ou por m otivo da ação de outras tendências se­
melhantes no sistema, não são realizadas na forma desses estados de
coisas. A tendência, embora seja real (uma efetividade concreta) não é
realizada, ou antes, é realizada na forma de sua neutralização e repeti­
ção. Essas leis tendenciais que geram suas próprias forças, ou são in­
terditadas por outras forças neutralizantes, podem ser tratadas com o
análogas às constantes, ou com o espirais em seu efeito, criando as
mesmas relações numa escala mais ampla e mais complexa, à medida
que o sistema se desenvolve. O exemplo clássico de uma tendência que
é neutralizada pela sua própria ação e efeitos é o da taxa decrescente
de lucro no livro 3. Esses efeitos neutralizantes são a forma discursiva
de desenvolvimento dás possibilidades complexas de certos conceitos
(por exemplo, a tendência a uma crescente com posição orgânica), que
pode especificar tanto a lei com o sua neutralização. Essas forças neu­
tralizantes são parte do conceito geral do m odo de produção capitalis­
ta, efeitos necessários em todos os capitalismos em conseqüência de
sua forma de especificação no conceito.
3. Tendências do tipo 1 ou do tipo 2 podem ser neutralizadas
por fatores ou condições que não são especificados no conceito geral
de produção capitalista, mas provêm de estados de coisas que só po­
dem ser particulares a determinadas formações sociais capitalistas.
Aqui, com efeito, a possibilidade da operação de “ mapeamento” é
questionada. O conceito geral torna-se uma assimilação parcial do
E P I S T E M O L O G I A , C A U S A L I D A D E E L EIS T E N D E N C I A I S 125

concreto. Todas as contradições das diferentes situações teóricas do


que é neutralizado e do que neutraliza e que notam os acima entram
em função no caso. Em tendências do tipo 2, o “ m apeamento” sobre o
concreto, de um género simples com o no tipo 1, não é possível. N ão
pode haver uma realização simples da tendência, nenhuma progressão
no sentido de um estado final definido. Isso porque o efeito do sistema
é a sua própria neutralização, a tendência é realizada através de sua
neutralização e tem sua efetividade através de sua neutralização. Daí,
embora a tendência jam ais se realize, ela ser real. O “ mapeamento”
opera aqui de fato, o efeito ocorre necessariamente, mas de uma forma
contraditória. Assim, os fatores dó tipo 3 podem complicar essa reali­
zação contraditória. N esse tercejro caso, os estados de coisas postula­
dos em certos conceitos abstratos do concreto não ocorrem necessaria­
mente, ou são modificados pela ação de outras condições concretas
que existem fora dos conceitos gerais.
N os dois capítulos restantes desta parte, examinaremos dois as­
pectos cruciais do problema das “ leis econôm icas de m ovim ento” , ou
“ leis tendenciais” , tal com o desenvolvidas em O Capital. N o capítulo
5, o conceito da contradição entre as forças e relações de produção se­
rá examinado. Esse conceito é a forma pela qual Marx vê a estrutura
geral das “ leis de m ovim ento” com o mecanismos de substituição do
sistema capitalista. Em sua forma mais extrema, esse conceito afirma,
que o capitalismo se processa através de uma dialética auto-
anuladora. N o Capítulo 6, o conceito da tendência à queda da taxa de
lucro será examinado. Essa tendência e suas forças neutralizantes indi­
cam a com plexidade do desenvolvim ento discursivo do conceito de
“ lei tendencial - lei de m ovim ento” . O efeito da elaboração discursi­
va desse conceito é tal que ele não pode ser a lei de nenhum m ovimen­
to definido. Vários “ m ovim entos” oscilantes e contrários são a forma
dessa “ lei” . Essas forças neutralizantes têm uma situação teórica di­
versa e algumas delas criam problemas para a concepção do processo
de conhecim ento postulado em outras partes do discurso.
Capí tulo 5

A Combinação Contraditória das


Forças e Relações de Produção

Forças, relações e história no “ Prefácio de 1859”

E necessário iniciar nossa -discussão desses conceitos em O Capital


com uma referência a outro texto. O “ Prefácio de 1859” de Marx à
Contribuição apresenta essa relação de contradição entre as forças pro­
dutivas e as relações de produção em várias teses gerais condensadas.
Essas teses formam um ponto de partida necessário para nossa discus­
são da contradição tal com o apresentada em O Capital, porque especi­
ficam suas condições teóricas de existência.
N o “ Prefácio” , essa contradição entre as forças e relações de pro­
dução é apresentada com o o mecanismo geral de todo desenvolvim en­
to social, a lei econôm ica fundamental do movimento de todas as so­
ciedades (exceto as sociedades comunistas adiantadas). A distribuição
do espaço social em estrutura econôm ica e superestrutura político-
jurídrca (às quais correspondem formas definidas de consciência so­
cial) e a designação do modo de produzir os meios materiais da vida
com o primária dentro da estrutura econôm ica tornam essa contribui­
ção teoricamente possível. O m odo de produção da vida material de­
termina as formas pelas quais o produto é possuído e distribuído, isto
é, as relações de produção. Segue-se que uma crise na estrutura econô­
mica, entre seus elem entos primário e secundário, pode produzir uma
crise geral da totalidade social. Os conflitos de classes, expressões so­
ciais dessa contradição, traduzem seus efeitos do nível econôm ico para
0 nível da superestrutura. O materialismo histórico em sua forma clás­
sica é necessário à existência dessa contradição. Sem o primado geral
do econôm ico e, dentro do econôm ico, sem o primado geral do m éto­
do de produção, essa contradição não poderia assumir a forma que
apresenta. A contradição depende do conceito de uma causalidade ge-
1 ui privilegiada (do e'conômico) e do conceito de totalidade no qual
Hi*lih cíeilos são necessidades inscritas em sua estrutura. As condições
FORCAS E RELAÇÕES DE P R O D U Ç Ã O 127

permitem aos binómios base/superestrutura, forças/relações funcio­


narem com o funcionam.
Qual a natureza dessa contradição geral que tanto estrutura
quanto motiva a totalidade? Ela pode ser apresentada na forma de te­
ses extraídas do “ Prefácio” :
1. “A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qiial se levanta uma supe­
restrutura jurídica e política.” Ê postulada aqui uma relação de corres­
pondência determinada por um de seus elementos; as relações de pro­
dução (que representam a fo rm a da estrutura econôm ica) condicionam
sua expressão política e jurídica (a noção de “ base” é ambígua, mas
não subverte o predomínio geral do nível econôm ico).
2. “A certa altura do desenvolvimento, as forças produtivas mate­
riais da sociedade entram em conflito com 'as relações de produção
existentes, ou - o que simplesmente expressa a mesma coisa em termos
jurídicos - com as relações de propriedade dentro da estrutura em que
operaram até então. De formas de desenvolvimento das forças produ­
tivas, essas relações se transformam em suas cadeias.” A contradição é
uma relação de não-correspondência entre os elementos da estrutura
econômica.
3. “ Começa então a era da revolução social. As modificações na
base econôm ica levam, mais cedo ou mais tarde, à transformação de
toda a imensa superestrutura.” (Isso mostra a pouca autonom ia que a
ambígua noção de “ base” atribui em última instância à superestrutu­
ra.) A não-correspondência está localizada no nível econôm ico, entre
a fo rm a na qual esse nível está representado (as relações de produção)
e as forças produtivas. Essa não-correspondência nega a correspondên­
cia estabelecida entre os dois níveis da totalidade social, a estrutura e a
superestrutura. E o faz anulando a determinação da estrutura (econô­
mica) como fo rm a (com o as relações em que as forças são representa­
das). As relações de produção determinam a correspondência entre a
estrutura e a superestrutura (entre o econôm ico e suas expressões polí­
tico/jurídicas) quando correspondem às forças produtivas. Ao pro­
porcionarem a forma da estrutura, as relações de produção represen­
tam a determinação das forças produtivas para os outros níveis da to­
talidade. Quando as relações de produção não correspondem às forças
produtivas, então deixam de ter esse efeito de representar e dar forma
à estrutura econôm ica com o um todo (expressando através dessa re­
presentação a determinação das forças).
4. “ Nenhuma ordem social é jamais destruída antes que todas as
forças produtivas para as quais é suficiente se tenham desenvolvido, e
novas relações de produção superiores jamais tomam o lugar das mais
antigas antes que as condições materiais de sua existência tenham
amadurecido dentro da estrutura da velha sociedade.” A contradição
128 O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

é concebida com o uma contradição entre um processo e a forma pela


qual é contido e através 'da qual é representado. O envoltório (a forma)
é rasgado no m om ento em que pode ser substituído. A s forças de pro­
dução encontram as relações de produção existentes com o um obstá­
culo quando e porque criaram as condições de existência para novas
relações de produção. A não-correspondência existe porque as condi­
ções de uma nova correspondência se tornaram possíveis e necessárias.
As forças produtivas criaram as condições e a necessidade de uma
nova representação de si mesmas dentro da totalidade. A s relações de
produção existentes, que proporcionaram a forma de representação
do nível econôm ico, tornaram-se com efeito idênticas à sua expressão
político/jurídica, já não expressando a efetividade das forças e, por­
tanto, sendo obsoletas com o a forma de representação do econôm ico.
Essa concepção da contradição está inscrita dentro de uma dou­
trina geral da causalidade histórica: primeiro, distribui entidades em
classes distintas (estrutura/superestrutura, forças/relações); segundo,
dá-lhes a ordem de uma hierarquia necessária, sendo uma classe de en­
tidades (estrutura/forças) causalmente privilegiada em relação a outra
(superestrutura/relações); e terceiro, suscita a questão do fundamento
desse privilégio (por que “o m odo de vida material Condiciona o pro­
cesso geral da vida social, política e intelectual”?).
A contradição entre ás forças e relações de produção é considera­
da em termos de correspondência e não-correspondência. Essa noção
é necessária para a contradição, tal com o se desenvolve, pelos m otivos
seguintes. Primeiro, é a correspondência de uma entidade distinta com
outras, elas estão ligadas por uma relação externa de causalidade na
qual uma age sobre a outra (forças -* relações, estrutura superes­
trutura, forças -» totalidade). Isso significa que os elementos na rela­
ção de correspondência são entidades distintas, à parte da relação ex­
terna, e que podem ser separadas umas das outras. Isso significa que o
elemento primário pode prescindir do secundário, com o qual está
com binado. Além disso, pode fazê-lo através da relação externa de
causalidade porque é o elemento privilegiado. Essa forma de contradi­
ção pode produzir uma superação radical na qual a relação superada é
totalm ente anulada e substituída por outra (isso é uma possível dife­
rença com a concepção clássica da contradição hegeliana com o preser­
vação na substituição). Segundo, essa relação da correspondência ex­
terna de entidades distintas torna possível, na realidade, uma organi­
zação hierarquizadà dessa correspondência na qual um elem ento (o
elemento autônom o) é primário e impõe a relação entre eles (cone-
■ulo/separação-anulamento) ao outro.
A contradição é considerada com o a relação entre um processo
(pi imimo-dinâmico) e sua forma (secundária-estática). A forma fixada
*'iii Mia* capacidades de representação do processo se torna uma “cor­
FORÇAS E RELAÇÕES DE PRO D U ÇÃ O 129

rente” para ele; essa relação é concebida à base da analogia mecânica


entre uma força e um obstáculo para a sua ação. As relações devem
tornar-se um obstáculo porque representam (dão forma social a) uma
maneira definida de produzir. A produção material é então concebida
com o um processo em desenvolvim ento contínuo e as relações de pro­
dução com o estruturas sucessivas, cada qual com seus limites nelas
mesmas inscritos. Por que as forças de produção devem desenvolver-se
dessa maneira não é nunca explicado no “ Prefácio” ou nos textos pos­
teriores de Marx.
As transformações na maneira de produzir são uma constante
trans-histórica que torna o processo histórico possível. A história é
uma sucessão de totalidades sociais finitas que são por sua vez criadas,
destruídas e substituídas por um processo que deve exceder e ir além
dessas formas limitadas. Tal processo de desenvolvim ento das forças
de produção cria as condições de existência para as sucessivas formas
de estrutura econôm ica que são suas expressões necessárias (corres­
pondentes). As formas de relações de produção originam-se das condi­
ções materiais de existência criadas pela maneira de produzir. Se o pri­
mado desta e sua tendência inerente de desenvolvimento não fossem
postulados, então essa concepção geral da história não seria possível.
As relações de produção são concebidas com o envoltório ou for­
ma (necessários) que facilita ou dificulta o crescimento das forças pro­
dutivas. O efeito que elas têm é'secundário, o de expressar ou facilitar.
Seu papel positivo é limitado ao de não serem um obstáculo, de expres­
sar o que contêm. Nesse texto, sua existência é curiosa, mal lhes sendo
dado o espaço necessário no discurso para que desempenhem seu pa­
pel. Na fase de correspondência, as relações expressam as condições
materiais que os tornaram possíveis; tais condições são relações sociais
entre os produtores já formadas pela maneira de produzir (que decor­
rem das necessidades da técnica). Assim , as relações sociais entre os
produtores preexistem à sua expressão em relações de produção ade­
quadas. Na fase de não-correspondência, as relações se tornam equi­
valentes à sua própria expressão legal, formas sem substância, sem
condições reais nas relações entre homens na produção material (essas
relações exigem outras formas diferentes de expressão), e continuam a
existir porque foram os meios de vida da classe até então dominante.
A maneira de produzir os meios de vida material passa então a incor­
porar, nos m om entos decisivos de não-correspondência, virtualmente
toda a estrutura econôm ica. Essa incorporação do nível privilegiado
pelas forças é uma função de seu privilégio dentro desse nível.
O “ Prefácio” delineia uma série de conceitos que proporcionam
as leis de m ovim ento para todos os sistemas econôm icos e sociais
(não-com unistas). Esses m ovimentos são gerais e legais porque repre­
sentam a ação de um processo básico trans-histórico, o desenvolvi-
130 O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

mento das forças produtivas. Esse desenvolvimento não é considerado


com o uma generalização - “ até aqui a capacidade produtiva dos siste­
mas econôm icos tendeu a aumentar de maneira cumulativa” - antes, é
concebido com o um. desenvolvim ento necessário e inerente dentro da
vida social. Esse desenvolvim ento é privilegiado porque o “ m odo de
produzir os meios de subsistência” condiciona a vida humana em sua
totalidade. O materialismo histórico pode pretender explicar o prima­
do do material porque é a base do não-material. Mas não pode preten­
der explicar a tendência das forças de produção a se desenvolverem, já
que o primado da vida material é uma constante simples, é tão ou mais
premente para os selvagens caçadores e coletores do que para os capi­
talistas.
Somente a suposição de um sujeito trans-histórico pode funda­
mentar ou proporcionar a origem para esse processo trans-histórico.
O processo concebido com o o desenvolvim ento progressivo da capaci­
dade produtiva social exige a suposição de que as associações sucessi­
vas de produtores (sistemas econôm icos) são unidas de alguma forma,
que o processo tem uma unidade (que faz dele um processo) e que é o
processo de desenvolvim ento de alguma coisa. Essa alguma coisa é a
humanidade, a espécie humana concebida com o sujeito. Esse sujeito
tem uma unidade (unidade é teoricamente necessária para que haja um
conceito de sujeito, necessária porque a função desse conceito é ser o
suporte e origem de um processo - torna possível o processo com uma
forma necessária porque tal processo é relacionado de volta a ele com o
o princípio de sua origem e unidade); os homens são unidos com o hu­
manidade, apesar das diferenças de tempo e lugar. Esse sujeito torna a
história possível e é feito através dela. Aquilo que ele é, é o que ele su­
porta e torna possível. A origem suporta o processo e o m odo pelo
qual o processo é constituído define a origem. Ao “ Prefácio de 1859”
falta uma antropologia positiva fora do processo, uma natureza hu­
mana fixa distinta do processo de seu vir-a-ser. O “ Prefácio” não nos
oferece uma natureza humana fixa. Supõe a humanidade com o um su­
jeito, existindo a espécie humana.através dos tempos com o um ser, e a
história de seus esforços pode ser escrita por ser uma história única.
Mas esse sujeito não tem uma natureza fixa fora daquilo que ele se tor­
na no processo. Essa Antropologia “ vazia” não foi nunca escrita no
“ Prefácio”, mas está em outro local - nos Manuscritos de 1844. Naquele
texto o Homem, com o espécie, é um ser de carência. N ão dispõe de um
m odo de vida ou existência naturalmente dado. Com o espécie, os ho­
mens devem criar e inventar sua própria relação com a natureza. São
seres materiais, seres que devem reproduzir suas condições naturais
para existir, mas que não dispõem de condições naturais dadas. A his­
tória é o registro dos esforços desse sujeito para remediar tal carência.
Mas remediá-la com o progresso é algo que não está explicado por essa
FORCAS E RELAÇÕES DE P R O D U Ç Ã O 131

carência. A humanidade, no “ Prefácio” , deve ser concebida como


criativa, mas o texto não tem os meios para basear essa criatividade. O
progresso exige uma origem, para que seja necessário. O sujeito de
1859 é duplicado pelo que torna possível - o processo define a origem.
O sujeito é “ vazio” e por isso torna essa duplicação com o sua própria
realização possível. Mas também a subverte. Em última análise, o atri­
buto puro da criatividade é necessário a fim de que o processo seja
progressivo. O sujeito, paradoxalmente, longe de estar vazio, está
cheio de tudo o que será, ele por sua vez dobra o processo e incorpora
esse processo com o o seu “tornar-se a si m esm o” (um tornar-se além
da história, já que a história de Marx é uma fase apenas desse vir-a-ser,
a fase das lutas de classes). Um processo com um sujeito e um sujeito
sem uma natureza, um processo que dá contéudo ao sujeito e um sujei­
to cujo atributo de criatividade contém esse conteúdo, são essas as for­
mas teóricas necessárias à manutenção do discurso do “ Prefácio” .
Elas não são apresentadas no discurso do “ Prefácio” !

A história é unificada por esse sujeito (o sujeito é aquilo que é de­


senvolvido) e o sujeito é diferenciado pela história (pelas fases distintas
de seu desenvolvim ento). A noção de uma espécie humana com o um
ser cuja natureza é a autocriação progressiva através da constituição
de suas condições materiais de existência torna possível a contradição
geral entre as forças e relações de produção. E o faz porque torna
possível a tendência imanente das forças produtivas da sociedade para
o desenvolvimento. Essas forças se desenvolvem dentro de condições
antagônicas: Marx argumenta que a propriedade privada é uma condi­
ção e uma fase necessárias do processo de desenvolvim ento das forças
produtivas e que formas da possessão privada impõem limites ao de­
senvolvimento da humanidade. Os diferentes m odos de produzir os
meios de vida material são as fases de desenvolvimento dessas forças e
esse sujeito, os m odos representam uma interseção de um nível de de­
senvolvimento da capacidade de produção e formas de possessão ade­
quadas a essa capacidade. Cada estágio é superior ao anterior e pode
ser visto “com o épocas que assinalam progresso no desenvolvimento
econôm ico da sociedade” . Uma época sucede à outra porque o desen­
volvimento imanente da capacidade produtiva da humanidade cria as
condições materiais para isso: “A humanidade impõe-se assim, inevi­
tavelmente, apenas as tarefas que é capaz de realizar....” Aqui a con­
cepção da humanidade com o sujeito da história recebe uma forma
explícita. Somente devido a esse sujeito e ao processo que é sua exis-
tência-desenvolvimento, pode Marx fundamentar sua concepção dos
modos de produção com o sucedendo-se um ao o"tro na ordem de um
progresso. A história com o desenvolvim ento progressivo de alguma
coisa exige um sujeito com o a sua base de unidade e sua origem.
132 “ O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

Essa ordem com o progresso e o sujeito que a torna possível po­


dem ser concebidos em'termos de vários suportes. A Antropologia da
carência é capaz de várias formulações: hegeliano-feuerbachiana em
1844, darwiniano-hegeliana em alguns dos textos de Engels, notada-
mente em “O Papel do Trabalho na Transição do M acaco para o H o­
m em ” . Mas um pouco dessa A ntropologia é necessário para que o dis­
curso do “ Prefácio” atinja a fundam entação do seu privilegio. Urna
vez negados a esse sujeito sua unidade e seu atributo de criatividade, o
processo se torna inimaginável. Por que devemos considerar os acon­
tecim entos de diferentes épocas e locais com o capazes de ter a forma
de uma unidade, com o os feitos de uma humanidade cujo desenvolvi­
m ento pode ser registrado? Essa unidade “ óbvia” tem condições teóri­
cas. As doutrinas racistas concebem o objeto de uma história de ma­
neira diferente, por exem plo, e realmente nenhum desses discursos da
história é necessário. Por que deve a capacidade produtiva dos siste­
mas econôm icos tender a se desenvolver numa ordem em que o supe­
rior substitui o inferior? O desenvolvim ente degenerativo, ou a estase,
são concepções igualmente possíveis.
O “ Prefácio de 1859” estabelece uma doutrina de privilégio cau­
sai (das forças), um privilégio que torna possível uma dinâmica histó­
rica. Outros dos discursos de Marx não são hegem onizados por esse
privilégio. Em partes de O Capital (por exem plo, livro 1, capítulo XV e
também o até agora inédito “Capítulo VI”) e do Grundrisse, uma liga­
ção bem diferente é tentada entre as relações de produção e a organi­
zação e técnica de produção. É uma concepção diferente da coríexão e
das entidades ligadas. Em 1859 um a coisa corresponde a, ou age sobre,
outra coisa (os defensores do “ Prefácio” valorizam muito a ação recí­
proca - secundária - das relações sobre as forças). Nesses textos, rèlà-
ções e forças não são distinguidas tão simplesmente. A produção capi­
talista, argumenta-se, tende a formar uma unidade, relações-forças. A
produção capitalista revoluciona os instrumentos de produção através
dos efeitos das relações de produção capitalistas (venda de mercado­
rias para realizar lucros em condições de concorrência e produção por
m eio de trabalho assalariado). A produção capitalista subordina o tra­
balhador ao capital na forma de técnicas de produção. O princípio da
unidade dessas técnicas é diferente do princípio da produção artesanal
e atribui ao trabalhador um lugar subordinado no mecanismo com bi­
nado que é dirigido pelo capital. A atividade do trabalhador deixa de
ser a ligação que unifica ferramentas e matérias-primas, na qual esfor­
ço e habilidade hum anos, decisões individuais são o mom ento deter­
minante no processo produtivo; em lugar disso a conexão passa a ser
estabelecida pelo capital na forma de instrumentos de produção com ­
binados que agem por si próprios, e pelo capitalista com o diretor des­
sa com binação. O processo de trabalho é posto num tipo específico de
FORÇAS E RELAÇÕES DE PRO D U ÇÃ O 133

correspondência com as relações de produção capitalistas, a fusão. As


“forças” são concebidas com o a forma materializada das relações. Na
medida em que essa posição conserva uma causalidade de conexão ex­
terna entre entidades distintas (essa concepção não é criticada nem ra­
dicalmente m odificada), tende a inverter a que é proposta no “ Prefá­
cio” (forças -» relações).
Uma dom inância similar das relações de produção também ocor­
re quando a com unidade da aldeia indiana é considerada em trechos
incidentais, tanto em O Capital com o no Grundrisse. A divisão do tra­
balho nessas comunidades assegura a auto-suficiência, baseia-se na es­
pecialização hereditária e é portanto auto-reprodutora. Marx usa es­
sas comunidades com o parte crucial de sua explicação da “ estase” no
m odo de produção asiático (para uma discussão desses trechos, ver
Hindess e Hirst, Pre-Capitalist M odes o f Production, capítulo 4).
É certo que em outras partes de O Capital argumenta-se que o
processo social de produção criado pelo capitalismo (divisão interde­
pendente do trabalho entre empresas, organização co'operativa do tra­
balho dentro.de empresas) entra em conflito Com as relações de produ­
ção baseadas na propriedade privada. Marx concebe que as relações
desenvolvem as forças além do ponto de correspondência e compatibi­
lidade. Esse argumento, porém, não atribui, com o iremos ver, nenhum
desenvolvimento autônom o ou privilégio causai efetivos às forças de
produção de m odo que proporcionem as condições para o colapso e
substituição das relações de produção capitalistas.

A tendência histórica da acumulação capitalista


O Capítulo X XXII de O C apital, livro 1, “ A Tendência Histórica da
Acum ulação Capitalista” , representa uma das tentativas clássicas de
argumentar a não-correspondência contraditória das forças e relações
de produção. Retorna à conexão/contradição do “ Prefácio de 1859” e
não obstante, com toda a sua plenitude e coerência no nível da exposi­
ção, as frases se seguindo' çm cadência medida até a expropriação final
dos expropriadores, silencia precisamente sobre essa questão do efeito
contraditório da não-correspondência das forças com as relações. Os
efeitos dessa contradição não estão estabelecidos teoricamente, mas
em pontos cruciais o texto passa a outro discurso. Isso é mais evidente
quando Marx discute a transição do feudalismo para o capitalismo.
N ão há nessa exposição nenhuma transição direta do feudalismo
para o capitalismo, “ a transformação direta de escravos e servos em
trabalhadores assalariados” (O Capital, livro 1, ed. Penguin, p. 927).
Entre o feudalismo e o capitalismo há uma série de formas de “peque­
na produção” baseadas na posse, pelo produtor independente, de seus
134 " O C A P I T A L ” E AS LEIS T E N D E N C I A I S

meios de produção. A propriedade privada desse m odo não é (em sua


forma real) a do m odo capitalista, que se baseia na antítese entre o ca­
pital, materializado nos meios de produção, e o trabalho assalariado,
despossuído de tais meios. “ Acum ulação Primitiva” converte uma for­
ma de propriedade na outra, separa a massa dos produtores diretos de
seus meios de produção e os transforma em vendedores de sua força de
trabalho. Marx concebe essa acumulação primitiva com o a resolução
de contradições inerentes à pequena produção, em si mesma. Ele a es­
tigmatiza (porque reconhece nela o ideal em torno do qual os peque­
ños-burgueses de todos os países se unem) da seguinte maneira:
Esse m o d o de p ro d u ç ã o p ressu p õ e a frag m en taç ão d a p ro p rie d a d e d a te rra , a disp ersão
d os o u tro s m eios de p ro d u ç ã o . Assim com o exclui a co n ce n tra ç ã o desses m eios de p ro ­
d u ção , assim tam bém exclui a co o p eração , divisão do tra b a lh o d en tro de cad a processo
de p ro d u ç ã o em se p ara d o , c o n tro le e reg u lam en tação social d as forças da n atu re z a e o
livre d esenvolvim ento d as forças p ro d u tiv a s da sociedade. É com patível ap en as com um
sistem a de p ro d u ç ã o e u m a sociedade qu e se m o v im en ta d en tro de lim ites estreito s que
têm origem n a tu ral. P erp etu á-lo seria, com o P ecqueur diz com acerto , “ d e c re ta r a m e­
d io crid ad e u n iv ersal". (Ib id ., p. 928)

A forma da econom ia, relações de produção baseadas nos produtores


independentes diretos, corresponde a um desenvolvimento limitado
das forças de produção. Tal sistema de relações de produção não pode
desenvolver “ as forças produtivas da sociedade” para que superem
“ os limites estreitos que têm origem natural” .
Marx volta explicitamente às teses do “ Prefácio de 1859” , ao de­
senvolvim ento das forças produtivas e seu envoltório necessariamente
limitado. As forças produtivas, desenvolvendo-se dentro de limites,
criam os meios pelos quais esses limites são superados: “ Num certo es­
tágio de desenvolvimento ... a pequena produção ... traz ao mundo os
meios materiais de sua própria destruição.” ( O Capital, vol. 1, ed. Pen-
guim, p. 928 - grifo é nosso). Quais são esses meios materiais? Silêncio.
Marx passa a outro discurso:

A p a rtir d aq u ele m o m e n to , novas forças e no v as paixões nascem no seio d a sociedade,


forças e p aixões qu e se sentem a c o rre n ta d a s p o r aq u ela sociedade. E sta tem de ser an i­
q u ilad a; é an iq u ilad a. S ua an iq u ilação , a tra n sfo rm a ç ã o d o s m eios de p ro d u ç ã o indivi­
d u alizad o s e dispersos em m eios de p ro d u ç ã o socialm ente co n cen trad o s, a tra n sfo rm a ­
ção , p o rta n to , da p ro p rie d a d e a n ã dos m u ito s na p ro p rie d a d e g ig an te d o s poucos, e a
ex p ro p riaç ão d o solo d a g ra n d e m assa do p o v o ... essa ex p ro p riaç ão d a m assa do p ovo,
terrível e realizada com d ificuldade, fo rm a a p ré -h istó ria do cap ital.... A ex p ro p riaç ão
d o s p ro d u to re s d ire to s foi realizad a p o r m eio do m ais im piedoso b a rb a rism o , so b o
estím u lo d a m ais infam e, m ais só rd id a, m ais m esq u in h a e m ais o d io sa d a s paixões. (/-
bid.)
Esse discurso é uma condenação moral. Mas não é apenas um discurso
conceitualmente vazio, não-teórico, de indignação e denúncia. A retó­
rica moral está interligada com outra explicação dessa transição.
FORÇAS E RELAÇÕES DE PR O D U Ç Ã O 135

N o momento em que se poderia esperar a especificação dos meios


materiais criados pela pequena produção, que formam as condições de
existência do capitalismo e asseguram a destruição das relações (obso­
letas) da pequena produção, há silêncio sobre essa questão e outro dis­
curso tem início. Marx elabora os lim ites da pequena produção em
comparação com um sistema que permite a cooperação e a divisão do
trabalho. N ão mostra que a pequena produção cria a base material
para esse sistema. A produção capitalista com eça, com o argumenta
Marx, com a base material da produção artesanal, que ele diz em ou­
tro local não “corresponder” às relações de produção capitalistas. O
que, na pequena produção, provoca o seu colapso e substituição pelo
capitalismo? A diferenciação dos pequenos produtores? A formação
do capital comercial e financeiro e sua penetração no setor de produ­
ção de mercadorias? Nenhum desses processos pode transformar a
massa dos produtores independentes em trabalhadores assalariados,
podem matar alguns, mas a maioria sobrevive e se apega tenazmente
aos seus meios de produção. M uito tempo transcorreria até que o últi­
mo artesão fosse estrangulado com as dívidas do último camponês.
Quais, então, são os meios pelos quais essa transformação se realiza,
os meios que Marx evoca por meio da linguagem da moralidade?
A base da transformação são as “ novas forças e paixões... que se
sentem acorrentadas” pela pequena produção. A acumulação primiti­
va é um ato de “ barbarismo” m otivado pelas “ paixões” . Mas quem
sofre desse m odo com tais paixões, a ponto de ser levado a atos de bar­
barismo? Como possuem eles os meios de transformar tais paixões em
atos? Evidentemente, não podem ser os comerciantes, os usurários e os
pequenos fabricantes surgidos dos processos de diferenciação da pe­
quena produção, pois isso justificaria as ilusões pequeno-burguesas
que Weber se empenha em promover em A É tica Protestante e o Espí­
rito do Capitalismo. C om o é possível essa tom ada, realizada com difi­
culdade? Ela envolve, com o Clausewitz disse da guerra, “ movimento
num meio resistente” e, na verdade, é uma guerra, guerra contra a
massa do povo. Essa guerra é ao mesmo tem po árdua e necessária por­
que os pequenos produtores não estão vencidos na produção, recu-
sam-se a deixar o campo às forças da concorrência e diferenciação.
São expulsos da terra. São expulsos num processo que exige a ação de
forças outras além daquelas que podem ser criadas pela diferenciação,
e de cuja existência não se pode falar dentro da pequena produção, a
classe feudal proprietária de terras e o Estado correspondentes às con­
dições políticas de existência do arrendamento feudal.
Os limites que Marx especifica para a pequena produção são limi­
tes relativos a outro sistema de produção que ainda não existe e para o
qual a pequena produção não cria as condições econôm icas da transi­
ção. As “paixões” que surgem e a força que as realiza não são parte da
136 “ O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

pequena produção com o tal, mas, pelo contrário, só são possíveis de­
vido às relações de produção do feudalismo. A s teses de 1859 são sub­
vertidas em sua repetição mesma. N ão há maneira pela qual a acumu­
lação primitiva se possa acomodar à causalidade em que as forças de
produção são privilegiadas. A acumulação primitiva é a criação, pelos
meios de coerção política, das condições econôm icas de existência das
relações de produção capitalistas. Esse processo é efetuado por meio
de uma aliança de classes na qual a classe latifundiária feudal é a força
crucial. A ‘análise de Marx, atrás da retórica, se inverte.
.Será que Marx soluciona a questão de maneira diferente quando
discute a transição entre o capitalismo e o socialismo? Marx insiste em
que o 'sistema capitalista cria necessariamente as condições de transi­
ção, desenvolvendo as forças produtivas ao ponto em que as relações
de produção baseadas na propriedade privada se tornam obsoletas e
incompatíveis com elas. A “expropriação” do proprietário capitalista
“é realizada através da ação das leis imanentes da própria produção
capitalista, através da centralização dos capitais” (O Capital, livro 1,
edição Penguin, p. 929). A centralização é identificada com o o proces­
so crucial que gera as condições de transição. É um efeito necessário
da concorrência capitalista o fato de que essa concorrência e as crises
reduzem constantemente o número de capitalistas e colocam o merca­
do sob o domínio de um número cada vez menor de magnatas do capi­
tal. Juntamente com esse processo de centralização através da elimina­
ção ocorre a concentração de capitais. A concorrência entre os capita­
listas e suas lutas com o trabalho assalariado levam à constante revo­
lução dos meios de produção na tentativa de reduzir os custos de pro­
dução, subordinar o trabalho e aumentar a exploração, e obter uma
taxa de lucro superior à média. Em conseqüência, os meios de produ­
ção controlados pelas empresas tornam-se maiores e mais com plexos,
a divisão do trabalho dentro das empreas e entre elas se torna mais
complicada. O capital necessário à posse dos meios de produção au­
menta constantemente. O capitalismo socializa a produção. Cria uma
divisão do trabalho social entre os ramos da produção e a generaliza
na escala do mercado mundial. Cria interdependência entre ramos da
produção e entre diferentes especializações nas empresas. A produção
é interdependente no nível da sociedade e cooperativa no nível da em­
presa.
Marx continua: “A centralização dos meios de produção e a so­
cialização do trabalho chegam a um ponto no qual se tornam incom ­
patíveis com seu tegumento capitalista” (ibid.) Essa incompatibilidade
entre a produção socializada e a apropriação privada se torna explosi­
va devido às terríveis condições de vida que produz para a classe ope­
rária e devido à redução da classe capitalista a uns poucos m onopolis­
tas sem função, que apenas têm títulos de propriedade:
FORÇAS E RELAÇÕES DE P R O D U Ç Ã O 137

Ju n ta m e n te com o d ecréscim o c o n sta n te no n ú m ero de m ag n a ta s capitalista s, q u e u su r­


pam e m o n o p o lizam to d a s a s v an tag en s desse processo de tra n sfo rm a ç ã o , a m assa de
m iséria, o p ressão , d e g ra d a ç ã o e ex p lo ração , cresce; m as com isso cresce tam b ém a re­
volta d a classe tra b a lh a d o ra , u m a classe cujo nú m ero cresce co n sta n te m e n te , e trein ad a,
u n id a e o rg a n iz a d a pelos p ró p rio s m ecanism os do processo ca p ita lista de p ro d u ç ã o . O
m o n o p ó lio d o cap ital se to rn a um a cadeia p a ra o m o d o de p ro d u ç ã o q u e floresceu ao
seu lado, e so b ele. (ibid.)

As implicações teóricas desse trecho notável são numerosas e devem


ser especificadas;
1. As relações de produção capitalistas se tornam obsoletas com a
centralização, concentração e socialização, são com efeito reduzidas a
simples títulos de propriedade, distintas do m odo de produção real so­
cializado, que cresceu sob elas.
2. Portanto, com o outras relações de produção já predominam de
fato, a forma de econom ia produzida pela lógica da concentração e
centralização é uma forma adequada ao socialism o, correspondente à
propriedade socializada e incompatível com a propriedade privada.
3. O efeito da divisão do trabalho e produção cooperativa é unifi­
car os trabalhadores com o classe; além disso, essa unificação econôm i­
ca cria as condições e a base para a unidade política dos trabalhadores
(a organização econôm ica dos trabalhadores na produção capitalista
produz formas adequadas para a organização política).
Os efeitos teóricos dessas implicações também devem ser especifi­
cados;
1. A tese da com patibilidade -+ incompatibilidade -> contradição
exige que as forças e relações sejam consideradas com o coisas separa­
das, externamente ligadas, de m odo que a efetividade do elemento su­
bordinado possa ser dispensada.
2. Assim, as forças de produção desenvolvidas dentro do capitalismo
podem ser separadas das relações de produção capitalistas, e já fõrmam,
em si mesmas, as bases de um sistema socialista; a modificação envol­
vida na passagem de um sistema para outro é uma modificação na fo r ­
m a econôm ica e jurídica e as condições objetivas para essa m odifica­
ção já foram criadas.
3. N ão há, portanto, rigorosamente falando, um processo de cons­
trução socialista, mas uma modificação da forma de propriedade e da
direção de um sistema de produção já existente; o socialism o é a elimi­
nação de obstáculos a um conjunto já constituído de forças produtivas
que agora se podem desenvolver livremente (os ecos dos Probíemas
Econômicos do Socialism o na U R S S , de Stalin, sem dúvida não terão
escapado aos leitores).
4. Uma vez eliminada a forma de propriedade, e modificada a li­
derança econôm ica, as formas de organização da produção são ade­
quadas à hegemonia da classe operária.
138 “ O C A P I T A L ” E AS LEIS T E N D E N C I A I S

Essas implicações e efeitos não são senão uma repetição dos já


existentes no “ Prefácio de 1859” , no contexto da transição para o so­
cialismo. Podem ser questionados em vários aspectos. Primeiro, são os
efeitos da concentração e centralização incompatíveis com as relações
de produção capitalistas? Segundo, pode a separação ser efetuada en­
tre a técnica e organização da produção e as formas de posse dos
meios de produção e de distribuição do produto? N ão serão essas téc­
nicas e organização formas especificamente capitalistas? Terceiro, pro­
porciona a organização dos trabalhadores na produção capitalista a
base econôm ica e política para a derrubada do capitalismo, e as for­
mas de organização econôm ica sob 0 socialismo? Em nossa opinião,
todas essas questões devem ser respondidas negativamente.
Consideremos a análise da centralização e concentração. Por que
deveriam esses processos produzir uma contradição entre a produção
capitalista de mercadorias e as técnicas e formas de organização dessa
produção? Em primeiro lugar, observemos que capitais de certas pro­
porções são necessários para que sejam possíveis certas técnicas e for­
mas de organização. Esses capitais formam as condições de existência
para a indústria em grande escala. Há portanto, com o O Capital tem
perfeita consciência em outras passagens, uma forma definida de cor­
respondência entre certas formas de centralização do capital e as “ for­
ças de produção” concentradas sob elas. Em segundo lugar, está longe
de ocorrer que as técnicas e formas de organização possibilitadas por
esses capitais sejam incompatíveis com a propriedade privada. A s téc­
nicas e m étodos da indústria em grande escala são adaptadas à produ­
ção de mercadoria: refletem a lógica de redução dos custos de produ­
ção, eliminando a resistência dos trabalhadores, e a facilitação da ven­
da do produto em mercados que correspondem às condições criadas
pela produção capitalista (principalmente as grandes cidades indus­
triais). N essa tese de não~correspondência, Marx com efeito nega o
que demonstra em outros capítulos, a subordinação dos produtos e
das relações nas quais estão organizados à lógica da produção para o
lucro por meio do trabalho assalariado. Em terceiro lugar, Marx su­
põe que a centralização e concentração são forças que prevalecem
para todos os ramos mais ou menos na mesma medida.
Há, porém, várias objeções a essa suposição. A crescente escala
social do grande capital exclui certas mercadorias e ramos de produ­
ção desses m étodos e da escala dos ramos dominantes. Uma parte do
capital conserva os m étodos e escala que predominavam numa era an­
terior. Isso não inclui apenas os artesanatos, os sistemas de “ putting
o u t” e “sweating” , mas também uma certa escala de produção fabril.
Assim , pequenas unidades de produção tendem a predominar em cer­
tas indústrias devido às condições do mercado, ou ao produto (roupas,
alimentos, móveis, etc.). N ão há inflexibilidade nisso, tais indústrias
FORÇAS E RELAÇÕES DE PR O D U ÇÃ O
139

podem, ser revolucionadas numas poucas unidades de grandes propor­


ções. Igualmente, não há razão pela qual um determinado ramo de
produção deva adotar a escala empregada em outro. Os capitais são
diferenciados numa variedade de escalas pelos ramos. Além disso, em
certos casos a produção industrial em grande escala cria as condições
de existência de empresas menores através da sua especialização em
elem entos que entram na produção da primeira (por exemplo, a práti­
ca de comprar peças com ponentes de subempreiteiros).
Ainda aqui, o “ universo” dos capitais a serem concentrados não é
dado: concentração e centralização não podem ser concebidas com o
um jogo com número fixo de participantes porque os novos ramos de
produção (envolvendo várias escalas de capitalização e de unidades de
produção) se estão com binando constantemente com os velhos. A ten­
dência centrípeta de Marx é construída pela análise de uma série de de­
terminantes que agem sobre o processo de concorrência; são os fatores
especificados através de outros conceitos gerais em O Capital (papel
dos custos de produção, tendência para a mais-valia relativa, etc.). É
uma tendência necessária dentro do conceito do capitalismo como
existência abstrata. Mas estruturas industriais definidas, ramos defini­
dos de produção, formas definidas de técnica e seus determinantes não
podem ser dados no conceito. Segue-se que ou essas estruturas podem
ser ignoradas e seus determinantes específicos afastados com o, no má­
ximo, secundários ou a operação da tendência centrípeta necessária es­
pecificada no conceito deve ser modificada. Se o último curso for ado­
tado, segue-se então que os “ efeitos” da concorrência especificados no
conceito não podem ser “ m apeados” sem ambigüidades sobre o con­
creto, e que nenhum estado de coisas definido pode ser derivado dos
conceitos de centralização-concentração. Nenhum a “tendência” ne­
cessária para a concentração poderia, portanto, ser especificada ao
nível de conceitos gerais. N ão se poderia, portanto, atribuir “ efeitos”
a essa “ tendência” .
Marx supõe que as formas de divisão do trabalho, cooperação e
interdependência desenvolvidas dentro do capitalismo podem ser resu­
midas no conceito de socialização e separadas das relações de produ­
ção baseadas na propriedade privada. O capitalism o criou uma “ne­
cessidade” objetiva de um sistema socialista. A interdependência é,
porém, capitalista em sua forma, é a conexão dos produtores e com ­
pradores de mercadorias. Fundamenta-se em formas de especialização
e concentração geográfica criadas pela produção de mercadorias. A
interdependência capitalista significa que as empresas e seus emprega­
dos são dependentes de cadeias de vendas e compras, de mecanismos
de crédito, etc., que se estendem muito além de sua órbita imediata. A
empresa depende das condições de concorrência predominantes para
si mesma, e dos compradores e fornecedores das mercadorias, dos
140 “ O C A P I T A L ” E AS LEIS T E N D E N C I A I S

quais é dependente - condições que não são de sua escolha. Marx tem
razão em argumentar que a concentração (na medida em que ocorre)
aumenta a dependência que as unidades têm dos outros. Quando as
unidades de produção e as formas de centralização do capital se tor­
nam maiores, também as conseqüências da quebra dessa unidade para
as unidades associadas com ela e os trabalhadores que assalariam se
tornam mais generalizadas e sérias. A falência da British Leyland seria
um desastre grave para a econom ia nacional britânica, provocando
outras falências e deixando talvez várias centenas de milhares de de­
sempregados. Mas isso não significaria o fim das relações capitalistas
de produção. Outros produtores capitalistas de veículos motorizados e
outros ramos em grande parte não-relacionados da produção sobrevi­
veriam - alguns sem serem praticamente afetados e outros até mesmo
beneficiando-se disso. A interdependência capitalista baseia-se na pro­
dução de mercadorias e na concorrência, seus efeitos são limitados
pela existência de outros produtores e a relativa autonomia dos merca­
dos para grupos de mercadorias.
A interdependência de unidades de produção no capitalismo não
pode ser considerada com o socialização, se por essa palavra entender­
mos também formas capazes de integração num sistema socialista.
Essa ambigüidade na categoria de “socialização” é necessária à argu­
mentação, baseada na contradição das forças e relações de produção
no Capítulo 32. A divisão capitalista do trabalho social em ramos de
produção, a especialização nacional e internacional e a centralização
da produção, as formas mesmas de construção, concentração e interli­
gação das fábricas, são conseqüências da produção para o lucro. N ão
estão necessariamente adaptadas às necessidades de um sistema socia­
lista. Economias socialistas construídas pelo povo para atender às suas
necessidades expressas exigiriam que o trabalho fosse distribuído de
forma diferente daquela pela qual em geral é hoje dividido. Marx tem
razão ao argumentar que a produção planificada e cooperativa supe­
raria a “ anarquia” da produção capitalista (nossas críticas de suas for­
m ulações teóricas não envolvem qualquer tentativa de defender o sis­
tema capitalista, mas o inverso, proporcionar uma melhor base para
sua crítica e transformação). Para isso o socialism o deve desfazer as
formas capitalistas de organização econômica: romper as formas de
interdependência que Marx chama de socialização. Em nenhum senti­
do as formas de interdependência desenvolvidas déntro das econom ias
capitalistas exigem necessariamente relações socialistas de produção
com o uma forma mais compatível com elas do que as relações capita­
listas.
N a questão dos efeitos políticos da organização econôm ica capi­
talista sobre a classe operária, a posição de Marx parece-nos indefen­
sável. A divisão do trabalho não disciplinou e uniu a classe operária;
FORÇAS E RELAÇÕES DE P R O D U Ç Ã O 141

certamente não produziu hom ogeneidade política. N ão há, porém, ne­


cessidade de nos reportarmos a organizações de produção, estruturas
industriais e assim por diante para criticar a posição de Marx; ela im­
plica uma variante do econom icism o e da espontaneidade tão vigoro­
samente criticados por Lênin em O Que Fazer?
A “tendência histórica” de Marx nos apresenta “ leis imanentes”
que se resolvem numa luta entre uns poucos “ magnatas do capital” e
as massas dos explorados e oprimidos. Argumentamos que a concen­
tração e centralização não são processos lineares e terminais que trans­
formam o universo dos capitais nuns poucos m onopolistas, necessa­
riamente. Argumentamos que a concentração e centralização não
criam formas de organização da produção e técnicas incompatíveis
com as relações capitalistas de produção, mas o inverso (com o o pró­
prio Marx argumenta em outros lugares). A concentração e centraliza­
ção ocorrem em diferentes econom ias nacionais capitalistas e em dife­
rentes ramos da produção, em ritmos distintos e variáveis. Esses pro­
cessos, na forma pela qual se desenvolvem, são produtos de muitas de­
terminações e dependem das condições específicas em econom ias na­
cionais definidas. N ão devem ser concebidos, com o faz Marx, como
tendências imanentes no capitalismo em geral, necessariamente reali­
zadas, tendências que podem ser derivadas do conceito geral do modo
capitalista de produção. Tal concepção é parte de uma forma de cau­
salidade histórica privilegiada, um mecanismo para a realização de um
resultado necessário de um processo em certos estados de coisas.
D evem os observar que não tentamos argumentar sobre a concen­
tração e centralização com referência a cifras de graus de concentração
em determinados ramos dá produção. Isso porque o ponto em causa é
o problema em relação ao qual essas cifras devem ser avaliadas, e que
forma seu contexto de interpretação. Assim, para o defensor do Capí­
tulo XXXII do livro I de O C apital, qualquer tendência no sentido de
menos e maiores unidades, digamos o número de companhias de m on­
tagem de carros em 1914 em contraposição a 1974, pode ser considera­
da com o um indício da tendência mestra imanente. Seu papel com o
indício depende da realidade da tendência a ele subjacente, e não dele
mesmo. Igualmente, quaisquer “contratendências” ou taxas variáveis
de concentração podem ser rejeitadas com o fenôm enos secundários ou
como setores que ainda experimentarão os principais efeitos do pro­
cesso. Estamos interessados pelas condições teóricas de existência des­
sa tendência geral imanente, e não pela presença ou ausência de apoio
estatístico para ela. Esse “ apoio” pode ser sempre encontrado ou ne­
gado, já que a tendência em questão é um fenômeno que vai além dos
processos particulares que o expressam e, além do mais, não se fixa
dentro de limites temporais rigorosos quanto ao seu ritmo de progres­
142 " O C A P I T A L " E AS LEIS T E N D E N C I A I S

são. Para um exame das questões de interpretação estatística e o papel


das formas estatísticas com o “ prova” , ver Barry Hindess, The Use o f
O fficial Statistics in Soeiology.
O leitor pode achar que escolhem os alvos fáceis. N ão é o “ Prefá­
cio de 1859” a fonte notória das exposições e críticas do marxismo sob
o aspecto do determinismo econôm ico e da inevitabilidade histórica?
N ão é “ A Tendência Histórica” um exemplo clássico do “ nam oro” de
Marx com Hegel, no qual a “ negação da negação” prepara o futuro na
necessidade de uma lógica dialética? Sim, isso é verdade. Mas também
é verdade que é nesses trechos que Marx se ocupa mais rigorosamente
das bases teóricas das leis econôm icas gerais de movimento que utiliza
e exemplifica em outras partes de O Capital. Para ilustrar nossos argu­
mentos e talvez convencer nosso leitor cético, vam os examinar outra
parle de O Capital, menos notória, na qual Marx considera o desapa­
recimento imanente das relações de produção capitalistas e a redução
dessas relações a simples títulos de propriedade que são, na melhor das
hipóteses, obstáculos às forças produtivas.

Marx sobre a sociedade anônima e o crédito


O texto em questão é o Capítulo XXVII do livro 3, “O Papel do Crédi­
to na Produção Capitalista” . Marx refere-se ao capital das sociedades
anônimas (ou sociedades por ações) com o sendo “dotado diretamente
da forma de capital social (capital com o indivíduos diretamente asso­
ciados) e distinto do capital privado” (O C apital, livro 3, p. 427). Marx
considera que esse capital possui os meios de produção numa relação
de propriedade pura, divorciada da organização real da produção,
uma relação de “antítese com o propriedade de outro, para cada in­
divíduo que realmente trabalha na produção, desde o gerente até o úl­
timo dos trabalhadores diaristas” (ibid., pp. 427-8). Marx argumenta
que a sociedade anônima resulta na “transformação do capitalista
realmente operante em simples administrador do capital de outras pes­
soas” (ibid., p. 427).
O texto de Marx constitui uma demonstração fascinante de sua
equação das relações capitalistas de produção com a fusão das divi­
sões social e técnica do trabalho no “capitalista” como dono dos
meios de produção que fazem mercadorias. Marx concebe a sociedade
anônima e as instituições de crédito avançadas com o form as transitó­
rias, formas que pressagiam a dissolução das relações sociais capitalis­
tas. Em seu tratamento das sociedades anônimas e dos mercados fi­
nanceiros, Marx revela sua incapacidade de teorizar a empresa, e não o
“ capitalista” , ou conceber as empresas financeiras capitalistas. Consi­
dera a sociedade anônima com o uma separação entre a propriedade e
FORÇAS E RELAÇÕES DE PRO D U ÇÃ O 143

a produção, tornando-se a propriedade uma simples relação parasitá­


ria. Os mercados financeiros são considerados exclusivamente com o a
esfera de operação de espertalhões. Os limites impostos pela fusão da
função com a propriedade individual são ultrapassados - “ É a produ­
ção privada sem o controle da propriedade privada” (ibid., p. 429).
Marx menciona uma variação do divórcio entre a propriedade e o
controle em conexão com os efeitos da sociedade anônima. Além de
sua conversão “do capitalista realmente operante num simples geren­
te” , há uma conversão correspondente do “dono do capital em sim­
ples dono, simples capitalista financeiro” (ibid., p. 42.7). “ Proprieda­
de” e “controle” são considerados aqui apenas do ponto de vista de
sua fusão na pessoa do capitalista. O capital por ações torna possível
uma transformação da escala das empresas, acelerando a tendência
para a socialização das forças produtivas. A propriedade surge agora
como uma apropriação simplesmente parasitária do produto dos pro­
dutores associados (inclusive os gerentes):
o lucro é recebido, a p a rtir de en tão , ap en as na form a de ju ro s, isto é, com o sim ples
co m p en sação pela p ro p ried ad e d o cap ital que está a g o ra to talm en te div o rciad o d a fu n ­
ção no processo real de rep ro d u ç ão .... O lucro surge assim ... com o um a m era a p ro p ria ­
ção do tra b a lh o dos o u tro s, nascendo d a conversão dos m eios de p ro d u ç ã o em capital.
{Ibid., p. 427).

A propriedade é reduzida a um título sem função, à posse pelo mero


direito de propriedade, sem função na direção dos meios de produção.
Os donos, com o tal, se tornam meros cortadores de cupões, explora-
dores e parasitas. A produção capitalista tornou suas próprias relações <
sociais sem função e irrelevantes. w
O crédito acelera a concentração e centralização de capitais: . ^
Sucesso e fracasso levam am b o s, no caso, à cen tralização do capital, e assim à e x p ro ­
p riação n u m a escala gig antesca. A ex p ro p riaç ão se estende desde os p ro d u to re s d ireto s
até os p ró p rio s cap italista s m enores e de ta m a n h o m édio. Ê o p o n to de p a rtid a p a ra o
m o d o de p ro d u ç ã o cap italista , sua realização é a m eta dessa p ro d u ção . Em últim a ins­
tân cia, ela visa à ex p ro p riaç ão d o s m eios de p ro d u ç ã o d e to d o s os indivíduos.... M as
essa a p ro p ria ç ã o surge no sistem a cap italista de fo rm a c o n tra d itó ria , com o a p ro p ria ç ã o
da p ro p ried ad e social p o r um a form a; e o créd ito dá a esta ú ltim a, ca d a vez m ais, o as­
pecto d e p u ras av en tu ras. {Ibid., p. 430)

A sociedade anônima e a sistematização do crédito acentuam a contra­


dição entre o caráter social das forças produtivas e a propriedade dos
meios de produção na forma de propriedade privada. O dono do capi­
tal torna-se um simples e parasitário beneficiário de rendas, e o con­
trolador do crédito centralizado se torna um especulador divorciado
da produção. Os efeitos do crédito devem socializar mais ainda os
meios de produção e eliminar quaisquer vestígios de racionalidade que
a sua propriedade privada possa ter possuído: “ Isso é a abolição do
modo de produção capitalista dentro do próprio m odo de produção
144 “O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

capitalista, e daí uma contradição autodissolvente, que representa pri­


ma fa c ie urna simples fase de transição para um novo modo de produ­
ção” (ibid., p. 429).
O acréscimo de Marx da ressalva prim a fa c ie não chega a consti­
tuir uma defesa adequada; pode ficar para aqueles que desejam acredi­
tar que as coisas se passaram de m odo diferente após a morte de Marx
por m otivos que ele não pôde “ prever” . Mas não é Marx o “ profeta”
que nos interessa, e sim o teórico econôm ico. Sua posição era insusten­
tável desde o m omento em que a tomou, teoricamente insustentável.
Marx confunde sistematicamente o capital com o relação social com
formas particulares de propriedade privada.
A unidade de posse do capital é a sociedade anônima, e essa for­
ma de posse existe devido à transformação da escala social dos fundos
necessários a certos ramos da produção capitalista, sendo também a
condição de existencia de certos tipos de empresa. Os acionistas não
são donos do capital, emprestam dinheiro a juros a um capital (na for­
ma de compra de um bem financeiro negociável que rende dividen­
dos). A posse e a função, em relação ao capital, continuam unidas na
empresa, um sujeito econôm ico distinto dos capitalistas financeiros
ociosos e sem função de Marx. Da mesma forma, os fundos financei­
ros são centralizados pelas empresas financeiras capitalistas, e não por
uns poucos especuladores individuais. As formas de relação entre o ca­
pital financeiro e o industrial não podem ser restringidas ao mercado
de ações ou à emissão de ações. Da mesma forma, não se pode argu­
mentar que o efeito geral do capital financeiro tenha sido o de acen­
tuar as crises e ciclos da produção capitalista através de suas operações
puramente especulativas. Pode-se argumentar com alguma lógica que,
pelo contrário, a hegemonia do capital financeiro sobre a produção in­
dustrial, o crédito ao consumidor e as potencialidades da política m o­
netária e fiscal do Estado podem, em certas circunstâncias, amortecer
os efeitos das crises e exercer um efeito estabilizador sobre qualquer
m ovim ento de queda no nível de produção e no nível de procura. N e­
nhum desses argumentos é, porém, uma conseqüência necessária do
desenvolvimento do'capital financeiro e do financiamento pelo crédi­
to.
Marx não vê que a “ propriedade privada” em formas de capital
“ socializado” não toma necessariamente a forma de uma classe de
“ rentiers” . O capital que nasce com o capital através da venda de mer­
cadorias financeiras (pensões, seguros), através da centralização dos
fundos monetários das empresas e dos assalariados, através da venda
de ações, e através de políticas estatais de criação de crédito, não pres­
supõe a existência de uma classe de beneficiários de rendas. Supõe ape­
nas empresas, depositantes/produtores e dinheiro. Esse capital não
FORCAS E RELAÇÕES DE PRODUÇÃO 145

corresponde à posse pessoal de propriedade privada, aquilo que as


pessoas possuem são títulos de juros, o pagamento futuro de somas de
dinheiro, etc., e não capital.
As unidades de posse do capital “ socializado” são as empresas ca­
pitalistas industriais e financeiras. As empresas capitalistas industriais
podem estar subordinadas, pelo seu financiamento, a empresas que são
capitais através da centralização dos fundos monetários ociosos gera­
dos no circuito do capital produtor de mercadorias. Os trabalhadores
podem ser empregados por empresas nas quais os seus salários e os de
outros, suas poupanças e pensões, são a fonte do capital que os empre­
ga. O capital é uma relação social de produção, uma relação baseada
na posse e separação, e não em títulos pessoais de propriedade. Rela­
ções sociais de produção que provocam a separação podem existir sem
a personificação da posse exclusiva. O capitalism o é um modo de pro­
dução no qual o lucro e as exigências de formas de posse exclusiva de­
terminam o que é produzido. A sociedade anônima não alterou esse
fato, pois não representa uma dissolução das relações capitalistas, tal
com o não a representou a passagem do vapor para a eletricidade com o
forma de força motriz.
Ca p í tu lo 6

A Lei da Tendência Decrescente


da Taxa de Lucro

As discussões dessa “ lei" tomaram, até agora e de modo predominan­


te, a forma de controvérsias relacionadas com o fenôm eno nela especi­
ficado. As questões em jogo nessas controvérsias foram as seguintes:
se essa tendência é ou não realmente operativa no capitalismo, se toma
ou não a forma de um declínio progressivo da taxa média real de lu­
cro, se esse declínio, caso ocorra, é mensurável, 1 e que conseqüências
se seguem dessa tendência ou desse declínio: será uma tendência final
inscrita na produção capitalista?
Dada a forma pela qual a “ lei” é apresentada e em seguida res­
tringida no livro 3, parte III, de O Capital, uma série de posições sobre
a sua natureza e a forma de sua operação é possível. Essa com plexida­
de de exposição e a ambigüidade por vezes quase délfica da escrita não
podem ser simplesmente justificadas pelo fato de ter sido constituída
num texto a partir de notas de qualidade desigual, por Engels. Marx
não desfrutava de nenhum “privilégio de autor” em relação às possibili­
dades oferecidas pelo discurso. M esmo que Marx, autor, e não Engels,
o m eticuloso executor teórico, tivesse vivido o suficiente para nos ofe­
recer uma “ resolução” literária, essa resolução só poderia ser a elimi­
nação dessas possibilidades, e com isso proporcionaria um terreno de
debate quanto à sua efetividade. A ambigüidade com relação à forma
de realização da léi é parte integrante da forma e condições de sua co­
locação e do espaço para sua contradição criado pelas possíveis conse­

1 A q u estão de ser o u n ão a ten d ên cia realizada n u m a tax a decrescente de lucro é dife­


ren te d a q u estão de ser ela observável, presente n u m a fo rm a fenom enal em tax as de lucro
co n cretas. É p erfe itam en te possível a rg u m e n ta r q u e o fenôm eno do declínio é real, m as
n ã o é observável d ire ta m e n te nos balan ço s das em p resas. Esses “ lu cro s” são o p ro d u to
de u m a fo rm a de apresentação, q u e reflete m éto d o s co n táb eis (que podem n ão d istinguir
e n tre lu cro s so b re bens financeiros, in flação de valores p a trim o n ia is e lucros na p r o d u ­
ção de m ercad o ria em si), fo rm as e níveis de im p o sto s, e concessões fiscais, etc. A lém
d isso, M a rx a rg u m e n ta q u e os lucros ta m b é m po d em d eclin ar p o r m otivos não-
relacio n ad o s com a lei.
T E N D Ê N C IA D E C R E SC E N TE DA TAXA DE L U C R O 147

qüências de outros conceitos em O Capital. Igualmente, não pode ha­


ver eliminação quanto à gama de possibilidades teóricas e o debate
que as cerca, pelo recurso à “evidência” obtida de econom ias capitalis­
tas definidas. Para começar, as mais simples concepções positivistas da
lei como presente ou ausente em balanços de empresas podem ser afas­
tadas com o contrárias à concepção do método dom inante em O Capi­
tal e ao argumento apresentado no texto. Além disso, porém, uma
gama de posições é possível tanto em relação à natureza do fenômeno
a ser medido com o aos métodos e dificuldades técnicas de medição.
Tais posições não podem ser resolvidas porque não há meios definiti­
vos para estabelecer a validade de critérios de validade (esse argumen­
to é desenvolvido em detalhe por Hindess e Hirst, 1977). Com efeito,
voltamos às disputas sobre posições tomadas no texto e também leva­
das a regiões de debate filosófico geral. N ão há resposta na “ evidên­
cia” porque pedir “evidência” não é formular uma pergunta simples e
sem ambigüidade.
N ão levaremos o debate a esse terreno anteriormente dominante
de discussão quanto à natureza da “ lei” com o se ela fosse uma entida­
de realmente existente. N ão argumentamos apenas que o fenômeno
não se realiza na forma de um declínio progressivo da taxa de lucro e
não rejeitamos simplesmente a noção de que é uma tendência terminal
do modo de produção capitalista (essas duas proposições negativas re­
lacionadas com o fenôm eno podem ser argumentadas de forma per­
suasiva à base de O Capital). Ambas as posições aceitam a existência
da entidade e lhe atribuem uma natureza definida. Afirmaremos, pelo
contrário, que não há razão para supor que há uma “ lei” nesse senti­
do. Afirmamos que não pode haver “ leis tendenciais” e que portan­
to não existe uma referente à queda da taxa de lucro. A “lei” é encon­
trada no discurso de O C apital; é aí que a enfrentamos. A “ lei” é o
produto da disposição e coincidência de certos conceitos no discurso
de O Capital, que tornam possível uma tese. Essa tese se expressa
com o uma “ lei” . As dificuldades que apresenta se organizam em torno
do fato de que o método sob cuja égide O Capital é escrito não oferece
o espaço conceituai para que essa tese seja rejeitada com o um simples
efeito da constelação de conceitos, uma simples possibilidade discursi­
va e, além do mais, o fato de que o efeito dos conceitos que proporcio­
nam os meios de formular essa tese (e o de outros conceitos correlatos)
não é simples, eles também criam a possibilidade de vários argumentos
ou teses contrários. O problema criado por essa com plexidade discur­
siva é “ superado” na parte III inscrevendo-se a contradição entre a
tese e seus contrários na realidade das relações sociais capitalistas.
Devem os notar que não há uma “ carga lógica” na teoria do mé­
todo em O Capital que tenha o efeito teórico de promover a coerência.
Seria possível admitir que a lei é um efeito lógico apenas, negar sua
148 " O C A P I T A L ” E AS LEIS T E N D E N C I A I S

realidade e aceitar que a conseqüente contradição com a doutrina do


m étodo é alguma coisa com a qual tem os de conviver. O fato de que
isso não acontece não se deve aos efeitos causais de quaisquer “concei­
tos básicos” , mas é um efeito da forma pela qual o discurso está escri­
to.
N ossa discussão dessa “ lei” vai, portanto, diferir consideravel­
mente da sua análise em Althusser e Balibar, Lire " L e C apital". A dis­
cussão de Balibar da lei, a mais sofisticada, filosoficam ente, até agora,
trata-a com o um processo real, mas não com o uma tendência realiza­
da de maneira progressiva através do tem po empírico e culminando
num estado final. Balibar a concebe com o uma “ tendência” que é um
efeito da estrutura, uma forma de ação da própria estrutura. Essa ten­
dência está “presente em seus efeitos” , e esses efeitos são fenôm enos
que constituem tanto sua neutralização com o as condições de existên­
cia para a sua ação futura. A tendência assim concebida partilha da
forma de temporalidade da estrutura, é a tendência de uma “eternida­
de" (uma temporalidade e uma efetividade interna a si mesma). Bali­
bar identifica a ação da “ lei” com a “causalidade estrutural” . Essa
causalidade é um conceito que apropria um processo causal real no
pensamento. Dada a posição epistem ológica de Balibar, duas opções
discursivas básicas são possíveis - ele pode rejeitar a lei de Marx, atri­
buindo-lhe a condição de um resíduo ideológico remanescente ainda
não tocado pelos efeitos do corte epistem ológico, ou deve aceitar essa
lei com o parte de um processo lógico de elaboração de conceitos
que assimila o concreto no pensamento. Assim , enquanto Balibar rejei­
ta, por m otivos filosóficos, a noção da “ lei” com o parte de uma dialé­
tica hegeliana da superação, ou a sua noção como tendência realizada
empiricamente, aceita não obstante a sua realidade com o um efeito da
estrutura. N ós, pelo contrário, não tentaremos aceitar ou rejeitar qual­
quer das possíveis situações ontológicas da lei em favor de outra. N o s­
sa discussão se limitará às suas condições discursivas de existência e
efeitos.
Certos conceitos definidos são as condições de se postular o
problema da taxa decrescente de lucro. Primeiro, os conceitos básicos
e específicos à teoria da mais-valia, “capital constante e variável” . Se­
gundo, a postulação de uma tendência ao aumento da “com posição
orgânica do capital” , concebida com o uma tendência básica do m odo
de produção capitalista. Terceiro, o m ecanismo da formação de uma
“ taxa média de lucro” de tal m odo que capitais do mesmo volume re­
cebem em média a mesma taxa de retorno sobre o capital adiantado,
independentemente da com posição orgânica desses capitais.
Vimos que a epistem ología apresentada em O Capital considera a
disposição dos conceitos no discurso com o um processo de produção
dc conhecim ento, de integração no pensam ento, de uma série concreta
TEN D Ê N C IA DECRESCEN TE DA TAXA DE LU CRO 149

de entidades que existem independentemente do discurso. Para essa


epistem ología, a “ lei” jamais poderia ser apenas uma conseqüência
dos conceitos que são produzidos e a forma pela qual eles são dispos­
tos. O discurso de O C apital não contradiz essa situação que a episte­
m ología tem de atribuir à “ lei” , sendo esta concebida com o uma “ ex­
pressão” do processo fundamental subjacente a toda a realidade so­
cial, a tendência das forças produtivas da sociedade a se desenvolve­
rem. A “ lei” é apresentada por Marx com o uma conseqüência da ten­
dência ascendente da com posição orgânica dos capitais, nas condições
de lucro médio dos capitais (criando com efeito uma com posição orgâ­
nica do capital social total, uma média das com posições específicas). A
essa tendência que produz a “ lei” com o seu efeito não pode ser negado
esse efeito. Essa tendência para uma crescente com posição orgânica é
a fo rm a capitalista da tendência universal e fundamental de toda pro­
dução social: “A tendência progressiva que tem a taxa geral de lucro a
cair é, portanto, apenas uma expressão, peculiar ao m odo capitalista
de produção, do desenvolvim ento progressivo da produtividade social
do trabalho” (O Capital, livro 3, p. 209). A lei “expressa” esse proces­
so fundamental, não é um fenôm eno ocasional, e deve ser distinguida
das simples quedas empíricas da taxa de lucro devidas a “ outras ra­
zões” .

Marx, continuando, diz: “ Mas, partindo da natureza do modo de


produção capitalista, prova-se com isso uma necessidade lógica de que
em seu desenvolvim ento a taxa média geral da mais-valia se expresse
numa taxa decrescente de lucro” (ibid., grifo nosso). O discurso dá ao
m odo de produção capitalista o status de um sistema cuja necessidade
é com o a da lógica, no qual os elem entos se correspondem, tal com o
no processo de raciocínio. Conceitos e realidade estão interligados
num racionalismo consum ado. O processo lógico de pensamento
apropria o real que tem uma ordem racional (lógica). É, portanto, atri­
buída ao pensamento uma ordem da qual não se pode desviar. Essa po­
sição tem dois efeitos paralelos e que se reforçam: primeiro, o discurso
está sujeito à racionalização, os conceitos teóricos são considerados
com o parte de um processo necessário, com o efeitos lógicos de concei­
tos anteriores; e, segundo, essa necessidade lógica do discurso corres-*
ponde a uma necessidade no real, sendo as relações lógicas entre con­
ceitos e seus efeitos teóricos, portanto, formas de representação de re­
lações existentes no con¿reto. Segue-se que as conseqüências do dis­
curso, desde que lógico, não podem ser ignoradas. N ão há forma evi­
dente pela qual essa posição possa rejeitar um conceito com o o da
“ lei” com o simples conseqüência possível de outros conceitos prece­
dentes no discurso. Esse produto da inter-relação de certos conceitos
deve ser uma tendência real, uma “expressão” da “ natureza” do capí-
150 “ O C A P I T A L ” E AS L EIS T E N D E N C I A I S

talism o. Se essa tendência não se realiza no declínio progressivo dos


lucros, então isso deve ocorrer porque outras forças reais a neutrali­
zam, ou devido ã forma de ação da própria tendência real.
N o livro 3, Capítulo XIV, “ Influências Neutralizantes” , e no
Capítulo XV, “ Exposição das Contradições Internas da Lei” , o texto
examina várias conseqüências dos conceitos anteriormente desenvolvi­
dos, que não levam à conclusão de um declínio expresso diretamente
na taxa de lucro. O que se faz aqui é postular uma conseqüência de
certos conceitos (a possibilidade de uma taxa decrescente de lucro)
com o a “tendência” básica, e outras conseqüências com o “influências
neutralizantes” ou com o as conseqüências contraditórias de sua ação.
A gama de possíveis conseqüências do discurso é ontologizada na ten­
dência e na contratendência.
A “ lei” é uma possível conseqüência da noção de uma produtivi­
dade social crescente do trabalho. Decorre da tese de uma crescente
com posição orgânica do capital, mas esse efeito é contraditado por
três efeitos paralelos e igualmente possíveis da mesma tese:
1. A crescente produtividade social do trabalho barateia o capital
constante e portanto reduz relativamente o valor de novos meios de
produção.
2. Também reduz relativamente o custo da força de trabalho, re­
duzindo o valor de seus meios de subsistência, e isso, com binado com,
e contribuindo para um aumento da taxa de exploração (embora esse
aum ento seja fixado dentro dos limites dos efeitos do deslocamento
dos trabalhadores que a ele está acoplado), tende a aumentar a taxa de
lucro.
3. A crescente produtividade social e uma crescente com posição
orgânica criam uma tendência crescente no sentido de uma população
excedente relativa e com isso enfraquecem a capacidade da classe operá­
ria de se opor ao rebaixamento dos níveis salariais; isso reduz as pres­
sões no sentido do deslocam ento do trabalho e no sentido da introdu­
ção de técnicas mais produtivas. Conseqüências contraditórias seme­
lhantes resultam do fato de que a “lei” opera através das forças da
concorrência capitalista (que efetua o processo de “m édia”), mas essas
forças resultam em, e tomam a forma de, crises periódicas que eliminam
uma parte da massa existente de capital e reduzem o estoque de capi­
tal.
N a seção II do Capítulo XV, Marx argumenta que o processo en­
volvido na acumulação de capital representa uma unidade contraditó­
ria de opostos:
M a s esses d o is elem entos c o m p reen d id o s pelo processo d e a cu m u lação n ã o devem ser
co n sid e ra d o s ap en as com o existentes lado a lad o , com o faz R ica rd o . C o n têm u m a c o n ­
tra d iç ã o q u e se m an ifesta em ten d ên cias e fenôm enos c o n tra d itó rio s . Essas tendências
antagônicas se contraditam sim ultaneam ente.
T EN D Ê N C IA DECRESCENTE DA TAXA DE LUCRO 151

J u n ta m e n te com o s estim u lan tes de um a u m e n to real d a p o p u la ç ã o tra b a lh a d o ra ,


q u e d eco rrem do a u m e n to d a p a rte d o p ro d u to social to ta l q u e serve de c a p ita l, h á agên­
cias q u e criam u m a sim ples su p e rp o p u la ç ã o relativa.
J u n ta m e n te com a q u ed a da ta x a de lucro, a m assa de cap itais cresce e ju n ta m e n te
co m isso o c o rre u m a d ep reciação d o s cap itais existentes, q u e c o n tra b a la n ç a a q u ed a e
d á um m o v im en to de aceleração ao s valores de cap ital.
J u n ta m e n te com o d esen v o lv im e n to da p ro d u tiv id a d e o c o rre u m a co m p o sição m ais
a lta d o cap ital, isto é, um decréscim o relativo na ra z ã o en tre o cap ital variável e o cons­
tan te.
Essas in flu ên cias d iferentes p o d e m , num d a d o m o m en to , o p e ra r de m o d o p red o m i­
n a n te , lad o a lad o , e, em o u tro , suceder-se no tem p o . D e tem p o s em tem p o s, o conflito
de agências a n tag ô n icas se m an ifesta em crises. Essas crises são sem pre ap en as soluções
m o m e n tâ n e a s e de fo rça p a ra as c o n tra d iç õ e s existentes. S ão eru p çõ es vio len tas que d u ­
ra n te algum te m p o restab elecem o eq u ilíb rio p e rtu rb a d o . (O C apital, vol. 3, p. 244 - gri­
fo nosso)

Nenhum m ovim ento determinado, com o a realização progressiva da


tendência, a tendência abstratamente postulada no Capítulo 13, pode
ser derivado dessa posição. Os m ovim entos internos do modo de pro­
dução capitalista são oscilantes e simultaneamente contraditórios -
correspondem às cadeias de argumento e contra-argumento possibilita­
das pelos conceitos de Marx. T odos esses m ovim entos contraditórios
(ou conseqüências contraditórias dos mesm os conceitos) são resolvi­
dos numa unidade de opostos, são os efeitos contraditórios de uma tí­
nica contradição básica “ imanente” na produção capitalista:
A c o n tra d iç ã o , p a ra falarm o s de m o d o b a stan te geral, consiste no fato de q u e o m odo
de p ro d u ç ã o cap italista envolve u m a ten d ên cia p ara o desen v o lv im en to a b so lu to d as
fo rças p ro d u tiv a s, in d ep en d en te d o v alor e da m ais-valia que co n tém , e in d ep en d en te­
m en te das co n d içõ es sociais so b a s q u ais a p ro d u ç ã o cap italista ocorre; p o r o u tro l a d o ,.
seu o b jetiv o é p reserv ar o v alo r do cap ital existente e p ro m p v e r su a a u to -e x p a n sã o ao li­
m ite m áxim o...
A p ro d u ç ã o ca p ita lista busca c o n tin u a m e n te su p e rar essas b a rre ira s im anentes,
m as as su p era ap en as p o r m eios que n o v am en te as colocam em seu cam in h o e num a es­
cala ain d a m ais form idável. A barreira real da p ro d u ç ã o cap italista é o próprio capital.
(Ih id .. p. 245 - g rifo d o o rig in al)

Essa contradição é reproduzida constantem ente numa escala sempre


crescente, mas não pode ser resolvida, já que consiste em efeitos que
são contraditórios e auto-reforçadores. Essa contradição “ imanente” ,
essencial ao m odo de produção capitalista, é uma “expressão... do de­
senvolvim ento progressivo da produtividade social do trabalho” den­
tro das relações de produção capitalistas. Marx baseia a tendência
para a crescente com posição orgânica, e em conseqüência a tendência
à queda da taxa de lucro e sua natureza contraditória, nessa tendência
social universal. Mas essa tendência universal da produção social já
não é a tendência extremamente contraditória do “ Prefácio” do livro
1, Capítulo XXXIF. Ela se desfaz agora em efeitos contraditórios, efei­
tos que estão acoplados de uma maneira que não pode jamais ser re­
solvida.
152 “ O C A P I T A L " E AS LEIS T E N D E N C I A I S

O livro 3, parte III, é inconclusivo com o a totalidade do próprio


O Capital, isto é, as possibilidades complexas do discurso não são en­
cerradas por nenhum im prim atur final. O que está escrito na parte III
é, na realidade, com plexo e contraditório. O Capítulo 13 desenvolve as
potencialidades e possibilidades lógicas do conceito da “ lei” , desen­
volvendo as conseqüências de conceitos anteriores e estendendo a lei
com o se ela fosse a única conseqüência. O Capítulo XIV procura ex­
plicar por que essas possibilidades não foram realizadas num declínio
progressivo simples nas taxas de lucro concretas. As “influências con-
trabalançadoras” são de status contraditórios; algumas, com o a inten­
sidade crescente da exploração, são também conseqüências dos con­
ceitos básicos que servem para formular a lei (crescente com posição
orgânica); outras nos enviam a condições definidas de econom ias capi­
talistas nacionais específicas que não podem ser dadas no conceito ge­
ral do m odo de produção capitalista, com o, por exemplo, o comércio
exterior. O Capítulo 15 concebe a própria lei com o contraditória em
sua operação, e com o realizada nos fenôm enos opostos de sua opera­
ção e negação (o que não é feito na formulação do Capítulo XIII).
O conceito do m odo de produção capitalista com o existência abs­
trata revela sua natureza problemática a essa altura. Os conceitos en­
volvidos aqui geram interligações múltiplas e contraditórias. Essas in­
terligações não podem ser convertidas nas formas de hierarquia neces­
sárias para criar um processo histórico geral com o é sugerido no “ Pre­
fácio de 1859” . Esse processo exige uma causalidade linear privilegia­
da que resulta em estados de coisas definidos e necessários. Tal im pos­
sibilidade pode provocar duas reações. Primeiro, essas interligações
complexas poderiam ser concebidas com o representando um “ mapa”
de causalidades possíveis, que dependem para a sua realização concre­
ta (e qual delas será realizada) da ação de condições definidas. M as se-
gue-se então que o conceito geral do m odo de produção capitalista
não pode revelar as “ leis de m ovim ento” do capitalismo, é antes uma
teoria ou m odelo dos diferentes m ovimentos possíveis nos capital/imos.
Segundo, pode-se argumentar que essas interligações complexas são
realmente a forma de operação da lei da taxa decrescente de lucro, mas
que essa lei não é a lei básica do m ovimento no capitalismo, mas sim­
plesmente uma maneira de conceber os com plexos efeitos colaterais
dessa lei básica. Am bas as posições negam, com efeito, a centralidade
da tese de uma taxa decrescente de lucro com o uma lei de m ovimento
básica no capitalismo, com o parté de um processo que impele todas
essas formas de existência no sentido de um estado de coisas preciso.
Em última análise, nenhuma das partes de O Capital que exami­
namos - livro 1, Capítulo 32, e livro 3, parte 3 - proporciona um dis­
curso que desenvolva rigorosamente a causalidade do “ Prefácio de
1859” . Em ambas as partes do texto, essa causalidade é aceita e, ainda
TEN D Ê N C IA D ECRESCENTE DA TAXA DE LUCRO 153

assim, da forma que o discurso se desenvolve, ela é negada ou fica sem


apoio teórico real. O Capital não tem nenhuma concepção única de
“ leis tendenciais” , e certamente nenhuma que pudesse apoiar uma “ lei
de m ovim ento” econôm ica, que necessariamente transforma o capita­
lismo em outra forma de totalidade, o socialismo.
PARTE III

AS CLASSES E A ESTRUTURA
DA FORMAÇÃO SOCIAL
O marxismo clássico está longe de ser um corpo unitário e coerente de
doutrinas, mas, apesar de suas diferenças consideráveis, suas várias
formas partilham de certas características fundamentais em sua concei-
tuação de classes e da estrutura da formação social. A formação social
é concebida com o uma totalidade social definida, uma unidade de
níveis econôm ico, político e cultural (ou ideológico) e de um modo de
produção dominante, juntamente com outros modos ou elementos.
Correlata à concepção da formação social com o uma totalidade está a
noção de um princípio organizador dessa totalidade. N o marxismo
clássico, esse princípio é proporcionado pelo primado da econom ia. A
forma precisa pela qual esse primado se deve efetivar varia de uma for­
ma de marxismo clássico para outra, mas em geral atribui-se ao nível
econôm ico o papel de “ determinante em última instância” porque go­
verna o caráter de cada um desses níveis e as relações entre eles. A res­
salva “em última instância” indica que o caráter das superestruturas
política e cultural (ou ideológica) não pode ser simplesmente deduzido
do caráter da econom ia. Os níveis são “ relativamente autônom os” e
os níveis político e cultural podem exercer um efeito recíproco sobre a
economia. “Determinação em última instância” e “autonomia relati­
va” têm funcionado com o conceitos simbólicos na teoria marxista.
Afirmam tanto o primado da econom ia com o a irredutibilidade de ou­
tros níveis a ela - mas raramente foram formulados com precisão e es­
tão sujeitos a várias interpretações diferentes.
Quanto às classes, são concebidas no marxismo clássico primeiro
com o categorias de agente econôm ico e, segundo, com o os agentes da
luta política e ideológica. Mais uma vez, o caráter preciso da suposta
ligação entre classe com o categoria de agente econôm ico e classe
com o agência política e ideológica varia de uma forma de marxismo
clássico para outra. Mas, com o quer que seja concebida, essa visão das
classes é difícil de conciliar-se com os conceitos de “determinação em
última instância” e “ autonom ia relativa” . Se as forças políticas forem
identificadas com classes ou com o representantes de seus interesses,
158 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

com o podem também ser concebidas com o irredutíveis aos efeitos da


economia? O conceito de representação política envolve três elemen­
tos: o conteúdo daquilo que é representado (classes econôm icas e seus
interesses); os meios de representação (aparelhos e organizações políti­
cos); e a própria representação (as práticas desses aparelhos e organi­
zações). Dizer que a política não é redutível a um simples efeito das re­
lações econôm icas é dizer que há uma diferença entre o que é represen­
tado e sua representação. É afirmar a efetividade específica e determi­
nada dos meios de representação. Segue-se que os meios de representa­
ção não podem, em si mesmos, ser redutíveis a classes econôm icas e
seus interesses. Mas com o é possível aos meios de representação políti­
ca ser independentes das classes econôm icas e seus interesses, de um
lado, e ainda assim ser forçados a representar esses interesses, de ou­
tro lado?
N os capítulos que se seguem vamos problematizar essas concep­
ções clássicas. A primeira parte do Capítulo 7 delineia a concepção
clássica da estrutura da formação social e argumenta que ela dá ori­
gem a duas séries distintas de problemas. Primeiro, há os problemas
oriundos do caráter das conexões, “ determinação em última instân­
cia” , “ autonom ia relativa” , etc., colocadas entre os diferentes níveis.
Segundo, há questões a serem formuladas com relação ao caráter
substantivo das relações e práticas sociais postuladas na concepção
clássica. Esses problemas não são totalmente independentes e, não
obstante, são distintos e irredutíveis. N os capítulos subseqüentes,
problematizamos tanto o caráter das conexões entre níveis postuladas
pela concepção clássica com o o caráter substantivo dos próprios
níveis.
A segunda parte do capítulo examina a conceituação de classes e
argumenta que a concepção clássica da estrutura da formação social
dá origem a uma ambigüidade fundamental na conceituação de classes
e relações de classes. De um lado, as classes são concebidas com o cate­
gorias de agente econôm ico e, de outro, são (ou são representadas por)
forças culturais e políticas definidas. Quatro tipos principais de tenta­
tivas de resolver a ambigüidade são considerados, e todos mostram-se
insatisfatórios. Para nossos objetivos presentes, esses tipos podem ser
reduzidos a duas formas básicas. De um lado, temos as posições que
conceituam as classes em termos de uma contraposição de sujeito e es­
trutura, condições subjetivas e objetivas, relações sociais e estruturas,
e assim por diante - Lukács, Poulantzas, a Sociologia Weberiana de
esquerda. Por outro lado, estão as posições que rejeitam a contraposi­
ção de sujeito e estrutura e procuram, de forma mais ou menos rigoro­
sa, interiorizar formas de subjetividade e consciência dentro da concei­
tuação da própria estrutura - Althusser e seus associados e a tradição
m uito diferente da ortodoxia marxista representada no M aterialism o
CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL 159

Dialético e H istórico de Stalin. N o primeiro caso, a contraposição das


determinações subjetiva e objetiva (ou estrutural) implica a existência
de formas políticas e culturais que não são redutíveis a determinações
de classe - e a teoria não oferece um meio de conceituar a efetividade
dessas formas. N o segundo caso, a interiorização das formas de cons­
ciência dentro da estrutura induz a uma concepção funcional e expres-
sivista na qual formas e forças culturais, políticas e econôm icas são re­
duzidas a efeitos da própria estrutura. As forças políticas não têm,
portanto, uma efetividade independente: simplesmente desempenham
o papel que lhes é atribuído pelas necessidades funcionais, ou “causali­
dade estrutural” , da própria estrutura. Em ambos os casos, há uma in­
capacidade de conceituar as condições da efetividade dos agentes so­
ciais e uma identificação do agente social com o sujeito humano. Ou o
agente é concebido com o uma subjetividade independente que con­
fronta uma determinada estrutura objetiva, e sua efetividade é concei­
tuada precisamente na medida em que age de acordo com os interesses
“objetivos” definidos pela estrutura; ou a efetividade do agente é ne­
gada; é concebido com o um recipiendário passivo das formas de cons­
ciência adequadas à sua posição na estrutura e atuando apenas de
acordo com as exigências do funcionamento da estrutura. Será neces­
sário problematizar o conceito de agente e investigar suas condições de
existência.
Os dois capítulos seguintes examinam a questão das ligações entre
níveis distintos postuladas pela teoria marxista, a determinação em úl­
tima instância, a autonom ia relativa e assim por diante, mostrando
que esses tipos de conexão, em si mesmos, envolvem um tipo particu­
lar de posição epistem ológica racionalista. Esses argumentos são ba­
seados em posições desenvolvidas em Hindess e Hirst, M ode o f Pro-
duction and Social Formation. O marxismo clássico concebe a forma­
ção social com o uma totalidade social definida cujo princípio organi­
zador é representado nas formas de ordem do discurso marxista. Ar­
gumentam os que a formação social não deve ser concebida com o uma
totalidade definida e que não está estruturada pelo primado da econo­
mia. Conceber a formação social com o uma totalidade definida na
qual o nível econôm ico tem primado é conceber as ligações entre as re­
lações econôm icas, de um lado, e as relações e práticas políticas e ideo­
lógicas, do outro, com o governadas pelo princípio orgânico daquela
totalidade, isto é, em termos da determinação “em última instância”
pela econom ia. A tese da irredutibilidade da política e da ideologia,
contida nas noções de “ determinação em última instância” e “ autono­
mia relativa” , não pode ser mantida. Ela leva seja a redutibilidade ou
econom icism o disfarçado, seja, então a uma negativa do primado da
econom ia. N ão há meio-termo. Argumentamos que as conexões entre
relações e práticas econôm icas, políticas e culturais devem ser concei-
160 C L A S S E S E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O S O C I A L

tuadas não em termos de determinação e causalidade, mas antes em


termos de condições de existência e das formas pelas quais podem ser
satisfeitas. Pode-se mostrar, por exem plo, que as relações de produção
têm condições definidas de existência em outros tipos de relações so­
ciais, lei políticas, etc., mas não asseguram por si mesmas essas condi­
ções, nem determinam as formas pelas quais são satisfeitas. Se a ques­
tão da ligação entre relações de produção e outras formas e relações
sociais é postulada nesses termos, então a concepção clássica da for­
mação social com o uma unidade definida de três níveis estruturais ca­
racterizados por uma “ autonom ia relativa” e pela “ determinação em
última instância” da econom ia tem de desabar. Em lugar disso, a for­
mação social deve ser concebida como um conjunto preciso de relações de
produção, juntamente com as formas sociais nas quais suas condições
de existência são satisfeitas.
Um dos resultados de se conceber dessa maneira a formação so­
cial é a dissolução do problema de conceituar as classes tanto com o ca­
tegorias de agentes econôm icos quanto com o formas políticas e cultu­
rais. Se a conexão entre as relações de produção e as forças políticas e
culturais é concebida em termos de condições de existência e as formas
pelas quais elas são asseguradas, então não pode haver razão para
conceber as forças políticas e culturais com o geradas pela distribuição
de agentes econôm icos em classes pelas relações de produção, ou
com o expressivas dessa distribuição. A formação social e os conflitos
de forças sociais dentro dela podem então ser concebidos com o ofere­
cendo as condições de existência de um conjunto definido de relações
econôm icas de classes. Da mesma forma, se a questão da conexão en­
tre as relações de produção e as forças produtivas for posta em termos
de condições de existência, então a noção de uma correspondência de­
finida e necessária entre elas deve ruir. D evem os portanto investigar as
relações entre as relações econôm icas de classes, de um lado, e a divi­
são técnica do trabalho no processo de produção e a divisão do traba­
lho social na formação social, de outro lado.
Outra reconstrução da concepção clássica de classes é exigida
para uma investigação das condições de existência dos agentes. M os­
traremos que os agentes não podem ser reduzidos a sujeitos humanos
individuais e, ainda mais, que é ao mesmo tempo possível e necessário
conceituar outras formas de agente social e econôm ico, por exemplo,
as sociedades anônimas, ordens religiosas, comunas populares, etc.
Uma conseqüência desse argumento é que as classes podem encerrar
outros agentes além dos indivíduos humanos. Será necessário, portan­
to, investigar o papel da administração, isto é, daqueles que desempe­
nham a função de direção das atividades desses agentes econôm icos
não-humanos.
^ L ^ .a a tiS E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL 161

Os argumentos destes capítulos encerram uma reconstrução fun­


damental das concepções marxistas clássicas da estrutura da formação
social, classes e relações econôm icas de classes. Um breve capítulo fi­
nal desta parte delineia algumas de suas conseqüências para a análise
das relações econôm icas de classes e suas condições sociais de existên­
cia, para a conceituação de relações de produção em sociedades socia­
listas contemporâneas e com relação às formas e condições da prática
política socialista..
C ap ít u lo 7

M arxism o Clássico

M odo de produção e formação social


O marxismo clássico tem uma concepção definida da estrutura neces­
sária da sociedade. Uma sociedade é concebida com o uma formação
social, uma estrutura articulada de três (em certos casos, dois) níveis
estruturais interdependentes, dominada pela estrutura de um determi­
nado modo de produção, consistindo em um nível econôm ico, um
nível político-jurídico e um nível cultural (ou ideológico). Os níveis do
modo de produção são considerados com o relacionados de tal modo
que o primeiro desempenha sempre um papel primordial, o da “ deter­
minação em última instância” . A própria econom ia é estruturada por
uma com binação definida de relações e forças de produção. Num
modo de produção, essas relações e forças devem ter correspondência.
Sua incapacidade de corresponder indica o fim de um m odo de produ­
ção e o início de outro. A transição entre os dois m odos é efetuada por
meio da luta de classes, que derruba a estrutura de um modo de produ­
ção e coloca outra em seu lugar.
A idéia de que essa concepção da estrutura necessária da socieda­
de é fundamental para a teoria marxista tem sua origem num trecho
bem conhecido do Prefácio de Marx para Uma Contribuição para a
Crítica da Economia Política e em várias passagens igualmente bem co­
nhecidas e muito citadas de O Capital e da Introdução inacabada à
Contribuição. N o prefácio, Marx resume o que descreve como “ o
princípio orientador de meus estudos” :
N a p ro d u ç ã o social de sua existência, os hom ens e n tra m inevitavelm ente em relações
definidas, q u e são in d ep en d en tes de sua v o n tad e, o u seja, relações de p ro d u ç ã o a d e q u a ­
das a .u m d e te rm in a d o estág io no desenvolvim ento de suas forças m ateriais de p r o d u ­
ção. A to ta lid a d e dessas relações de p ro d u ç ã o co n stitu i a e s tru tu ra econôm ica d a socie­
dad e. a base real, so b re a qu al surge um a su p e re s tru tu ra ju ríd ic a e política e à qual c o r­
respondem fo rm as p recisas de consciência social. O m o d o de p ro d u ç ã o d a s condições de
vida m aterial co n d icio n a o processo geral de vida social, política e intelectual. N ã o ê.a
consciência d o s h om ens q u e lhes d eterm in a a existência, m as su a existência social que
lhes d eterm in a a consciência. N u m a certa fase do desenvolvim ento, as forças m ateriais
164 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

p ro d u tiv a s da so cied ad e e n tra m em conflito com as relações de p ro d u ç ã o existentes o u -


o que sim plesm ente expressa a m esm a coisa em term o s ju ríd ic o s - com as relações de
p ro p rie d a d e d en tro de cuja e s tru tu ra o p e ra ra m até en tã o . D e fo rm as de desenvolvim en­
to d as forças p ro d u tiv a s essas relações se tra n sfo rm a m em suas cadeias. C om eça então
u m a era d e revolução social. A s m odificações na base econôm ica levam , m ais cedo ou
m ais tard e, à tra n sfo rm a ç ã o de to d a a im ensa su p e re stru tu ra ...
(U m a Contribuição, p. 21)
Marx apresenta aqui uma concepção da sociedade com o estruturada
por três partes ou níveis frouxamente definidos, ou seja, “ a base eco­
nôm ica” , “ uma superestrutura jurídica e política” e “ formas precisas
de consciência social” . Vimos, na Parte II, que o Prefácio apresenta a
contradição entre as forças e relações de produção com o o mecanismo
geíal do desenvolvim ento social. N ão obstante, as relações m enciona­
das com o “sobre a qual surge” , “ a que corresponde” , não são defini­
das com rigor e são evidentemente passíveis de uma variedade de inter­
pretações. Ou ainda, a afirmativa de que “ modificações na base eco­
nômica levam, m ais cedo ou m ais tarde", a transformações noutros
pontos sugere que pode de fato haver discrepâncias reais entre a base e
a superestrutura que se deve levantar sobre ela.
Outros trechos bem conhecidos, de O Capital e da Introdução à
Contribuição, são freqüentemente invocados na tentativa de elucidar o
caráter preciso da relação entre a econom ia e outros níveis. Talvez os
dois mais conhecidos sejam a nota no primeiro capítulo, “ M ercado­
rias” , em O Capital, livro 1, e um curto trecho da discussão de Marx
sobre a renda da terra capitalista, em O Capital, livro 3. N a nota,
Marx responde a um crítico que argumenta que, embora possa ocorrer
que “o m odo de produção determina o caráter da vida social, política
e intelectual em geral” na sociedade capitalista, outras áreas de vida
são dominantes em outras sociedades. Marx responde:
É evid en te que a Id ad e M é d ia n ã o p o d ia viver d o catolicism o, nem o m u n d o a n tig o da
p o jítica. Pelo c o n trá rio , sã o as condições eco n ô m icas da ép o ca q u e explicam p o rq u e a
p o lítica aq u i, e o cato licism o ali, desem p en h am o p ap el p rincipal. (O C apital, livro 1, p.
86, n o ta)
Há dois aspectos, no caso. Primeiro, é certo, mas banal, que toda vida
social depende da produção, pois os que não comem não vivem o sufi­
ciente para participar da política ou religião. Mas esse truísmo nada
nos diz sobre com o a estrutura econôm ica da sociedade deve determi­
nar o caráter do resto. Segundo, a segunda frase nos diz que a política
ou a cultura pode ser dominante, isto é, “ desempenhar o papel princi­
pal” num certo m odo de produção, mas que é a econom ia que deter­
mina qual será a dominante. Parece que aqui uma complexa relação
dupla entre os níveis estruturais de um m odo de produção. A econo­
mia é determ inante (“ em última instância” ) no sentido de que determi­
na qual o nível estrutural que será dom inante num determinado m odo
de produção. N o capitalism o, os papéis de dominância e determinação
M A R X I S M O C L Á S S IC O 165

coincidem na econom ia, mas podem ser desempenhados por diferentes


níveis em outros m odos de produção. Com o os níveis político-
jurídico ou cultural podem ser dominantes, parece que não podem ser
reduzidos a simples epifenóm enos da econom ia. M uitos marxistas,
portanto, falam da “autonom ia relativa” dos níveis, afirmando com
isso tanto o primado da econom ia com o a irredutibilidade dos outros
níveis a ela.
O segundo trecho ocorre no capítulo 47, “ A Gênese da Renda da
Terra Capitalista” , em O C apital, livro 3:
É... evid en te que em to d a s as fo rm as nas quais o tra b a lh a d o r d ire to c o n tin u a sendo o
d o n o dos m eios de p ro d u ç ã o e d as condições de tra b a lh o necessárias à p ro d u ç ã o de seus
p ró p rio s m eios d e su b sistên cia, a relação de p ro p rie d a d e deve, sim u ltan eam e n te , surgir
com o u m a relação d ireta e n tre se n h o r e servo, de m o d o q u e o tra b a lh a d o r d ireto n ã o es­
tá livre... N essas co n d içõ es, o tra b a lh o excedente p a ra o d o n o n o m in al d a te rra só p o d e
ser e x to rq u id o [ d o tra b a lh a d o r d ireto ] p o r m eios o u tro s q u e n ã o a p ressão econôm ica,
q u a lq u e r q u e seja a fo rm a q u e to m em ... A ssim , a s condições de dependência pessoal são
um a exigência, u m a falta d e lib erd ad e pessoal, n ã o im p o rta em q u e p ro p o rç õ e s, e um a
ligação com o solo co m o seu acessório, a se rv id ão n o v erd ad eiro sen tid o da p alav ra...
A fo rm a eco n ô m ica específica, na q u al o tra b a lh o excedente n ã o -re m u n e ra d o é
b o m b ead o d o s p ro d u to re s d ireto s, d eterm in a a relação de g o v ern an tes e g o v ern ad o s,
pois esta nasce d iretam en te d a p ró p ria p ro d u ç ã o e, p o r sua vez, age so b re ela co m o um
elem ento d eterm in an te. S o b re isso, p o rém , se fu n d a m e n ta to d a a fo rm açã o da c o m u n i­
d ad e eco n ô m ica que cresce das p ró p ria s relações de p ro d u ç ã o , e p o rta n to , sim u lta n e a ­
m ente, a sua fo rm a p o lítica específica. É sem pre a relação direta dos d o nos das c o n d i­
ções de p ro d u ç ã o com o s p ro d u to re s direto s - u m a relação qu e c o rre sp o n d e sem pre n a ­
tu ralm e n te a u m a fase definida no desenvolvim ento dos m éto d o s de tra b a lh o e com isso
de su a p ro d u tiv id a d e social - qu e revela o segredo m ais ín tim o , a base o cu lta de to d a a
e s tru tu ra social, e com e la a form a p o lítica da relação de so b e ran ia e d ependência, em
sum a, a c o rre sp o n d e n te fo rm a específica d o E stado. (O C apital, vol. 3, p p. 790-1)

O argumento de Marx de que o trabalhador feudal não está, de manei­


ra alguma, separado de seus meios de produção e que, em conseqüên­
cia, as relações de produção têm de tomar urna forma política direta
foi exaustivamente criticado no capítulo 5 de Pre-Capitalist M odes o f
Production. (Os conceitos de “ posse de” , e “ separação de” em relação
a meios de produção são examinados num capítulo posterior.) O que
temos a observar no presente contexto é que a posição de Marx nesse
trecho acrescenta uma nova com plicação à saga já complexa de rela­
ções entre níveis. C om o a forma pela qual o trabalho excedente é ar­
rancado “determina as relações de governantes e governados”? Quan­
do os trabalhadores são separados de seus meios de produção, a extra­
ção do trabalho excedente tom a uma forma econôm ica. D e outro m o­
do, fazem-se necessários “ meios outros que não a pressão econôm i­
ca” , “ condições de dependência pessoal são uma exigência” . Pareceria
que o caráter das relações de produção determina a forma da superes­
trutura político-jurídica, ao determinar que forma precisa de interven­
ção político-jurídica direta na econom ia é necessária para que existam
166 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

essas relações de produção. A econom ia funciona com o “ a base oculta


de toda a estrutura social” assegurando suas próprias condições políti­
co-jurídicas e culturais de existência. N ão obstante, com o Marx nos
diz que “as relações entre governantes e governados... reage sobre [ a
produção] com o um elemento determinante” , as formas superestrutu-
rais não podem ser reduzidas simplesmente a efeitos da economia.
A concepção marxista clássica da estrutura da formação social
tem suas bases textuais nesses trechos e em outras citações famosas
que são invocadas frequentemente com efeito semelhante. As carac­
terísticas básicas da concepção clássica da formação social são:
1. Ela representa uma com binação definida de níveis estruturais
(econôm ico, político-jurídico, ideológico) e de m odos de produção,
que cria um “efeito de sociedade” determinado e característico, isto é,
funciona com o uma unidade social definida e relativamente coerente,
uma “sociedade” , e é relativamente autónom a frente a outros objetos.
2. Os m odos de produção representam subunidades dessa com bi­
nação e contribuem para o “efeito de sociedade” com graus variáveis
de determinação, dependendo de sua posição de domínio ou subordi­
nação.
3. O “efeito de sociedade” da formação social depende da repro­
dução geral de sua hierarquia de determinação dos m odos de produ­
ção e das formas dos níveis que correspondem a essa hierarquia.
4. Se a h ierarq u ia é d e slo c a d a , ê su b stitu íd a então
por uma nova hierarquia com um novo “efeito de sociedade” e surgè
uma nova forma de formação social. Mas essa m odificação de forma
não é uma modificação em todos os elementos da formação social,
m odos subordinados se tornam dominantes, as formas ideológicas e
os aparelhos estatais persistem com diferentes graus de autonom ia re­
lativa. Em que altura essas m odificações de forma envolvem uma m o­
dificação na natureza da formação social é uma questão aberta.
5. Os níveis de um m odo de produção estão ligados por relações
de dom inação e determinação. O nível econôm ico é sempre determi­
nante no sentido de que provoca o aparecimento dos outros níveis e
das conexões entre eles com o condições de sua própria existência. Os
outros níveis são determinados pela econom ia e não obstante são irre­
dutíveis aos seus efeitos, já que podem “ reagir sobre ela” . A contradi­
ção, no caso, está bem representada pela “ autonomia relativa” dos
níveis.
6. O nível econôm ico de um m odo de produção é, em si mesmo,
estruturado por uma com binação definida de relações e forças de pro­
dução. As relações e força? de um m odo de produção correspondem e
sua não-correspondência indica o fim de um modo de produção e o
M A R X I S M O C L Á S S IC O 167

início de outro. A transição de um m odo de produção para outro é efe­


tuada pela luta de classes.
(Certas formas de marxismo clássico rejeitam a noção de forma­
ção social com o uma com binação hierárquica de m odos de produção
em favor da opinião de que ela consiste em um m odo de produção do­
minante, juntamente com elem entos de outros m odos. Uma posição
desse tipo é delineada na Introdução a Pre-Capitalist M odes o f Pro­
duction. Essa diferença tem efeitos teóricos reais, mas nada faz
para evitar os problemas fundamentais da concepção clássica.)
As questões de luta de classes e de transição podem ser deixadas
de lado no m omento. As classes são discutidas na segunda parte deste
capítulo, enquanto a tentativa de teorizar a transição pressupõe clara­
mente uma teorização adequada dos próprios m odos de produção.
Quanto ao resto, é claro que, com todo o seu apoio textual nos clássi­
cos, a concepção clássica de formação social e m odo de produção não
é produto de qualquer demonstração sistemática na teoria marxista. O
Prefácio à Contribuição expõe uma posição, mas não argumenta em
favor dela, e há pouca argumentação nas seções pertinentes da inaca­
bada “ Introdução” de Marx àquele livro. Quanto a O C apital, as fa­
mosas citações relacionadas com a questão da estrutura da formação
social são uma nota em pé de página à discussão sobre a natureza das
mercadorias, numa seção sobre a renda pré-capitalista que é claramen­
te marginal aos principais argumentos teóricos do texto, ou com o
apartes e observações feitas de passagem e dispersas pelo texto.
Essa ausência de argumentação sistemática em relação ao que nos
é freqüentemente apresentado com o sendo parte dos conceitos funda­
mentais da teoria marxista cria um problema sério para os marxistas.
Esse problema não pode ser superado invocando-se o nome de Marx,
e possivelmente também de Engels e Lênin, e voltando-se novamente
ao círculo encantado das citações famosas. Estes capítulos problemati-
zam as concepções clássicas da formação social e do m odo de produ­
ção, e as concepções associadas de classes. Veremos que é necessário
afastar o m odo de produção com o um objeto principal da teorização
no discurso marxista e que a concepção clássica da formação social
deve ser substituída pela concepção da formação social com o a forma
pela qual as condições sociais de existência das relações econôm icas de
classe são proporcionadas.
Há, porém, uma forma influente de defesa da posição clássica,
que devemos examinar rapidamente. Referimo-nos à opinião segundo
a qual, sendo o marxismo uma ciência, os conceitos básicos da teoria
marxista - formação social, modo de produção, etc. - devem ser
científicos. Talvez a forma mais recente dessa posição e, dentro de seus
limites, a mais rigorosa tenha sido apresentada por Althusser e seus
168 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

companheiros, notadamente em Pour M arx e Lire “L e C a p ita r'.


Althusser apresenta uma teoria das formas diferenciais de discurso
teórico, as ciências e as ideologias teóricas, e de sua produção. À luz
dessa teoria, ele propõe princípios de leitura que servem para identifi­
car não só o caráter científico ou ideológico de um discurso mas tam­
bém os seus conceitos básicos.
Já foi mostrado (Hindess, Philosophy and M ethodology in the So­
cial Sciences) que a teoria de Althusser das formas diferenciais do dis­
curso teórico não se pode manter e, mais, que a demarcação althusse-
riana da ciência e da ideologia teórica é dogmática sob dois aspectos
cruciais. Primeiro, a identificação de um discurso com o científico ou
ideológico é produto de uma leitura teleológica na qual uma conclusão
conhecida antecipadamente, digamos, que 0 marxismo é científico e a
Economia Política ou a Sociologia são ideológicos, determina o m odo
pelo qual o discurso é abordado. Segundo, com referência ao discurso
em O Capital, Althusser estabelece uma demarcação entre os conceitos
que são parte da problemática de Marx e portanto científicos e os que
lhe são estranhos. Mas essa demarcação se processa mostrando que
certos conceitos não são coerentes com os conceitos já conhecidos
com o pertencentes à problemática científica. Isto é, trata-se de uma
demarcação que depende de uma identificação a priori de certos con­
ceitos como científicos.
Tais argumentos não precisam ser desenvolvidos aqui. Mas talvez
seja necessário insistir em que os problemas do dogmatismo não são
peculiares à posição de Althusser. Sao endêmicos a todas as tentativas
de demarcação entre discursos ou conjuntos de conceitos que são
científicos e os que não são, à base de critérios epistem ológicos gerais.
Se tais critérios são, em si mesmos, derivados de alguma versão do ma­
terialismo dialético, ou de filosofias não-marxistas, empiristas ou ra­
cionalistas, não faz diferença a esse respeito. Os critérios epistemológi­
cos de cientificidade ou validade de formas do discurso só se podem
justificar por referência a algum outro grupo de critérios, ou a si
mesmos. N o fim,1 todas as epistemologias dependem da invocação de
certas formas determinadas de discurso com o sendo epistemológica­
mente privilegiadas, no sentido de que não podem, por si mesmas, es­
tar sujeitas à investigação epistemológica, mas devem ser aceitas como
dados. Esse argumento e suas implicações para a análise dos discursos
teóricos, e da teoria marxista em particular, serão desenvolvidos no
capítulo seguinte. N o momento, basta observar que os conceitos clás­
sicos de formação social e modo de produção não podem ser salvos in­
vocando-se o nome da ciência em sua defesa.
Finalmente, se deixarmos de lado no momento as questões de luta
de classes e transição, há dois conjuntos de questões que devem ser
M A R X I S M O C L Á S S IC O 169

formuladas com relação às concepções clássicas acima delineadas. Pri­


meiro, postulam conexões definidas entre objetos que são, em si mes­
mos, concebidos com o independentes de alguma maneira. Por exem­
plo, um m odo de produção é concebido com o constituído de três
níveis distintos, mutuamente irredutíveis, mas não obstante um nível
determina o caráter e a interligação dos outros. N o caso, relações de
necessidade são postuladas entre objetos considerados com o distintos
e irredutíveis. Devem os portanto levantar a questão do m odo de liga­
ção que pode existir entre os objetos distintos especificados no discur­
so marxista. Segundo, há questões substantivas a serem formuladas
com relação ao caráter dos objetos postulados nas concepções clássi­
cas. Um m odo de produção consiste em um nível econômico, um nível
político-jurídico e um nível cultural (ou ideológico); o nível econôm ico
consiste em relações de produção e forças produtivas numa combina­
ção definida, e assim por diante. Será necessário problematizar o cará­
ter substantivo dos objetos postulados no marxismo clássico. Em par­
ticular, examinaremos primeiro se é necessário, ou possível, conceber
forças e relações político-jurídicas ou formas culturais com o organiza­
das em níveis distintos e, em certo sentido, em níveis estruturais unitá­
rios, e, segundo, a pertinência da teorização dos m odos de produção
com o unidades distintas e substantivas.
Embora não sejam totalmente independentes, esses conjuntos de
questões são, porém, distintos e irredutíveis. Os tipos de conexões que
podem predominar entre objetos que são especificados com o distintos
não nos dizem nada sobre as características substantivas dos próprios
objetos - exceto, por exemplo, no caso de objetos com o modo de pro­
dução ou formação social, que são em si mesmos especificados com o
uma interligação de objetos distintos. A primeira série de questões é
examinada no capítulo seguinte, onde se mostra que os tipos de liga­
ção entre objetos postulados nas concepções clássicas, dom inação, de­
terminação em última instância, etc., dependem de uma concepção
epistemológica definida da relação entre o discurso e os objetos do dis­
curso. Tal capítulo delineia os efeitos de uma rejeição sistemática da
epistemología para a conceituação de ligações entre objetos especifica­
das no discurso e argumenta que essas ligações devem ser concebidas
em termos das condições de existência dos objetos especificados. A se­
gunda série substantiva de questões ocupa o restante deste texto.

Classes
Três séries básicas de questões relacionadas com conceituações mar­
xistas de classes serão examinadas neste texto. Primeiro, tem os as
questões surgidas das relações entre as conceituações das classes, de
170 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

um lado, e da estrutura da formação social, do outro. A segunda série


de questões relaciona-se com a definição das relações econôm icas de
classes, frente aos meios de produção e, em particular, o conceito de
“ posse” e “separação” dos meios de produção, a natureza dos agentes
possuidores e as dificuldades oriundas do fato de que o marxismo não
deu maior atenção à posse dos meios de produção por agentes outros
que não os seres humanos, por sociedades anônimas, por exemplo. Fi­
nalmente, há as questões das ligações entre relações econôm icas de
classes, de um lado, e a divisão técnica do trabalho no nível da unidade
de produção e a divisão do trabalho social ao nível da formação social,
do outro lado. A presente discussão relaciona-se com a primeira área
de questões. A segunda e terceira áreas serão examinadas nos capítu­
los subseqüentes.
A concepção marxista clássica da estrutura da formação social
gera uma ambigüidade básica com relação à conceituação de classes.
De um lado, as classes são definidas primordialmente com o uma fun­
ção de posições opostas especificadas em determinadas relações de
produção: burguesia e proletariado, senhor e servo, dono e escravo,
etc. Quando as relações de produção não especificam posições opostas
não há classes e portanto, de acordo com os clássicos, não há também
Estado e política. Segue-se que “ a existência de classes está ligada ape­
nas a determinadas fa se s históricas no desenvolvimento da produção”
(Marx a Weydemeyer, 5 de março de 1852). D o outro lado, as classes
são concebidas com o forças sociais, com o participantes de uma luta
que toma formas política e ideológica. N esse sentido as classes são, ou
são “ representadas por” , forças políticas e formas ideológicas. A difi­
culdade, no caso, surge dos problemas de se reconciliar uma concep­
ção de classes com o categorias de agentes econôm icos e com o forças
políticas e formas ideológicas com uma concepção não-reducionista
da autonom ia (ou autonom ia relativa) da política, direito e cultura em
relação à economia.
Para ilustrar a dificuldade, examinemos dois trechos de uma das
mais conhecidas análises políticas de Marx, O Dezoito de Brumário de
Luís Bonaparte. O primeiro relaciona-se com o que Marx chama de “ a
facção republicana da burguesia” :
S o b à m o n a rq u ia burg u esa de Luís F ilipe, ela havia fo rm a d o a oposição re p u b lic a n a ofi­
cial e, co n seq ü en tem en te, era um co m p o n en te reconhecido do m u n d o político da ép o ­
ca... Seu c a rá te r c o rre sp o n d ia a essa posição sob a m o n a rq u ia co n stitu cio n al. Não era
umafacção da burguesia unida porgrandes interesses comuns emarcadapor condições es­
pecíficas deprodução (grifo nosso). E ra um g ru p o de burgueses de m en talid ad e re p u b li­
can a, escritores, a d v o g ad o s, oficiais e fu n cio n ário s que devia su a influência às a n tip a tía s
p essoais d o p aís c o n tra L uís F ilipe, às lem b ra n ç a s da velha república, à fé rep u b lican a
de m u ito s en tu siastas e acim a de tu d o , porém , ao nacionalismofrancês, cujo ó d io aos
tra ta d o s de V iena e à alian ça com a In g laterra esse g ru p o estim ulava co n stan tem en te.
(M arx e Engels, Selected Works, p. 105)
M A R X I S M O C L Á S S IC O 171

Os pontos a serem observados aqui são, primeiro, que uma facção


política é, explicitamente, não definida com referência às condições
econôm icas e, segundo, que os fatores apresentados com o explicação
da força da facção republicana são evidentemente não-econôm icos.
Parece, então, que Marx reconhece a existência de forças políticas e
um campo de conflito político que não é imediatamente redutível aos
efeitos das relações econôm icas. M as consideremos agora seus com en­
tários sobre as duas facções monarquistas:
o que m an tev e se p a ra d a s as d u as facções n ã o foram os ch am ad o s princípios, foram suas
con d içõ es m ateriais d e existência, dois tip o s diferentes de p ro p rie d a d e , foi o velho co n ­
tra ste entre cid ad e e cam p o , a rivalidade en tre o cap ital e a p ro p rie d a d e ag rária. Q ue ao
m esm o tem p o velhas lem b ran ças... convicções, artig o s de fé e p rin cíp io s as ligavam a
u m a ou a o u tra casa real, quem pode negar? S obre as diferentes form as de p ro p rie d a ­
des, so b re as co n d içõ es sociais de existência, levanta-se to d a u m a su p e re stru tu ra de sen­
tim en to s d istin to s e fo rm ad o s de m odo peculiar, ilusões, m o d o s de p en sam en to e visões
da vida. A classe in teira as cria e fo rm a a p a rtir de suas bases m ateriais e das c o rre sp o n ­
d en tes relações sociais. (I b i d pp. 118-19)

A contradição entre as posições apresentadas nesses trechos é clara. Se


as forças políticas não são redutíveis aos efeitos da estrutura da econo­
mia, então “dois tipos diferentes de propriedade” não podem explicar
o que manteve separadas as duas facções monarquistas. Alternativa­
mente, se as forças políticas são redutíveis aos efeitos de diferentes for­
mas de propriedade, então Marx não deveria tratar a facção republica­
na com o uma força política distinta e real. Se as forças políticas e as
formas culturais são, em última análise, redutíveis a efeitos de interes­
ses de classe definidos no nível da econom ia, então nada resta da irre-
dutibilidade da política e da cultura às condições econômicas. Se, por
outro lado, a política e a cultura são irredutíveis, então a conexão en­
tre classes concebidas com o categorias de agentes econôm icos, e clas­
ses, ou suas representações, concebidas com o forças políticas ou for­
mas culturais, deve ser extremamente problemática.
A dificuldade, no caso, é endêmica à teoria marxista de classes e
de relações de classes. A irredutibilidade da política é amplamente re­
conhecida na prática nos clássicos da análise marxista das condições
da prática política concreta. Em O Programa Agrário da Social-
Democracia na Primeira Revolução Russa, por exemplo, Lênin insiste
em que o equilíbrio de forças políticas não pode ser deduzido da estru­
tura das relações econôm icas. Mas o problema não é de saber se deve­
mos ou não reconhecer a irredutibilidade da política e cultura. Ao
contrário, diz respeito às conseqüências que esse reconhecimento tem
para a conceituação das classes em relação à estrutura da formação so­
cial. O que constitui a unidade das classes com o categorias de agente
econôm ico e com o forças políticas e formas culturais? Quais são os
mecanismos que articulam as representações político-jurídicas e cul-
172 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

turáis (ou ideológicas) de classes e interesses de classes com as classes


econômicas representadas? Se as forças político-jurídicas e as formas
culturais são concebidas como simples expressões da econom ia, não
há certamente nenhum problema: as divisões num nível simplesmente
reaparecem em outros pontos. Mas se política, direito e cultura não
são redutíveis a expressões de condições econômicas, se são autôno­
mos, mesmo “ relativamente” , então a unidade das classes definidas
econômica, política ou culturalmente deve ser problemática.
Vários m odos distintos de tentar conceituar a unidade de classes,
nesse sentido, podem ser identificados na história da teoria marxista,
mas para os objetivos de uma exposição sistemática é suficiente identi­
ficar três ou quatro tipos básicos. D ois deles teníam estabelecer a uni?
dade de classes em termos de uma confrontação entre a determinação
objetiva de posição de classe, de um lado, e a unidade subjetiva de uma
consciência, do outro: ou a unidade de uma classe com o a unidade in­
tersubjetiva de sujeitos humanos individuais com posições de classe se­
melhantes ou a unidade dos membros de uma classe agindo com o
agentes econôm icos, político-jurídicos e cultural-ideológicos - isto é,
Weber e a Sociologia, ou Lukács. Nessas posições, as classes são con­
cebidas em termos da determinação objetiva da posição econômica, de
um lado, e a vontade e consciência de uma agência subjetiva do outro
lado. A autonomia relativa da política e cultura consiste, então, na
possibilidade, se não na necessidade, de um reconhecimento imperfei­
to, pelo sujeito, de sua posição de classe e de seus verdadeiros interes­
ses de classe. N o caso, a contraposição da vontade e da consciência
“subjetivas” à posição de classe “objetiva” assegura que a unidade de
uma classe deve ser concebida com o essencialmente problemática. Se
formas de consciência não podem ser reduzidas aos efeitos da posição
“ objetiva” de classe, então a formação da unidade de classe não pode
ser necessária na estrutura objetiva das relações sociais. O terceiro tipo
subordina a conceituação de classe à concepção clássica da estrutura
da formação social com o uma unidade essencial de três níveis, organi­
zada segundo às relações de dominação, de um lado, e da “ determina­
ção em última instância” , do outro. Nesse caso, a economia tem um
duplo papel - primeiro, na determinação da estrutura do todo, e, se­
gundo, como um nível representado na estrutura do todo. As classes
podem então ser concebidas com o efeitos da estrutura do todo en­
quanto o primado da economia, em sua determinação, decorre como
conseqüência de seu duplo papel nessa estrutura: as classes são repre­
sentadas na econom ia e também nos outros níveis como um efeito do
papel de matriz da economia. O mais rigoroso e sistemático desenvol­
vimento dessa concepção de “causalidade estrutural” pode ser encon­
trado nas obras de Althusser e seus colaboradores. Uma posição cor­
relata, mas na verdade muito diferente, é desenvolvida especificamente
M A R X I S M O C L Á S S IC O 173

com referência à conceituação de classes na obra de Poulantzas. Vere­


mos que Poulantzas simplesmente acrescenta um toque “ althusseria-
no” à contraposição sociológica e lukacsiana de sujeito e estrutura.
Apesar de todas as diferenças consideráveis entre eles, esses m o­
dos de conceituação de classes podem todos reivindicar uma base de
texto substancial nos escritos de Marx: quer nos trechos habitualmen­
te citados em apoio à concepção marxista clássica da estrutura da for­
mação social, quer no M anifesto Comunista, O Dezoito de Brumário de
Luís Bonaparte e outros dos escritos de Marx de caráter mais clara­
mente político. O breve exame que a seguir fazemos dessas posições vi­
sa, primeiro, examinar suas conseqüências teóricas e políticas e, segun­
do, indicar por que não conseguem êxito.

Classe como unidade intersubjetiva

O primeiro tipo de conceituação de classe, tanto com o categoria de


agentes econôm icos quanto com o agência política ou cultural, perten­
ce à Sociologia weberiana de esquerda, e não propriamente ao mar­
xismo. N ão obstante, com o pode pretender certo apoio textual rias
obras de Marx, essa posição merece pelo menos um rápido exame nes­
ta discussão. Os trechos mais significativos, desse ponto de vista, são
as partes do M anifesto Comunista, O D ezoito Brumário e outros escri­
tos políticos, que parecem contrapor a posição econômica de classe,
por um lado, à consciência de classe com o uma condição da ação polí­
tica de classe, por outro.
O M anifesto, por exemplo, descreve as várias etapas de desenvol­
vimento que atravessa o proletariado, e que vão desde a luta dos tra­
balhadores individuais ou dos trabalhadores de uma fábrica contra
seu empregador, num extremo, até a organização da luta com cons­
ciência de classe, com base na unidade política da classe, seja nacional
ou mesmo internacional. Num extremo, a classe existe simplesmente
como uma categoria de indivíduos organizados, na melhor das hipóte­
ses, numa multiplicidade de grupos locais. Nessa fase, a classe não se
organiza para si própria em busca de seus próprios interesses. Se chega
a unir-se, “ isso ainda não é uma conseqüência de sua própria união
ativa, mas da união da burguesia, que, para atingir seus próprios obje­
tivos políticos, é obrigada a colocar todo o proletariado em movimen­
to, sendo, além do mais, capaz de fazê-lo durante algum tem po”
(Marx e Engels, Selected W orks, p. 42). Mas o desenvolvimento da in­
dústria capitalista leva ao crescimento das proporções do proletaria­
do, à sua concentração em determinadas fábricas e localidades e à me­
lhoria dos meios de comunicação, que permitem o crescimento do
contato entre os trabalhadores em diferentes localidades. Esses fatores
174 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

juntos, acima de tudo, com sua própria experiência de luta, resultam


na integração dos trabalhadores numa classe. Vez por outra, os traba­
lhadores são vitoriosos, mas som ente durante algum tempo. O verda­
deiro fru to de suas batalhas está não no resultado imediato, m as na cres­
cente união dos trabalhadores" (Ibid. p. 43, grifo nosso). O M anifesto
acrescenta que esse desenvolvim ento da “ organização dos proletários
numa classe, e em conseqüência num partido político, é continuamen­
te perturbado pela com petição entre os próprios trabalhadores” .
Como segundo exemplo consideremos a posição diferente do
campesinato francês, descrita em O D ezoito Brumário:

O s cam poneses p equenos p ro p rie tá rio s form am u m a v asta m assa, cujos m em bros vivem
em condições sem elhantes, m as sem entrarem em relações m últiplas uns com os outros. Seu
m odo de produção os isola uns dos outros, em lugar de colocá-los em c o n ta to . O isolam en­
to é intensificado pelos m au s m eios de com unicações da F ra n ç a e pela p o b reza d o s cam ­
p oneses... N a m edida em q u e h á ap en as um a in terlig ação local en tre esses cam poneses
p eq u en o s p ro p rie tá rio s e a id en tid ad e de seus interesses n ão cria um a c o m u n id ad e, um
laço nacio n al e um a o rg an ização p o lítica en tre eles, não fo rm a m eles um a classe. São,
co n seq ü en tem en te, incapazes de fazer vig o rar seus interesses de classe em seu p ró p rio
n o m e, q u er atrav és do p a rla m e n to , q u er atrav és de u m a convenção. N ã o podem rep re­
se n tar a si m esm os, devem ser representados. (Ibid., p. 171)

O único ponto interessante nesse trecho é seu contraste com a descri­


ção do proletariado feita no M anifesto. O lugar do proletariado na or­
ganização capitalista da produção e a melhoria dos meios de com uni­
cação facilitam o desenvolvimento da organização política de classe.
A organização da produção do camponês pequeno proprietário e a
precariedade dos meios de comunicação a inibem.
É fácil ver com o esses trechos, e outros que poderiam ser citados
com o mesmo objetivo, podem constituir a base para uma concepção
de classes com o, prim eiro, uma categoria de indivíduos situados da
mesma maneira e, segundo, em condições adequadas, como uma agên­
cia cultural e política. Uma classe em si é definida por uma posição na
organização da produção, posição que pode ser ocupada por uma
massa de indivíduos distintos. Mas essa classe só se torna uma classe
para si em função da intensificação, da parte desses indivíduos e mais
tarde de grupos, da consciência da existência de uma comunidade de
interesse entre eles. O aumento da consciência é facilitado por algu­
mas condições sociais e pela experiência de ação em comum, sendo ini­
bido por outras condições sociais. A unidade de uma classe, tanto
com o uma categoria de agentes económ icos quanto com o uma agência
política e cultural, é, portanto, conceituada, primeiro, em termos da
vontade e consciência de sujeitos humanos individuais, e, segundo, em
termos das condições sociais que levam a uma unidade intersubjetiva
com o base da ação comunal.
M A R X I S M O C L Á S S IC O 175

A afinidade entre essa concepção e a Sociologia weberiana é evi­


dente. Elas partilham de uma ênfase comum no primado da vontade e
consciência do agente individual com o o princípio explicativo básico e
ambas tratam a situação de classe, definida de m odos bastante diferen­
tes, com o proporcionando uma possível base de ação comunal. A s ob-
jeções de princípio a qualquer concepção do primado da vontade e da
consciência do sujeito humano são bem conhecidas e não é necessário
repeti-las aqui. O marxismo clássico sempre rejeitou qualquer concei-
tuação explícita em termos subjetivistas. Mas, além dos problemas
gerais da teoria subjetivista, a tentativa de conceituar a unidade de
classes em termos quase weberianos enfrenta outras dificuldades sérias
- algumas das quais ela partilha com a concepção lukacsiana de clas­
ses.
Primeiro, tratar a ação de classe com o uma forma de ação com u­
nal, isto é, com o baseada no reconhecimento de interesses com uns por
uma massa de pessoas, é admitir que pode haver outras formas de
ação comunal fora da classe. N ã o há nada na concentração dos traba­
lhadores em fábricas e grandes centros populacionais em si, ou na me­
lhoria dos meios de com unicação, que assegure que seus interesses
com o classe serão reconhecidos e formarão a base de uma ação com u­
nal. A experiência comum da luta coletiva é igualmente problemática
sob esse aspecto, já que pressupõe o que tem de ser estabelecido, isto é,
que são os interesses de classe que formam a base da ação coletiva. O
problema, no caso, é que quando se considera que o reconhecimento
dos interesses comuns por parte dos indivíduos desempenha um papel
decisivo na ação de classe, então, com o Weber afirma com razão, não
há m otivo para que outros “interesses com uns” , nacionalidade, crença
religiosa, “ raça” , etc., também não tenham um papel igualmente deci­
sivo nas formas não de classe de ação comunal. Conceber a classe
com o uma forma de ação comunal, portanto, é concebê-la com o uma
das muitas formas possíveis de ação comunal. A ação de classe não
pode, portanto, ser explicada por referência aos interesses de classe, já
que alguma outra explicação é necessária quanto à razão pela qual es­
ses interesses, e não outros, constituem a base da ação comunal. Sem
alguma outra explicação do primado dos interesses de classe sobre to­
dos os outros, essa concepção deixa implícito que a política e a cultura
não podem ser reduzidas às expressões de interesses formados no nível
da econom ia. Aceitar a concepção de classes com o agentes comunais
é, portanto, rejeitar a concepção marxista clássica da formação social.
Mas há outra dificuldade séria com essa versão da teoria marxista
de classes. Com efeito, o proletariado é conceituado em termos de uma
situação de classe objetiva, por um lado, e com o um processo teleoló-
gico de formação numa classe “ para si", pelo outro. Conceber dessa
forma o proletariado, com o evoluindo necessariamente para uma cias­
176 CL A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C I A L

se “ para si” plenamente consciente, é admitir que a política e a cultura


não podem ser reduzidas a classes. Essa concepção define uma direção
na qual a política da classe operária deve supostamente evoluir, ou se­
ja, no sentido de uma prática política baseada na tentativa autocons-
ciente de realizar os interesses objetivos dados pela sua posição de
classe. Em qualquer m om ento, portanto, enquanto a evolução perma­
necer incompleta, a política da classe operária deve conter elementos
que não podem ser explicados pela posição de classe. Assim, a política
é redutível a interesses de classe no caso de uma prática política plena­
m ente consciente de ciasse, sendo irredutível aos interesses de classe
em todos os outros casos. Essa concepção, portanto, afirma a existên­
cia de formas de política fora da classe e ainda assim não proporciona
meios teóricos de conceituá-las, a não ser nos termos de sua diferença
daquilo que seria uma política consciente de classe. As formas políti­
cas devem, portanto, ser concebidas, não segundo suas condições es­
pecíficas de existência e sua efetividade com relação aos outros ele­
mentos da formação social, mas apenas de acordo com as proporções
de seu desvio de um estado de coisas diferente e idealizado. Essa con­
cepção poderia parecer, no máximo, legitimar um modo de prática
política culturalista e propagandista, concebido essencialmente como
uma forma de elevar a consciência, mas nada tem a oferecer em rela­
ção à análise das forças políticas e seus efeitos em formações sociais es­
pecíficas.

Lukács: o conceito de sujeito de classe


Em H istória e Consciência de Classe, Lukács desenvolve uma concep­
ção complexa e requintada de .classes e da história que combina uma
posição epistemológica e ontológica clara com a tradicional concep­
ção marxista do papel da luta dê classes na história e da significação
da consciência de classe nessa luta. Em comum com as filosofias ale­
mãs neokantianas da história, Lukács mantém uma distinção radical
entre o campo da história e o das Ciências Naturais em termos de uma
diferença na natuíeza de seus objetos e, em conseqüência, na forma de
investigação adequada desses objetos. Enquanto o campo da investi­
gação científica natural é governado por uma causalidade externa e
mecânica, o campo da história é constituído por atos de consciência.
Lukács diverge da maioria das posições neokantianas em sua concep­
ção do ponto decisivo de referência para a investigação histórica. N ão
é a vontade e a consciência do indivíduo humano que é crucial, nem é
crucial o papel de um determinado espírito ou cultura na constituição
de.um modo característico de vida. Para Lukács, o ponto de referência
decisivo para a investigação histórica é a vontade e a consciência de
classe.
M A R X I S M O C L Á S S IC O 177

Essa ênfase na consciência de classe é significativa por dois m oti­


vos. Primeiro, proporciona o ponto de integração de uma concepção
neokantiana da história com o constituída de atos de consciência, por
um lado, e das concepções de luta de classes desenvolvidas nos escritos
políticos de Marx e Engels, pelo outro. Segundo, parece oferecer uma
solução a um dos problemas mais fundamentais enfrentados por qual­
quer concepção neokantiana da história. Se a história é concebida
como constituída de atos de consciência, então a separação da cons­
ciência do investigador dos atos que constituem $eu objeto de investi-
gaçãb cria um problema radical de conhecimento. Para a filosofia neo­
kantiana, o problema do conhecimento histórico é um problema da in­
terpretação dos significados expressos por objetos culturais, por arte­
fatos e escritos de vários tipos e por instituições sociais e formas de
vida social. Gom o o objeto cultural é distinto do significado expresso
nele, parece haver um problema insuperável de adequação. Com o es­
tabelecer o conhecim ento adequado de qualquer objeto cultural?
Lukács encontra a resposta a esse problema na posição do prole­
tariado. Primeiro, com o a luta de classes é o motor da história, segue-
se que a consciência de uma classe oferece pelo m enos a potencialidade
de superar a distância entre o sujeito e o objeto. Segundo, a posição do
proletariado é especialmente privilegiada pelo fato de sua ascensão ao
poder realizar a abolição total de classes. Assim, o proletariado pode
surgir com o o sujeito-objeto idêntico da história, já que seu próprio
autoconhecimento e seu conhecim ento da sociedade não são limitados
pela efetividade de outros sujeitos de classe:
O au to -en ten d im en to d o p ro le ta ria d o é, p o rta n to , sim u ltan eam e n te o en ten d im en to o b ­
jetiv o d a n a tu re z a d a sociedade. Q u a n d o a p ro le ta ria d o p ro m o v e seus p ró p rio s objeti­
vos de classe, atin g e sim u ltan eam e n te a realização consciente dos fins - objetivos - da
sociedade, fins que in evitavelm ente perm aneceriam com o possibilidades a b stra ta s e
fro n teiras o b jetivas, sem a su a intervenção consciente. (H isto ry and Class Consciousness,
p. 149)

A história é a história dos efeitos das consciências de classes e culmina


no crescimento da autoconsciência do proletariado, que efetua simul­
taneamente a abolição de classes e o verdadeiro autoconhecim ento da
sociedade. Para a história, a relação entre sujeito e objeto não é uma
relação mecânica externa. Ê uma relação entre e dentro da consciência
e os produtos da consciência ^ e é por essa razão que se considera que
a história exige um método de investigação distinto do método das
Ciências Naturais: “ Pois na dialética da sociedede o sujeito está in­
cluído na relação recíproca na qual a teoria e a prática se tornam dialé­
ticas com referência uma à outra” (Ibid ., p. 207). Lukács insiste, por­
tanto, em que a essência do marxismo está não nesta ou naquela pro­
posição substantiva, mas no próprio método dialético. Um marxista
ortodoxo poderia “ rejeitar todas as teses de Marx in toto - sem ter de
178 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SO CIA L

renunciar a sua ortodoxia por um único m om ento” (Ibid., p. 1).


N ão é este o lugar para desenvolvermos uma crítica sistemática da
posição de Lukács. Os problemas internos e a incoerência das filoso­
fias idealistas da história não podem ser superados pela sua tentativa
de casar um idealismo manifesto com várias teses marxistas sobre o
papel da luta de classes na história. A redução de Lukács do marxismo
ao método dialético é incorreta, já que sua “solução” do problema do
conhecim ento histórico depende crucialmente de várias teses específi­
cas de Marx sobre o papel da luta de classes na história e, em particu­
lar, do papel do proletariado na abolição das classes. Em sua análise
de H istória e Consciência de Classe (Revai, 1971), Revai mostrou que a
solução de Lukács para o problema neokantiano do conhecimento
histórico não pode ser sustentada e Althusser ofereceu uma crítica efe­
tiva da tentativa de redução da história às ações de sujeitos de classe
(ou individuais). Os principais problemas e deficiências dessa posição
em H istória e Consciência de Classe não são superados pelas m odifica­
ções resumidas em seu Prefácio à edição de 1967.
O importante para a presente discussão, porém, é que Lukács ofe­
receu uma das elaborações mais requintadas da concepção marxista
clássica da unidade de classe com o sendo uma categoria de agente eco­
nômico e, ao mesmo tempo, uma agência política e cultural. É esse as­
pecto de sua teoria que deve ser examinado aqui. Duas características
de sua conceituação das classes são particularmente significativas. Pri­
meiro, Lukács toma um tema que se repete de tempos em tempos nos
escritos políticos de Marx e se baseia numa determinada formulação
da relação entre a base e a superestrutura. Por exemplo, na discussão
das facções monarquistas da burguesia francesa, citada acima, de O
Dezoito Brumário, lemos o seguinte:
S o b re as d iferentes fo rm as de p ro p ried ad e , sobre as condições sociais de existência, le­
van ta-se to d a u m a su p e re s tru tu ra de sentim entos, ilusões, m o d o s de p en sam en to e vi­
sões d o m u n d o d istin to s e fo rm a d o s de m o d o peculiar. A classe inteira os cria e fo rm a a
p a rtir de suas bases m ateriais e das correspondentes relações sociais. (M arx e E ngels, Se-
lected W o rks, p p . 118-9; grifo nosso).
Parece, no caso, que não são as formas de propriedade com o tal que
criam a superestrutura, e sim a classe e sua consciência. Ê isso, e não a
forma mecanicista do argumento base-superestrutura, que Lukács de­
senvolve:
o p en sam en to e a existência n ã o são idênticos no se n tid o de que “ c o rre sp o n d e m ” um ao
o u tro , o u “ refletem ” um o o u tro , ou qu e “ correm p aralelo s” um ao o u tro ou “ coinci­
d em ” um com o o u tro (expressões que ocultam um a d u a lid a d e rígida). S ua id en tid ad e é
q u e são asp ecto s de um m esm o e único processo real h istó rico e dialético. (H isto ry and
Class Consciousness, p. 204)

Por um lado, as formas superestruturais expressam a consciência e os


interesses de uma classe na medida em que essa classe pode realizar e
M A R X I S M O C L Á S S IC O 179

manter sua hegemonia sobre a sociedade. Por outro lado, a posição da


classe na sociedade, suas condições sociais de existência, limita as for­
mas de consciência possíveis por parte dessa classe. Vimos, por exem­
plo, que o proletariado deve ser a única classe cujas condições sociais
de existência tornam possível o verdadeiro autoconhecim ento. Tom a­
dos em conjunto, esses dois aspectos proporcionam a Lukács os seus
princípios básicos de análise e interpretação histórica. Os objetos cul­
turais devem ser interpretados com o expressões mais ou menos ade­
quadas da consciência e interesses de uma classe e também com o ex­
pressões das limitações necessárias dessa consciência. Lukács trata,
portanto, as principais instituições sociais da sociedade capitalista,
suas formas de G overno e administração, suas burocracias impessoais
que enfatizam o cálculo racional e a eficiência técnica, e assim por dian-r
te, com o expressões de um m odo de consciência característico das con­
dições sociais de existência da burguesia com o classe. D a mesma for­
ma, em “ Reificação e a Consciência do Proletariado”, ele atribui as an­
tinomias e contradições específicas da filosofia crítica moderna, isto é,
kantiana e pós-kantiana, ao m odo de pensamento reificado específico
às condições sociais da sociedade burguesa.
Segundo, Lukács insiste na “ distância que separa a consciência de
classe das idéias dadas empiricamente, e das idéias psicologicamente
descritíveis e explicáveis que os homens formam sobre sua situação na
vida” (i b i d p. 51): Quando as idéias dadas empiricamente constituem
“ apenas o m aterial da análise histórica autêntica” , a consciência de
classe deve ser considerada com o uma função da posição de classe:
R e la cio n an d o a co n sciên cia com a to ta lid a d e da so cied ad e to rn a-se possível inferir os
p en sam en to s e sen tim en to s q u e os h o m en s teriam n u m a d eterm in ad a situ aç ão se fossem
capazes de av aliar ta n to esta co m o os interesses p o r ela p ro v o cad o s, no seu im pacto
so b re a ação im ed iata e so b re a e stru tu ra to ta l d a sociedade. Isto é, seria possível inferir
os p en sam en to s e sen tim en to s ad eq u a d o s à su a situ aç ão objetiva. O n ú m ero de tais si­
tu açõ es n ão é ilim itad o em n en h u m a sociedade... h a v erá sem p re vários tip o s básicos cla­
ram en te d istin to s cujas características são determ in ad as' pelos tip o s de posição d isp o n í­
veis no pro cesso de p ro d u ç ã o . (Ibid.)

Há vários m otivos para essa discrepância na teoria de Lukács entre a


consciência de classe imputada e os interesses de classe objetivos, de
um lado, e as consciências empíricas dos membros da classe, de outro
lado. A consciência de classe do proletariado não é um reflexo simples
ou automático de sua posição de classe. Enquanto, para Lukács, o
proletariado é “ o primeiro sujeito na história (objetivamente) capaz de
uma consciência social adequada” (ibid., p. 199), essa consciência só se
pode formar num processo dialético de evolução. Os m om entos desse
processo podem representar apenas expressões parciais e inadequadas
da consciência de classe imputada:
Essas g rad açõ es são en tã o , p o r um lado, necessidades histó ricas objetivas, n u an ças nas
180 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SO CIA L

p o ssibilidades ob jetivas de consciência (tal é a co esão relativa d a P olítica e E co n o m ia


em co m p aração com q u estõ es culturais). P o r o u tro lad o , q u a n d o a consciência já existe
co m o u m a po ssib ilidade o b jetiv a, elas indicam g rau s de distân cia en tre a consciência
psicológica de çlasse e o en ten d im en to ad eq u a d o d a situ aç ão to tal. E ssas grad açõ es, p o ­
rém , já n ão p o d em ser a trib u íd a s a causas sócio-econôm icas. A teoria objetiva da cons­
ciência de classe é a teoria de sua possibilidade objetiva. (Ibid., p. 79)

As últimas frases dão um novo m otivo para discrepância entre a cons­


ciência empírica e a imputada. Seguindo a sua rejeição da concepção
mecanicista da relação entre base e superestrutura, Lukács insiste em
que o desenvolvimento da consciência de classe não pode ser exigido
pela posição de classe. O “ ponto de vista do proletariado” pode ser
dado pela sua posição de classe, mas não há nada na posição de classe
com o tal que assegure a sua adoção pelos membros da classe. Assim,
embora “ somente a consciência de classe prática do proletariado” dis­
ponha da capacidade de transformar a sociedade burguesa e com isso
eliminar as estruturas reificadas de existência,

deve-se ressaltar que a e s tru tu ra só p o d e ser p e rtu rb a d a se as con trad içõ es im anentes do
processo se to rn arem conscientes. S om ente q u a n d o a consciência do p ro letariad o pode
m o stra r a estrad a ao longo d a qual a dialética d a h istó ria é im pelida o bjetivam ente, mas
que não pode percorrer sem ajuda, a consciência do p ro le ta ria d o d esp ertará p ara um a
co nsciência do processo, e so m e n te e n tã o o p ro le ta ria d o se to rn a rá o sujeito-objeto
idên tico da h istó ria, cuja p raxis m o d ificará a realidade. S e o proletariado não der esse
passo, as contradições continuarão sem solução e serão reproduzidas pela m ecânica dialéti­
ca da história em nível superior, de uma fo rm a alterada e com m aior intensidade. Ê nisso
que con siste a necessidade objetiva d a h istó ria. (Ibid., pp. 197-8; grifo nosso).

Lukács reproduz, no nível do sujeito de classe, todos os problemas da


concepção subjetivista da história com o função da vontade e consciên­
cia dos atores. Se a consciência não é redutível às suas condições so­
ciais de existência, se a consciência de classe imputada não é necessa­
riamente realizada, então a alusão de Lukács à “necessidade históri­
ca” é apenas um floreio retórico expressando, no máximo, uma afir­
mação de fé cega sem nenhuma base possível em sua argumentação.
Se, por outro lado, levássemos a sério a afirmação da “ necessidade
histórica” , então teríamos de concluir que a consciência de classe é, em
última análise, exigida por condições objetivas - e, nesse caso, a teoria
de Lukács seria apenas um reducionismo econôm ico com plexo e ate­
nuado.
Em qualquer caso, a argumentação de Lukács acarreta a conclu­
são de que a política e a cultura não são redutíveis a determinação de
classe. Ou a consciência é redutível, em última análise, à posição de
classe ao término de um longo processo de desenvolvimento (deve en­
tão ser irredutível à posição de classe em todos os outros pontos), ou a
consciência é irredutível à posição de classe; a consciência de classe
pode desenvolver-se, mas não há necessidade de que o faça. Formas de
M A R X I S M O C L Á S S IC O 181

política e cultura que não expressem interesses de classe e que sejam ir­
redutíveis às determinações de classe são, portanto, uma possibilidade
real.
Portanto, a teoria de Lukács exige que existam formas “ não-de-
classe” de política e cultura, mas ele não nos oferece qualquer meio de
conceituar essas formas, exceto em termos de sua discrepância da
consciência de classe imputada. Com efeito, a concepção de Lukács re­
produz os efeitos teóricos e políticos da conceituação de classe com o
uma unidade intersubjetiva. As formas políticas e culturais devem ser
concebidas não em termos de suas condições específicas de existência e
efetividade com relação a outros elem entos da formação social, mas
antes em termos das proporções de sua incapacidade de refletir a cons­
ciência de classe imputada. Embora essa concepção também possa ser­
vir para justificar a política culturalista e propagandística do despertar
da consciência, nada tem a oferecer com relação à análise das formas
políticas e de seus efeitos em formações sociais específicas.

Classes como efeitos da estrutura


As posições discutidas até agora procuraram conceber a unidade de
uma classe por meio de uma contraposição dos determinantes objeti­
vos de uma estrutura, por um lado, e a unidade subjetiva da consciên­
cia, por outro lado. A unidade da classe com o uma agência econôm i­
ca, política e cultural é uma função da unidade subjetiva ou intersubje-
tiva da consciência, ao passo que a determinação dessa unidade com o
uma classe é o efeito de sua posição na estrutura. A contraposição de
sujeito e estrutura assegura que a unidade de uma classe deve ser con­
cebida com o essencialmente problemática. Se as formas de consciência
não podem ser reduzidas a simples efeitos da estrutura, então a unida­
de de uma classe não pode ser exigida pela estrutura. Essas posições
implicam, portanto, a irredutibilidade da política e da cultura a deter­
minações de classe, mas não oferecem meios de conceituar as formas
políticas e culturais, exceto em termos de seu êxito ou fracasso relativo
em expressar essas determinações de classe. N a melhor das hipóteses,
portanto, essas posições podem criar um m odo de análise teleológico
no qual as formas políticas e culturáis devem ser avaliadas em termos
de seu desvio das formas ideais e imputadas que realmente expressam
os interesses objetivos reais da classe em questão. As formas políticas
são analisadas com o expressões mais ou menos adequadas de posições
de classe e não em termos de sua efetividade com relação a outras rela­
ções e práticas sociais.
Em contraste, um terceiro m odo básico de’ conceituar as classes
na teoria marxista rejeita a contraposição de sujeito e estrutura e pro­
cura, de forma mais ou menos rigorosa, interiorizar formas de cons-
182 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

ciência dentro de sua conceituação da própria estrutura. Classes e luta


de classes são efeitos da estrutura. Existem com o função de relações de
produção específicas, enquanto as formas específicas de luta são efei­
tos da estrutura particular da formação social em questão. A concep­
ção marxista clássica da estrutura da form ação social envolve um
modo de produção dominante, em com binação com m odos ou ele­
mentos subordinados. O m odo de produção dominante é ele próprio
estruturado por sua diferenciação em três níveis “ relativamente autô­
nom os” governados pelo papel de “ matriz” da econom ia, que deter­
mina o caráter desses níveis e as relações entre eles. A econom ia tem,
no caso, um papel duplo, primeiro na determinação da estrutura e, se­
gundo, com o um nível representado na estrutura. Segue-se que as clas­
ses podem ser concebidas com o efeitos da estrutura, enquanto o pri­
mado da econom ia em sua determinação é função de seu duplo papel.
As classes são representadas na econom ia e representadas nos outros
níveis com o um efeito do papel de “matriz” da economia. Althusser,
por exemplo, afirma que

P ara co n ceb er a n a tu re z a de u m a classe social é essencial u n ir as d eterm in açõ es da base


eco n ô m ica, d a su p e re stru tu ra ju ríd ic o -p o lític a e d a su p e re s tru tu ra ideológica. É igual­
m en te essencial te r consciência da in teração d e n tro dessa determ in ação co m b in ad a, de
m o d o a ex p licar a m an eira pela q u al a d o m in ân cia p o d e oscilar en tre as diferentes d eter­
m in açõ es... (citad o em T e rra y , M a rxism and " P rim itive” Societies, p. 144)

A unidade dessas determinações múltiplas é, ela própria, resultado da


“ causalidade estrutural” que, na opinião de Althusser, governa a es­
trutura da totalidade social. A causalidade estrutural significa que a
estrutura deve ser concebida:
c o m o u m a cau sa im an en te em seus efeitos no sen tid o sp in o zista do term o , de q u e toda a
existência da estrutura consiste em seus efeitos; em sum a, que a e stru tu ra , que é sim ples­
m en te u m a co m b in ação específica de seus elem entos peculiares, n ã o é n a d a fo ra de seus
efeitos. (Reading C apital, p. 189)

N o caso, a unidade de uma classe reflete a unidade da estrutura da


qual é um efeito. A' classe pode ser concebida tanto com o uma unidade
quanto com o representada em cada um dos níveis econôm ico, político
e ideológico precisamente porque, apesar de toda a sua “ autonomia
relativa” , esses níveis são apenas outros tantos efeitos da estrutura do
todo.
Voltaremos às conseqüências desse m odo de conceituar as classes
em relação à estrutura da formação social, mais adiante. Mas primeiro
é necessário observar que a concepção de classes e de luta de classes
com o resultantes dos efeitos da estrutura não é limitada, de m odo al­
gum, aos expoentes da teoria de que a estrutura da formação social é
governada por uma “causalidade estrutural” . O desenvolvimento mais
M A R X I S M O C L Á S S IC O 183

rigoroso desse conceito encontra-se nas obras de Althusser e seus com ­


panheiros. U m a posição correlata, mas com efeitos muito diferentes,
em relação à conceituação das classes, foi desenvolvida por Poulant-
zas. Sua posição será examinada em separado, mais adiante. Mas a
idéia de que as classes e a luta de classes são efeitos da estrutura tam­
bém se pode encontrar nas famosas citações que proporcionam as ba­
ses da concepção marxista clássica da estrutura da formação social. Já
citamos a alegação de Marx de que “ a existência de classes está ligada
apenas a determinadas fa se s históricas no desenvolvimento da produção”
(Marx a Weydemeyer, 5 de março de 1852). Ou consideremos o trecho
do prefácio de Marx a Uma Contribuição para a Crítica da Economia
Política, citado na primeira parte deste capítulo. É claro que o prima­
do atribuído por esse trecho à relação entre as relações de produção e
as forças produtivas pode facilmente ser interpretado com o apoiando
a opinião de que a interação precisa das relações e forças determina o
nível do conflito de classe em qualquer sociedade. Um a tradição bem
conhecida no pensamento marxista apresenta uma teoria da história
na qual o nível de conflito de classe é concebido com o um efeito das
proporções nas quais as relações de produção se retardam frente às
forças produtivas. Um a expressão pedagógica concisa dessa concep­
ção se encontra no M aterialism o Dialético e Histórico, onde Stalin
afirma que o desenvolvim ento das forças produtivas é o motor da his­
tória:

P rim eiro, as fo rças p ro d u tiv a s da sociedade se m odificam e desenvolvem , e em seguida,


dependendo dessas m odificações e de conform idade com elas, as relações de p ro d u ç ã o dos
hom ens, su as relaçõ es econôm icas se m odificam ... p o r m ais q u e as relações de p ro d u ç ã o
possam estar a tra sa d a s frente a o desenvolvim ento das forças p ro d u tiv a s, elas devem ,
m ais cedo o u m ais tard e, e n tra r em co rre sp o n d ên cia com - e isso realm ente o co rre - o
nível d e d esenvolvim ento d as forças p ro d u tiv a s, o c a rá te r das forças p ro d u tiv a s. (D ia­
lectical a n d H istorical M aterialism , p. 31)

Aqui, a não-correspondência das relações e forças de produção é sufi­


ciente para provocar sua própria retificação, através da transformação
das relações de produção. Se as forças produtivas avançarem o sufi­
ciente, mais cedo ou mais tarde as relações de produção também avan­
çarão. Ê claro que a luta de classes deve ser relegada a um nível secun­
dário de efetividade nessa concepção. Ela se desenvolve com o um efei­
to da discrepância entre relações e forças de produção, e seu papel é
acabar com essa discrepância. Assim:
ten d o d esenvolvido as forças p ro d u tiv a s em g ran d es p ro p o rçõ e s, o cap italism o em ara-
n h ou-se em c o n trad içõ es q u e n ã o p o d e resolver... Isso significa que o capitalism o está
p ren h e de rev o lu ção , cuja m issão é su b stitu ir a p ro p rie d a d e cap italista dos m eios de p ro ­
d ução pela p ro p rie d a d e socialista. Isso significa que a principal característica do sistem a
c ap italista é um a agu d íssim a lu ta de classes en tre os e x p lo rad o re s e os explorados. (Ibid.,
pp. 37-8)
184 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

Aqui, a existência de classes e o caráter das relações entre elas são, em


última análise, redutíveis aos efeitos da estrutura da economia, en­
quanto a efetividade da luta de classes se limita ao seu desempenho do
papel histórico atribuído por essa estrutura.
O caráter teleológico dessa posição é evidente. Mas seus efeitos
sobre a conceituação das classes em relação à estrutura reaparecem na
posição muito diferente de Althusser e seus companheiros. Se a forma­
ção social é concebida com o governada por uma causalidade estrutu­
ral, então cada nível e elemento deve ser concebido com o um efeito da
estrutura. Classes e o conflito entre elas são efeitos da estrutura e sua
causalidade estrutural. Vejamos apenas dois exemplos. O priijieiro re­
laciona-se com a questão da transição de um m odo de produção para
outro. Althusser rejeita explicitamente todas as concepções teleológi-
cas da história - inclusive a da marcha para a frente das forças produ­
tivas. Para Althusser e seus colaboradores não há nada na estrutura de
qualquer m odo de produção que exija sua superação. Pelo contrário,
cada modo de produção deve ser concebido com o uma “eternidade,
no sentido de Spinoza” (Reading Capital, p. 107). O modo de produ­
ção assegura suas próprias condições de existência, sendo, portanto,
capaz de reprodução eterna. Em Lire ‘‘L e C apital", a transição de um
modo de produção para outro não é concebida com o o efeito neces­
sário do permanente avanço das forças produtivas, mas cada período
de transição é concebido com o envolvendo uma não-correspondência
definida entre as relações e as forças de produção. Há dois tipos de es­
trutura de produção: num m odo de produção, as relações e as forças
se correspondem, e numa estrutura de transição deixam de correspon­
der. N o primeiro caso há uma limitação recíproca entre as relações e
as forças de tal m odo que cada uma delas serve para reproduzir a ou­
tra. Mas:
N a fo rm a de n ão -co rresp o n d ên cia, que é a das fases de tran sição , com o a m an u fa tu ra ,
as relações entre as d u as conexões [as relações e as forças de p ro d u ç ã o ] já n ão to m am a
fo rm a de lim itação recíproca, m as se to rn a m a transform ação de um a pelo efeito da ou­
tra... na qual a n a tu re z a cap italista d as relações de p ro d u ç ã o determ in a e g o v ern a a
tra n siç ã o das forças p ro d u tiv a s p a ra a sua form a especificam ente cap italista. (Ibid., p.
304, g rifo no original)

O caráter essencialista e fundamentalmente teleológico da doutrina de


causalidade estrutural de Lire “L e C apital” foi demonstrado no Capí­
tulo 6 e na Conclusão de Pre-Capitalist M odes o f Production. Com
efeito, Lire "Le C apital” substitui as teleologías abertas, transformati­
vas - do avanço permanente das forças produtivas e das teorias hegelia-
nas da história - por uma teleología disfarçada e inconsistente na qual
a concepção do m odo de produção com o eterno, estacionário e repeti­
tivo, combina-se com uma concepção transformativa da estrutura da
transição com o essencialmente finita.
M A R X I S M O C L Á S S IC O 185

Mas o que devemos notar no presente contexto é o efeito da dou­


trina da causalidade estrutural sobre a conceituação das classes e da
luta de classes. Se o período de transição é encerrado pela transforma­
ção das forças produtivas pelas relações de produção, então a luta de
classes com o tal, ou o conflito das forças políticas, não tem efetividade
independente. A luta de classes desempenha, no máximo, o papel que
lhe é atribuído pela estrutura da produção.
C om o um segundo exemplo das conseqüências da posição de
Althusser, vejamos o tratamento da reprodução das relações de pro­
dução em seu trabalho “ Ideologia e Aparelhos Ideológicos Estatais”
(em Lênin e a Filosofia). O termo “causalidade estrutural” não consta
desse trabalho, mas Althusser remete o leitor, explicitamente, aos ar­
gumentos de Lire “Le Capital” no curso de uma breve recapitulação
da concepção marxista da estrutura da formação social. Num pós-
escrito a esse trabalho, Althusser insiste na importância de adotar o
“ ponto de vista da luta de classes” :
N u m a so ciedade de classes, as relações de p ro d u ç ã o são relações de exploração, e p o r­
ta n to relações en tre classes an tagônicas. A rep ro d u ç ão das relações de p ro d u ção , o obje­
tivo últim o d a classe d o m in an te, n ão p o d e p o rta n to ser u m a m era op eração técnica de
tre in a m e n to e d istrib u ição de indivíduos p a ra os diferentes p o sto s na “ divisão técn ica”
do tra b a lh o ... A re p ro d u ç ã o d as relações de p ro d u ç ã o só pode, p o rta n to , ser um em ­
p reen d im en to de classe. R ealiza-se atrav és de um a lu ta de classes que c o n tra p õ e a classe
d o m in an te e a classe ex p lo rad a... D e fato , o E stad o e seus A p arelh o s só têm significado
do p o n to de vista d a luta de classes com o um ap arelh o de lu ta de classes que assegura a
op ressão d a classe e g a ra n te as condições de ex p lo ração e sua rep ro d u ç ão (Lenin and
Philosophy, p. 171)

Isso parece bastante claro: não devemos esquecer nunca a luta de clas­
ses. Mas, se examinarmos o problema da reprodução levantado nesse
trabalho e a solução que lhe dá Althusser, é evidente que a insistência
do pós-escrito sobre “o ponto de vista da luta de classes” não passa de
um floreio retórico. Althusser levanta um problema funcional, isto é,
“com o é obtida a reprodução das relações de produção?” Um proble­
ma funcional exige um mecanismo funcional geral para a sua solução:
“em sua maior parte, é assegurada pelo exercício do poder estatal nos
Aparelhos Estatais, de um lado o Aparelho Estatal (Repressivo) e do
outro os Aparelhos Estatais Ideológicos” (Ibid., p. 141).
Além disso, de acordo com a doutrina da “ determinação em últi­
ma instância” pela econom ia, parece que o caráter específico desse
mecanismo funcional é ele próprio dado pelas relações de produção
em questão. N o caso do m odo de produção feudal “é absolutamente
claro que houve um Aparelho Ideológico Estatal dominante, a Igreja" (/-
bid., pp. 143-4). Por outro lado:
o ap arelh o estatal ideológico qu e foi in sta la d o n a posição dom inante nas form ações so­
ciais cap italistas m ad u ras, co m o um resu ltad o de violenta lu ta de classes política e ideo-
186 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SO CIA L

lógica co n tra o velho a p a re lh o ideológico estatal d o m in an te, é o aparelho ideológico edu­


cacional. (Ibid., pp. 144-5)

A luta de classes a que Althusser se refere nesse trecho pertence ao lon­


go período de transição entre o dom ínio do feudalismo e o do capita­
lismo.
O aparelho ideológico estatal assegura seus objetivos funcionais
distribuindo agentes humanos para os locais exigidos pela divisão so­
cial do trabalho e assegurando que esses agentes estejam devidamente
equipados para desempenhar os papéis exigidos desses locais. Assim,
cada categoria de agente:
está p raticam en te d o ta d a d a ideologia a d e q u a d a a o papel que tem de d esem p en h ar na
so cied ad e de classes: o papel do e x p lo ra d o ... o papel do agente de ex p lo ração ... do
ag en te de repressão, ou do ideólogo p rofissional. (Ibid., p. 147)

Paul Hirst mostrou que a solução de Althusser envolve dois erros cor­
relatos: a identificação das relações de produção com as funções atri­
buídas a agentes econôm icos na divisão social do trabalho e a identifi­
cação de agentes econôm icos com sujeitos humanos. O aspecto impor­
tante no presente contexto, porém, relaciona-se com o caráter funcio­
nal do problema de Althusser e os mecanismos funcionais que ele in­
voca para sua solução. Os aparelhos ideológicos estatais surgem como
o meio para a realização de um determinado fim funcional. O meio
não tem um efeito determinado sobre a forma para a qual é funcional
(as relações de produção) exceto a própria função de reprodução. É
simplesmente a agência ou apoio da função que lhe é atribuída pelas
relações de produção cuja reprodução deve ser assegurada.
Esse funcionalismo nos faz voltar às doutrinas da “causalidade
estrutural” e da “ determinação em última instância” pela economia.
A econom ia determina os outros níveis da formação social ao assegu­
rar as suas próprias condições de existência, os aparelhos ideológicos
estatais, o aparelho repressivo estatal, e assim por diante, e estes por
sua vez têm uma ação recíproca sobre a base econôm ica proporcio­
nando as condições necessárias ao seu funcionamento. A causalidade
estrutural cai dentro do círculo fechado e vazio da determinação fun­
cional. Cada parte com ponente da estrutura existe com o um efeito da
estrutura e existe devido às funções que desempenha para a estrutura.
Althusser mantém que “ a totalidade da existência da estrutura consis­
te em seus efeitos” (Reading Capital, p. 189), o que equivale a dizer que
ela consiste no desempenho das funções necessárias à sua existência.
Examinamos dois exemplos da obra de Althusser e seus colabora­
dores, o tratamento do problema da transição em Lire “L e Capital" e
o tratamento da reprodução em “ Ideologia e Aparelhos Ideológicos
Estatais” . Em am bos os casos, a conclusão é a mesma, ou seja, a de
que a doutrina da causalidade estrutural exige que não haja uma efeti-
M A R X I S M O C L Á S S IC O 187

vidade independente da luta de classes. N o máximo a luta de classes, o


conflito das forças políticas e sociais, desempenha o papel que lhe é
atribuído pela estrutura da produção. Num período de transição, a
transição se efetua por ser essa a natureza da estrutura de transição.
Em todos os outros casos, a reprodução é assegurada porque a “ deter­
minação em última instância” da econom ia assegura as condiçõesde
sua reprodução. Em ambos os casos, a luta de classes pode existir, mas
é apenas um efeito funcional da estrutura, entre outros. Althusser
pode afirmar no pós-escrito de seu trabalho sobre ideologia: “ Adotar
o ponto de vista da reprodução é, portanto, em última instância, ado­
tar o ponto de vista da luta de classes” (ibid.). Claro que é. Althusser
poderia invocar, igualmente bem, o “ponto de vista” das forças de
produção, ou da família. Se todo e qualquer aspecto da formação so­
cial é um efeito da estrutura do todo, então eles são todos equivalentes
uns aos outros. N o mundo funcionalista da causalidade estrutural, to­
dos os pontos de vista são os mesmos.

Poulantzas: a contraposição de classe e estrutura


Com o exemplo final, consideremos a conceituação de Poulantzas das
classes em relação à estrutura da formação social. Em Poder Político e
Classes Sociais e, em menores proporções, em obras subseqüentes,
Poulantzas parece basear sua posição na obra de Althusser, Pour
M arx e Lire “Le C apital”. N a verdade, ele simplesmente oferece uma
glosa althusseriana sobre a contraposição básica de sujeito e estrutura,
característica das posições sociológica e lukacsiana, que já examina­
mos. Onde Althusser rejeita a contraposição de sujeito e estrutura e
procura interiorizar formas de consciência dentro de sua conceituação
da estrutura da formação social, Poulantzas se recusa, resolutamente,
a fazer o mesmo. Em lugar disso, propõe uma distinção fundamental
entre a estrutura da formação social, de um lado, e o campo das rela­
ções sociais, de outro. A s classes são “ o resultado de um conjunto de
estruturas e de suas relações” (Political Power and Social Classes, p.
63) e conseqüentemente não podem ser concebidas com o existindo
num determinado nível da estrutura da formação social. As classes
“ não se manifestam dentro da estrutura, mas totalmente com o o efeito
global das estruturas no campo das relações sociais, que, em sociedades
de classes, envolvem em si mesmas a distribuição de agentes/apoios às
classes sociais” (ibid., p. 64). Embora a posição de Poulantzas não se­
ja, de m odo algum, equivalente à de Lukács, veremos que sua insistên­
cia na distinção entre estruturas e relações sociais gera efeitos teóricos
semelhantes.
Vejamos primeiro a demarcação de Poulantzas entre o campo das
relações sociais e as estruturas da formação social. Poulantzas argu­
188 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

menta que uma demarcação clara é essencial, sobre esse aspecto, com o
uma precondição de qualquer crítica séria do antropologism o do sujei­
to, “em suas formas historicistas ou hum anistas” (ibid., p. 65), mas ele
não estabelece diretamente a necessidade de tal demarcação. N ão obs­
tante, sua base teórica surge muito claramente em sua distinção entre
as relações de produção, de um lado, e as relações sociais de produção,
do outro. As relações de produção denotam combinações específicas
de agentes e das condições técnicas e materiais do trabalho. Por outro
lado:
as relações sociais de p ro d u ç ã o são relações e n tre agentes de p ro d u ç ã o d istrib u íd o s em
classes sociais, isto é, relações de classe. Em o u tra s p a la v ra s, as relações “sociais" de pro­
dução, as relações d e classes, se m anifestam , n o nível econôm ico, com o um efeito dessa
co m b in ação específica: agentes de p ro d u ç ã o /c o n d iç õ e s de tra b a lh o técnicas e m ateriais
co n stitu íd as pelas relações de produção (ibid., p. 65).

As relações sociais são relações entre agentes humanos. As relações so­


ciais de produção são efeitos da estrutura econôm ica, das relações de
produção:
m as tam b ém p o d em o s falar, com to d o o rigor, de relações “ sociais” políticas e de rela­
ções “ sociais” id eológicas. E ssas relações sociais, co m o relações de classes iso lad as aqui
com relação às in stân c ia s d o p o lítico e do ideológico, m anifestam -se com o o efeito das
e stru tu ra s políticas e ideológicas so b re as relações sociais. (Ibid., pp. 65-6)

Com .efeito, Poulantzas postula um campo de relações intersubjetivas


estruturado pela intervenção das estruturas econôm icas, políticas e
ideológicas da formação social. Essa interpretação é confirmada por
uma nota de pé de página, mais adiante no texto:
E s tru tu ra /In stitu iç ã o : Esses dois conceitos devem ser d istin g u id o s claram en te. P o r in sti­
tu ição en ten d erem o s um sistem a de norm as ou regras socialm ente sancionado.... P o r o u ­
tro lad o , o co n ceito de e s tru tu ra ab ra n g e a m atriz o rg a n iz a d o ra d as instituições. (Ibid.,
p. 115, grifo nosso).

A referência a “ normas ou regras” pertence claramente a uma proble­


mática sociológica de relações intersubjetivas. Os dois campos, de es­
truturas e de relações intersubjetivas, são mutuamente irredutíveis, já
que um envolve pessoas e coisas em com binações específicas, enquan­
to o outro envolve apenas pessoas. Poulantzas rejeita, portanto, tanto
o “econom icism o” , que reduz as relações sociais a estruturas, com o o
“ antropologism o do sujeito” , que reduz as estruturas a efeitos de rela­
ções sociais. As classes e as práticas de classes pertencem ao campo das
relações sociais. Estão, portanto, sujeitas aos efeitos das estruturas,
mas não são redutíveis a esses efeitos:
A d eterm in ação das p ráticas pela e s tru tu ra e a in terv en ção d as p ráticas na e s tru tu ra
consistem na p ro d u ç ã o , pela e s tru tu ra , de lim ites de v ariação da lu ta de classes: são es­
ses lim ites que co n stituem efeitos da e s tru tu ra . (Ibid., p. 95)
M A R X I S M O C I.ÁSSICO 189

As práticas de classe são limitadas pelos efeitos da estrutura, mas não


são determinadas por eles.
Poulantzas contrapõe as determinações “ objetivas” das estrutu­
ras ao reino dos sujeitos humanos e de suas relações intersubjetivas, e
insiste em que são mutuamente irredutíveis. Ele apresenta a determi­
nação de classe com o um efeito das estruturas, isto é, de determina­
ções políticas e ideológicas bem com o de determinações econômicas,
sendo isso que define os interesses objetivos de uma classe. Mas inte­
resses de classe nesse sentido, determinados pela estrutura, não são ne­
cessariamente idênticos às posições tomadas pela classe nas condições
concretas de luta. Isso decorre diretamente da irredutibilidade das re­
lações sociais às estruturas. Assim, a estrutura da formação social dá
determinações de classe que definem os interesses de classe e as posi­
ções políticas e ideológicas que correspondem a esses interesses. Mas
em quaisquer condições particulares de luta, a posição tomada por
uma classe pode diferir de seus interesses objetivos. N a conclusão de
A s Classes no Capitalismo Contemporâneo, Poulantzas insiste em que
não há necessidade de que a posição de classe corresponda à determi­
nação de classe:
D evem os liv rar-n o s, de u m a vez p o r to d as, d as ilusões q u e afetaram com freqüência o
m ovim ento rev o lu cio n ário , p o r to d a a su a h istó ria, segundo as quais um a polarização
p ro letária ob jetiv a de d eterm inações de classe deve necessariam ente levar, com o tem po,
a u m a p o larização d e posições de classe. ( Classes in Contem porary C apitalism , p. 334).

Com efeito, temos pela frente um princípio de redução da política e


ideologia a determinações de classe com o efeito da estrutura junta­
mente com a insistência de que as posições políticas e ideológicas são
irredutíveis a essas determinações.
O paralelo com Lukács é evidente. Em ambos os casos, a estrutu­
ra proporciona uma determinação objetiva dos interesses de classe, e
em ambos os casos esses interesses devem ser distinguidos claramente
das representações nas consciências dos agentes. A estrutura determi­
na os interesses de classe, mas não pode assegurar que sejam reconhe­
cidos. As teorias de Poulantzas e de Lukács implicam, portanto, a
existência de práticas políticas e cultural/ideológicas rigorosamente ir­
redutíveis a determinações de classe. N ão obstante, as duas posições
não são totalmente equivalentes, pois enquanto Lukács interpreta as
formas superestruturais com o expressões mais ou menos adequadas
da consciência e dos interesses de uma classe, Poulantzas as vê com o
expressão de relações de classe. Por exemplo, ao discutir os aparelhos
políticos, Poulantzas nos diz que eles não são “ nunca nada mais do
que a materialização e condensação de relações de classes” (Classes in
Contemporary C apitalism , p. 25). Assim, “ o Estado não é uma ‘entida­
de’ com uma essência instrumental intrínseca, mas é em si mesmo uma
190 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SO CIAL

relação, mais precisamente a condensação de uma relação” (ibid., p.


26). O equívoco de Poulantzas em relação à discrepância entre estrutu­
ras e relações sociais é evidente nessas formulações. D e um lado, os
aparelhos políticos são redutíveis a relações de classes: não são nunca
outra coisa senão.... D e outro lado, não são redutíveis a relações de
classes: materializam ou condensam essas relações e podem portanto
diferir de acordo com as formas de “ materialização” e “condensa­
ção” .
Mas, apesar dessas diferenças, as conseqüências fundamentais da
contraposição de sujeito e estrutura aparecem na obra de Poulantzas
com o na de Lukács. Sua teoria exige que existam formas não de classe
de política e ideologia, mas ele não proporciona os meios de concei­
tuar essas formas, exceto em termos daquilo que é exigido pelas condi­
ções objetivas. Mais uma vez, as formas políticas e ideológicas devem
ser concebidas não em termos de sua efetividade específica em relação
a outras práticas e relações sociais, mas antes em termos de sua inca­
pacidade de refletir os interesses objetivos de uma classe. Pois, apesar
de todas as críticas de Poulantzas às conceituações sociológica e lu-
kacsiana da classe em relação à estrutura da formação social, sua pró­
pria teoria leva a conseqüências teóricas e políticas semelhantes.
C apí tul o 8

Determinação em Última Instância

O marxismo clássico postula uma ligação entre a base econôm ica e ou­
tros níveis estruturais de tal m odo que esses níveis são determinados
“em última instância” pela econom ia, de um lado, enquanto por outro
lado conservam uma autonom ia real, embora “ relativa” , e uma efeti­
vidade independente própria. Os níveis político e ideológico-cultural
são concebidos com o objetos distintos e irredutíveis, cujo caráter es­
sencial é, não obstante, determinado por outro objeto, a economia. A
própria econom ia é considerada com o estruturada pelas relações de
produção e as forças produtivas numa correspondência necessária e
definida. Essa correspondência é necessária no sentido de que qual­
quer não-correspondência é essencialmente autocorretora: induz as
m odificações sociais necessárias para o restabelecimento da corres­
pondência. Por vezes, o primado é atribuído às forças produtivas (co­
mo em M aterialism o Dialético e H istórico) e por vezes às relações de
produção (com o em Lire “Le C apital”), mas em ambos os casos a es­
trutura da causalidade é a mesma: a ausência de correspondência entre
um objeto e outro cria as condições que restabelecem a correspondên­
cia. Nessas concepções, relações de necessidade são postuladas entre
objetos considerados, em certo sentido, com o distintos. O conceito de
um objeto tem conseqüências necessárias para a conceituação de ou­
tros objetos, distintos. Por exem plo, se as superestruturas política e
'ideológico-cultural devem corresponder, “em última instância” , à
base (infra-estrutura) econôm ica, então as características essenciais
dessas superestruturas podem ser deduzidas diretamente do conceito
da econom ia.
Para estabelecer o que está envolvido nessas concepções de deter­
minação e dominância, devemos examinar a conceituação de relações
de produção. Estas dizem respeito à distribuição social dos meios e
condições de produção, isto é, a distribuição da posse, bem com o da
separação, dos meios de produção entre diferentes categorias de agen­
tes econôm icos. Os conceitos de “ posse” e “ separação” são examina­
dos num capítulo posterior, sendo suficiente, para nossos objetivos
192 C L A S S E S E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O S O C I A L

aqui, dizer que a posse de certos meios de produção envolve a capaci­


dade de controlar o funcionamento desses meios no processo de pro­
dução, e de excluir outras pessoas de seu uso. A posse de certos meios
de produção por uma categoria de agentes implica, portanto, a separa­
ção de outras categorias de agentes em relação a esses meios. Os que
estão separados dos meios de produção têm acesso ao seu uso apenas
nos termos de uma relação econôm ica definida que governa a distri­
buição do produto desse processo. Por exemplo, nas relações de pro­
dução capitalistas, os meios de produção são possuídos sob a forma de
mercadorias compradas pelo capitalista. O capitalista compra força de
trabalho em troca de salários e o processo de produção toma a forma
da produção de mercadorias por meio de outras mercadorias, ou seja
os meios de produção e a força de trabalho. Os trabalhadores estão se­
parados dos meios de produção e só têm acesso a eles sob a condição
da transformação de sua força de trabalho numa mercadoria. A distri­
buição do produto entre os trabalhadores e os capitalistas ocorre, por­
tanto, por intermédio do mercado no qual a força de trabalho é troca­
da por dinheiro, e o dinheiro é trocado por mercadorias.
Ora, se as relações de produção forem especificadas dessa manei­
ra, é claro que devem pressupor outras relações e condições sociais. As
relações de produção capitalistas exigem que os meios de produção e a
força de trabalho tomem a forma de mercadoria. Exigem, portanto,
um sistema jurídico que defina e sancione formas precisas de proprie­
dade, em especial a propriedade em forma de mercadorias, e formas
definidas de contrato, especialmente contratos de compra e venda.
Além disso, com o os m eios de produção, a força de trabalho e os pro­
dutos tomam, todos, a forma de mercadorias, as relações de produção
capitalistas implicam a organização da produção à base de contabili­
dade monetária pelo capitalista ou seus agentes. Exigem, portanto, a
existência de formas definidas de cálculo e treinamento na aplicação
dessas formas. D o mesmo m odo, com o as relações de produção envol­
vem necessariamente os meios e processos de produção, as relações ca­
pitalistas de produção devem pressupor “ forças de produção” sujeitas
a cálculo e controle capitalista.
Essa lista do que é pressuposto por determinadas relações de pro­
dução poderia ser continuada com facilidade. Mas o que devemos no­
tar aqui é que determinadas relações de produção não podem ser espe­
cificadas sem uma referência explícita ou implícita aos efeitos de ou­
tras relações e práticas sociais. Essas relações e práticas não são dadas
no conceito das relações de produção em questão. Dizer que as rela­
ções de produção capitalistas pressupõem um sistema jurídico com
formas definidas de propriedade e contrato é apenas especificar condi­
ções abstratas e gerais que um sistema jurídico deve atender para que
D E T E R M IN A Ç Ã O EM Ú L T IM A IN S TÂ N C IA 193

seja compatível com a produção capitalista. Observações semelhantes


podem ser feitas em relação a formas de cálculo e “ forças produtivas” .
As relações de produção pressupõem que outras relações e práticas so­
ciais satisfazem a certas condições abstratas e gerais, que certos efeitos
são assegurados por essas relações e práticas. Mas o conceito de deter­
minadas relações de produção não nos diz qual a forma precisa que
tais efeitos tomarão nem nos diz qual o caráter preciso das relações
que os asseguram.
Chamemos os efeitos pressupostos na especificação de determina­
das relações de produção, as condições de existência dessas relações.
Especificar as relações e práticas sociais que asseguram tais efeitos é
especificar a forma pela qual tais condições de existência são assegura­
das. As relações de produção só podem ser concebidas com o articula­
das com outras relações e práticas sociais, pois de outro modo suas
condições de existência não estariam asseguradas. Mas o conceito de
determinadas relações de produção não nos pode dizer, a forma na
qual essas condições serão asseguradas nem quais as relações e práti­
cas sociais que as assegurarão. O conceito de relações de produção ca­
pitalistas nos permite inferir que alguma forma de Direito Comercial é
pressuposta. Mas o que se pressupõe aqui tem tal nível de generalida­
de que não leva em conta as diferenças entre, digamos, o Direito C o­
mercial britânico e o japonês, ou os efeitos dessas diferenças sobre a
estrutura das empresas e as relações entre estas nas respectivas econo­
mias.
Ora, as teses da determinação em última instância pela economia
e da correspondência entre relações e forças de produção vão muito
mais longe. Em lugar da posição limitada segundo a qual relações so­
ciais específicas pressupõem condições definidas de existência, essas
teses mantêm que certos tipos de relações sociais são capazes de asse­
gurar suas próprias condições de existência. As condições jurídicas e
culturais da existência da produção capitalista são asseguradas pela
ação da econom ia capitalista. Da mesma forma, para a tese de corres­
pondência: numa versão, as próprias forças geram as condições sociais
necessárias para criar as correspondentes relações de produção, e, na
outra versão, as relações de produção forçam o ajuste das forças pro­
dutivas. Em todos os casos, as condições de existência pressupostas
por um objeto, a econom ia, as forças ou relações de produção, são as­
seguradas através de sua própria efetividade.
Uma relação entre conceitos, entre, digamos, o conceito de deter­
minadas relações de produção e o conceito de condições de existência
que dele pode derivar-se, é transposta pela tese da determinação em úl­
tima instância numa relação de determinação entre os objetos especifi­
cados nesses conceitos. A tese da autonomia relativa e da efetividade
independente dessas condições de existência decorre diretamente dessa
194 C L A S S E S E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O S O C IA L

concepção. Com o a derivação de condições de existência não pode, em


si mesma, dar a forma precisa na qual essas condições serão assegura­
das, pareceria que a determinação de suas próprias condições de exis­
tência político-jurídicas e ideológico-culturais por, digamos, uma eco­
nomia capitalista deve ser essencialmente incompleta. Certas carac­
terísticas abstratas e gerais da superestrutura são determinadas “ na úl­
tima instância" pela econom ia, ao passo que as características restan­
tes ficam ao sabor de outras determinações. É somente esse espaço
para a intervenção de outras determinações que permite que o que é
determinado “em última instância” pela econom ia reaja sobre ela.
Essa concepção parece estar subjacente ao comentário de Marx, se­
gundo o qual:
A fo rm a eco n ô m ica específica, na q u al o tra b a lh o excedente n ã o -re m u n e ra d o é a rra n c a ­
d o dos p ro d u to re s d ire to s, d eterm in a a relação en tre g o v ern an tes e g o v ern ad o s, já que
se o rig in a d ire ta m e n te d a p ró p ria p ro d u ç ã o e, p o r sua vez, reage sobre ele com o elem ento
determ inante. ( O C apital, v o l. 3, p. 791, grifo nosso)

A quilo que age sobre a econom ia com o elemento determinante não


pode, ao mesmo tem po, ser determinado pela econom ia em todos os
seus particulares.

Concepções epistem ológicas da relação


entre o discurso e seus objetos
Podemos agora abordar o problema central da tese de determinação
em última instância pela econom ia e as teses correlatas do marxismo
clássico. A determinação em última instância transpõe um certo tipo
de relação entre conceitos para uma relação de determinação entre os
objetos especificados por esses conceitos. Essa transposição envolve
uma concepção epistem ológica racionalista da relação entre conceitos
e objetos: isto é, postula um mundo do discurso, um mundo distinto
de objetos especificáveis no discurso e uma correlação definida entre
os dois de tal m odo que certas relações no mundo do discurso reapare­
cem com o relações de determinação no mundo dos objetos. Questio­
nar a tese da determinação em última instância é questionar a episte­
m ología que ela envolve, quer do ponto de vista de outra epistem olo­
gía, quer do ponto de vista da rejeição sistemática da empresa episte­
mológica com o tal. Este capítulo estabelece as características episte­
m ológicas da tese da determinação em última instância e argumenta
que a crítica dessa tese, do ponto de vista de uma epistemología diferen­
te, simplesmente troca um dogmatismo indefensável por outro. A o re­
jeitar as concepções epistem ológicas da relação entre o discurso e seus
objetos, argumenta em favor de uma conceituação de relações de pro-
D E T E R M IN A Ç Ã O EM Ü L T IM A IN S TÂ N C IA 195

dução e outros objetos em termos de suas condições de existência e das


formas específicas nas quais essas condições são satisfeitas.
Uma epistologia é uma forma de discurso teórico que postula tanto
uma distinção como uma correlação entre um campo do discurso, por
um lado, e um cam po dos objetos especificáveis no discurso, por outro
lado. Dizer que os dois campos são distintos é dizer que a existência do
campo dos objetos não é dependente da existência do discurso. Dizer
que há uma correlação entre eles é dizer que certos elementos ou for­
mas do discurso correspondem a, ou designam, membros do campo
dos objetos e suas propriedades. Diferentes epistemologías concebem
a suposta correspondência de diferentes m odos, mas em todos os casos
certos elementos ou formas de discurso são considerados com o capa­
zes de proporcionar conhecimento direto do campo de objetos. Nas
epistem ologías racionalistas, o mundo é concebido com o uma ordem
racional no sentido de que suas partes e as relações entre elas se con­
formam à ordem dos conceitos e às relações entre eles, o conceito dan­
do a essência do real. A tese da determinação em última instância en­
volve uma epistem ología desse tipo. É precisamente porque certos
conceitos dão a essência do real que uma relação entre conceitos, entre
o conceito da econom ia e o conceito de suas condições de existência
que dele podem derivar-se, pode ser transposta para uma relação de
determinação entre objetos.
Ora,, a difundida e influente crítica da “ determinação em última
instância” , que propõe submeter essa à investigação empírica, simples­
mente contrapõe uma epistem ología a outra. Dizer que a relação entre
objetos deve ser estabelecida no nível da observação é pretender que o
discurso de observação, isto é, da experiência humana, tem acesso pri­
vilegiado ao conhecim ento do real. Com efeito, é postular uma episte­
mología empirista na qual a correlação entre a esfera do discurso e a
esfera dos objetos deve ser efetuada através da agência da experiência
e julgamento dos sujeitos humanos. N esse caso, todas as pretensões ao
conhecimento são consideradas com o suscetíveis de avaliação em ter­
mos de proposições básicas da observação que pretendem representar o
que é dado na experiência dos sujeitos hum anos. As epistemologías
empiristas bem podem reconhecer a necessidade de formas teorica­
mente abstratas de discurso que em si mesmas não designam direta­
mente o que é dado, mas essas formas são sempre concebidas com o di­
reta ou indiretamente redutíveis ao nível privilegiado no qual o discur­
so realmente designa o que' é dado na experiência dos sujeitos huma­
nos.

M as, apesar de todas as suas diferenças, tanto a tese marxista da


determinação em última instância com o suas críticas empiristas são
postuladas sobre um terreno comum de problemas epistemológicos.
196 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SO CIA L

Cada uma delas pressupõe um cam po do discurso, um campo de obje­


tos distinto e existente independentemente e uma forma epistem ológi­
camente privilegiada de discurso que afeta diretamente uma corres­
pondência entre os dois cam pos. Postular essa correspondência é pre­
tender que as formas particulares de discurso em que ele se efetua dão
acesso direto ao conhecim ento de objetos e relações entre eles. Essas
formas de discurso são portanto epistem ológicam ente privilegiadas no
sentido de que seu acesso direto ao campo dos objetos é conseqüência
logicamente necessária dos postulados epistem ológicos iniciais. Está
fora de discussão que elas têm esse acesso direto: proporcionam, por­
tanto, uma base final e irredutível contra a qual todas as outras formas
de discurso podem ser medidas, mas não estão, em si mesmas, abertas
a maior investigação. As epistem ologías empiristas postulam o discur­
so da experiência com o o ponto de referência final de todas as preten­
sões ao conhecim ento do mundo. A s epistem ologías racionais, por ou­
tro lado, quer permitam ou não qualquer papel à experiência humana
na formação do conhecim ento, efetivamente postulam um nível excep­
cionalm ente privilegiado de conceitos, em referência aos quais todas
as pretensões a um discurso significativo podem ser avaliadas.
Consideremos, por exem plo, a teoria das formas diferenciais do
discurso teórico, as ciências e as ideologias teóricas, apresentadas em
L ire “L e C apital”. Embora Althusser faça uma tentativa séria de rom­
per com o problema epistem ológico clássico do conhecimento, o resul­
tado de seus argumentos permanece dentro de uma estrutura filosófica
clássica e desenvolve um tipo característico de epistem ología raciona­
lista. (Esse argumento é desenvolvido em Hindess, Philosophy and
M ethodology, e Hindess e Hirst, M ode o f Production and Social Foun­
dation.) N o racionalismo de Lire "L e Capital” os discursos das ciências
são todos governados por uma problemática científica, um sistema de­
finido e distintivo de conceitos. O resultado do discurso científico é a
construção de objetos de pensamento científicos que constituiriam a
“ apropriação d o ,con creto no pensam ento” . O efeito científico de
apropriação é assegurado pelo funcionamento dos conceitos da
problemática científica. Esses conceitos proporcionam, portanto, o
ponto final de referência em contraposição ao qual todas as pretensões
ao conhecim ento no cam po adequado podem ser medidas. Assim , por
exem plo, Althusser pretende estabelecer o caráter não científico da
concepção das relações sociais de produção com o relações intersubje­
tivas, mostrando que tal concepção é incompatível com o que ele con­
sidera com o os conceitos básicos de O Capital. Além disso, Althusser
nega explicitamente a possibilidade de formas do discurso teórico nas
quais o caráter científico, ou não-científico, da problemática possa ser
estabelecido. As ciências oferecem os seus próprios critérios internos
D E T E R M IN A Ç Ã O EM Ú L T IM A IN S TÂ N C IA 197

de validade. Seguu-se que o caráter “científico” de uma problemática


científica deve ser aceito com o um dado absoluto: não pode estar aber­
to a novas investigações.
Finalmente, devem os notar que as diferentes concepções episte­
m ológicas da relação entre o discurso e seus objetos implicam diferen­
tes concepções das relações entre os próprios objetos. O empirismo
concebe os objetos do discurso com o dados na experiência dos sujeitos
humanos. São representados no discurso com o uma função daquela
experiência mediada pelo exercício da faculdade humana de julgam en­
to. As relações entre objetos, portanto, só podem ser concebidas com o
dadas na própria experiência. A concepção empirista clássica das rela­
ções entre objetos é, portanto, em termos de uma causalidade mecâni­
ca, externa, que representa apenas a existência de correlações regulares
e repetidas entre fenóm enos observados. Essas relações devem ser es­
tabelecidas no julgam ento da experiência, ou testadas contra ele. Para
o empirismo, as relações derivadas teoricamente devem, com a possí­
vel exceção da Lógica e da Matemática purà, ser submetidas às provas
da experiência. Assim , a tese da determinação em última instância,
considerada pelo marxismo clássico com o acima de qualquer refuta­
ção meramente empírica, deve ser considerada pelo empirismo com o
uma generalização empírica na melhor das hipóteses. Na epistemolo-
gia racionalista, por outro lado, onde o mundo é concebido com o uma
ordem racional, os conceitos dão a essência do real e as relações entre
conceitos representam, portanto, a forma essencial das relações entre
objetos. A concepção racionalista clássica das relações entre objetos é
portanto, em termos de uma causalidade expressiva, uma relação in­
terna entre uma essência e as formas fenomenais de sua aparência. Es­
sas relações entre objetos podem ser estabelecidas através de argumen­
tação puramente teórica. N o caso de epistem ologías com o a de Kant,
que não são puramente racionalistas nem puramente empiristas, as re­
lações entre objetos só podem ser concebidas em termos das preten­
sões distintas e com petitivas da razão, de um lado, e da experiência, do
outro.
Ora, os problemas centrais das epistem ologías, e portanto de to­
das as concepções epistem ológicam ente derivadas da causalidade, de­
terminação, etc., relacionam-se com o dogm atism o inevitável que está
encerrado no próprio projeto epistem ológico. Uma epistemología pos­
tula uma distinção entre dois campos e afirma que uma correlação en­
tre eles é efetuada em certas formas específicas de discurso, o discurso
da experiência, de uma problemática científica, ou qualquer que seja.
Mas uma vez que uma determinada forma ou formas de discurso são
marcadas com o epistem ológicam ente privilegiadas, então uma série de
conseqüências correlatas deve seguir-se. Primeiro, decorre que há for-
198 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

mas excepcionalmente privilegiadas de discurso que proporcionam os


meios de designar os objetos existentes. Essas formas privilegiadas
proporcionam uma pedra de toque para o julgamento de todas as pre­
tensões ao conhecim ento. Qualquer discurso que não seja da forma
privilegiada deve ser redutível a, ou pelo m enos compatível com, for­
mas discursivas aprovadas para que suas pretensões ao conhecimento
sejam mantidas com seriedade. As epistem ologías empiristas conside­
ram o discurso significativo com o redutível ao discurso da experiência.
As posições racionalistas, por outro lado, postulam certos níveis privi­
legiados de conceituação que não são estabelecidos através da experiên­
cia dos sujeitos humanos e afirmam que todas as pretensões ao conhe­
cimento devem ser com patíveis com esses níveis privilegiados. O dog­
matismo inevitável dessas posições deve ser evidente. Afirmar que to­
das as pretensões ao conhecim ento devem ser medidas em comparação
com o discurso de uma forma particular é, no mesmo m ovim ento, tor­
nar essa forma imune a maior questionam ento. N ão pode haver de­
monstração de que tais e tais formas de discurso são realmente privile­
giadas, exceto por m eio de formas de discurso que são em si mesmas
consideradas com o privilegiadas. Se o discurso da experiência propor­
ciona a pedra de toque em relação à qual todas as pretensões ao co­
nhecimento devem ser medidas, então com o estabelecer a validade do
discurso da experiência, a não ser por uma referência circular à pró­
pria experiência? Ou ainda, se certos conceitos forem considerados
com o portadores da essência do real, com o é possível estabelecer que
eles realmente o são, exceto por meio de conceitos que dão a essência
do real?
Segundo, afirmar uma forma singularmente privilegiada de dis­
curso é afirmar que os objetos independentes do discurso existem na
forma de objetos reais ou potenciais do discurso. Portanto, suas pro­
priedades devem ser tais que eles possam ser realmente designados no
discurso da forma privilegiada e por ele descritos. Cada epistemología
implica, portanto, uma ontologia correspondente que afirma, no míni­
m o, que a totalidade daquilo que existe inclui todos os objetos desig­
nados e descritos' pelas formas privilegiadas do discurso. D a mesma
forma, vimos que cada epistemología implica sua própria concepção
particular das relações entre objetos e suas próprias formas particulares
de causalidade e determinação. Finalmente, a existência de formas sin­
gularmente privilegiadas de discurso proporciona a cada epistem olo­
gía as bases de uma série de críticas epistem ológicas de outros discur­
sos.
As implicações gerais dessas conseqüências foram discutidas em
outro lugar (M ode o f Production and Social Formation) e não precisam
ser consideradas aqui. O que devemos notar é que qualquer epistem o­
logía envolve toda uma série de posições inter-relacionadas, todas as
D E T E R M IN A Ç Ã O EM Ú L T IM A IN STÂ N C IA 199

quais se baseiam num postulado epistem ológico único e fundamental,


a saber, que há uma esfera do discurso, uma esfera de objetos existente
independentemente (no modo de objetos apropriáveis em form as específi­
cas de discurso), e que tal ou tal fo rm a de discurso efetua uma correlação
entre as duas esferas. N ão pode haver esperança de demonstração des­
se postulado. O empreendimento epistem ológico abre portanto um
campo de posições mutuamente incompatíveis entre as quais não pode
haver debate racional, mas no máximo uma simples série de afirma­
ções mais ou m enos tortuosas das mesmas posições fundamentalmente
opostas. M as o dogm atism o da epistem ologia não é simplesmente
uma característica de cada epistem ologia considerada separadamente,
é um constitutivo da empresa epistem ológica com o tal. Quaisquer que
sejam suas diferenças no nível de precisamente como a correlação entre
o discurso e seus objetos se deve efetuar, todas as epistemologías parti­
lham da presunção de que o m odo de existência dos objetos é tal que
eles podem ser apropriados em formas de discurso adequadas. Vimos
que não pode haver dem onstração de que precisamente tal ou tal for­
ma de discurso é a que produz esse resultado. N esse sentido, toda epis­
tem ologia é dogmática. Mas com o sabemos que esse resultado pode
ser obtido? O postulado epistem ológico fundamental nos diz que o
modo de existência dos objetos permite que sejam apropriados no dis­
curso. Mas não pode haver demonstração do postulado sem recurso às
formas de discurso que pretendem realmente designar os objetos que
consideramos serem apropriáveis. A empresa epistemológica é dogmá­
tica de ponta a ponta, e o dogm atism o da própria empresa é que asse­
gura o dogm atism o de cada uma de suas tentativas de resolução.

Conceitos, objetos de discurso


e suas condições de existência
A discussão precedente mostrou que a empresa epistemológica é, es­
sencialmente, arbitrária e dogmática. N ão há necessidade de concei­
tuar as relações entre o discurso e os objetos a que se refere em termos
tanto de distinção com o de correlação entre uma esfera do discurso e
uma esfera de objetos existente independentemente. N ada, além de
uma im posição epistem ológica totalmente arbitrária, nos obriga a
conceber um mundo que, ao mesmo tempo, é independente do discur­
so e existe na forma de objetos que são tanto extradiscursivos quanto
especificáveis no discurso. Mas, na ausência da concepção epistem oló­
gica, já não é possível uma referência a objetos que existem fora do
discurso, ou às formas de discurso que devem designá-los, com o a me­
dida da validade desse discurso. Pelo contrário, longe de proporcionar
uma medida externa do discurso, as entidades referidas nele são cons-
200 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

tituídas exclusivamente nas, e através das, formas do discurso em que


estão especificadas. Os objetos do discurso não podem ser especifica­
dos extradiscursivamente, só podem ser concebidos através das formas
de discurso nas quais são especificados, ou em outros discursos corre­
latos, complementares ou críticos. N ão se trata, no caso, de se os obje­
tos do discurso existem independentemente dos discursos que os especi­
ficam. Os objetos do discurso não existem absolutamente nesse senti­
do: são constituídos nos, e através dos, discursos que a eles se referem.
A estrutura de distinção/correlação da epistemología depende da con­
cepção dos objetos que existem independentemente do conhecimento
e, não obstante, em formas adequadas ao próprio conhecimento. N e­
gar essa concepção é rejeitar a epistem ología e o campo de problemas
nela definidos.
Quais as conseqüências dessa rejeição da epistemología para a
conceituação dos objetos e as relações entre eles e para a teoria marxis­
ta em particular? Primeiro, é necessário insistir em que a rejeição da
epistemología não significa a substituição de um dogmatismo por ou­
tro. O dogmatismo criticado acima é uma conseqüência necessária dos
postulados básicos da epistem ología. Postular uma correlação entre
um campo do discurso e o que é considerado com o um campo inde­
pendente de objetos do discurso é supor que certas formas de discurso
(o discurso da experiência, das ciências, etc.) efetuam diretamente essa
correlação. Tais formas de discurso proporcionam, portanto, uma pe­
dra de toque para a avaliação de todos os outros discursos, mas elas
próprias não podem estar sujeitas a essa avaliação. A s epistemologías
são dogmatismos porque postulam necessariamente certas formas de
discurso com o sendo imunes a maior avaliação. Negar a epistemología
é eliminar a base desse dogmatismo.
Segundo, segue-se que não pode haver forma privilegiada de dis­
curso do tipo postulado na epistemología. Essas formas privilegiadas
proporcionam à epistem ología pontos definidos de fechamervto do dis­
curso, pretendendo representar a ordem do próprio real. A tese de que
há um nível empírico do discurso singularmente privilegiado em ter­
mos do qual todas as teses, hipóteses e coisas semelhantes podem ser
avaliadas é o produto da epistemología empirista. D a mesma forma, a
tese de que certos conceitos, digamos, os básicos à problemática cientí­
fica de Althusser, proporcionam um ponto de referência último a que
todos os outros conceitos se devem conformar é o produto de uma
epistemología racionalista. Essas teses devem ser rejeitadas juntam en­
te com as epistemologías em que se baseiam. N ão pode haver concei­
tos básicos privilegiados do marxismo, ou outros campos de discurso
teórico. O projeto de Balibar na parte 2 de Lire "Le Capital” de identifi­
car os conceitos básicos do materialismo histórico, e a rejeição de
Althusser do humanismo teórico à base de sua diferença do que ele
D E T E R M IN A Ç Ã O EM Ú L T IM A IN S T Â N C IA ’ 201

considera com o os conceitos fundamentais da teoria marxista são pro­


dutos de uma epistem ología racionalista e devem ser rejeitados com
ela. Mas, se não há conceitos básicos, então nem o marxismo, nem
qualquer outro discurso teórico, pode estar sujeito às formas arbitrá­
rias de fechamento teórico prometidas pelas epistemologías. Os con­
ceitos dos diferentes m odos de produção especificam objetos distintos
do discurso. Funcionam com o os meios de formação de outros concei­
tos, com o meios e instrumentos de análise e argumentação, mas não
podem funcionar com o os conceitos básicos epistemológicamente pri­
vilegiados das conceituações racionalistas. Esses conceitos não têm um
primado necessário no discurso marxista e não podem servir com o cri­
térios absolutos que governam a crítica ou a formação de outros con­
ceitos. Representam um meio de conceituação no discurso, não uma
fonte privilegiada de dedução. Os discursos teóricos não são simples
deduções, ou extensões dos conceitos básicos. Pelo contrário, as difi­
culdades e problemas criados num e por um conjunto de conceitos
bem podem proporcionar as bases para a transformação, jevisão e
reorganização dos próprios conceitos. Por exemplo, os problemas e in­
coerências dos conceitos marxistas clássicos de m odo de produção,
formação social e classes, identificados no capítulo anterior, evidente­
mente pedem uma reavaliação fundamental de tais conceitos. Tratá-
los como conceitos básicos ou fundamentais à maneira do racionalis­
mo althusseriano é excluir a possibilidade dessa reavaliação funda­
mental. Os capítulos seguintes argumentam em favor do afastamento
do conceito do m odo de produção e de uma reconceituação das rela­
ções de produção e de sua relação com outras relações e práticas so­
ciais.
Mas é necessário, primeiro, delinear as implicações de uma rejei­
ção da epistem ología para a conceituação de objetos e das relações que
predominam entre eles. Vejamos o caso das relações de produção deli­
neado na primeira parte deste capítulo. Vimos que a especificação de
determinadas relações de produção envolve referências explícitas ou
implícitas às conseqiiências de outras relações e práticas sociais. D e­
terminadas relações de produção pressupõem que certas condições são
atendidas pelas formas jurídicas e culturais, pressupõem determinados
meios e condições de produção, agentes capazes de ocupar as posições
de “posse” e “separação” daqueles meios de produção, e assim por dian­
te. Chamamos a essas condições que são pressupostas por determina­
das relações de produção de condições de existência dessas relações. O
que devemos notar aqui é que os conceitos dessas condições de exis­
tência simplesmente especificam certas condições abstratas e gerais
que são pressupostas pelas relações de produção em questão. As rela­
ções de produção capitalistas pressupõem um sistema jurídico que per­
mite a formação de tipos particulares de relações e trocas contratuais.
202 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

O conceito das condições legais de existência das relações de produção


capitalistas impõe, portanto, limitações definidas ao tipo de sistema
jurídico compatível com as condições da produção capitalista. Mas
não nos pode dizer precisamente com o as formas necessárias de con­
trato serão providas nem que outras propriedades o sistema jurídico
poderia possuir. O mesmo ocorre com todas as outras condições de
existência das relações de produção. Derivar essas condições do con­
ceito de determinada relação de produção é não especificar as relações
e práticas sociais responsáveis por prover essas condições. Devem os
portanto distinguir entre condições de existência e as relações e as prá­
ticas sociais que as proporcionam. As primeiras podem ser inferidas do
conceito de determinadas relações de produção, mas as segundas não.
As relações de produção devem ser concebidas com o articuladas a ou­
tras relações e práticas sociais, mas não podemos deduzir quais serão
essas relações e práticas a partir das próprias relações de produção.
As conseqiiências dessa posição para a conceituação das conexões
entre as relações de produção e outros elem entos de determinadas for­
mações sociais serão consideradas no capítulo seguinte. Mas, se o
modo de produção e a formação social não forem conceituados em
termos epistem ológicos com o objetos definidos de discurso, que exis­
tem independentemente do discurso em si, então as formas nas quais
as condições de existência de determinadas relações de produção são
fornecidas não podem ser concebidas também, à maneira do raciona­
lismo, com o deriváveis, em princípio, das relações de produção cujas
condições de existência asseguram ou, à maneira do empirismo, com o
dadas empiricamente à teoria. As conceituações racionalista e empi-
rista da conexão entre as relações de produção e outras relações e prá­
ticas sociais asseguram ambas que os efeitos dessas outras relações
sociais não podem ser conceituados. Num caso, são tratados com o de­
riváveis em essência do conceito das relações de produção. Essas rela­
ções são tratadas com o assegurando suas próprias condições de exis­
tência e os efeitos de outras relações sociais são, portanto, concebidos
com o dados nas próprias relações de produção. N o outro caso, as con­
dições de existência são concebidas com o dadas fora da teoria e por­
tanto com o dependentes das circunstâncias do caso, com o situadas es­
sencialmente além do âmbito da determinação teórica.
A tese da determinação em última instância pela econom ia pro­
porciona um excelente exemplo dos efeitos teóricos das posições racio­
nalistas nas quais certos conceitos e formas de discurso são considera­
dos com o encerrando as características essenciais dos objetos capazes
de existência independente, unidades determinadas do ser. Certos con­
ceitos dão a essência do real e o que pressupõem deve, portanto, estar
representado no real. Vimos, além do mais, que aquilo que póde ser
D E T E R M IN A Ç Ã O EM Ú L T IM A IN STÂ N C IA 203

derivado na forma de condições de existência não especifica plena­


mente as formas precisas nas quais tais condições de existência são
oferecidas. A tese da determinação em última instância pela economia
define um espaço teórico para outras determinações intervirem nos
níveis superestruturais. Essas outras determinações são reais e têm
seus efeitos sobre a base econôm ica, a superestrutura “ reage sobre ela
como um elemento determinante” (O Capital, livro 3, p. 791), mas não
são essenciais. A determinação em última instância permite, portanto,
ao marxismo clássico reunir conceituações racionalistas e empiristas,
de modo que embora variações empiricamente dadas possam ser reco­
nhecidas, e a elas atribuída certa significação, as características essen­
ciais da formação social são, não obstante, consideradas com o deter­
minadas pelas relações de produção dominantes. As características
não determinadas pela econom ia são reconhecidas e consideradas
não-essenciais, e portanto inefetivas em última análise, num único e
mesmo movimento.
O argumento que liquida com a determinação em última instân­
cia elimina também a “ correspondência” que supostamente deveria
predominar entre as relações e as forças de produção. Ê claro que as
relações de produção e as forças de produção podem, cada qual, pro­
porcionar algumas das condições de existência da outra. As relações
de produção pressupõem que a produção ocorre, e só pode fazê-lo sob
determinadas formas de organização, com determinados meios de
produção e sob determinadas condições. Da mesma maneira, todas as
“ forças produtivas” pressupõem que a produção ocorre sob condições
sociais definidas e de acordo com alguma forma social definida de pos­
se dos meios e condições de produção. Podem ser de posse privada ou
coletiva, mas se não tiverem um possuidor então nenhuma agência so­
cial terá a capacidade de controlar-lhes o funcionamento. Vimos que o
conceito das condições de existência não pode dar a forma na qual es­
sas condições são asseguradas. A conceituação em termos de condi­
ções de existência e das formas nas quais essas condições são assegura­
das retira, portanto, o fundamento da concepção marxista clássica da
econom ia com o essencialmente estruturada por uma correspondência
definida entre as relações e as forças de produção.
Finalmente, e de forma mais geral, a crítica da epistem ología e o
argumento em favor da análise dos objetos - em termos de suas condi­
ções de existência e das formas pelas quais são asseguradas - destróem
as bases de todas as relações epistemológicamente concebidas, sejam
elas consideradas com o relações de conhecim ento entre um sujeito de
um tipo ou outro e objetos com que se defronta, ou com o relações de
causalidade e determinação. A significação desses pontos para a teoria
marxista não se restringe à conceituação da estrutura da formação so­
cial e as relações entre suas partes. O capítulo anterior mostrou que as
204 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SO CIA L

tentativas de conceituar as classes em relação à estrutura da formação


social falharam em conceituar as condições de existência dos agentes.
Antes conceberam as relações de agente para com a estrutura em ter­
mos de alguma com binação de uma relação de conhecimento, de um
lado, com uma relação de determinação, do outro. N esse sentido, con­
cepções da epistem ología e teorias da consciência de classe e sua signi­
ficação tendem a caminhar juntas. A crítica da epistemología exige
que as condições de existência sejam reconsideradas. Essa tarefa será
realizada num capítulo posterior.
C apí tul o 9

M odo de Produção,
Formação Social, Classes

Este capítulo examina as implicações da crítica da “ determinação em


última instância” e posições correlatas para a conceituação da estrutu­
ra da formação social e de classes. Veremos que é necessário rejeitar
tanto a pertinência do conceito de m odo de produção com o a concep­
ção da formação social com o uma totalidade organizada em dois ou
três níveis estruturais distintos, mas articulados. O corolário da con­
cepção de totalidade é a noção de um princípio organizador. A forma­
ção social não é uma totalidade governada por um princípio organiza­
dor, a determinação em última instância, a causalidade estrutural ou
qualquer que seja ele. Deve ser concebida como constituída de um
conjunto definido de relações de produção juntamente com as formas
econôm icas, políticas e culturais nas quais suas condições de existência
são asseguradas. Mas não há necessidade de que essas condições de
existência sejam asseguradas e nenhuma estrutura necessária da for­
mação social na qual essas relações e formas se devam combinar.
Quanto às classes, argumentaremos que, se forem concebidas com o
classes econôm icas, com o categorias de agentes econôm icos que ocu­
pam posições definidas de posse ou separação dos meios e condições,
de produção, então não podem também ser concebidas com o forças
políticas e formas ideológicas nem com o por elas representadas. Se­
gue-se que o conceito de luta de classes não pode ser mantido em suas
formas clássicas e não pode haver justificação para uma “ leitura” da
política e da ideologia para os interesses de classe que supostamente
representam.

Conceitos de modo de produção e formação social


Vimos que a concepção marxista clássica da formação social supõe
uma com binação definida de m odos de produção organizados em três
níveis estruturais (econôm ico, político e cultural-ideológico). A forma­
ção social funciona com o um todo social relativamente coerente, uma
206 CL A S S E S E E S T R U T U R A DA E O R M A Ç Ã O S O C I A l

“ sociedade” , sendo relativamente autônoma de outros objetos. Nessa


estrutura, um m odo de produção é dom inante e os outros lhe são su­
bordinados. Os m odos de produção são, eles próprios, organizados
em três níveis estruturais, ou dois no caso dos m odos de produção co­
munistas, e são governados pela “determinação em última instância”
da econom ia. Finalmente, a própria econom ia é estruturada por uma
combinação definida de relações e forças de produção na qual, segun­
do a versão do marxismo clássico em questão, ou as relações, ou as
forças, são dominantes.
Ora, a argumentação do capítulo precedente mina o conceito de
m odo de produção sob dois aspectos distintos. Primeiro, a tese da de­
terminação em última instância tem o efeito de transpor uma relação
entre conceitos, entre o conceito de uma economia, de um lado, e os de
suas condições de existência, do outro, numa relação de determinação
entre objetos - de m odo que a econom ia assegura suas próprias condi­
ções de existência na forma de níveis políticos e ideológico-culturais
adequados. Essa transposição não se pode justificar exceto em termos
de uma posição epistemológica racionalista que tem o efeito de dog­
maticamente tornar imune à crítica e argumentação um certo corpo de
conceitos. Rejeitar esse dogmatismo é rejeitar a transposição de rela­
ções entre conceitos em relações entre objetos. Segue-se que a relação
entre a economia e suas condições de existência não pode ser concei­
tuada à maneira da “ determinação em última instância” . Partindo do
conceito da econom ia, é possível especificar suas condições sociais de
existência na forma de pressupostos políticos, jurídicos e culturais bem
definidos. O conceito da econom ia implica condições abstratas e ge­
rais que devem ser satisfeitas por formas políticas, jurídicas e culturais,
para que sejam compatíveis com a econom ia em questão. O conceito
da econom ia nos dá os conceitos de suas condições de existência, mas
não nos diz a forma pela qual essas condições serão propiciadas. A s­
sim, a economia tem condições definidas de existência, mas não pode
assegurar que essas condições serão satisfeitas e, se o forem, não pode
determinar as formas pelas quais são atendidas.
Em Pre-Capitalist M odes o f Production Hindess e Hirst elaboram
um argumento correlato contra o conceito da causalidade estrutural
apresentado por Althusser e Balibar em Lire "L e C apital”. A causali­
dade estrutural refere-se a uma relação definida entre uma estrutura e
suas partes e indica que as partes constituem a totalidade das condi­
ções de existência da estrutura, enquanto a própria estrutura propor­
ciona as condições de existência de suas partes. A continuação da exis­
tência da estrutura está logicamente implicada na sua existência. É por
essa razão que Althusser se refere à estrutura com o “eternidade no
sentido de Spinoza” (Reading Capital, p. 107). Como a estrutura cons­
M O D O D E P R O D U Ç Ã O , F O R M A Ç Ã O S O C I A L , C L A S S ES 207

titui suas próprias condições de existência, não pode ser dependente de


quaisquer condições externas. Aqui também uma relação entre concei­
tos é transposta para uma relação entre objetos, pois a existência das
partes deve ser assegurada pela ação da estrutura a que pertencem.
Althusser apresenta a causalidade estrutural com o uma categoria filo ­
sófica cujo campo de aplicação é, portanto, mais geral do que o da de­
terminação em última instâricia. Longe de restringir-se ao marxismo, a
causalidade estrutural é pertinente a uma variedade de discursos teóri­
cos: “ Psicanálise, Lingüística, outras disciplinas com o Biologia, e tal­
vez mesmo Física” (ibid., p. 187). N ão obstante, em sua aplicação à
teoria marxista, os efeitos da causalidade estrutural são equivalentes
aos da determinação em última instância. A econom ia desempenha
um duplo papel. Está presente com o um nível na estrutura e determina
as relações entre os níveis da estrutura. É determinante, por um lado, e
pode ser afetada pelos outros níveis, pelo outro lado.
As críticas da causalidade estrutural e da determinação em última
instância levam à conclusão de que a econom ia não pode ser concebi­
da com o assegurando suas próprias condições de existência. Com efei­
to, ela acaba num conceito reduzido do m odo de produção, consistin­
do em uma econom ia, uma com binação definida de relações e forças
de produção, tendo condições de existência políticas, jurídicas e cultu­
rais definidas, que não podem ser asseguradas através da ação da pró­
pria econom ia. Tal conclusão é argumentada nos capítulos finais de
Pre-Capitalist M odes o f Production. M odo de produção, no sentido re­
duzido, não é equivalente ao nível econôm ico da concepção clássica, já
que não desempenha o papel de determinação em última instância, ou
o papel de matriz atribuído a ele pela causalidade estrutural de Althus­
ser. Mas esse conceito reduzido ainda conserva a noção de uma corres­
pondência necessária entre relações e forças de produção. Isso nos leva
ao segundo aspecto no qual o conceito do m odo de produção é mina­
do pela argumentação do capítulo anterior.
Partindo do conceito de relações de produção, é possível mostrar
que cada conjunto específico de relações de produção deve ter certas
condições de existência que só podem ser asseguradas por meios e pro­
cessos de produção definidos. Se não há produção, então os conceitos
de “ posse” e “ separação” dos meios e condições de produção são va­
zios. Da mesma forma, cada conjunto específico de forças de produ­
ção tem condições de existência que podem ser atendidas por relações
de produção definidas. Formas de organização do trabalho pressu­
põem a capacidade de algum agente, ou agentes, de controlar o funcio­
namento dos meios de produção. É fácil mostrar, em outras palavras,
que as relações e forças de produção pressupõem-se mutuamente. As
relações de produção têm algumas de suas condições de existência as­
seguradas por forças de produção, e estas dependem de relações de
20 8 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

produção para algumas de suas condições de existência. Até aqui,


muito bem. Se a tese da correspondência de relações e forças de produ­
ção não fosse além disso, não haveria objeções a ela. Infelizmente, a
tese de correspondência vai além das afirmações bastante triviais de
que a posse dos meios de produção pressupõe a produção e de que esta
pressupõe a capacidade de algum agente, ou agentes, de controlá-la.
D e fato, vimos que a tese da correspondência vai lado a lado com
a tese do primado das forças produtivas (com o no marxismo da Se­
gunda Internacional e do M aterialism o Dialético e H istórico de Stalin)
ou a tese do primado das relações de produção (a posição chinesa,
também apresentada em Lire “L e C apital” e, com diferenças significa­
tivas, em Pre-Capitalist M odes o f Production). Uma vez afirmada a ne­
cessidade de correspondência, um meio de efetivar e restabelecer a cor­
respondência deve ser postulado. Ambas as teses mantêm que a não-
correspondência pode ocorrer e, se ocorrer, então a correspondência
será restabelecida através da transformação das relações ou forças de
produção. Para a tese do primado das forças, qualquer não-
correspondência é corrigida através da transformação das relações de
produção. Inversamente, para a tese do primado das relações de pro­
dução, a correspondência se efetua através da transformação das for­
ças produtivas. Há uma correspondência necessária entre relações e
forças no sentido de que, no caso de ocorrer não-correspondência,
uma das duas age de maneira a colocar a outra em linha. A s relações
ou as forças agem de m odo a assegurar suas próprias condições econô­
micas de existência. Também nesse caso, uma relação entre conceitos é
transposta para uma relação de efetividade entre objetos: o que é pres­
suposto nos conceitos das forças (relações) passa a existir através da
efetividade das próprias forças (relações).
A tese da correspondência necessária de relações e forças de pro­
dução, portanto, sucumbe ao mesmo argumento geral que liquidou a
tese da determinação em última instância e da causalidade estrutural.
Mas se a correspondência não é exigida, então a conexão entre as rela­
ções e as forças de produção só pode ser conceituada em termos de
condições de existência e as formas pelas quais são asseguradas. Ou a
articulação das relações e forças de produção pode ser concebida em
termos de alguma forma de necessidade, de m odo que o caráter de
uma coisa, as relações ou as forças, é dedutível do conceito da outra,
ou deve ser concebida em termos da conexão entre relações sociais e as
formas nas quais suas condições de existência são asseguradas. Vimos
os problemas da primeira alternativa. A segunda significa que não há
razão para postular m odos de produção com o objetos característicos
de análise na teoria marxista. Uma vez negada a necessidade de corres­
pondência entre as relações e forças de produção, uma vez concebida
uma delas com o simplesmente sujeita a certas condições abstratas e
M O D O D E P R O D U Ç Ã O . F O R M A Ç Ã O SOCIAL, CLASSES 209

gerais, para que seja compatível com as condições de existência da ou­


tra, então não há razão para se manter que a cada conjunto caracterís­
tico de relações (forças) de produção deva corresponder um conjunto
de forças (relações) de produção igualmente característico. A tentativa"
de teorização dos m odos de produção, segundo a qual uma série de re­
lações corresponde necessariamente a uma série de forças, com o ob­
jetos característicos e primários de análise, envolve um descaso corre­
lato dos problemas de conceituação das condições de existência de for­
mas mais com plexas de relações de classe econôm icas constituídas pe­
las com binações de relações distintas de produção. A significação dis­
so se tornará mais clara num capítulo posterior no qual examinamos
os conceitos de classe e de posse e separação dos meios e condições de
produção.
Podem os agora passar à concepção marxista clássica da estrutura
da formação social. Se, com o argumentamos, é necessário rejeitar a
pertinência do conceito de m odo de produção para a teoria marxista,
então é impossível manter a concepção clássica da formação social
com o uma com binação de m odos de produção. Da mesma forma, a
tentativa de Pre-Capitalist M odes o f Production de afastar-se da con­
cepção de uma com binação de m odos conceituando o nível econôm ico
de uma form ação social com o constituído de um m odo de produção
dominante, juntam ente com elem entos de outros m odos, não pode ser
sustentada.
Mas há também um problema mais geral que se relaciona com a
conceituação da form ação social com o uma totalidade social interna-.
mente diferenciada, uma “sociedade” com diferentes níveis de efetivi­
dade e formas de primado ontológico. N a concepção clássica, a for­
mação social é vista com o uma com binação de m odos de produção e
níveis estruturais de tal maneira que um m odo é dominante e um nível
é primário. O nível econôm ico do m odo de produção dominante tem
um primado ontológico no sentido de determinar “em última instân­
cia” a articulação geral dos m odos de produção e os níveis estruturais
na formação social com o um todo. A os m odos de produção e aos
níveis estruturais subordinados atribúi-se uma efetividade definida,
como uma função do caráter do nível econôm ico do m odo de produ­
ção dominante. À parte os problemas do conceito de m odo de produ­
ção, essa concepção da formação social suscita, de uma forma diferen­
te, as dificuldades que já encontram os com a tese da determinação em
última instância e da correspondência necessária das relações e forças,
de produção. A concepção da formação social, com o tendo uma estru­
tura definida e necessária governada por relações definidas e necessá­
rias de efetividade entre suas partes, baseia-se na concepção epistem o­
lógica da form ação social que existe independentemente dos discursos
nos quais é especificada. Para ver isso, é suficiente voltar à questão da
210 CLASSHS F E S T R U T U R A l)A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

posição das relações de produção frente ao resto da formação social.


O conceito de relações de produção definidas nos dá as condições de
existência dessas relações na forma de certas condições abstratas e ge­
rais que devem ser satisfeitas por formas políticas, jurídicas e culturais,
para que sejam compatíveis com a presença dessas relações de produ­
ção. Por exemplo, as relações de produção capitalistas pressupõem al­
guma forma de Direito Comercial que reconheça certas formas de pro­
priedade e contrato, em particular contratos de compra e venda de
mercadorias e de troca de tempo de trabalho contra salários m onetá­
rios. Mas, se as relações de produção pressupõem condições de exis­
tência oferecidas por outras relações sociais, não podem gerar essas
condições de existência ou determinar as relações sociais que as possi­
bilitam. Nem o conceito das relações de produção, nem o conceito de
qualquer outra parte da formação social, pode manter a tese da efetivi­
dade necessária ou do primado ontológico dessa parte.

Se as relações de necessidade e primado ontológico não estão nos


conceitos das partes e relações sociais que devem constituir a forma­
ção social, então devem ser estabelecidas de alguma outra maneira. É
precisamente porque a formação social é concebida com o uma unida­
de social definida que existe independentemente dos discursos que a
especificam que as relações de necessidade podem ser consideradas
com o dadas na própria formação social, com o existentes independen­
temente do discurso e, portanto, com o necessárias ao discurso, para
que este seja capaz de especificar a formação social. Vimos que conce­
ber um campo de objetos que existe independentemente do discurso e
ainda assim especificável dentro dele, também é postular um nível ou
forma definida de discurso, com o dando acesso direto e privilegiado a
membros do campo de objetos. A concepção marxista clássica da es­
trutura da formação social envolve uma posição epistemológica racio­
nalista no sentido de que postula um corpo singularmente privilegiado
de conceitos, os conceitos básicos do materialismo histórico, com o re­
presentando diretamente a estrutura essencial do próprio real. A estru­
tura essencial do real é, portanto, concebida tanto com o representada
no discurso quanto com o externa a ele. A diferenciação interna da for­
mação social, as relações definidas e necessárias de efetividade entre
seus níveis e o primado do nível económ ico do modo de produção do­
minante são concebidos com o existentes independentemente do dis­
curso e representados nele através dos conceitos básicos da teoria mar­
xista. Nesse sentido, a concepção marxista clássica da estrutura da for­
mação social envolve tanto os conceitos de relações e práticas sociais
particulares, relações de produção, Direito, a política e o Estado, a
ideologia, etc., quanto uma conceituação epistemológica racionalista
definida da relação entre o discurso e seus objetos.
M O D O D E P R O D U Ç Ã O , F O R M A Ç Ã O S O C IA L , C L A S S E S 211

Ora, argumentamos que o projeto epistem ológico não é necessá­


rio e que as relações entre o discurso e seus objetos não precisam ser
concebidas em termos de uma distinção e de uma correlação entre um
campo do discurso e um campo de objetos com existência independen-
te. Mas na ausência de urna tal concepção epistem ológica, já é possível
conceber objetos que existem fo ra do discurso (e representados nos
conceitos básicos do discurso) com o a medida de validade desse dis­
curso. Pelo contrário, na ausência desses objetos especificáveis e no
entanto extradiscursivos, os elem entos especificados no discurso de­
vem ser concebidos exclusivamente nas, e através das, formas de dis­
curso nas quais são constituídos. O que é especificado no discurso teó­
rico não pode ser especificado extradiscursivamente; só pode ser con­
cebido através desse discurso ou de um dicurso correlato, crítico ou
complementar.
Quais as conseqüências de uma rejeição da conceituação episte­
mológica para a concepção marxista clássica da formação social e sua
estrutura? Vimos acima que os conceitos de determinação em última
instância, correspondência das relações e forças de produção e modo
de produção já não podem ser mantidos. A observação mais geral a
ser feita é a de que a concepção da formação social com o tendo uma
estrutura necessária em relações definidas e necessárias de efetividade
entre suas partes também não pode ser sustentada. Com efeito, todos
esses conceitos formados através da postulação da correspondência
necessária e formas necessárias de efetividade, dominância e determi­
nação, devem ser rejeitados já que são, pelo menos em parte, uma fun­
ção da conceituação epistemológica. Ficamos, então, com os conceitos
de relações e práticas sociais definidas, relações e forças de produção,
Direito e assim por diante, mas não há forma necessária na qual esses
conceitos devam ser articulados no conceito da estrutura essencial de
uma formação social.
Que é feito, então, do primado discursivo atribuído à economia
na teoria marxista? N a concepção clássica, o primado discursivo atri­
buído à econom ia e à produção em particular envolve uma concepção
definida da estrutura ontológica de um mundo de m odos de produção
e formações sociais existindo independentemente do discurso marxis­
ta: a análise das formações sociais começa com a produção e a econo­
mia, porque elas determinam o caráter essencial de todas as outras re­
lações e práticas sociais. Na ausência de conceituações epistem ológi­
cas, não pode haver um primado ontológico concedido à produção, à
economia ou qualquer outra característica dá formação social. O pri­
mado discursivo da econom ia não se pode justificar por referência à
estrutura essencial de qualquer cam po de objetos independentemente
existentes. Se, como argumentamos, as relações sociais devem ser exami­
nadas em termos de suas condições de existência e as formas nas quais

jj IKSTÍTUTG ©S
FILOSOFIA E
C IÊ N C IA S SO CIAIS
212 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

essas condições são fornecidas, então não pode haver nada nas pró­
prias relações sociais, ou suas inter-relações, que justifique a concessão
do primado discursivo a quaisquer relações ou série de relações especí­
fica. Pelo contrário, o primado discursivo só pode ser função da colo­
cação de problemas definidos para teorização. Se as relações de pro­
dução e suas condições de existência forem apresentadas com o um
problema para a teorização, então essas relações devem ter um prima­
do na resolução discursiva desse problema.
Por exemplo, os conceitos de formações sociais desenvolvidos na
teoria marxista são uma função de problemas políticos e teóricos defi­
nidos. Esses conceitos e os de m odos de produção foram desenvolvi­
dos à base de uma variedade de problemas que derivam das mais di­
versas fontes e elaborados em termos de meios diversos de conceitua­
ção: ideologias políticas (socialismo e comunismo); debates históricos
e antropológicos e a prática do historiador; problemas oriundos do
processo de exposição teórica (por exemplo, a elaboração do conceito
de produção simples de mercadorias em O Capital)', debates políticos e
teóricos com o narodnismo e o marxismo legal no caso de O Desenvol-
•vimento do Capitalismo na Rússia, etc. Problemas criados pela política,
ou gerados dentro da teoria marxista ou por outras formas de teoriza­
ção constituem os objetos da teorização e problematização no discurso
marxista. A maneira pela qual os problemas são colocados e teoriza­
dos não depende do desenvolvimento da teoria marxista apenas. Ê
também função da política marxista e das proporções nas quais os
problemas políticos podem gerar problemas para a teorização.
Os objetivos políticos de uma transformação socialista das rela­
ções econômicas de classe levantam o problema das relações de produ­
ção e suas condições de existência políticas e culturais com o objetos
primários de teorização para o marxismo. Os conceitos de formações
sociais proporcionam uma teorização das formas e condições nas
quais a produção e distribuição, as práticas políticas e ideológicas são
efetivas. São um m eio de conceituar a efetividade, do cálculo dos efei­
tos, dos m ovimeptos de produção e distribuição, das possibilidades e
resultados da ação política, e assim por diante. Os conceitos de forma­
ções sociais especificam economias e relações econômicas de classes,
suas condições políticas e jurídicas de existência e as possibilidades de
sua transformação. A conceituação das formações sociais envolve,
portanto, a conceituação de:
1. R elações de p ro d u ç ã o e relações de classe econôm icas.
2. M eios e processos de p ro d u ç ã o específicos e fo rm as de d istribuição d o s p ro d u to s
e su as relações com as form as específicas de posse e se p ara ção dos m eios e condições de
p ro d u ç ã o e de relações econôm icas de classe.
3. F o rm a s d o E stad o e de política.
4. F o rm a s cu lturais e ideológicas, com o, p o r exem plo, as fo rm as de cálculo em p re­
g ad as na o rg an ização d a p ro d u ç ã o e do com ércio, form as de cálculo político, etc.
M O D O DE P R O D U Ç Ã O , F O R M A Ç Ã O SOCIAL, CLASSES 213

5. R elações co m o u tra s form ações sociais,


6. C o n d içõ es e p o ssib ilid ad es da tra n sfo rm a ç ã o de algum as dessas form as e rela­
ções - p o r exem plo, d a tra n siç ã o do cap italism o p a ra o socialism o.

A formação social nesse sentido não designa “ sociedade” , uma


totalidade social que existe independentemente dos discursos nos
quais é especificada, e governada pelo princípio organizador da “ de­
terminação em última instância” , ou “ causalidade estrutural” . Nem
representa determinados estados dessa entidade, ou estágios de sua
dissolução em outra forma de totalidade social. Nem a substituição
necessária nem a persistência de uma formação social ou de seus ele­
mentos pode ser deduzida do conceito da própria formação social. Os
elementos políticos, jurídicos e culturais de uma formação social não
podem ser reduzidos à fórmula marxista clássica da base econômica e
suas conseqüentes superestruturas. As condições políticas, jurídicas e
culturais proporcionam as formas nas quais as condições de existência
de relações de produção são asseguradas, mas essas condições não são
redutíveis aos seus efeitos ao nível da econom ia, e não podem ser con-'
cebidas com o organizadas em níveis estruturais definidos que simples­
mente refletem a estrutura de uma base econôm ica subjacente.

Classes econôm icas, política e cultura


O marxismo clássico concebe as classes, primeiro, com o categorias de
agentes econôm icos definidos pela posição em relação à posse e à se­
paração dos meios e condições de produção, e, segundo, com o entida­
des que constituem, ou são representadas por, forças políticas e for­
mas culturais definidas. Vimos que qualquer concepção da irredutibi-
lidade da política e da cultura à econom ia deve tornar essa concepção
de classes extremamente problemática. Se as classes forem concebidas
com o categorias de agentes econôm icos, então não podem também ser
concebidas corno agências políticas e culturais. Segue-se que as insti­
tuições e práticas políticas, as ideologias e outras formas culturais não
podem ser concebidas com o classes ou com o representação direta de
seus interesses.
Para se chegar a tal conclusão, é necessário mostrar que na ausên­
cia da determinação em última instância, ou causalidade estrutural, a
concepção de formas políticas e culturais com o representativas das
classes econôm icas e seus interesses não pode ser mantida. A formação
social deve ser, então, concebida com o incluindo um conjunto especí­
fico de relações econômipas de classes, juntam ente com as formas eco­
nômicas, políticas e culturais nas quais as condições de existência são
asseguradas. As formas políticas e culturais não são determinadas, em
última instância ou de outro m odo, pelo sistema de relações econôm i­
cas. D ada essa concepção da formação social, é possível conceber as
214 C L A S S E S L E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O S O C IA L

práticas políticas e culturais com o representativas das classes econô­


micas e de seus interesses?
O conceito de representação implica uma distinção entre o que é
representado, as classes econôm icas e seus interesses, e a própria re­
presentação, as práticas políticas e culturais de organizações e institui­
ções específicas. As classes não representam, de forma imediata e dire­
ta, a si mesmas. Quando examinamos as lutas políticas e ideológicas,
encontramos aparelhos estatais, partidos e organizações políticas, ma­
nifestações e motins, corpos de homens armados, jornais e revistas,
etc., mas não encontramos classes, umas alinhadas contra as outras.
Nem verificamos que as questões na luta política tomam a forma de
conflitos diretos entre classes em busca da hegemonia política, ou
sobre o caráter específico das relações de produção, feudalismo contra
capitalismo, capitalismo contra feudalismo, ou quaisquer outros. A
análise política marxista clássica insistiu sempre na especificidade das
forças e questões em jogo no conflito político, no fato de que as lutas
políticas não são direta e imediatamente redutíveis a classes e seus in­
teresses. Por exemplo, em “A Discussão da Autodeterminação Resu­
mida” , Lênin ataca a redução econom icista que a extrema esquerda
faz da política a tal conflito de classes, nos termos seguintes:
Im ag in ar q u e a rev o lu ção social é concebível sem rev o ltas pelas peq u en as n ações n as co­
lôn ias e n a E u ro p a, sem explosões rev o lu cio n árias p o r um a p arte da pequen a-b u rg u esia
com todos os seus preconceitos, sem um m o v im en to das m assas p ro letárias ou semi-
proletárias politicam ente' não-conscientes contra a opressão pelos latifundiários, a Igre­
ja e a m o n a rq u ia , c o n tra a o p ressão n acional, etc. - im ag in ar tu d o isso é repudiar a revo­
lução social. Assim, um exército tom a posição num lugar e diz: “ Som os pelo socialismo” e
o u tro , em algum o u tro lugar, e diz: “ S om os pelo cap italism o ” , e haverá u m a revolução
social... quem q u er q u ç espere u m a revolução social “ p u ra ” ja m a is viverá p a ra vê-la.
( C ollected W orks, vol. 22, p p. 355-6).

O que está em jogo é o reconhecimento das principais questões políti­


cas e das forças nelas empenhadas. N a prática, os clássicos da política
marxista admitiram a especificidade das forças e questões políticas.
Mas, na teoria, o marxismo insiste em que as lutas políticas e ideológi­
cas devem ser conceituadas em termos de classe. Essa discrepância é
contida no conceito de representação, na diferença entre o que é repre­
sentado, as classes, seus interesses e lutas, e sua representação em for­
ças, questões e lutas políticas e ideológicas específicas. Falar de repre­
sentação nesse contexto é tratar lutas políticas específicas com o repre­
sentações ou expressões de alguma coisa que não está imediatamente
presente nelas. Q conteúdo da representação não está imediatamente
presente: deve ser lido a partir das formas específicas nas quais é repre­
sentado. Lênin insiste com freqüência em que o equilíbrio das forças
políticas não pode ser deduzido de relações econômicas de classe. Em
O Programa Agrário da Social-Democracia na Primeira Revolução Rus-
M O D O D E P R O D U Ç Ã O , F O R M A Ç Ã O S O C IA L , C L A S S E S 215

sa, ele avalia o equilibrio das forças de classes por meio de uma análise
das organizações políticas, seus programas e ideologias. A especifici­
dade das lutas políticas é reconhecida e vista com o representativa da
luta de classes econôm icas. A idéia da representação parece proporcio­
nar ao marxismo urna alternativa autêntica à redução econom icista da
luta política e ideológica a relações econôm icas. As forças políticas
não são redutíveis a classes, elas representam as classes.
Pode esse conceito de representação ser mantido? Ele envolve três
aspectos: o que é representado - os interesses de classes e os conflitos
entre eles; os meios de representação - organizações, instituições polí­
ticas etc.; e a própria representação - as práticas dessas organizações,
instituições, etc. Se a representação não é diretamente redutível àquilo
que representa, isso só pode ocorrer devido à efetividade específica dos
meios de representação. A diferença entre aquilo que é representado e
sua representação pressupõe uma efetividade específica e determinada
dos meios de representação. Segue-se que os meios de representação,
organizações e instituições políticas, m odos de organização e luta polí­
tica, não podem em si m esm os ser redutíveis a classes e seus interesses.
Assim, conceber a política e a cultura em termos da representação dos
interesses de classe é admitir formas políticas e culturais que são em
princípio irredutíveis a classes e seus interesses. A própria representa­
ção é sempre uma função de dois elem entos independentes, o conteú­
do e os meios de representação. Se esses elementos não são indepen­
dentes, então a representação é diretamente redutível ao que ela repre­
senta.
Uma conclusão semelhante resulta das tentativas de Gramsci de
desenvolver um marxismo antieconom icista. A luta política e cultural
deve ser concebida com o uma guerra de posições travada entre forças
que representam princípios distintos e antitéticos de organização so­
cial e as classes que funcionam com o os principais portadores sociais
desses princípios. Falar de uma guerra de posição é falar de um terre­
no no qual é travada a guerra e de características específicas e determi­
nadas desse terreno, dos pontos em que determinadas batalhas podem
ser ganhas e perdidas. A noção de uma guerra de posição entre classes
e forças que as representam leva, portanto, pelo menos a uma concep­
ção implícita de um terreno que é, em princípio, irredutível às classes e
seus interesses.
Mas, se os meios de representação são irredutíveis em princípio às
classes e seus interesses, dois problemas devem surgir para a proble­
mática da representação. Primeiro, com o são os meios de representa­
ção obrigados a funcionar de m odo a produzir uma representação dos
interesses de classe? Segundo, com o devem os interesses representados
ser identificados a partir de suas representações políticas e culturais? O
primeiro problema simplesmente suscita outra versão da questão da
216 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

“ autonom ia relativa” : com o é possível ser autônom o, por um k d o , e


não autônom o, pelo outro? C om o é possível que os meios políticos e
culturais de representação sejam independentes de classes econômicas
e seus interesses, por um lado, e ainda assim sejam forçados a repre­
sentar esses interesses, por outro lado? O problema é insolúvel. Se as
instituições, organizações, etc., políticas não são determinadas, em úl­
tima instância ou de algum outro m odo, pelo sistema de relações de
classes econôm icas, então não podem também ser compelidos a fun­
cionar com o os meios de representação dessas relações.
Por exemplo, nas interpretações lukacsiana e weberiana de es­
querda do marxismo, discutidas no Capítulo 7, os interesses de classe
são vistos com o determinados no nível da econom ia, e a representação
desses interesses na política, ideologia, etc., é concebida com o uma
função da vontade e consciência de uma multiplicidade de atores. Os
meios de representação, nesse caso a vontade e consciência dos sujei­
tos hum anos, são independentes dos interesses cuja representação de­
vem proporcionar. Vimos que essas posições implicam necessariamen­
te a conclusão de que a política e a cultura são irredutíveis em princí­
pio às classes econôm icas e aos seus interesses. Se a representação de
interesses determinados econom icam ente depende de atos de reconhe­
cim ento e de vontade por parte de vários sujeitos humanos indepen­
dentes, então não pode haver necessidade de que tais interesses sejam
representados. Vimos os efeitos teóricos e políticos dessas posições. As
instituições, organizações e práticas políticas devem ser consideradas
com o expressões mais ou menos adequadas dos interesses de classes
econôm icas. Com efeito as formas políticas são reconhecidas com o ir­
redutíveis a classes econôm icas e seus interesses, mas não há qualquer
tentativa de conceituar sua efetividade com referência às relações eco­
nômicas de classes ou a outros elem entos da formação social.
Mas o exemplo das concepções subjetivistas de classe ilustra uma
característica geral da problemática da representação. Ou os meios
políticos e culturais de representação são determinados pela econom ia
e as representações são imediata e diretamente redutíveis às classes e
interesses representados, ou os meios de representação não são deter­
m inados pela econom ia e não há necessidade de representação política
e cultural de classes e seus interesses. A problemática da representação
é tão instável e em última análise incoerente quanto a da autonom ia
relativa e essencialmente pelas mesmas razões. Longe de proporcionar
uma alternativa coerente para a redução econom icista da luta política
e ideológica aos efeitos das relações de classes econôm icas, a noção de
representação envolve simplesmente um econom icism o com plicado.
Para o econom icism o, as forças políticas e ideológicas são, em última
análise, redutíveis aos efeitos das relações econômicas de classes e aos
interesses por elas constituídos. N a análise política o econom icism o
M O D O D L P R O D U Ç Ã O , F O R M A Ç Ã O S O C IA L , C L A S S E S 217

leva à redução das forças e questões políticas aos interesses determina­


dos em outro lugar (basicamente na econom ia). Elas são analisadas
não em termos de suas condições de existência específicas e sua efetivi­
dade quanto a outras relações e práticas sociais, mas antes pelos inte­
resses que devem representar. Na ausência da determinação em última
instância, ou algum equivalente, o econom icism o não se pode susten­
tar. Vimos que a restrição “em última instância” tem o caráter de um
gesto: afirma o primado da econom ia, ao mesmo tempo que afirma
que a política e a ideologia não podem ser simplesmente reduzidas aos
seus efeitos. Mas se a formação social não é governada, “em última
instância” ou de algum outro modo, pelo primado da economia, então
as forças políticas e ideológicas não podem ser reduzidas aos efeitos
das relações de classes econômicas. As forças políticas e ideológicas ou
são redutíveis às classes ou frações de classes, ou não o são. Negar o
economicismo é rejeitar a concepção clássica da unidade econômico-
político-ideológica das classes. É manter que as lutas políticas e ideo­
lógicas não podem ser concebidas com o as lutas de classes econôm i­
cas. N ão há meio-termo possível.
A resolução do segundo problema, ou seja, com o devem os inte­
resses representados ser identificados a partir de suas representações
política e cultural, segue-se da resolução do primeiro. Ou a representa­
ção não passa de um econom icism o com plicado, ou acaba com a con­
cepção clássica de classes. Para o econom icism o, não há nenhum
problema real de identificar os interesses representados nas lutas polí­
ticas e ideológicas específicas do momento. O econom icism o simples­
mente tira as conseqüências da tese da determinação em última instân­
cia. Envolve uma concepção reducionista da formação social na qual
as características essenciais do Direito e da política são determinadas
pela economia. A determinação em última instância admite caracterís­
ticas que reagem de volta sobre a econom ia e não são por ela determi­
nadas. Tais características existem, mas não são essenciais. O mesmo
acontece com o economicismo: lutas políticas e ideológicas são essen­
cialmente redutíveis aos interesses das classes e ao conflito irreconci­
liável entre elas. As lutas políticas e ideológicas específicas e manifes­
tas do m om ento bem podem ter outras funções que lhes disfarçam o
caráter real. Tais características existem e têm efeitos reais - por exem­
plo, confundem o não-iniciado e dissimulam o caráter essencial de
classe dessas lutas. Têm efeitos reais, mas não são essenciais. Para o
econom icism o, não há problema em separar a essência, as classes eco­
nômicas e seus interesses, das formas manifestas de seu aparecimento,
as lutas políticas e ideológicas específicas do m omento. N ão há
problema, no caso, simplesmente porque os interesses essenciais são
conhecidos independentemente das formas concretas de sua represen­
tação: estão dados no conceito da própria economia.
218 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

Se rejeitarmos o econom icism o e tom arm os a sério essa rejeição,


então a questão da representação não poderá surgir. As práticas, ques­
tões e lutas políticas e culturais não representam interesses determina­
dos em outro lugar, no nível da econom ia. Segue-se que forças, ques­
tões e lutas políticas específicas já não podem ser interpretadas como
essencialmente representativas de alguma outra coisa. Já não é possível
analisar a política pela separação da luta de classes essencial e os as­
pectos não-essenciais de que ela se reveste. Alguns partidos e organiza­
ções políticas pretendem representar os interesses de uma classe (mui­
tos outros não). M as esses “interesses” não podem ser compreendidos
com o “ objetivamente” dados, com o determinados pelas relações eco­
nômicas de classes e em seguida reconhecidos pelo partido ou organi­
zação em questão. São constituídos em termos de ideologias políticas
definidas por meio de práticas políticas e culturais específicas. Os “in­
teresses” de classe não são dados à política e ideologia pela econom ia.
Surgem dentro da prática política e são determinados com o um efeito
de m odos definidos da prática política. A prática política não reconhe­
ce os interesses de classe e em seguida os representa: ela constitui os in­
teresses que representa.
A redução econom icista da política e cultura a “interesses” de
classe cria um m odo definido de cálculo político no qual as organiza­
ções e programas são avaliados em termos de sua pertinência para
com esses “ interesses” . Esse m odo de cálculo político é empregado de
uma maneira ou de outra pelos partidos e agrupamentos marxistas e,
mais geralmente, através de grande parte da esquerda não-marxista. É
um m odo possível de cálculo político, mas não um m odo necessário, e,
com o vimos, não tem base teórica coerente. Grandes líderes políticos
marxistas, com o Lênin e M ao Tsé-tung, superaram o econom icism o
na prática: confrontaram a especificidade das lutas e forças políticas e
chegaram a um entendim ento com elas. M as não foram além do eco­
nom icism o em teoria: não criticaram a problemática da representação
e os princípios econom icistas básicos que encerra, e não ofereceram
nenhuma alternativa teórica para ela. Em O Programa Agrário da So-
cial-Democracia na Primeira Revolução Russa, por exemplo, Lênin re­
conhece a especificidade das lutas políticas e avalia o equilíbrio das
forças políticas por meio de uma análise de organizações políticas,
seus programas e ideologias. M as interpreta esse equilíbrio com o um
equilíbrio de forças de classes.
Se a problemática da representação não proporciona uma alter­
nativa teórica coerente para o econom icism o, é necessário rejeitar a
análise da política em termos das ações de classes e suas representa­
ções. A avaliação das questões e forças políticas é uma função de obje­
tivos políticos definidos e ideologias definidas, socialismo, liberalismo,
M O D O DE P R O D U Ç Ã O , F O R M A Ç Ã O SOCIAL, CLASSES 219

feminismo, ou seja lá o que for. Para o marxismo, isso significa o


abandono da avaliação de questões e forças políticas em termos dos
interesses essenciais de classes. Significa avaliá-los em termos de uma
concepção definida da organização e da ideologia socialista e de uma
estimativa das questões políticas dominantes do m om ento. Os marxis­
tas terão de esclarecer seus padrões de avaliação das forças políticas,
suas concepções do que é um movimento socialista e quais os seus ob­
jetivos, e sua concepção do que são as lutas cruciais da política con­
temporânea. Somente a análise dessas lutas e dos grupos, partidos e
organizações específicos que a elas se dedicam nos pode dizer quais
podem ser os nossos aliados políticos.

Sumário e conclusão
Este capítulo tem desenvolvido as implicações da crítica da “ determi­
nação em última instância” , “causalidade estrutural” e posições corre­
latas para as concepções marxistas clássicas do modo de produção,
formação social e de classes. Argumentamos que a pertinência do con­
ceito de m odo de produção deve ser rejeitada e que a formação social
não pode ser concebida com o organizada em dois ou três níveis distin­
tos mas articulados, governados pela determinação em última instân­
cia da economia. A concepção clássica da formação social envolve
conceitos de relações e práticas sociais particulares, relações de produ­
ção, forças de produção, Direito, política e Estado, ideologia e assim
por diante, por um lado, e uma conceituação epistem ológica raciona­
lista definida das relações entre o discurso e seus objetos, por outro la­
do. N a ausência dessa conceituação epistem ológica, as correspondên­
cias necessárias e as relações necessárias de efetividade, dominância e
determinação postuladas na teoria marxista já não podem ser manti­
das. Segue-se que a concepção da formação social com o tendo uma es­
trutura definida e necessária, com relações de efetividade definidas e
necessárias entre suas partes, também não pode ser mantida. O prima­
do discursivo atribuído à econom ia no marxismo clássico não pode
então ser justificado por referência à estrutura essencial da formação
social. Argumentamos que a atribuição de primado discursivo a quais­
quer relações ou conjunto de relações particulares só pode ser uma
função da colocação de problemas definidos para a teorização. Os
conceitos de formações sociais desenvolvidos na teoria marxista são
uma função de problemas políticos e teóricos definidos. Os objetivos
políticos de uma transformação socialista das relações econômicas de
classes levantam o problema das relações de produção e suas condi­
ções políticas e culturais de existência com o objetos primários da teo­
rização para o marxismo. Portanto, argumentamos em favor de uma
220 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

conceituação das formações sociais em termos de um conjunto defini­


do de relações de produção, as formas econôm icas, políticas e cultu­
rais nas quais essas condições de existência são asseguradas, e as possi­
bilidades de transformação dessas formas e relações.
A segunda parte do capítulo exam inou a conceituação das liga­
ções entre relações de classes econôm icas, a política e a cultura, em ter­
mos da “representação” política e cultural de classes e seus interesses
nas práticas de determinados grupos, instituições e organizações. Ar­
gumentamos que a problemática da representação é essencialmente
instável e que não oferece alternativa teórica coerente para a redução
econom icista de tudo a uma manifestação mais ou menos direta do es­
tado da economia. A escolha, para o marxismo, se faz entre um econo-
micismo sistemático e uma rejeição da concepção clássica da política e
cultura em termos das representações necessárias das classes econôm i­
cas e de seus interesses. A primeira alternativa nos leva de volta à tese
da determinação em última instância e seus efeitos, enquanto a segun­
da significa que as lutas políticas e ideológicas não podem ser concebi­
das com o, ou com o representando, as lutas de classes econômicas. A
avaliação das questões e forças políticas já não pode ser concebida
com o uma questão de interesses essenciais de classes. É uma questão
de objetivos e ideologias políticos definidos. Para o marxismo, tanto a
conceituação da formação social com o a análise das forças e lutas
políticas e ideológicas dentro dela devem ser uma função da coloca­
ção de problemas políticos definidos para a teorização.
Política, Direito e cultura não podem ser conceituados em termos
da representação de classes econôm icas. Segue-se da discussão da es­
trutura da formação social que a articulação das relações de classe
econôm icas com outras características da formação social deve ser
analisada em termos das condições de existência de relações de classe
econôm icas e as formas pelas quais essas condições são asseguradas.
As relações de classe econôm icas envolvem formas definidas de posse
e separação dos meios de produção por parte dos agentes econômicos.
Elas pressupõem um reconhecimento legal ou consuetudinário de enti­
dades capazes de assumir a capacidade de agentes e, portanto, uma de­
finição do que pode, ou não pode, ser um sujeito legal ou consuetudi­
nário, indivíduos humanos, organizações, comunidades, etc. Os agen­
tes e suas condições sociais de existência são discutidos no Capítulo
11. Além disso, as relações de classe econômicas pressupõem agentes
capazes de organizar a produção e operar os meios de produção sob
condições de formas definidas de posse. Isso envolve definições jurídi­
cas ou consuetudinárias e a sanção de direitos e obrigações (direito de
contratos, propriedade, etc.) e a existência de formas de cálculo coe­
rentes com o desempenho das capacidades pertinentes. Por exemplo,
as formas capitalistas de posse envolvem uma organização da produ-
M O D O D E P R O D U Ç Ã O , F O R M A Ç Ã O S O C IA L , C L A S S E S 221

ção na qual os elementos do processo de produção, inclusive a força de


trabalho, tomam a forma de mercadorias. Pressupõem, portanto, não
só uma forma de Direito Comercial que reconheça e sancione as con­
dições de produção e troca de mercadorias mas também o emprego de
formas definidas de cálculo monetário e contabilidade na organização
capitalista do processo de produção. Os capitalistas não nascem com o
talento da contabilidade de partidas dobradas, e muito menos das prá­
ticas contábeis mais sofisticadas, empregadas nas modernas empresas
capitalistas. Sem formas adequadas de cálculo monetário, e os meios
sociais de treinar as pessoas para seu uso, as relações de produção ca­
pitalistas não.podem sobreviver.
Mas nem a distribuição de agentes dotados por lei, costumes e
pelo treinamento da capacidade adequada ao desempenho das funções
de posse ou não-posse, nem as condições tecnológicas de produção são
suficientes para determinar as condições precisas da produção ou da
distribuição do produto entre agentes econôm icos. Por exemplo, em
condições capitalistas, as capacidades dos capitalistas e dos trabalha­
dores e as formas tecnológicas socialmente disponíveis não são sufi­
cientes para determinar as condições de trabalho ou a divisão entre sa­
lários e lucros. Dizer que a produção ocorre sob formas capitalistas de
posse é dizer que pressupõe, inter alia, o reconhecimento legal das for­
mas do contrato de trabalho assalariado. E isso implica a possibilida­
de de toda uma variedade de intervenções legais nas condições de con­
trato - legislação sobre salário mínimo, regulamentação das horas de
trabalho e condições de trabalho, demissões e direitos de pensão, e as­
sim por diante. Essas e outras intervenções jurídicas são possíveis, mas
não necessárias, dada a organização capitalista da produção.
Mas o contrato de trabalho assalariado deve sempre ser determ i­
nado, isto é, deve especificar condições e obrigações definidas das par­
tes contratantes. Deve haver sempre certas especificações legais das
formas de contrato possíveis e das que são legalmente impossíveis, e,
dentro desses limites, cada contrato de trabalho assalariado pressupõe
uma nova determinação das condições particulares especificadas nos
contratos. Essas condições de contrato não são determinadas pelas re­
lações de produção capitalistas como tais - já que pressupõem apenas
que sejam contratos de trabalho assalariado específicos. São determi­
nadas pelo resultado da luta de forças sociais definidas que agem, di­
gamos, sobre os aparelhos legislativo e judicial do Estado, sobre as
condições estabelecidas voluntariamente entre organizações de pa­
trões e trabalhadores etc. As relações de produção capitalistas pressu­
põem relações contratuais legais com o uma de suas condições de exis­
tência, mas não determinam a forma que essa regulamentação toma.
Da mesma forma, o trabalho assalariado pressupõe um sistema defini­
do de níveis salariais. Em qualquer m omento dado, os salários são fi­
222 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SOCIAL

xados em tais e tais níveis, nem mais nem menos. Esses níveis não são
determinados pelas relações de produção e as condições tecnológicas
apenas, mas também pela intervenção de determinações políticas, le­
gais e culturais definidas. Os salários podem ser fixados pelo Estado,
determinados pela negociação individual sujeita apenas a limitações
legais e às expectativas dos participantes, ou podem ser fixados por
meio da luta de órgãos de trabalhadores e capitalistas. Mas serão sem­
pre fixados em certos níveis. O trabalho assalariado pressupõe um re­
conhecim ento legal definido e a regulamentação legal das condições de
contrato e um nível ou níveis definidos de salários. Pressupõe, portan­
to, a luta de forças sociais definidas, cujo resultado tem o efeito de de­
terminar essas condições e níveis. Quando há relações de produção ca­
pitalistas, deve haver forças políticas e ideológicas conflitantes.
Esse exemplo das condições de existência do trabalho assalariado
capitalista ilustra, o argumento mais geral de que determinadas rela­
ções de produção pressupõem sempre condições definidas, políticas,
jurídicas e culturais, mas não determinam a forma nas quais essas con­
dições são oferecidas. Tais condições têm efeitos definidos, por exem­
plo sobre o nível de salários e outras condições de emprego, e podem
ser modificadas por lutas políticas e ideológicas. Em certos casos, a
existência mesma das relações de produção em questão pode estar su­
jeita aos efeitos dessas lutas. As relações de classe econômicas pressu­
põem a existência de lutas políticas cujo resultado tem efeitos diferen­
ciais sobre as relações precisas das classes ou categorias particulares de
agentes dentro delas (por exemplo, os trabalhadores de uma determi­
nada fábrica ou de um sindicato). Mas essas forças não podem ser re­
duzidas a efeitos ou reflexos de relações de classe econômicas. Onde há
relações de classe econômicas, deve haver forças políticas e ideológicas
com efeitos diferenciais sobre essas classes. Mas não há razões para su­
por que essas forças sejam produtos das classes que representam a si
mesmas e a seus interesses em formas políticas e ideológicas. N ão há
necessidade de forças políticas e ideológicas polarizadas em torno da
participação nas diferentes classes.
D a mesma forma, a ação dessas forças não tem implicações ne­
cessárias sobre a manutenção ou não-manutenção das relações de pro­
dução em questão e suas condições de existência. As lutas políticas e
ideológicas que intervêm na determinação do nível de salários e condi­
ções de trabalho no capitalismo podem, ou não, colocar em questão as
condições de existência das relações de produção capitalistas. N ão há
nada nessas relações, em si, para assegurar que qualquer das forças
empenhadas nessas lutas será, ou tenderá a ser, socialista. Com o a
política não reflete simplesmente, ou representa, relações de classes
econôm icas, segue-se que a classe operária não é, automática ou essen­
cialmente, socialista, que a política da classe operária não é automati-
MODO DE PRODUÇÃO, FORMAÇÃO SOCIAL, CLASSES 223

camente progressista. Os Estados U nidos constituem um exem plo ex­


celente de uma situação na qual as condições de trabalho assalariado e
os níveis de salários são determinados, inter alia, pelo conflito entre re­
presentantes dos trabalhadores e empregadores, mas sem a interven­
ção de quaisquer forças socialistas significativas. Será preciso conquis­
tar forças em favor do socialism o. N ão há nada nas próprias relações
de produção capitalistas que gere necessariamente tais forças e muito
menos assegure que elas serão bem-sucedidas.
Cap ítulo 10

Posse e Separação dos M eios de Produção

Os conceitos de posse e separação dos meios de produção são funda­


mentais para a análise das classes econôm icas. A teoria marxista defi­
niu as classes econôm icas em termos das relações de agentes com os
meios de produção, e tais relações são definidas por relações de produ­
ção específicas. Em sua discussão da renda da terra, no livro 3 de O
C apital, Marx sugere que uma distinção importante entre as formas
capitalista e pré-capitalista de renda é que na última os produtores di­
retos não estão separados dos meios de produção. Conseqüentemente,
a exploração sob essas condições deve tomar a forma de uma relação
coercitiva entre não-trabalhadores que não têm função no processo de
produção e os próprios produtores diretos. Esse argumento envolve
duas posições: primeira, a de que as relações de classes devem ser con­
cebidas com o relações entre trabalhadores e não-trabalhadores; se­
gunda, que as relações econôm icas de classes são possíveis à base de
uma não-separação entre trabalhadores e seus meios de produção. A
segunda posição foi criticada por Hindess e Hirst em Pre-Capitalist
M odes o f Production, enquanto a primeira tornou-se problemática
pela nossa análise das relações de produção escravistas e feudais - e,
na verdade, pela análise de Marx do papel do capitalista na organiza­
ção da produção capitalista. Este capítulo examina os conceitos de
posse e separação dos meios de produção e os conceitos do trabalha­
dor e não-trabalhador. Argumentamos que as relações de classes eco­
nômicas envolvem sempre a posse efetiva dos meios de produção por
agentes econôm icos de uma categoria e a conseqüente separação de
outros agentes, frente a esses meios. O tratamento que dá Marx às re­
lações de produção pré-capitalistas com o tendo uma forma essencial­
mente não-econôm ica envolve uma importante fusão de formas de
posse e separação dos meios de produção, de um lado, e suas condi­
ções jurídicas e políticas de existência, do outro lado.
A definição de relações econôm icas de classes em termos da posse
e da separação efetivas dos meios de produção deixa abertas as ques­
tões sobre a natureza do agente possuidor, isto é, de quem, ou do que,
POSSE E S H P A R A Ç Á O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 225

pode ocupar a posição de posse, e das ligações entre as relações de


classes econôm icas, a organização da produção e a divisão do trabalho
social. Essas questões serão examinadas nos dois capítulos seguintes.
No primeiro argumentamos que o marxismo não deu grande conside­
ração à posse dos meios de produção pelas agências outras que não os
sujeitos humanos individuais, por sociedades anônimas, ordens religio­
sas, comunidades, etc. Esse capítulo procura realizar uma análise geral
dos agentes e de suas condições de existência e mostra que não há fun­
damento para equiparar agentes e sujeitos humanos individuais. O
capítulo seguinte examina a organização da produção e a divisão do
trabalho social. Relaciona-se particularmente com as tentativas, pelos
marxistas, de identificar a posição de classe com a função técnica na
organização social da produção - por exem plo, as tentativas de Pou-
lantzas e outros de distinguir entre o proletariado e a pequena-
Inirguesia em termos de uma distinção entre o trabalho produtivo e o
improdutivo. Finalmente, examinámos o papel da administração e a
posição dos administradores à luz da possibilidade de agentes possui­
dores que não sejam os sujeitos humanos.

Relações de produção
lm sua análise da produção capitalista, Marx apresenta a posição do
trabalhador com relação aos meios de produção em termos de uma re­
lação de separação. O trabalhador está separado de seus meios de pro­
dução no duplo sentido de que, primeiro, eles são propriedade legal de
outro (o capitalista) e, segundo, que o capitalista, e não o trabalhador,
(em a capacidade de fazer funcionar os m eios de produção. É porque
conserva a capacidade efetiva de colocar em funcionamento os meios
de produção que o capitalista (ou seu agente) desempenha um papel >
vital na organização e coordenação do processo de trabalho capitalis­
ta. É por essa razão que o trabalhador só pode trabalhar sob a condi­
ção de vender sua força de trabalho a um capitalista e concordar em
trabalhar sob a sua supervisão: O trabalhador recebe seus salários e o
capitalista recebe o produto do processo de trabalho. O capitalista U ti
a posse efetiva dos meios de produção, ao passo que o trabalhador es­
tá efetivamente separado deles; o caráter distintivo das formas de pos­
se e separação capitalistas é que governa tanto o m odo de distribuição
do produto entre capitalistas e trabalhadores com o as formas de orga­
nização do processo de trabalho que são possíveis (cooperação com ­
plexa, divisão do trabalho no local de trabalho, etc.).
Em constraste, em “ A Gênese da Renda da Terra Capitalista” , no
livro 3 de O Capital, Marx trata o produtor direto na produção agríco­
la pré-capitalista com o o possuidor de seus meios de produção. Argu-
226 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

menta, portanto, que a exploração nessas condições não é função da


posse pelos membros da classe exploradora, mas de uma coação mais
ou menos direta exercida por aquela classe sobre os produtores:
É ... ev id en te que, em to d a s as fo rm as nas quais o tra b a lh a d o r direto c o n tin u a o “ p o ssu i­
d o r” d o s m eios de p ro d u ç ã o e d a s condições de tra b a lh o necessárias p a ra a p ro d u ç ã o de
seus p ró p rio s m eios de subsistência, as relações de p ro p rie d a d e devem sim u ltan eam e n te
a p arecer com o um a relação direta de se n h o rio e servidão, de m o d o q u e o p ro d u to r di­
reto n ão é livre... N essas condições, o tra b a lh o excedente p a ra o d o n o n o m in al da te rra
só p o d e ser a rra n c a d o (dos p ro d u to re s diretos) p o r pressões o u tra s q u e n ão as eco n ô m i­
cas, q u aisq u er q u e sejam as fo rm as p o r elas assum idas... A ssim , condições de d ep en d ên ­
cia pessoal são exigidas, um a falta de lib erd ad e pessoal, n ão im p o rta em q u e p r o p o r ­
ções, e estar a m a rra d o ao solo co m o seu acessó rio, servidão no v erd ad eiro sen tid o da
p alav ra... ( 0 C apital, livro 3, p. 790)

É claro que nesse trecho, e em outros semelhantes, Marx não está ten­
tando uma conceituação sistemática da produção pré-capitalista, mas
está preocupado em fazer uso de formas pré-capitalistas a fim de escla­
recer certas características distintivas da produção capitalista. Mas o
contraste que Marx estábelece, que foi adotado pela maioria dos histo­
riadores marxistas ao tratarem das sociedades pré-capitalistas, é pro­
fundamente inadequado. Foi criticado exaustivamente no Capítulo 5
de Pre-Capitalist M odes o f Production e será suficiente, para nosso ob­
jetivo presente, simplesmente delinear os principais problemas criados
pela tentativa de conceituar as relações econôm icas de classes pré-
capitalistas em termqs de não-separação dos produtores e dos meios e
condições de produção.
N ote-se, primeiro, que a pertinência das “ pressões outras que não
as econôm icas” não se limita, de m odo algum, às condições especifica­
das por Marx. As formas capitalistas de posse são igualmente depen­
dentes de condições de existência jurídicas e políticas bastante preci­
sas. Em particular, pressupõem a definição e sanção legal da proprie­
dade privada dos meios de produção. D e outro m odo, não haveria
nada para impedir os trabalhadores de ignorar os capitalistas e sim­
plesmente operar seus próprios meios de produção, com o e quando o
desejassem. O próprio Marx faz uma observação semelhante com o
exemplo do Sr. Peei:

O S r. Peei levou consigo d a In g laterra p a ra Sw an R iver, n a A u strália O cid en tal, m eios


de subsistência e p ro d u ç ã o no to ta l de 50.000 libras esterlinas. O Sr. Peei teve a previsão
de levar consigo, além disso, três mil pessoas d a classe o p e rá ria , hom ens, m ulheres e
crianças. A o chegar a o seu destino, “ o Sr. Peei se viu sem um criad o p a ra fazer-lhe a
cam a ou ap an h ar-lh e água n o rio ” . Infeliz S r. Peei, qu e pen so u em tu d o , exceto n a ex­
p o rta ç ã o dos m odos de p ro d u ç ã o ingleses p a ra Sw an R iver. (O C apital, livro 1, p. 766)

Se a propriedade produtiva pode ser usada com o se desejar, o mesmo


não ocorre com a oferta de trabalhadores. As relações de classes eco-
I'OSSE E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 227

nômicas pressupõem sempre condições de existência não-econômicas


definidas. O que é característico no relato de Marx sobre o caso em
que o trabalhador possui seus próprios meios de produção não é tanto
o lato de que “ outras pressões que não as econôm icas” seja uma con­
dição de existência das relações de classes econôm icas, mas que as re­
lações de classes parecem consistir apenas nessas formas não-
econôm icas de extorsão.
Com efeito, o argumento de Marx postula rejações de produção
que são essencialmente não-econôm icas. Quando os trabalhadores
possuem seus meios de produção, as relações de classes com explora­
ção tomam a forma de relações coercitivas, sem função na organiza­
ção da produção. As relações de produção não têm influência sobre a
própria produção. N essa concepção, parece que os senhores feudais
devem surgir com o parasitas pura e simplesmente: ficam com a melhor
parte do que é produzido em suas terras e não desempenham nenhum
outro papel na organização da produção. Como os senhores feudais não
participam da organização da produção, não faz diferença para essa
organização que as relações feudais estejam presentes ou ausentes e se­
jam substituídas por algum outro meio de ficar com a melhor parte do
produto, tributação, fraude, banditismo, “ proteção” , e assim por
diante. O conceito de relações de produção feudais deve então perder
'toda a especificidade: ou todos os m odos de apropriação do produto •
dos agentes possuidores devem ser assim ilados numa única categoria
ou devem ser diferenciados de acordo com os meios jurídicos, políticos
e culturais específicos empregados. N o segundo caso, o princípio de
diferenciação das relações pré-capitaüstas de produção deve ser essen­
cialmente arbitrário no sentido de que não pode ser derivado da pró­
pria organização da produção e não tem influência sobre ela.
Essa arbitrariedade é particularmente clara na discussão que faz
Anderson do feudalismo, na Conclusão de Lineages o f the Absolutist
State. Anderson segue o argumento de Marx de que a exploração nas
sociedades pré-capitalistas opera através de coerção extra-económica.
Km conseqüência, ele afirma: “os m odos de produção pré-capitalistas
não podem ser definidos exceto por meio de suas superestruturas polí­
tica, jurídica e ideológica, já que são essas o que determina o tipo de
coação extra-económica que as especifica” (Lineages o f the Absolutist
State, p. 404).
A s formas distintas de superestrutura política, jurídica e ideológi­
ca definem m odos distintos de produção. A posição de Anderson leva,
portanto, a uma série de distinções tipológicas essencialmente arbitrá­
rias, já que não há base teórica para se determinar a pertinência de
quaisquer distinções superestruturais. Assim, depois de definir o feu-
228 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

dalismo à maneira da'historiografia marxista tradicional, Anderson


argumenta que houve importantes diferenças entre o feudalismo euro­
peu e o japonês:
d en tro d a relação in tra feu d al en tre senhor e so b e ran o acim a do nível d a aldeia, a v assa­
lagem tendeu a p re d o m in a r so b re os benefícios: o laço “ p esso al” de deferência e ra tra d i­
cio n alm en te m ais forte do q u e os laços “ in tern o s” de in v estid u ra... A “ o rd e m ” expressi­
va d a relação en tre senhor e vassalo era p ro p o rc io n a d a pelas linguagens d o parentesco,
e n ão pelos elem entos do D ireito: a a u to rid a d e do se n h o r so b re seus seguidores era m ais
p atriarca l e inquestionável do que n a E uropa. (Ibid., p. 414)

Essas diferenças apresentam um verdadeiro problema para o argu­


mento de Anderson. Dada a sua insistência anterior na necessidade de
distinguir entre diferentes configurações jurídicas e políticas, Ander­
son dificilmente pode manter que, apesar das diferenças estruturais, o
feudalismo europeu e o japonês são exemplos do mesmo modo de pro­
dução. O problema é, evidentemente, que, uma vez que as diferenças
políticas, jurídicas e culturais sejam consideradas como assinalando
relações de produção distintas, não pode haver razões teóricas para
afirmar que as diferenças nas formas do Direito e política represen­
tam, quer relações de produção distintas, quer simplesmente casos di­
ferentes das mesmas relações essenciais. A demarcação entre as rela­
ções de produção pré-capitalistas devem, portanto, ser reduzidas a
uma questão de uma imposição teoricamente arbitrária.
Mas, voltando ao argumento de Marx, Há uma contradição signi­
ficativa em sua exposição das relações entre o trabalhador e o “pro­
prietário nominal da terra” . Por unvlado, o trabalhador possui o seu
próprio meio de produção, e, por outro, não é livre, estando “preso ao
solo com o seu acessório” . Por um lado, o “proprietário nominal da
terra” não desempenha qualquer papel na organização da produção e,
pelo outro, controla sua terra e o acesso que seus servos têm a ela. A
contradição aqui é clara: com o a terra é um meio indispensável de pro­
dução agrícola, o “ trabalhador direto” de Marx não pode possuir a
totalidade de seus meios e condições de produção se não possui tam­
bém sua terra. Se o trabalhador não é livre, estando “preso ao solo
com o seu acessório” , então o que Marx descreve com o “ o proprietário
nominal da terra” é, de fato, o possuidor de um meio de produção in­
dispensável. -Mas dizer isso é dizer que as relações econômicas de clas­
ses entre, digamos, os senhores feudais e os servos são uma função da
posse da terra pelos senhores e da separação correlativa entre ela e os
servos. Pre-Capitalist M odes o f Production argumentou que o proprie­
tário de terras feudal tem um papel crucial na organização da produ­
ção, e não só em relação às divisões da terra entre diferentes usos e sua
distribuição aos camponeses, mas também com relação à provisão de
certos meios de produção que operam numa escala acima da do cam-
I’O SSE E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 229

ponês individual (por exem plo, obras de drenagem em grande escala,


moinhos de farinha de trigo, etc.)
Ora, se os proprietários de terra feudais têm a terra, então a espe­
cificidade das relações de produção feudais deve ser definida em ter­
mos de um m odo de posse preciso de um meio de produção indispen­
sável. As relações de produção feudais são relações econômicas, são
relações de posse e separação. Devem os, portanto^ distinguir entre re­
lações de produção feudais, ou outras relações de produção não-
capitalistas, suas condições jurídicas, políticas e culturais de existên­
cia, e as formas pelas quais essas condições de existência são satisfei-
las. A o não estabelecer essas distinções, o argumento de Marx dissolve
efetivamente as relações econôm icas pré-capitalistas em formas jurídi­
cas, políticas e culturais e, portanto, leva a uma separação entre a esfe­
ra de produção e posse, de um lado, e a das relações de classe econôm i­
cas, de outro lado.

1'osse e separação
Argumentamos, contra a posição de Marx em sua análise da renda da
terra, que as relações econôm icas de classes devem ser concebidas em
termos da posse efetiva dos meios de produção por uma categoria de
agentes econôm icos e a conseqüente separação efetiva de outra catego­
ria de agentes. A posse na separação é, portanto, o conceito crucial
para a análise das classes: os m odos de posse e de separação e as for­
mas daquilo que é efetivamente possuído distinguem os diferentes ti­
pos de relação de classes. Em todos os casos, porém, a posse efetiva
envolve uma capacidade de controlar o funcionam ento dos meios de
produção no processo de produção e excluir outras pessoas de seu uso.
Argumentaremos que o agente possuidor tem um papel definido e ne­
cessário a desempenhar no funcionamento dos m eios de produção em
sua posse. Nesse sentido, a análise da posse deve envolver sempre a
análise da unidade de produção. A posse efetiva não deve ser identifi­
cada com o conceito legal da propriedade, ou com o desempenho de
certas funções de direção. A sociedade anônima, por exemplo, é um'
agente econôm ico distinto de seus acionistas e seus empregados admi­
nistrativos. É a sociedade, e não seus acionistas, que exerce a posse efe­
tiva dos seus meios de produção, e emprega o trabalho assalariado ad­
ministrativo e gerencial para realizar as tarefas de direção e supervi­
são. (A questão da administração é discutida com maiores detalhes no
Capítulo 12.) Corretamente, a separação efetiva de certos meios de
produção implica que o uso desses meios só pode ocorrer sob alguma
230 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

forma de controle pêlo seu possuidor, e isso significa que o possuidor


pode, portanto, exercer algum controle sobre a distribuição do produ­
to ou o uso desses meios. Assim, para cada m odo de posse na separa­
ção, tem os uma classe de possuidores e uma classe separada de não-
possuidores. Por exemplo, no caso das relações de produção capitalis­
tas, o capitalista possui vários instrumentos e matéria-prima na forma
de mercadorias, e os trabalhadores só se podem dedicar à produção
sob condição de vender sua própria mercadoria, a força de trabalho,
ao capitalista. O capitalista controla e organiza o processo de produ­
ção no qual reúne certas mercadorias ao início desse processo para ob­
ter outras mercadorias no final. O capitalista vende, ou procura ven­
der, seus produtos a outros capitalistas ou trabalhadores. Assim , a
posse capitalista dos meios de produção envolve uma forma definida
de organização do processo de produção na qual a força de trabalho é
comprada, sob condições contratuais precisas, do trabalhador pelo ca­
pitalista e entra na produção com o propriedade deste último, com o
uma mercadoria igual às outras. E envolve uma forma definida de dis­
tribuição do produto, através da troca de mercadorias e a divisão entre
salários e lucros.
D ois outros exemplos devem ser considerados, já que se relacio­
nam com casos nos quais o possuidor de um meio de produção está se­
parado da posse de outros. As relações de classes não se relacionam
apenas com a separação dos trabalhadores dos meios de produção,
pois os pequenos produtores de mercadorias e os capitalistas podem
enfrentar classes que possuem alguns dos seus meios necessários de
produção. Assim , os proprietários de terra podem enfrentar os capita­
listas com o uma classe definida, em razão de sua posse exclusiva de
uma condição finita e necessária de produção (igualmente para os
agricultores e os industriais). O proprietário de terra, com efeito, ad­
ministra a propriedade regulando os usos dados a diferentes partes de
sua terra pelos arrendatários e em virtude de seu controle do forneci­
mento de m eios e condições de produção, com o drenagem ou irriga­
ção, que se podem estender além da terra de um dos arrendatários. Em
virtude dessa posse efetiva, o proprietário de terra obtém um rendi­
mento econôm ico definido, na forma de pagamentos de arrendamen­
tos, taxas sobre o direito de introduzir modificações na propriedade
(novas construções, modificações nos limites dos campos, etc.) e no
valor da propriedade que reverte para o proprietário ao término do
período de arrendamento. A posse do proprietário de terra é efetiva
através da concorrência dos capitalistas pelo arrendamento da terra e
• depende do reconhecimento e da defesa legal da propriedade fundiá­
ria. Seu retorno econôm ico é uma função das condições que determi­
nam o nível da renda, e outras taxas, que podem ser extraídas dos ar-
I‘()SSE E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 231

rcndatários capitalistas. Essas condições podem incluir intervenções


políticas pelo Estado, com o por exemplo as Leis dos Cereais que afeta­
ram o nível dos preços agrícolas e, portanto, das rendas. Nesse caso,
lemos dois m odos de posse efetiva e, conseqüentemente, duas formas
de controle sobre a produção (o proprietário de terra administra sua
propriedade, enquanto o capitalista dirige o processo imediato de pro­
dução) e duas formas de distribuição do produto (entre proprietários
ile terra e capitalistas e entre capitalistas e trabalhadores). A existência
dc uma classe latifundiária não é conseqüência neceçsária das formas
capitalistas de posse, mas pode surgir das relações sociais de determi­
nadas form ações sociais, em conseqüência de condições políticas, jurí­
dicas e econôm icas bem definidas. D a mesma forma, os pequenos pro­
dutores de mercadorias podem enfrentar formas de capital mercantil
que oferecem condições necessárias para a inserção desses produtores
numa divisão social do trabalho por meio de, digamos, comércio a
longa distância. Essa posição dá ao capital mercantil o controle sobre
as condições de realização das mercadorias produzidas. Essa forma de
domínio do capital mercantil não é uma conseqüência necessária de
Iodas as formas de pequena produção de mercadorias. Depende de
uma divisão do trabalho específica entre formações sociais definidas
sob condições particulares de troca.
Esses exem plos bastam para mostrar que, sob condições sociais
definidas, a posse em separado de certos “m eios de produção” pode
proporcionar a base para relações de classes econôm icas. Também de­
monstram a importância de uma especificação clara daquilo que está
implícito no conceito geral de “ meios de produção” . Os “ meios de
produção” são por vezes concebidos, com o em certas análises de
Marx, com o instrumentos de produção, isto é, elementos do processo
de produção distintos tanto dos objetos de trabalho com o do trabalha­
dor. Mas os exem plos de propriedade de terra e de escravidão (nos
quais o escravo é separado de todos os “ meios de produção” , inclusive
sua própria força de trabalho) indicam que o objeto do trabalho (a ter­
ra) e o trabalhador podem ser os objetos de uma posse exclusiva e que
essa posse pode servir com o a base das relações de classes. Da mesma
lorma, o exemplo do capital mercantil mostra que condições fora do
processo de produção imediato (as condições de realização das merca­
dorias compradas) podem ser os objetos de uma posse exclusiva. Se o
conceito “ meios de produção” restringir-se aos instrumentos da pro­
dução, então não pode constituir a base única para as relações de pos­
se e separação.
Assim , para a análise das relações econôm icas de classes é neces­
sário generalizar o conceito de “meios de produção” para incluir as
condições de produção que possam ser o objeto de uma posse exclusi-
232 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SO CIAL

va. “ M eios de produção” devem então ser definidos como: todas as


condições necessárias à operação de um determinado processo de traba­
lho que estão combinadas nas unidades de produção nas quais esse pro­
cesso ocorre. Se qualquer dessas condições é objeto de uma posse efeti­
va por uma categoria definida de agentes, e se os agentes que operam
ou dirigem o processo de trabalho forem separados delas, então a pos­
se proporciona a base das relações de classes. Veremos que as relações
de classes se podem distinguir à base das relações para com o processo
de trabalho estabelecidas por diferentes formas de posse exclusiva.

Essa definição geral de “meios de produção” exige que as relações


entre a “ unidade de produção” ou “empresa” e os sistemas de circula­
ção ou distribuição das condições de produção sejam analisadas para
que as relações de classes sejam determinadas de maneira rigorosa.
Essa análise deve ser feita para as relações sociais de formação social
específica, ç essas relações não podem ser deduzidas de nenhuma in­
vestigação da propriedade das unidades de produção apenas. A análi­
se das relações de classes necessariamente envolve a teorização de uni­
dades de produção e de seus m odos de articulação com as relações so­
ciais de distribuição dos meios de produção e do produto desses meios.

A s formas de distribuição das condições de produção para as pró­


prias unidades de produção, sob certas condições, podem ser o locus
das relações de classes. Um a divisão do trabalho social, isto é, uma di­
visão da produção da sociedade em ramos distintos que produzem di­
ferentes categorias especializadas de produtos, que opera através da
circulação de mercadorias, terá em geral com o conseqüência que as
unidades de produção podem obter os meios de produção através de
simples vendas e compras; as trocas são a distribuição de formas de
posse diferentes no conteúdo. Quando, porém, uma categoria definida
de agentes m onopoliza os meios de circulação para uma categoria de
unidades de produção, com o em nosso exemplo do capital mercantil e
do comércio de longa distância, então pode ter um controle que equi­
vale à posse efetiva de certos meios de produção. Isso pode ser assim se
as condições de produção dependerem da realização do produto circu­
lado. N esse caso, então, o capital mercantil pode impor seus preços
por m otivos adicionais à discrepância entre suas compras e vendas;
controla através de seu m onopólio a interdição da circulação e repro­
dução dos meios de produção (vendas e compras sucessivas são o ciclo
de produção, realização e reprodução para o pequeno produtor). N o
caso, uma divisão social limitada do trabalho e as relações mercantis a
ela correspondentes proporcionam a base para as relações de classes.
Ciclos sucessivos de vendas e compras reproduzem o controle que o
capital mercantil exerce sobre as condições de produção, o pequeno
I'OSSE E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 233

produtor de mercadorias as obtém sob condições que o tornam subor­


dinado aos termos de troca im postos pelo capital mercantil. Daí as lu-
(as pelo comércio “livre”, isto é, não-monopolista, terem sido com fre­
qüência diretamente pertinentes às relações econôm icas de classes. Os
m onopólios capitalistas mercantis aliados aos Estados absolutistas ou
capitalistas usaram o poder estatal e suas próprias forças armadas
para sufocar comerciantes capitalistas independentes e o desenvolvi­
mento de relações de mercado concorrenciais. As relações de classe
originam-se do m odo e termos de com binação com os meios de produ­
ção im postos ao não-possuidor separado.

N a análise daquilo que os m eios-condições de produção são e as


lormas de sua posse e distribuição, é essencial evitar a redução econo-
micista dessas formas à técnica e a concentração da análise sobre as
lormas imediatas do processo de trabalho. É necessário abandonar as
formas de econom icism o que fazem o processo de produção essencial­
mente anterior à circulação e distribuição e determinante delas.
Mas nem todas as relações de circulação e distribuição são o locus de
relações de classes. Para constituir relações de classes, a interdição da
circulação/distribuição deve controlar condições necessárias de pro­
dução e o efeito do ciclo de produção/distribuição deve ser o de repro­
duzir essa capacidade de controle nas mãos de uma categoria definida
de agentes.

Segue-se que uma parte crucial da análise das relações de classes


numa formação social é uma análise teórica da divisão do trabalho so­
cial, o m odo de articulação da produção com a distribuição das condi­
ções de produção e uma análise das formas características da unidade
de produção. A divisão social do trabalho e, portanto, as relações de
classes não podem ser plenamente determinadas sem teorização dessas
formas. A s relações sociais de produção não podem , em geral, ser con­
cebidas apenas com o as relações entre os “produtores diretos” e seus
“exploradores” (os agentes que se apropriam do produto excedente do
produtor direto). Eis aí um grande defeito do m odo de análise seguido
em Pre-Capitalist M odes o f Production, já que nesse texto todas as ou­
tras relações de classes são consideradas com o auxiliares ou secundá­
rias. Daí sua incapacidade de considerar ou teorizar a pequena produ­
ção de mercadorias, o capital mercantil, etc., e de analisar formas do
processo de reprodução. Essas observações confirmam o argumento
dos capítulos anteriores sobre a necessidade de afastar o m odo de pro­
dução com o objetivo primordial da análise e substituí-lo pela forma­
ção social concebida com o uma forma determinada de relações de
classes econôm icas, suas condições de existência e as formas pelas
quais essas condições são fornecidas.
234 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O SO CIA L

Trabalhador e não-trabalhador
A d iferença essencial en tre as v árias fo rm as eco n ô m icas de socicdede, en tre, p o r exem ­
plo, u m a so cied ad e b asead a no tra b a lh o escravo e o u tra b a se a d a no tra b a lh o assalaria­
d o , está ap e n a s no m o d o pelo qual esse tra b a lh o excedente é, em cada caso, ex traíd o do
p ro d u to r real, o tra b a lh a d o r. ( O Capital, livro I, p. 217)

N este trecho, e em outros, Marx considera as relações de produção


com o outros tantos tipos de relação entre os trabalhadores (produto­
res diretos), de um lado, e não-trabalhadores que os exploram pela
apropriação do trabalho excedente, de outro lado. Sob esse aspecto, os
clássicos do marxismo consideraram com o característica distintiva das
sociedades sem classes, o com unismo primitivo, o socialismo e o co­
m unism o o fato de que os m eios de produção são propriedade coletiva
dos próprios trabalhadores. Isso significou geralmente que as relações
de produção distribuem os meios de produção a unidades compostas
de trabalhadores sem a intervenção dos não-trabalhadores proprietá­
rios e, conseqüentem ente, que a distribuição do produto daqueles
m eios de produção adquire uma forma não-exploradora.
Mas o que são “trabalhadores” e “ não-trabalhadores”? Se essa
última categoria deve incluir todos os agentes econôm icos que não
são, em certo sentido, produtores diretos, então o status de um núme­
ro cada vez maior de funções se torna problemático, à medida que a
divisão do trabalho social se torna mais complexa. A categoria de não-
trabalhador tem sofrido de uma falta de definição clara da teoria mar­
xista. É usada, mas sem uma definição rigorosa ou coerente, em Pre-
Capitalist M odes o f Production. A análise dos m odos de produção es­
cravista e feudal naquele texto torna o conceito de não-trabalhador
confuso e problemático, já que tanto o dono de escravos com o o dono
de terra feudal desempenham um papel crucial na organização da pro­
dução. Essa falta de definição relaciona-se com duas características do
marxismo clássico. Primeiro, a dominância da “exploração” com o a
forma de análise das relações de produção resulta numa tendencia de
identificar o apropriador do produto excedente e o não-trabalhador.
Isso é particularmente certo, por exem plo, em relação à concepção
clássica do feudalismo, onde não se considera que a classe feudal de­
sempenhe qualquer papel na organização da produção, sendo total­
mente parasitária e apropriando-se do produto excedente por meios
coercitivos. Segundo, o marxismo é flagelado por uma “ filosofia do
trabalho” na qual o trabalhador (manual) é concebido com o a agência
de transformação das matérias-primas e o único criador de valor. Isso
envolve uma tendência a concentrar a análise da produção no traba­
lhador e, com efeito, a considerar outros agentes com o secundários ou
auxiliares ao “produtor direto” .
ro .S S E E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 235

De fato, as categorias de “ trabalhador” e “ não-trabalhador” são


lotalmente inadequadas à análise das relações de classes e acarretam
um sério erro de representação das funções respectivas de agentes pos­
suidores e não-possuidores na organização da produção. Am bas as ca-
legorias devem ser substituídas para que não obscureçam a relação
entre a divisão de funções tecnicamente necessária a uma econom ia (a
divisão técnica do trabalho) e as formas de posse e separação dos
meios de produção (a divisão social do trabalho). É necessário substi-
luir a distinção entre o trabalhador e o não-trabalhador por uma con­
cepção mais com plexa das relações entre funções técnicas e posse.
Consideremos o que está em jogo no conceito de posse efetiva dos
meios de produção. Vimos que cada m odo de posse específico dos
meios de produção envolve uma capacidade de controlar o funciona­
mento desses meios no processo de produção. A existência dessa capa­
cidade deve exigir o desempenho de certas funções técnicas pelo agente
possuidor ou em seu nom e. Por exemplo, em condições capitalistas os
elementos de produção, inclusive a força de trabalho, entram no pro­
cesso de produção na forma de mercadorias compradas pelo capitalis­
ta. Sua capacidade de controlar o funcionam ento dessas mercadorias
110 processo de produção o envoive, portanto, na direção e supervisão
do processo de trabalho e, com o está trabalhando com mercadorias,
no cálculo dos custos e retornos m onetários. Se tais funções não são
realizadas pelo capitalista, ou em seu nome, então ele deixa de ter a
posse efetiva dos meios de produção: ou esses meios entram numa outra
posse, ou não entram na produção. D a mesma forma, em relação aos
membros da classe latifundiária discutidos acima: embora possam não
desempenhar nenhum papel na direção e :supervisão do processo ime­
diato de trabalho, sua posse efetiva da terra alugada a arrendatários ca­
pitalistas depende do desem penho de funções técnicas definidas, na
determinação de quais tipos de produção podem ocorrer em diferentes
partes da propriedade, na determinação do nível da renda e outras ta­
xas, e assim por diante.
Esses exemplos bastarão para ilustrar uma observação geral, ou
seja, que cada forma de posse efetiva pressupõe uma correspondente
diferenciação de funções técnicas na produção, de modo que certas
funções são desempenhadas pelo agente possuidor, ou por sua ordem.
Inversamente, é claro que os m odos de posse impõem limites definidos
às funções técnicas que são possíveis: as funções de direção e supervi­
são e a operação física de m uitos tipos de máquinas e de processos de
produção pressupõem m odos de posse nos quais uma pluralidade de
trabalhadores pode ser reunida numa única unidade de produção; a
função da administração da propriedade fundiária pressupõe a exis­
tência de propriedades agrárias, e assim por diante. A ligação entre as
divisões social e técnica do trabalho está, portanto, no fato de que
236 C L A S S E S E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O S O C I A L

cada um'a delas impõe limites definidos ao que é possível à outra. Em


particular:
1. A diferenciação de certas funções técnicas (direção, supervi­
são, coordenação, trabalho manual) é uma condição de existência de
certas formas de posse efetiva dos meios de produção. Mas esse ponto
deve ser interpretado com grande cuidado. Dizer que uma determina­
da diferenciação de tarefas funcionais é uma condição de existência de
um determinado m odo de posse efetiva não é forçosamente dizer que
essas tarefas são executadas pelos membros de diferentes classes. A di­
ferenciação das tarefas funcionais é também um efeito da divisão entre
trabalho mental e trabalho manual e da existência de formas particula­
res de organização administrativa - e estas não são redutíveis a ne­
nhum efeito simples de relações de classes. Assim, os capitalistas po­
dem empregar agentes administrativos especialistas que não são me­
nos separados dos meios de produção do que os trabalhadores ma­
nuais que dirigem. O ponto crucial, no caso, é que certas tarefas fun­
cionais devem ser realizadas pelo (ou por parte do) agente possuidor. A
significação da restrição “ por parte do” será examinada no capítulo
seguinte. N o m om ento, basta observar que pode haver uma distinção
entre a “ responsabilidade” pelo desempenho de certas tarefas e sua
execução, de maneira que uma termina por caber ao agente possuidor
e a outra ao seu empregado.
2. A posse efetiva pressupõe que os meios e condições de produ­
ção são distribuídos a unidades de produção de uma maneira que pro­
porciona as bases para a m onopolização por uma categoria definida
de agente de alguns desses meios e condições e, portanto, para o con­
trole que exercem sobre a produção.
A ligação da posse e função e o fato de que certas funções são ocu­
padas em conseqüência da separação a ela associada tornam possível
uma especificação rigorosa da divisão social do trabalho. N ão se segue
que os agentes que possuem separadamente certos meios de produção
não tenham lugar na divisão técnica do trabalho, mas antes ocupar
lugares nesta é com o função da divisão social. Formas de posse que en­
volvem um a separação correspondente podem resultar (dependendo dos
meios de produção possuídos na distinção da função de direção dos
meios de produção em relação a-outras funções e na determinação-pelo
possuidor da ocupação dessa função. Assim , por exemplo, a coordena­
ção, uma função tecnicamente necessária em qualquer processo de
produção que com bine várias atividades com um único objetivo, é
uma função que passa ao capitalista ou seu agente no m odo de produ­
ção capitalista.
A divisão técnica do trabalho depende das relações sociais de pro­
dução, no sentido de que são as relações entre os agentes que criam as
POS SE E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 237

condições de existência para certas formas de divisão técnica do tra­


balho (um exemplo são as forrfias de organização do processo de tra­
balho que são um efeito da escravidão; ver Pre-Capitalist M odes o f
1'roduction, Capítulo 3). Mas os lugares criados nessa divisão técnica
socialmente condicionada são lugares necessários, funções necessárias
¡1 relação entre produção e circulação ou ao processo de produção
como um com plexo de fases e técnicas. Segue-se que agentes como os
capitalistas e os donos de escravos podem desempenhar funções teçni-
i amente necessárias dentro das formas condicionadas pelas relações
de produção, não são “exploradores” puros sem'função econômica.
Seu controle do produto é uma função de seu controle ou direção do
processo de sua produção.
Os efeitos de uma filosofia do trabalho na criação da categoria de
“ Irabalho” (= atividade transformadora) tornam o capitalista “ não-
trabalhador” . Os problemas de se os capitalistas “ trabalham” ou não
é irrelevante para a análise da ligação entre as relações de posse e as
funções econômicas. O “ não-trabalhador” , com o as categorias de tra­
balho “ produtivo” e “ im produtivo” , deriva de uma concepção na
qual a fo n te do produto excedente é o problema dominante. Essa fonte
ó o trabalho de transformação, os não-trabalhadores se apropriam dos
produtos do trabalhador direto. O problema com essa análise é que
supõe uma discrepância entre a produção e as relações de produção,
como se as atividades dos produtores diretos pudessem ser considera­
das com o um processo distinto com um produto de trabalho (atribuí­
vel ao trabalho de transformação), ao qual são superpostas as rela­
ções de produção que se apropriam desse produto. Quando essa dis­
crepância é evidente, com o no conceito clássico da renda feudal, então
o elo entre produção e apropriação se baseia sobre a coerção (direta
ou ideológica). O capitalismo não envolve essa coerção como sua base
de apropriação do produto excedente porque uma troca desigual é fei­
ta dentro de formas de uma troca igual. Marx argumenta claramente
que o capitalista realiza a função tecnicamente necessária de coorde­
nação, considera-a “ uma tarefa produtiva que deve ser executada em
todo m odo de produção com binado” (O Capital, livro 3, p. 376). Em
lermos de análise do livro 1, porém, o capitalista é um “ não-
trabalhador” - suas atividades são necessárias, mas como uma pré-
condição ao processo de transformação do produto pelos trabalhado­
res, que é um processo de expansão do valor. O trabalho concebido
com o a agência de transformação e com o a fonte do valor deve reduzir
o capitalista a um “ não-trabalhador” . O “explorador” não pode ser
um produtor daquilo de que se apropria.
A dificuldade com essa forma de ligação entre a produção e a re­
lação de produção é que elimina a efetividade das próprias relações.
238 CLASSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç À O SOCIAL

As atividades do “ não-trabalhador” (função da articulação das divi­


sões técnica e social do trabalho) afetam materialmente as formas e o
nível de produção e não simplesmente se apropriam de uma parte de
um dado produto do trabalho com o o “produto excedente” . Assim,
por exem plo, um senhor feudal (digamos, uma ordem monástica, cf.
K osminsky) maximiza a proporção da propriedade reservada ao se­
nhor, organiza a produção nela mais racionalmente do que os arren­
datários o fazem em suas glebas e supervisiona de perto os serviços
realizados por eles - e, com isso, o produto da terra senhorial é aumen­
tado. D a mesma forma, os capitalistas e funcionários têm uma efetivi­
dade direta no nível e formas de produção. Isso é reconhecido clara­
mente em O Capital (livro 1, sobre a “ mais-valia relativa”), mas ape­
nas em termos dos problemas da análise do valor. A origem do produ­
to e do valor no trabalho transformativo prefigura as atividades do ca­
pitalista - os efeitos do cálculo, organização e supervisão capitalistas
são representados em termos da intensificação do trabalho e da cres­
cente taxa de exploração. O produto e a mais-valia nele inscrita têm
sua origem no trabalho realizado; um processo que o capitalista torna
possível, mas no qual não tem nenhum papel direto. U m a vez reconhe­
cida a função de transformação com o efeito do processo e não sim­
plesmente de alguns de seus agentes, então todo o problema do “tra-
balhador” / “ não-trabalhador” desaparece. A substituição da questão
da fonte do lucro e da essencialização do trabalho a ela associada tor­
na possível o reconhecimento dos efeitos das decisões de investimento,
inovações na técnica e m étodos de organização da produção, com o
m odificações na produtividade do processo iniciado pelo capital. As
contribuições do trabalho dos agentes não são calculáveis no produto
e são irrelevantes, já que é som ente no processo, e através dele, que são
efetivas. N ão há necessidade de cair na inversão da posição de Marx e
afirmar que Henry Ford e Frederick Taylor eram mais “produtivos”
com o “trabalhadores” do que os operários cujas atividades eles revo­
lucionaram.

A noção do “ não-trabalhador” obscurece o qu eé fundamental na


articulação da divisão social do trabalho com divisão técnica. As fun­
ções anexadas a certas categorias de agentes com o uma conseqüência
da posse tem uma efetividade real sobre o processo de produção. A ca­
tegoria de “ não-trabalhador” esconde o que o possuidor faz, ele dirige
os m eios de produção que possui a serviço de uma posse exclusiva.
Q uando a posse confere a capacidade de dirigir o processo de traba­
lho, o “ não-trabalhador” e seus agentes ocupam as posições centrais
na divisão técnica do trabalho e os agentes separados, posições secun­
dárias. A apropriação do produto depende da posse-conexão e não
das contribuições de trabalho dos agentes; quando o possuidor dirige
1’OS S E E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 239

o processo de trabalho, não obstante ocupa uma função necessária


tecnicamente, que lhe permite dirigir aquele processo a serviço de tal
posse. Toda apropriação com o conseqüência de uma posse exclusiva
exige pelo menos um nível mínimo de direção dos meios de produção
possuídos.
Todas as relações de classes dependem de formas de posse que são
também formas de separação, e, com o conseqüência, a combinação
eom os meios de produção envolve quer o pagamento de uma parte do
produto pela capacidade de utilizá-los, quer o desempenho de funções
subordinadas num processo de produção dirigido pelo possuidor. Es­
sas formas de posse são sancionadas pelo Estado, que lhes proporcio­
na as condições políticas de existência, mas não são elas mesmas rela­
ções políticas ou jurídicas. A análise aqui confirma, em geral, a posi­
ção defendida em Pre-Capitalist M odes o f Production, Capítulo 5, se­
gundo a qual as relações de classes são relações econômicas, isto é, são
relações representadas no político, e não formas de dominação dele
derivadas. Longe de distinguir entre relações de classes baseadas no
domínio, e as baseadas nas formas econôm icas, uma diferenciação
bastante distinta dos tipos de relações de classes será proposta aqui.
Ela se fundamentará na relação entre posse e função. Os dois tipos de
relações de classes são os seguintes:
1. Quando a posse de certos meios de produção confere ao agente
possuidor a capacidade de dirigir o processo de trabalho, e quando o
agente separado é com binado com esses meios numa capacidade su­
bordinada a essa direção.
2. Quando a posse de certos meios de produção confere ao agente
possuidor a capacidade de determinar algumas das condições de dire­
ção dos processo de trabalho, mas sendo sua direção uma função do
possuidor de outro dos meios de produção; os exemplos seriam o capi­
tal mercantil e usurário, e certas formas de propriedade da terra.
Essas duas categorias não são exclusivas. Por exemplo, um agri­
cultor capitalista pode empregar trabalhadores assalariados e operar
em condições de arrendamento, manutenção e desempenho impostas
por um proprietário de terra. Eles diferem no papel que o agente pos­
suidor desempenha em relação ao processo de trabalho. O segundo
tipo se baseia na subordinação econôm ica dos dirigentes do processo de
trabalho, isto é, pressupõe relações de distribuição dos meios de pro­
dução tais que as formas de posse exclusiva se interpõem entre essas
relações de distribuição e o processo de trabalho. Além dessa classifi­
cação, os m odos de posse podem ser distinguidos por serem comunais
ou não-com unais (privados) em sua forma. As implicações da posse
comunal para a análise das relações de classes e para o modo-de dife­
renciação das funções técnicas serão examinadas no último capítulo.
240 CLASSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O SOCIAL

C om o Marx deixa claro em sua Crítica do Programa de Gota, o


modo de distribuição do produto é uma conseqüência da distribuição
dos m eios de produção. N ão é um efeito da contribuição técnica dos
agentes ao processo de produção. A distribuição dos meios de produ­
ção permite ao “ possuidor” efetuar uma forma definida de apropria­
ção do produto e isso exige do “possuidor” um nível definido de dire­
ção dos meios de produção suficiente para conservar a posse efetiva. A
função de direção funde, portanto, os elem entos das divisões social e
técnica do trabalho. Vimos, por exemplo, que Marx argumenta que o
capitalista (ou seu agente) realiza a função tecnicamente necessária de
coordenação. O uso da categoria de “ não-trabalhador” para referir-se
ao agente possuidor é um absurdo: ela lembra as filosofias pequeno-
burguesas do trabalho que o marxismo procurou substituir, evange­
lhos do trabalho e noções ultrá-igualitárias de uma distribuição igu al
dos frutos do trabalho. O “ não-trabalhador” desempenha funções de­
finidas que são tecnicamente necessárias à produção. Nem as com bi­
nações possíveis das relações de produção, nem as formas nas quais
suas condições de existência são proporcionadas, podem ser reduzidas
a um efeito de relações entre “trabalhador” e “ não-trabalhador” . Se­
gue-se que concentrar-se nessa dicotom ia deve ser obscurecer os
problemas teóricos cruciais que a análise marxista enfrenta.

Argumentamos que as divisões social e técnica do trabalho são in­


terdependentes pelo fato de que cada uma delas fornece condições de
existência e limitações para a outra. Mas não há nenhuma correspon­
dência simples entre as divisões dos agentes econôm icos em classes se­
gundo os m odos de posse e separação, por um lado, e a divisão técnica
do trabalho dentro da unidade de produção ou a divisão da força de
trabalho social em indústrias com o setores, por outro lado. Esse ele­
mento óbvio é digno de ser ressaltado, já que implica que pode haver
toda uma série de diferenças dentro da força de trabalho social total
que não são, de m odo algum, redutíveis a diferenças de classes. Um
exem plo claro seriam as diferenças em salários e condições de trabalho
para diferentes ocupações em formações sociais capitalistas. Os m odos
de posse capitalistas implicam uma forma definida de distribuição do
produto (através de pagamentos de salários e circulação de mercado­
rias) e uma forma correspondente de direção e supervisão do processo
de trabalho pelo capitalista ou seu agente. Dentro dos limites dessas
formas, diferenças no nível dos salários ou nas condições de trabalho
serão os efeitos de diferenças nos mercados para diferentes tipos de
trabalho, da organização hierárquica das empresas, do resultado da
luta entre organizações de agentes possuidores e não-possuidores, da
regulamentação legal do contrato de trabalho assalariado, e assim por
diante. Essas diferenças não são dedutíveis, ou efeitos, da posse efetiva
I’OSSE E S E P A R A Ç Ã O D O S M E I O S D E P R O D U Ç Ã O 241

pelos capitalistas dos meios de produção. Em particular, a distinção


inanual/não-manual, embora necessária para os m odos capitalistas de
posse, não é em si uma distinção de classe. Os trabalhadores não-
manuais podem ser pagos de maneira diferente dos trabalhadores ma­
nuais e podem ter condições de trabalho diferentes, mas estão igual­
mente separados dos meios de produção. A posse efetiva pelo capita­
lista pressupõe uma diferenciação de tarefas funcionais na qual as fun­
ções de organização da produção (direção, supervisão, cálculo) cabem
no capitalista ou seus agentes. A posse capitalista pressupõe, portanto,
a divisão entre trabalho mental e manual, mas essa divisão não é, ela
própria, uma divisão de classes. Existe nas sociedades socialistas e,
embora possa constituir um obstáculo à socialização completa da pro­
dução, não desaparece com a derrubada do capitalismo e não é fácil,
de m odo algum, de ser eliminada. A divisão entre o trabalho mental e
o manual bem pode ser pertinente aos debates e lutas políticos, mas
não é uma divisão de classes e não constitui base para se situar admi­
nistradores e gerentes com o uma classe distinta da classe dos outros
trabalhadores assalariados.
C apítulo 11

Agentes e Relações Sociais

A definição de classes em termos de diferentes posições em relação à


posse e separação dos meios de produção levanta a questão de quem
ou do que é capaz de ocupar essas posições. O marxismo concebeu tra­
dicionalmente as classes com o constituídas de indivíduos humanos, de
m odo que Lênin, por exemplo, pode definir as classes com o
g ran d es g ru p o s de pessoas, diferentes e n tre si pelo lu g ar qu e ocu p am n u m sistem a h isto ­
ricam en te d eterm in ad o de p ro d u ç ã o social, pela su a relação (na m aio ria d o s lugares, fi­
x ad a e fo rm u lad a na lei) com os m eios de p ro d u ç ã o , pelo seu papel na o rg an ização so­
cial do tra b a lh o e, co n seq ü en tem en te, pelas dim ensões da riqueza social de q u e dispõem
e pelo m o d o de o rg an izá-la. A s classes são g ru p o s de pessoas, um dos q u ais p o d e apro-
p riar-se d o tra b a lh o de o u tro , devido aos d iferen tes lugares q u e o cu p am n u m sistem a
d efinido de eco n o m ia social. (“ A G re a t B eginning” , C ollected W orks, vol. 29, p. 421)

Vimos que as próprias classes e indivíduos humanos foram conceitua­


dos em termos de versões mais ou menos sofisticadas de dois tipos bá­
sicos de posição. Ou são concebidas em termos da contraposição do
sujeito e estrutura, condições subjetivas e objetivas, relações sociais
(isto é , intersubjetivas) e estruturas sociais, e assim por diante - com o
em Lukács, na Sociologia weberiana de esquerda e em Poulantzas. Ou
formas de subjetividade e consciência são interiorizadas dentro da
conceituação da própria estrutura - com o em Althusser e seus colabo­
radores e no marxismo ortodoxo da Segunda e Terceira Internacio­
nais. Am bos os tipos de posição deixam de conceituar as condições de
efetividade diferencial dos agentes sociais e tendem a identificar os
conceitos de agente e sujeito humano. N o primeiro, o agente é conce­
bido como uma subjetividade independente que enfrenta condições
objetivas dadas e sua efetividade é conceituada apenas na medida em
que prefere agir de acordo com seus interesses “ objetivos” estrutural­
mente determinados. Essas versões do marxismo postulam uma auto­
nomia essencial da parte da vontade e consciência das agências subjeti­
vas e portanto implicam a indeterminação teórica e a incoerência final
das Sociologías e teorias da história subjetivistas. N o segundo tipo de
posição, o agente é reduzido a um recipiendário passivo das formas de
A G E N T E S E R E L A Ç Õ E S S O C IA IS
243

consciência adequadas à sua posição na estrutura, sendo-lhe negada


qualquer efetividade independente. Marx delineia uma posição desse
tipo no seu Prefácio à primeira edição alemã de O Capitai.
M as aq u i o s in d iv íd u o s são tra ta d o s ap en as n a m ed id a em qu e sã o a p erso n ificação de
categ o rias eco n ô m icas, en carn açõ es de d eterm in ad as relações de classes e interesses de
classe. M eu p o n to d e v ista a p a rtir do q u al a evolução d a fo rm açã o econôm ica d a socie­
dade é o b se rv a d a co in o um processo d e h istó ria n a tu ra l, pode, m enos do que q u a lq u e r
o u tro , to r n a r o in d iv íd u o responsável pelas relações cuja c ria tu ra ele c o n tin u a sendo so ­
cialm en te, p o r m ais q u e se possa elevar sub je tiv am en te acim a delas. (pp. 20-1)

Enquanto a teoria econôm ica clássica e neoclássica concebe o agente


econôm ico em termos de uma natureza humana definida (uma função
de necessidades e atributos definidos, num caso, e de uma psicologia
calculadora, no outro), Marx concebe o capitalista com o a personifi­
cação do capital. Ele é a encarnação de uma força social; um sujeito
vazio, dotado de formas de consciência adequadas à sua posição so­
cial. Em O Capital, por exem plo em suas discussões do cálculo capita­
lista e no capítulo “ Ilusões Criadas pela Concorrência” no livro 3,
Marx analisa a subjetividade do capitalista com o uma função das apa­
rências criadas pela ação da própria estrutura.
O capitalista é uma simples “ parte alíquota” do capital social to­
tal e o m odo de experiência das aparências de sua estrutura tem uma
forma universal. E a mesma para todas as partes alíquotas do capital
social. Assim , embora evite uma A ntropologia ou Psicologism o ingê­
nuo através do uso dessa estrutura de encarnação, Marx pressupõe
uma natureza humana definida na forma de uma faculdade essencial
de experiência por parte do indivíduo.
Sem o intermédio de uma faculdade de experiência, as aparências
da estrutura seriam incapazes de formar a consciência dos capitalistas.
A redução do capitalista à personificação de uma parte alíquota do ca­
pital social não oferece meios de conceituar os efeitos diferenciais dos
cálculos e da organização empresarial capitalistas sobre as condições
de produção e de concorrência capitalista. Se o cálculo pelos capitalis­
tas tem uma efetividade, então o capitalista não pode ser reduzido à
personificação do capital.
Um a redução distinta, mas correlata, do agente à sua posição so­
cial encontra-se em Althusser, especialmente em “ Ideologia e Apare­
lhos Ideológicos Estatais” (Lénine et la philosophie) onde ele levanta o
problema da reprodução das relações de produção. O problema de
Althusser, e sua solução proposta, foi criticado por Paul Hirst em ou­
tra publicação (“Althusser e a Teoria da Ideologia”). O que é de inte­
resse para nossa análise é que Althusser efetivamente reduz a reprodu­
ção das relações de produção à distribuição dos sujeitos humanos a lu­
gares na divisão social do trabalho e a atribuição a esses sujeitos de
uma formação ideológica adequada à posição social que estão destina­
244 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

dos a ocupar. As relações de produção são consideradas com o rela­


ções entre sujeitos hum anos que são, eles próprios, “ personificações”
de suas posições sociais. Paul Hirst mostrou que Althusser comete
dois erros correlacionados: primeiro, a identificação das relações de
produção com as funções atribuídas aos agentes econômicos na divisão
social do trabalho e, segundo, a identificação de agentes econôm icos e
sujeitos humanos. É a segunda identificação e seus efeitos que nos in­
teressam mais aqui. C om o os agentes econôm icos são sujeitos huma­
nos, segue-se que os m ecanismos invocados por Althusser para m ode­
lar os agentes a formas adequadas ao seu lugar econôm ico devem fun­
cionar por meio da estrutura da subjetividade humana. Onde Marx in­
voca as aparências criadas pela econom ia e uma faculdade de expe­
riência por parte do indivíduo para dotar os agentes de consciência
adequada, Althusser invoca aparelhos ideológicos estatais que funcio­
nam pela ideologia. Althusser concebe a ideologia com o incluindo um
nível distinto da form ação social. O nível ideológico é o palco da práti­
ca ideológica, uma prática que opera sobre as consciências dos ho­
mens constituindo representações da relação imaginária dos indiví­
duos com as suas condições reais de existência. A ideologia constitui
as consciências dos hom ens, e estes vivem na ideologia no sentido de
que todos os atos da consciência são necessariamente ideológicos.
Althusser apresenta, portanto, uma dupla tese: “ 1) não há prática, ex­
ceto pela ideologia e na ideologia; 2) não há ideologia, exceto pelos su­
jeitos e para os sujeitos” (Lenin and Philosophy, p. 159).
O sujeito humano é uma criatura da ideologia e a ideologia é por­
tanto uma condição da existência de todas as formas de prática social.
Há uma dualidade entre a concepção de Althusser dos agentes com o
sujeitos humanos e sua concepção da ideologia com o parte integrante
de todas as práticas sociais. Porque a ideologia é constitutiva da cons­
ciência dos sujeitos, segue-se que, quando há sujeitos, deve haver ideo­
logia. Por outro lado, com o a ideologia é integrante de qualquer práti­
ca social e comp opera na consciência dos sujeitos, segue-se que os
agentes de uma prática social só podem ser agentes se forem também
sujeitos:
N e n h u m in d iv íduo h u m a n o , isto é, social, p o d e ser o ag en te de u m a p rá tic a se n ã o tiver
a fo r m a de um sujeito. A “ fo rm a de su jeito ” é n a realid ad e a fo rm a d a existência h istó ri­
ca d e to d o in d iv íd u o , de to d o ag en te de p rá tic a s sociais. (E ssays in S elf-C riticism , p. 95)

As concepções de Althusser da ideologia e do agente com o sujeito são


interdependentes e apóiam -se mutuamente: uma assegura a necessida­
de da outra. O caráter essencial do sujeito humano assegura a eterni­
dade da ideologia com o um ingrediente de todas as práticas sociais, e o
papel da ideologia com o um ingrediente essencial de todas as práticas
sociais assegura que os agentes devem ter a forma de sujeitos. Assim ,
A G E N T E S E R E L A Ç Õ E S S O C IA IS 245

se postularmos a ideologia, devem os também postular o agente com o


sujeito, e se postularm os os sujeitos devemos também postular a ideo­
logia. Se aceitarmos a concepção de Althusser de um deles, então tere­
mos de aceitar sua concepção do outro. M as por que não rejeitar a
ambos? Althusser não nos oferece uma argumentação sobre esse as­
sunto. Com efeito, sua concepção do agente com o um sujeito e a con­
cepção correlativa da ideologia são introduzidas por im posição.
Este capítulo apresenta uma análise experimental e provisória dos
conceitos de agentes e suas condições sociais de existência. Argumenta
que não há nada no conceito de agente para assegurar que todos os
agentes devam ser concebidos com o sujeitos humanos e mostra com o
os conceitos de agentes sociais outros que não os indivíduos humanos
podem ser constituídos. Embora grande parte da argumentação seja
conduzida principalmente em referência aos agentes econôm icos, deve
ser claro que tem implicações mais gerais. O problema da conceitua-
ção dos agentes e suas condições de existência não se restringe à cate­
goria do agente econôm ico, sendo igualmente pertinente à conceitua-
ção do direito e da política e de outras formas de prática social.

O conceito de agente como sujeito


Um agente é uma entidade capaz de ocupar a posição de um locus de
decisão em uma relação social, enquanto a relação social é uma re­
lação entre agentes, possivelmente envolvendo outros objetos, por
exemplo, os meios de produção. Um conjunto de relações de produção
envolve pelo m enos duas categorias de agente juntamente com os
meios de produção que possuem ou dos quais estão separadas. A in­
terdependência dos conceitos de agente e relação social assegura que
nenhuma conceituação de um é possível sem pelo menos uma concei-
tuação implícita do outro. Assim, postular atributos universais dos
agentes mantendo, digamos, que eles devem ser todos sujeitos, é pos­
tular uma universalidade correlativa no nível das relações sociais - de­
vem ser todas relações entre sujeitos. Inversamente, negar universali­
dade no nível de agentes é também negá-la no nível de relações sociais;
é manter que tipos específicos de agentes (relações sociais) só podem
ser definidos com relação a tipos específicos de relação social (agente).
Tratar, por exem plo, os Estados com o agentes capazes de entrar em
relações sociais é postular tipos de relações sociais nos quais os indiví­
duos humanos não podem ocupar posições com o agentes. N a seção
seguinte, argumentamos que nenhuma universalidade pode ser postu­
lada quer no nível de agentes quer no nível de relações sociais e que os
agentes ou as relações sociais devem ser sempre conceituados com re­
ferência a tipos específicos de relações sociais ou agentes.
246 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

Mas é necessário, primeiro, considerarmos o que decorre da posi­


ção contrária, ou seja, que todos os agentes são sujeitos e todas as rela­
ções sociais são relações entre sujeitos. O efeito de identificar todos os
agentes com o sujeitos é postular-se‘ um conjunto de atributos subjeti­
vos universais de vontade e consciência com o característico de todos
os agentes sociais. Esses atributos universais podem permitir a diferen­
ciação dos agentes através do desenvolvimento de capacidades espe­
cializadas e distintas, mas essas capacidades não podem ser concebidas
com o atributos essenciais dos agentes em questão. N o trabalho de
Althusser sobre a ideologia, por exemplo, a diferenciação da força de
trabalho social através do desenvolvimento de capacidades especiali­
zadas nos agentes - conhecimentos técnicos e também “ as regras de
bom comportamento, isto é, a atitude a ser observada por todo agente
na divisão do trabalho segundo a tarefa para a qual está ‘destinado’”
(Lenin and Philosophy, p. 127) - é um efeito dos aparelhos ideológicos
do Estado e, no caso do capitalismo, do aparelho ideológico-
educacional do Estado, em particular. Os aparelhos ideológicos fun­
cionam através da ideologia, isto é, têm com o seus objetivos a trans­
formação da consciência dos homens. N a Sociologia, a diferenciação
dos agentes é concebida com o uma função da livre escolha dos valores
finais, da socialização primária e adulta que opera através de várias
instituições distintas e assim por diante. Mas, em todos os casos, o de­
senvolvimento de capacidades especializadas por parte dos agentes é
concebido com o operando por meio dos atributos universais da vonta­
de e consciência de que dispõem todos os sujeitos com o sujeitos. Da
mesma forma, se os agentes forem concebidos em termos de atributos
subjetivos universais, então as relações sociais devem ser uma forma
necessária e universal: são relações entre sujeitos e existem na, e atra­
vés da, vontade e consciência dos sujeitos. Relações sociais especializa­
das dependem, portanto, da especialização das vontades e consciên­
cias dos agentes que delas participam. Assim, Althusser trata a repro­
dução das relações de produção com o se foSse equivalente à distribui­
ção de sujeitos dotados de subjetividades adequadamente especializa­
das para as diferentes posições definidas pela divisão social do traba­
lho.
A conceituação de todos os agentes em termos de atributos subje­
tivas universais apresenta problemas reais com relação à conceituação
da efetividade dos agentes e das diferenças entre eles. O agente como
sujeito pode ser concebido com o livre ou com o mais ou m enos não-
livre. Posições do primeiro tipo são apresentadas por Weber e a gran­
de maioria da Sociologia subjetivista. N esse caso, os agentes são cons­
titutivos das relações sociais, não só no sentido limitado de que as rela­
ções sociais só podem existir através dos atributos uni /ersais dos agen­
tes, mas também no sentido de que todas as relações sociais são redutí-
A G E N T E S E R E L A Ç Õ E S S O C IA IS 24 7

veis a decisões por parte de um ou mais agentes. Se os agentes são li­


vres, então suas ações e decisões não podem ser condicionais em rela­
ção a condições sociais fora dos próprios agentes. As relações sociais
não podem, portanto, ter uma efetividade determinada e própria, e a
efetividade que podem possuir é sempre redutível à efetividade dos
agentes que constituem essas relações.
Para Weber, as relações sociais e as coletividades sociais
devem ser tra ta d a s ap en as co m o resu ltan tes e m o d o s de o rg a n iz a ç ã o d o s d eterm in ad o s
a to s de p esso as in d iv id u ais, já q u e som ente estas podem ser tra ta d a s com o agentes num
cu rso d e aç ã o su b je tiv am en te com preensível. ( T heory, p. 101)

A insistência no entendimento subjetivo decorre da concepção dos


agentes com o sujeitos livres: se os sujeitos são constitutivos das rela­
ções sociais, a análise dessas relações deve reduzir-se à análise da sub­
jetividade dos agentes que as constituem.
Ora, pretender que os agentes são sujeitos e que são livres é pre­
tender que certas características cruciais desses agentes não estão sujei­
tas a quaisquer condições externas de existência. As decisões e escolhas
do agente são o efeito de sua consciência em livre funcionamento. O
conteúdo da consciência deve, portanto, incluir não só percepções e
conceituações de condições externas à subjetividade do agente em
questão, mas também características que não dependem, de m odo al­
gum, dessas condições. N a Sociologia de Weber, tais características
são chamadas de “ valores supremos” (ou “ últim os” ). São indepen­
dentes de todas as condições sociais e materiais e são livremente esco­
lhidas pelos sujeitos humanos individuais. U m a vez escolhidos, os va­
lores supremos do agente governam suas decisões e ações a menos e
até que sejam suplementados pela escolha de outros valores supremos.
M ostrou-se em outro lugar (Hindess, “ Humanism and Teleology in
Sociological Theory” , 1977b) que esse tipo de posição é uma versão
humanista de uma concepção racionalista mais geral da ação. Essa
concepção postula um reino da natureza, uma esfera independente de
idéias (valores supremos, significados, etc.) e um mecanismo de reali­
zação de idéias no reino da natureza. O mecanismo pode ser sujeitos
humanos individuais, com o nas versões humanistas, ou sistemas e ins­
tituições sociais supra-individuais, com o nas versões anti-humanistas.
Em suas formas humanistas ou anti-humanistas, a concepção raciona­
lista da ação apresenta variantes mais ou m enos secularizadas da tra­
dicional contraposição religiosa dos reinos material e espiritual, tendo
o homem no meio. Essas concepções são incapazes de conciliar a efeti­
vidade conflitante dos reinos material e espiritual: se o espírito quer,
mas a carne é fraca, o que então assegura o dom ínio de um ou outro,
numa determinada situação? M esmo, porém, que esse problema seja
posto de lado, a concepção racionalista da ação não tem meios de
248 CLASSES E E S T R U T U R A DA FO R M A Ç Ã O SO CIA L

conceituar a articulação de elementos ideais conflitantes, digamos,


dois valores finais opostos. Ou deve sustentar que a esfera ideal não
encerra elementos incoerentes - e nesse caso suas explicações da ação
social podem ser demonstradas com o vazias. Ou em qualquer situação
de ação em que dois valores finais entram em conflito, a vitória de um
ou de outro não tem condições de existência determinadas. A situação
é, portanto, indeterminada. Esses argumentos foram desenvolvidos
exaustivamente em outra obra e não precisam ser mais amplamente
elaborados aqui.
Todas as formas da concepção racionalista da ação são incoeren­
tes e indeterminadas, mas as versões humanistas criam problemas adi­
cionais próprios. O mais significativo no presente contexto relaciona­
se com as condições de existência das ações dos agentes. N essas con­
cepções, som ente certas características do agente com o sujeito não têm
condições determinadas de existência. T odos os sujeitos weberianos
dependem da satisfação das condições biológicas de existência de ani­
mais hum anos, e com o são sujeitos livres, bem com o animais, pressu­
põem condições ideais definidas na forma de uma esfera de valores su­
premos que flutua livremente. M as a escolha particular dos valores su­
premos feita por um sujeito individual não tem condições determina­
das de existência. U m a esfera de valores supremos é uma condição de
existência da possibilidade de escolha, mas a própria escolha é essen­
cialmente indeterminada. N o fim, portanto, conceituar os agentes
com o sujeitos livres é evitar a conceituação das condições de existência
de suas ações.
O pólo oposto à concepção do agente com o sujeito que estabelece
livremente ações e relações sociais é a visão do sujeito com o literal­
mente o sujeito do (isto é, subm etido ao) sistema de relações sociais
que o envolvem. O sujeito é a criatura das suas relações. Assim , para
Althusser:
o in d iv íd u o é in te rp o la d o co m o um sujeito (livre) p a ra q u e se su b m e ta livrem ente às o r­
den s d o S ujeito, isto é, p a ra q u e aceite (livrem ente) su a sujeição, ou seja, p a ra q u e faça
o s g esto s e ações de su a sujeição “ p o r si m esm o ” . N ã o h á sujeitos exceto p ela su a sujei­
çã o e p a ra ela. Ê p o r isso q u e to d o s “ o p eram p o r si m esm o s” . (Lenin and P hilosophv, p.
169)

Cada sujeito tem consciência de si mesmo com o um agente plenam en­


te ativo. Ele é livre no m undo imaginário de suas representações cons­
cientes, mas na realidade é o sujeito de seu lugar característico na es­
trutura da formação social. Com efeito, o sujeito é o recipiendário
passivo da forma de subjetividade adequada à sua posição no sistema
de relações sociais, mas, já que é um sujeito, experim enta sua sujeição
no m odo de liberdade. Rigorosam ente falando, os sujeitos de A lthus­
ser não entram em relações “ que sejam independentes de sua vonta-
AG EN TES E RELA ÇÕES SOCIAIS 249

de” . Pelo contrário, suas vontades são o produto de relações das quais
têm de participar.
Pára Althusser, o sujeito constitutivo que gera as relações sociais
com o um efeito de sua praxis escolhida livremente tem um lugar neces­
sário, mas apenas no Imaginário, na esfera ideológica das formas de
subjetividade e consciência. N a realidade, a formação social exige su­
jeitos com o suportes para as posições definidas pelas suas estruturas e
relações sociais e seus aparelhos ideológicos estatais, e para assegurar
que os sujeitos estão realmente dotados das subjetividades adequadas
às posições que ocupam . Os sujeitos não são constitutivos da forma­
ção social, mas são necessários a ela. C om o os aparelhos ideológicos
estatais agem sobre e através da consciência dos homens, o forneci­
mento de agentes adequados com o suportes depende dos agentes já es­
tarem constituídos com o sujeitos. As capacidades especializadas dos
agentes são um efeito da estrutura da formação social, mas seus atri­
butos subjetivos universais, que são necessários para que as capacida­
des especializadas sejam formadas, não o são. São pressupostos pela
estrutura, e não constituídos nela. Com o sujeitos, os agentes são dota­
dos de uma faculdade de experiência que lhes permite receber e inte­
riorizar as formas de subjetividade adequadas à posição que ocuparão
na estrutura. O funcionam ento da estrutura pressupõe, portanto, su­
jeitos com os atributos universais do conhecim ento. Althusser procura
teorizar o mecanismo da formação de sujeitos, mas com o Paul Hirst
mostrou, sua tentativa é pouco eficiente, já que o mecanismo por ele
postulado pressupõe precisamente o que tem de ser explicado, ou seja,
a faculdade subjetiva da experiência. Assim , longe de ser um anti-
humanismo sistem ático no sentido de conceituar uma estrutura sem
s u je it o , a concepção d e Althusser da formação social exige o conceito
d e s u je it o , um c o n c e it o que não é em si mesmo teorizado, mas simples­
m e n t e i n c o r p o r a d o c o m o uma necessidade.

Consideremos agora o problema da conceituação das ações de


agentes na teoria de Althusser. Os sujeitos só são agentes livres no rei­
no do imaginário. N a realidade, são sempre os. sujeitos do seu lugar na
estrutura da formação social e a efetividade que possam aparentar ter
é simplesmente a efetividade de seu lugar na estrutura. A dificuldade
com essa concepção é que não proporciona meios de conceituar as efe-
tividades diferenciais das ações dos diferentes agentes. A ação de qual­
quer agente é uma função de sua subjetividade, das percepções e cálcu­
los proporcionados pela estrutura com o, precisamente, a subjetividade
necessária ao desem penho das funções definidas pela sua posição na
estrutura. A ação do agente, por assim dizer, é estritamente redutível à
função que ele desempenha na estrutura do todo. E o mesmo é válido
para todos o s outros agentes. As diferenças entre os agentes refletem,
250 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

portanto, as diferenças nas funções necessárias à existência da estrutu­


ra. Lembremos que Althusser considera todas as relações sociais com o
relações entre sujeitos, isto é, com o existentes apenas na consciência
dos agentes que participam dessas relações e através dela - de modo
que a reprodução das relações é rigorosamente equivalente à reprodu­
ção de agentes devidamente dotados em posições adequadas. C om o a
formação social consiste na totalidade de suas relações sociais, e a re­
produção dessas relações é um efeito da própria estrutura, devemos
concluir que a estrutura se reproduz com o um efeito necessário de sua
própria existência. Assim, a conceituação de Althusser dos agentes
com o sujeitos da estrutura nos leva de volta à forma de causalidade es­
trutural, na qual, com o já vimos, a estrutura deve ser concebida com o
a “eternidade no sentido de Spinoza” (Reading Capital, p. 107). C o­
mo, então, devemos conceber as diferenças entre agentes e as conse­
qüências dessas diferenças? As condições de existência de cada agente
e de cada ação desse agente são dadas na estrutura. Mas, se são todas
igualmente efeitos da estrutura, então com o vamos explicar sua especi­
ficidade? Se há diferenças entre um efeito da estrutura e outro, não
pode ser a ação da estrutura, apenas, que os distingue. Reduzindo as
capacidades distintivas e especializadas de todos os agentes a efeitos
da estrutura, Althusser nega, efetivamente, a sua especificidade. Por­
tanto, ele reproduz a estrutura do que critica com o uma totalidade ex­
pressiva na qual todos os fenôm enos são efeitos de uma única essência
interna - são todos efeitos da estrutura.
Finalmente, é claro que há várias posições que se colocam entre
os dois tipos polares descritos acima. Envolvem seja uma versão não-
individualista da concepção racionalista da ação que pretende subor­
dinaras ações dos indivíduos humanos ao funcionamento de mecanis­
m os sociais supra-individuais (sistemas sociais e culturais, por exem­
plo) seja uma contraposição de sujeito e estrutura. O primeiro tipo foi
discutido em outra publicação (Hindess, “ Humanism and T eleolo­
gy“ ), que mostra q,ue, embora evite as conseqüências mais absurdas de
um humanismo teórico individualista, não pode evitar os problemas
mais gerais da concepção racionalista da ação. São incoerentes e teori­
camente indeterminados. O segundo tipo de posições foi examinado
na discussão das classes no Capítulo 7. Vim os que, embora elas afir­
mem a irredutibilidade do sujeito à estrutura, só podem conceituar a
efetividade dos sujeitos na medida em que suas ações estão de acordo
com os interesses “ objetivos” definidos pela estrutura - isto é, na me­
dida em que agem com o se fossem redutíveis à estrutura. Quer sejam
concebidos com o livres, ou com o as criaturas mais ou m enos não-
livres de suas relações sociais, a conceituação dos agentes em termos
de atributos subjetivos universais não oferece meios de conceituar a
A G E N T E S E R E L A Ç Õ E S S O C IA IS 251

efetividade e as condições de existência de agentes específicos, e as


ações específicas que empreendem.

Agentes e as condições de sua existência


Um agente é um locus de decisão dentro de uma ou mais relações so­
ciais e o locus de ação com o uma função das decisões que toma. Os
agentes diferem de outros objetos que entram em relações sociais, não
só no sentido de que podem efetuar m ovimento e modificações, mas
também no sentido de que suas ações são dependentes de decisões.
Uma biela pode atuar sobre um eixo de manivelas, mas o faz porque
há conexão mecânica definida entre eles. Ela não decide se vai atuar ou
não. Um capitalista industrial distribui os trabalhadores e meios de
produção dentro dos limites de uma empresa ou empresas, mas o faz
apenas com o função de suas decisões, por um lado, e das relações so­
ciais que permitem que tais decisões sejam efetivas, por outro.
Com o concfcituar os agentes e as decisões que tomam? N a seção
anterior, examinamos um tipo de resposta, ou seja, a de que os agentes
devem ser concebidos em termos de atributos subjetivos universais.
Ser um agente é ser um sujeito; é agir em termos do funcionamento de
uma vontade e uma consciência, dotadas de uma faculdade de expe­
riência. O sujeito pode ser concebido com o livre ou mais ou menos
não-livre. Vimos que, se é livre, então suas decisões particulares não
podem ter condições determinadas de existência. Por outro lado, se é
livre apenas na esfera imaginária da consciência, se na realidade é a
criatura de suas relações sociais, então suas decisões “ tomadas livre­
mente” de fato se dissolvem em efeitos da estrutura da formação so­
cial. A formação social é então reduzida a uma totalidade expressiva
na qual cada um de seus agentes simplesmente expressa o que é dado
em suas percepções do todo. A estrutura é, então, uma essência espiri­
tual autogeradora - uma “eternidade no sentido de Spinoza” - cuja
existência basta para assegurar a totalidade de suas condições de exis­
tência. Essas posições polares impedem efetivamente a possibilidade
de conceituar as condições de existência e a efetividade de determina­
dos agentes e suas ações, quer negando totalmente a possibilidade de
determinadas condições de existência para certas características cru­
ciais dos agentes, quer dissolvendo a especificidade dos agentes e suas
ações na universidade da estrutura. Posições intermediárias contra­
põem a liberdade da subjetividade ao determinismo da estrutura, in­
corporando com isso alguns dos problemas fundamentais de ambos os
tipos polares.
252 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

Essas posições partilham de um essencialismo comum e de um


problema comum. Seu essencialismo consiste na pressuposição de que
ser um locus de decisão é participar de uma essência decisória e dos
atributos universais necessários ao funcionamento dessa essência - ser
um locus de decisão é ser um sujeito, é partilhar da essência da subjeti­
vidade. Seu problema comum é gerado pelo seu essencialismo: com o
podem as diferenças entre agentes ser conceituadas com o uma função
de uma essência comum? Ou as diferenças são reais e inexplicáveis
(não têm condições determinadas de existência) ou são irreais e deter­
minadas (são apenas outras tantas expressões da mesma estrutura es­
sencial da formação social) - ou então situam-se numa posição inter­
mediária.

Para evitar o essencialismo e seus problemas, então a questão das


condições de existência dos agentes deve ser levantada com cuidado.
Levantar a questão do agente com o uma questão universal, indepen­
dentemente de quaisquer condições determinadas, é exigir que a res­
posta seja incondicional e portanto essencialista. Em lugar disso, a
questão deve ser formulada em relação às condições determinadas nas
quais o agente, com o locus de decisão, deve operar. Com o os agentes
funcionam com o locus de decisões em posições determinadas em rela­
ções sociais determinadas, segue-se que uma parte importante (mas
não a totalidade) dessas condições deve depender das relações sociais
das quais os agentes participam. Dizer que a questão das condições de
existência dos agentes deve ser postulada, inter alia, com referência às
relações sociais das quais participam é dizer que não são constituídas
pela posse de atributos universais.
Para ilustrar o que está em questão aqui, vamos examinar o caso
das relações de produção e dos agentes nelas implicados. As relações
de produção têm sido concebidas em termos de determinadas formas
de posse e separação dos meios de produção. A posse efetiva envolve
uma capacidade de controlar o funcionamento dos meios de produção
no processo de produção, e de excluir outras pessoas do seu uso. A se­
paração efetiva implica, portanto, que o uso desses meios só pode
ocorrer sob alguma forma de controle pelo agente possuidor e signifi­
ca que o possuidor pode exercer certo controle sobre a distribuição do
produto do uso desses meios. N o caso do capitalismo, os elementos do
processo de produção tomam a forma de mercadorias: meios de pro­
dução são possuídos com o mercadorias e a distribuição dos produtos
toma a forma de troca de mercadorias.
Os capitalistas compram os meios de produção e compram a for­
ça de trabalho em troca de salários. O que isso nos revela em relação
aos agentes implicados na produção capitalista? Vejamos primeiro o
capitalista, o agente da posse. Para que um agente funcione com o ca-
A G E N T E S E R E L A Ç Õ E S S O C IA IS 253

pitalista, deve ser capaz de possuir mercadorias e de celebrar contratos


para compra e venda de mercadorias. Isto é, deve ser legalmemente re­
conhecido com o um agente para as finalidades da lei de propriedade e
da lei contratual. Além disso, o capitalista deve ter a capacidade efeti­
va de controlar o funcionam ento dos meios de produção em sua posse.
Isso implica duas coisas. Primeiro, com o os meios de produção tomam
a forma de mercadorias, seu controle deve envolver o capitalista em al­
guma forma definida de cálculo monetário com relação às decisões
sobre preço e compra, escala de produção, e assim por diante, e tam­
bém com relação ao acom panham ento das diferentes partes do proces­
so de produção. Segundo, o capitalista necessita de certos meios para
implementar suas decisões: deve ser capaz de emitir instruções aos seus
empregados e deve possuir os meios de uma supervisão mais ou menos
efetiva de sua conduta. Da mesma forma, se considerarmos o agente
da separação, o trabalhador, é claro que também ele deve ser legal­
mente reconhecido com o agente, no âmbito da lei de propriedade e da
lei contratual. Também deve ser capaz de receber instruções e agir se­
gundo elas, e ter a capacidade (ou pelo m enos o potencial) de operar
os meios de produção em questão.
Essas observações nos dizem alguma coisa, mas não nos dizem
muito sobre as condições de existência dos agentes de posse e separa­
ção implicados na produção capitalista. Para que os agentes sejam os
agentes da produção capitalista, deve haver leis de contrato e proprie­
dade que os reconheçam com o agentes. Para. que se dediquem ao cál­
culo monetário, portanto - já que o cálculo monetário não é um atri­
buto humano inato - deve haver m odos definidos de cálculo cultural­
mente disponíveis, que devem ser difundidos através de formas defini­
das de treinamento. D a mesma forma quanto aos trabalhadores - para
eles operarem os meios capitalistas de produção, as técnicas dessa ope­
ração devem estar culturalmente disponíveis e deve haver um meio dç
treiná-los no seu uso. N esses casos, certas características do sistema le­
gal ou das técnicas culturalmente disponíveis para cálculos e operação
surgem com o condições de existência das formas capitalistas de posse
e separação e dos agentes que delas participam. Vimos que as relações
de produção não geram as suas próprias condições de existência e não
governam as formas pelas quais estas sã o proporcionadas. O conceito
de relações de produção capitalistas encerra certas condições abstratas
e gerais que formas de lei ou de técnicas culturalmente disponíveis de­
vem satisfazer para que sejam compatíveis com a produção capitalista.
Mas, dentro dessas condições, pode haver considerável variação nas
formas de lei de propriedade e de contrato, e nas formas de cálculo
monetário e de operação.
N ada, aqui, nos informa que os agentes da produção capitalista
devem ser indivíduos humanos. O capitalista deve ser reconhecido
254 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

com o um agente para as finalidades das leis contratual e de proprieda­


de, mas não há razão pela qual a categoria de agentes devidamente re­
conhecidos para esses objetivos se deva limitar aos indivíduos huma­
nos. A categoria de agentes capazes de operar com o um capitalista é
uma função do sistema jurídico da fòrmação social em questão. Por
exemplo, uma série de leis em meados do século X IX ,.n a Grã-
Bretanha, começando com a Lei das Sociedades Anônimas de 1844, es­
tabeleceu a possibilidade de sociedades anônimas, com responsabili­
dade limitada. Antes disso, os agentes capazes de funcionar com o ca­
pitalistas estavam, com algumas exceções, limitados à categoria de in­
divíduos humanos que satisfaziam a certas condições mínimas e de as­
sociações (com responsabilidade ilimitada) formadas por esses indiví­
duos. A Lei de 1844 e as que se seguiram estabeleceram uma nova ca­
tegoria de agente econôm ico capaz de funcionar como locus de decisão
e de celebrar contratos com empregados e outros agentes. As respon­
sabilidades do acionista são limitadas à parte de suas ações não-pagas
(se houver) e seus direitos são limitados ao recebimento do Relatório
Anual, comparecimento à Assembléia-Geral Anual e a qualquer as­
sembléia especial que possa ser convocada, o direito de votar sobre
certos assuntos que afetam a política da sociedade em questão e o di­
reito de partilhar do que restar, em caso de falência e depois de pagas
as obrigações pendentes. A sociedade anônima é um agente legal e um
locus de decisões econôm icas distinto de seus acionistas. É um exem­
plo excelente de um agente reconhecido pela lei para certas finalidades
e não-reconhecido com o agente para outras: pode possuir proprieda­
des e celebrar contratos, mas não pode casar. Nesse caso, as formas do
Direito Comercial britânico permitem a existência de agentes que são
específicos para um conjunto rigorosamente limitado de relações so­
ciais. Quanto aos outros atributos exigidos de uma entidade, para que
funcione com o um agente da posse capitalista, é claro que eles não exi­
gem que o agente seja um indivíduo humano. Um capitalista deve ser
capaz de calcular em termos de mercadorias, e deve ser capaz de dar
instruções.e supervisionar o trabalho de seus empregados. Mas não há
necessidade, no conceito de posse capitalista, de que tais tarefas sejam
desempenhadas por um único indivíduo humano. O cálculo, por
exemplo, pode ser efetuado por um aparelho organizacional que en­
volve tanto pessoas quanto máquinas (por exemplo, computadores,
tabuladores e classificadores, etc,), de m odo que os produtos do cálcu­
lo não podem, de m odo algum, ser reduzidos ao trabalho de qualquer
indivíduo humano. O cálculo, a supervisão e a emissão de instruções
podem ser realizados por um indivíduo ou por um grupo de emprega­
dos. Mas, se os cálculos capitalistas e a supervisão podem ser realiza­
dos por um grupo ou por um aparelho, não há necessidade de que o
capitalista seja um indivíduo humano.
A G E N T E S E R E L A Ç Õ E S S O C IA IS 255

Observações correlatas podem ser feitas com respeito ao traba­


lhador capitalista e com respeito aos agentes de outras formas de posse
e separação. Embora a forma predominante de agente separado da
produção capitalista seja certamente o indivíduo humano, os exem­
plos bem conhecidos de trabalho por bandos no século XIX na Grã-
Bretanha e dos subempreiteiros apenas de mão-de-obra, atualmente,
bastam para indicar a possibilidade de outras formas. N a Europa feu­
dal, é claro que o lugar do possuidor feudal da terra pode ser ocupado
por indivíduos humanos (senhores feudais), por comunidades religio­
sas ou outros órgãos corporativos (cidades e vilas). Como com o capita­
lismo, é a forma específica do Direito na Europa que permite a outras
entidades, além dos indivíduos humanos, funcionar com o locus de de­
cisão econôm ica, ocupando a posição de posse nas relações de produ­
ção feudais. Observações precisamente semelhantes se aplicam às con­
dições de escravidão, onde o que pode operar com o proprietário do
trabalho escravo é uma questão de definição jurídica. E tanto uma
função das formas de lei quanto das relações de produção em si.
Esses exem plos mostram que não há necessidade de identificar
agente econôm ico e indivíduo humano. O que pode funcionar com o
um agente de produção, seja de posse ou de separação, depende pri­
meiro das formas de posse e separação envolvidas e em seguida das
formas específicas tom adas pelas suas condições de existência. Em
particular, ser um agente econôm ico pressupõe o reconhecimento jurí­
dico ou consuetudinário com o um agente, para as finalidades da rela­
ção pertinente, pressupõe a disponibilidade cultural e a difusão das
formas adequadas de cálculo e técnicas, e, no caso de agentes outros
que não os indivíduos humanos, pressupõe a possibilidade de delega­
ção de certas tarefas e desempenhos a outros agentes de modo que os
desempenhos do agente podem ser efetuados diretamente pelos indiví­
duos humanos ou pelo aparelho organizacional. Mas nenhum desses
aspectos é peculiar aos agentes econôm icos. São pertinentes à con-
ceituação de todos os tipos de agente social. Para que um agente fun­
cione nessa qualidade em certas relações, deve ser reconhecido com o
tal para os propósitos dessas relações, deve ser capaz de tomar deci­
sões e agir de acordo com elas e, em muitos casos, deve ser capaz de
delegar tarefas e desempenhos a outros agentes. Um a discussão deta­
lhada dessas exigências não pode ser tentada no contexto deste capítu­
lo, mas talvez seja necessário comentar rapidamente cada uma delas.
Consideremos primeiro a questão do reconhecimento. Os aspec­
tos significativos a serem notados aqui são, primeiro, que a necessida­
de de reconhecimento com o uma condição de existência dos agentes
assegura que estes devem ser sempre específicos a determinadas rela­
ções sociais ou categorias de relações; segundo, que o reconhecimento
256 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

não é redutível a relações intersubjetivas entre seres humanos e, tercei­


ro, que as relações sociais não podem ser reduzidas aos agentes que de­
las participam. Dizer que um agente deve ser reconhecido é dizer que
as condições de existência de um agente, parq. as finalidades de deter­
minada relação social, não são redutíveis ao próprio agente. Assim,
não pode haver categoria de agente que seja capaz, de forma inerente,
de entrar em todas as relações sociais. Funcionar como capitalista é
ser reconhecido com o um agente do tipo pertinente pela lei e por ou­
tros agentes econôm icos pertinentes - mas esse reconhecimento não
pode ser efetuado apenas pelo próprio capitalista em questão. Ser um
agente numa relação social é ser reconhecido com o agente para essa
relação, mas o reconhecimento para uma relação não implica o reco­
nhecimento para todas as outras. U m agente reconhecido para os ob­
jetivos de relações comerciais pode não ser reconhecido para os objeti­
vos de matrimônio ou parentesco. Os agentes são sempre específicos a
relações sociais ou categorias de relações sociais definidas e, inversa­
mente, pode haver relações sociais que são específicas a categorias de­
finidas de agentes - relações entre Estados seria um exemplo.
Para compreender que esse reconhecimento não é redutível a re­
lações intersubjetivas, basta examinar o caso dos agentes econôm icos
capitalistas. Para que um agente opere com o capitalista, deve entrar
em relações comerciais e contratuais com vários outros agentes econô­
m icos, deve ser um súdito legal do Estado (para finalidades de tributa­
ção, etc^) e pode ter de agir em nom e do Estado, digamos, na coleta de
im postos de empregados e clientes. Isso significa que deve ser reconhe­
cido como um agente do tipo adequado por outros agentes econôm i­
cos, por vários órgãos do aparelho estatal e pelo sistema de Direito
Comercial. O reconhecimento, nesses casos, não é evidentemente uma
questão de relações subjetivas ou intersubjetivas entre seres humanos:
não é uma questão de um sujeito humano admitir a humanidade do
outro. Para que um capitalista seja reconhecido com o agente econôm i­
co por outros agentes econôm icos é necessário que compre deles e a
eles venda, seja capaz de trocar contratos e de mover processos ou ser
processado, em caso de não-cumprimento de obrigações. O estabeleci­
mento dessas condições nem sempre se faz sem problemas: uma gran­
de empresa pode não ter dificuldades em ser reconhecida por outras
empresas com as quais realiza, ou tem possibilidade de realizar, negó­
cios, mas empresas novas ou pequenas bem podem ter de oferecer pro­
va de sua capacidade. O reconhecimento legal é uma condição de exis­
tência dos agentes econôm icos capitalistas, mas não pode constituir
agentes econôm icos com o tal. Se o Parlamento britânico aprovasse
uma lei reconhecendo a Estrada M6 com o um agente para finalidades
do Direito Comercial, isso não faria, de m odo algum, da estrada M6
AG EN TES E RELA ÇÕ ES SOCIAIS 257

um agente econôm ico. Ser um agente é ser reconhecido com o tal por
outros agentes pertinentes e- ser um locus de decisão e ação.
O reconhecimento legal é uma condição de existência de todos os
agentes que se dedicam a relações sujeitas a regulamentação legal. Há
outras relações, por exemplo as de amizade nas sociedades capitalistas
e todas as relações na sociedade sem lei e, portanto, sem a possibilida­
de de reconhecimento legal. M as em todos os casos, alguma forma de
reconhecimento é uma condição de existência de um agente para fina­
lidades de uma determinada relação social. O caso da amizade pressu­
põe claramente o reconhecimento, por todas as partes interessadas,
dos outros com o agentes do tipo adequado. Em outras sociedades, nu­
merosas categorias de relações sociais são reguladas pelo costume.
M uitos sistemas de parentesco, por exem plo, prescrevem claramente,
os tipos de relação social abertos a diferentes categorias de agentes.
Ser um agente numa relação social é ser reconhecido com o um agente
do tipo pertinente por outros agentes pertinentes e pela lei ou costume.
As entidades que não são reconhecidas com o agentes não desempe­
nham qualquer papel nas relações sociais. N ão são, absolutamente
agentes sociais. Essa dependência em que os agentes estão do reconhe­
cimento por outros agentes pertinentes e pela lei ou costume assegura
que as relações sociais em geral não podem ser reduzidas aos agentes
nelas empenhados.
Se há agentes supremos cujas ações são constitutivas de relações
sociais, então as relações sociais são redutíveis aos agentes nelas empe­
nhados. Argumentamos acima que ser um agente social é ser um agen­
te em uma ou mais relações sociais e que ser um agente numa relação
social é ser reconhecido com o agente do tipo pertinente por outros
agentes potenciais e pela lei ou costume. A dependência em que os
agentes se encontram do reconhecimento por outros agentes poten­
ciais e pela lei ou costum e assegura que as relações sociais não podem
ser reduzidas aos agentes delas participantes. Se a satisfação de suas
condições de existência com o agentes não se pode efetuar apenas pelos
próprios agentes, então estes não podem ser constitutivos das relações.
Qualquer argumento contrário deve ser circular, no sentido de que
pressupõe o que tem de estabelecer. Consideremos o caso das relações
comerciais numa econom ia capitalista. Vimos que ser um agente nes­
sas relações é ser reconhecido com o um agente para essa finalidade
por outros agentes pertinentes e pela lei. Argumentar que o sistema de
relações comerciais é, não obstante, redutível aos atos constitutivos
dos agentes é afirmar que os agentes dessas relações só parecem depen­
der do reconhecimento, que os verdadeiros agentes dessas relações não
têm o reconhecimento com o uma de suas condições de existência, e,
além disso, que o próprio reconhecimento pela lei é redutível aos atos
constitutivos dos agentes. As dificuldades de manter essa linha de ar-
258 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

gumentação são claras. Já vimos que as formas de reconhecimento dos


agentes econôm icos por outros agentes não equivalem à decisão de su­
jeitos humanos livres de se reconhecerem mutuamente como sujeitos.
Mas vejamos a questão do reconhecimento legal. Pode-se argumentar
que o aparelho jurídico do Estado depende das ações delegadas de vá­
rios agentes e, portanto, que o reconhecimento pela lei é equivalente,
ou redutível, ao reconhecimento pelos agentes. Esse argumento é fa­
lho, pois o que é pertinente, no caso, não é o reconhecimento por qual­
quer agente, mas por aqueles que a lei reconhece com o seus represen­
tantes. Em última análise, o reconhecimento legal depende do reco­
nhecimento por um tribunal e por membros adequados do aparelho
jurídico do Estado. Esse argumento manifestamente pressupõe o que
tem de estabelecer. Mas argumentar que a própria lei depende do reco­
nhecimento pelos agentes e que o reconhecimento legal é, portanto, re­
dutível em última análise aos atos constitutivos dos agentes cujo reco­
nhecimento constitui a lei é errar ainda mais drasticamente. Em pri­
meiro lugar, o aparelho jurídico do Estado evidentemente não é re­
dutível ao seu reconhecimento pelos agentes. Segundo, o argumento
também pressupõe o que tem de estabelecer, ou seja, que os agentes
cujo reconhecimento é pertinente são redutíveis a sujeitos humanos.
As relações sociais, portanto, não podem ser reduzidas aos agen­
tes participantes delas. Em particular, não se podem reduzir a atos
constitutivos de indivíduos humanos. Segue-se que as ações de organi­
zações e coletividades não podem ser reduzidas, em princípio ou não,
aos atos de sujeitos humanos individuais. Assim, o comportamento de
uma sociedade anônima com o locus de decisão e ação não pode ser
analisado com o se ela fosse simplesmente a criatura de seus principais
acionistas, diretores e gerentes superiores. Diretores e gerentes podem
ser demitidos e os acionistas podem vender suas ações sem afetar ne­
cessariamente a sobrevivência da sociedade em questão ou seu reco­
nhecimento com o agente econôm ico por outros agentes e péla lei.
Vejamos agora a questão das decisões. Há numerosos casos em
que o locus da decisão não se pode identificar, claramente, com òs in­
divíduos humanos: as juntas diretoras, os órgãos legislativos, o apare­
lho burocrático e assim por diante. O que se exige de uma entidade
para que seja um locus de decisão é, primeiro, meios definidos de to­
mar decisões e, segundo, meios definidos de colocá-las em prática.
Essa segunda exigência pode envolver atributos do agente e sua posi­
ção dentro de relações sociais definidas, por exemplo quando a ação
depende de, ou exige, a instrução de outros agentes. Voltaremos ao as­
sunto ao discutirmos a delegação, mais adiante. A questão de decisão
envolve a questão do cálculo. A decisão depende da formação de uma
concepção definida da situação de ação possível. (Pode também envol-
A G E N T E S E R E L A Ç Õ E S S O C IA IS 259

ver outras características, com o por exemplo votar, mas estas não pre­
cisam ser examinadas aqui.) Vamos usar o termo “ cálculo” para nos
referirmos ao processo de formação de uma concepção definida da si­
tuação de ação possível. O cálculo, nesse sentido, é pressuposto em
qualquer decisão. N ão se restringe à análise quantitativa e sua perti­
nência não se limita à ação de agentes econôm icos numa economia
monetária. As decisões políticas são tomadas à base de alguma con­
cepção das condições nas quais a decisão é tomada e nesse sentido
pressupõem sempre um cálculo definido. O que está em jogo nessa no­
ção de cálculo e quais as suas condições de existência? É, logo de iní­
cio, evidente que o cálculo não pode ser reduzido a uma função do in­
divíduo humano. Pode ser uma função de uma organização definida,
envolvendo a ação de uma pluralidade de indivíduos junto, em muitos
casos, com máquinas e outros meios de cálculo (computadores, classi­
ficadores de cartões, papéis, etc.). Por exemplo, as decisões centrais de
compras de grandes cadeias de varejo dependem de cálculos que en­
volvem o processamento de informações através de vários níveis orga­
nizacionais distintos. Esse cálculo é realizado por um aparelho organi­
zacional, não por um indivíduo apenas.
Um aspecto mais importante é que as condições de cálculo jamais
são redutíveis a atributos dos agentes calculadores ou a uma relação
epistem ológica de conhecimento. Além das formas de organização e
dos meios materiais de cálculo freqüentemente em questão, o cálculo
envolve sempre o processamento de materiais, relatórios, estimativas,
etc., definidos pelo uso de meios conceptuais e discursivos de cálculo
definidos. As decisões políticas, por exemplo, são tomadas à base de
alguma concepção e análise das condições pertinentes. Dependem,
portanto, dos relatórios e observações empregados e dos conceitos,
formas de argumentação e outros meios discursivos envolvidos na for­
mação dessa concepção. Há, no caso, duas questões. Primeiro, segue-
se da crítica da epistem ología, no Capítulo 8, que a concepção do
agente da sua situação de ação não pode ser conceituada em termos de
uma relação epistem ológica do conhecim ento. Com o na concepção,
ela tem, inter alia, condições de existência conceituais e discursivas de­
finidas, e oferece condições de existência de tipos definidos de decisão
e ação, mas não pode proporcionar ao agente um conhecimento mais
ou menos adequado de sua situação. Segundo, dizer que o cálculo,
político, econôm ico ou de qualquer outro tipo, pressupõe meios de
cálculo conceituais e discursivos definidos é dizer que depende de con­
dições sociais e culturais que não são, de m odo algum, redutíveis aos
atributos do próprio agente de cálculo. Depende, de um lado, das con­
dições sociais de existência de seus meios de obter materiais para a
análise (isto é, a condição política na qual funcionários do Estado ou
do partido produzem relatórios) e, de outro lado, da disponibilidade
260 CLASSES E EST R U T U R A DA FO R M A Ç Ã O SOCIAL

cultural dos meios de cálculos conceituais e discursivos e das condi­


ções sociais nas quais os agentes podem adquirir a capacidade de ma­
nipular esses meios de cálculo.
E necessário insistir nesses pontos, já que são obscurecidos nas
discussões que buscam apresentar o cálculo numérico em geral, e o
cálculo monetário em particular, com o o auge da racionalidade.
Exemplos dessas posições se podem encontrar na teoria econômica de
Bõhm-Bawerk, na Sociologia de Weber e em várias posições correlatas
e derivadas. Para ilustrar o que está em jogo, um exemplo basta. Con­
sideremos os argumentos de Chayanov sobre a natureza da economia
camponesa em The Theory o f Peasant Economy. Ele argumenta que a
fazenda de trabalho familiar é a unidade de produção: a família, equi­
pada com meios de produção, usa sua força de trabalho para cultivar
o solo e recebe com o resultado de um ano de trabalho um certo volu­
me de bens {The Theory o f Peasant E conom y, p. 5). Com o não empre­
ga trabalho assalariado e seus produtos não são produzidos como
mercadorias, a econom ia camponesa está fora do âmbito de formas de
conceituação adequadas ao cálculo econôm ico nas economias capita­
listas.

Esse p ro d u to do tra b a lh o fam ilial é a única categ o ria possível de ren d a p a ra um a u n id a­


de de tra b a lh o fam ilial cam ponesa ou artesan a l, pois não há m eio de decom pô-la analítica
ou objetivam ente. C o m o nãõ há o fenôm eno social dos salários, o fenôm eno social do
lucro líquido tam b ém n ão existe. A ssim , é im possível ap licar o cálculo capitalista de lu­
cro. (Ibid., grifo nosso)

O produto do trabalho é conceitualmente indivisível e Chayanov habi­


tualmente a ele se refere com o renda únicá de trabalho. A característi­
ca organizacional básica da fazenda camponesa é que “ a família,
com o resultado de seu trabalho de um ano, recebe uma renda única do
trabalho e compara seus esforços com os resultados materiais obti­
dos” (ibid., p. 41). A atividade econôm ica da família é uma função de
seu “equilíbrio subjetivo de trabalho e consum o” (p. 46, grifo nosso).
A subjetividade do cálculo camponês é necessária, na explicação de
Chayanov, devido à ausência, na fazenda, das categorias de salários,
preços, lucros, etc., empregadas no cálculo capitalista.
Há muitos problemas com a concepção de Chayanov da econo­
mia camponesa, mas o que é particularmente importante para a nossa
análise é o tratamento por ele dado à diferença entre o uso de catego­
rias monetárias e não-monetárias no cálculo econôm ico com o equiva­
lente à diferença entre formas objetivas e subjetivas de análise. En­
quanto o cálculo econôm ico monetário é, ou pode ser, objetivo, o cál­
culo não-monetário deve ser subjetivo. A noção da objetividade do
cálculo monetário depende da concepção do dinheiro com o capaz de
proporcionar uma medida objetiva dos valores relativos. Deixando de
A G EN TES E RELA ÇÕES SOCIAIS 261

lado a questão do dinheiro, discutida em outro capítulo deste livro, é


olaro que essa concepção envolve uma concepção epistem ológica posi­
tivista da mensuração. Aqui a objetividade de uma medida está ligada
à sua correspondência com as propriedades reais dos objetos medidos:
o cálculo monetário é objetivo porque os preços representam valores
relativos verdadeiros; outras formas de cálculo econôm ico não são ob­
jetivas porque não conseguem representar valores relativos. N a ausên­
cia de uma epistem ología positivista, essa concepção de medida não
pode ser mantida. A medida é sempre uma função de meios de mensu­
ração conceituais e discursivos definidos. Pretender que a objetividade
ou racionalidade é atribuível a uma série de categorias apenas é pre­
tender para essas categorias um privilégio discursivo injustificado e in­
defensável.
Mas há também uma séria confusão no tratamento do cálculo
econôm ico não-monetário com o subjetivo. Pretender que a renda do
trabalho familial é conceitualm ente indivisível, que “ não há meio de
decompô-la analítica ou objetivamente” , é confundir duas questões
distintas, ou seja, a questão dos meios de cálculo conceituais e discur­
sivos e a questão dos efeitos da constituição do agente calculador
sobre o próprio cálculo. Este depende de meios conceituais e discursi­
vos definidos e depende das práticas do agente calculador na utiliza­
ção desses meios. N esse sentido, a “ subjetividade” do agente é sempre
pertinente aos resultados do cálculo - mas isso de m odo algum impede
a pertinência dos meios conceituais e discursivos empregados. A au­
sência de categorias monetárias de m odo algum impede a família cam­
ponesa de desenvolver conceitos e argumentos para chegar à decisão
de plantar determinada quantidade de trigo, de batatas, etc. Pretender
que, na ausência de categorias monetárias aceitas, o cálculo deve ser
subjetivo é negar a pertinência dos conceitos e formas de argumenta­
ção no cálculo não-monetário: é reduzi-lo a uma expressão da subjeti­
vidade essencial do agente.
Finalmente, há a questão da delegação. U sam os o exemplo da so­
ciedade anônima para argumentar que pode haver outros agentes eco­
nômicos além dos indivíduos e, mais geralmente, que não há necessi­
dade de identificar o agente com o indivíduo humano. Os agentes pre­
cisam de meios definidos de chegar a decisões e meios definidos de efe­
tivá-las. N o caso de agentes outros que não os indivíduos, a satisfação
dessas exigências depende de outros agentes que atuem em nome do
agente em questão - assinando cheques e contratos, emitindo instru­
ções, supervisionando o trabalho de outros, e assim por diante. Nesses
casos, as ações são delegadas a outros agentes, de m odo que sob certas
condições as ações dos agentes delegados são reconhecidas com o atos
do próprio agente responsável. Assim, dependendo de condições es­
pecíficas, a assinatura de um funcionário de uma companhia num con-
262 CLASSES E EST R U T U R A DA FO RM A Ç Ã O SOCIAL

trato será reconhecida com o vinculando ao contrato a própria compa­


nhia. Da mesma forma, em condições adequadas, as instruções emiti­
das pelos membros da alta direção podem ser reconhecidas com o ins­
truções da companhia. A delegação da ação, nesse sentido, depende
do reconhecimento, por outros agentes pertinentes e às vezes pela lei
ou costume, de que certos agentes específicos podem agir em nom e de
outros. Ó uso de delegação não se limita, é claro, a agentes outros que
não os indivíduos. É possível, por exemplo, a um indivíduo dar instru­
ções a um advogado ou contabilista para agir em seu nome, em determi­
nados assuntos, de m odo que seus atos podem ser legalmente reconhe­
cidos como atos do indivíduo em questão. M as o principal interesse da
delegação está no fato de que permite a existência de agentes cujos
atos todos dependem de delegação. A sociedade anônima é um exem­
plo óbvio, mas há muitos outros. Estados, igrejas, equipes de futebol,
comunidades, etc. Todos os atos de um Estado, por exemplo, depen­
dem das ações de outros agentes. As condições de existência desses
agentes não-hum anos devem, portanto, incluir as condições de exis­
tência dos agentes delegados e as condições nas quais podem ser reco­
nhecidos com o delegados.

Agentes e indivíduos humanos


Antes de concluirmos este capítulo, talvez seja necessário comentar­
m os as implicações que têm esses argumentos para a conceituação das
classes e relações de classes. O marxismo tem sustentado, tradicional­
mente, que as classes consistem em indivíduos humanos e, em particu­
lar, que as relações de produção são essencialmente relações entre clas­
ses, isto é, entre sujeitos hum anos com o membros de classes distintas.
N essa concepção, a sociedade anônima, ou a ordem religiosa funcio­
nando com o um latifundiário feudal na Europa medieval, só aparente­
mente podem funcionar com o locus independente de decisão, quando,
na verdade, são ,a criação de um ou mais sujeitos humanos, de seus
grandes acionistas, diretores e supervisores num caso, e de bispos, aba­
des, etc., no outro. Essa concepção suscita questões da posição dos ad­
ministradores, em particular das ligações entre a posição de classe, de
um lado, e a função técnica na organização social da produção, que
discutiremos no capítulo seguinte. O significativo, no presente contex­
to, é que os sujeitos hum anos devem ser concebidos com o os ágentes
últimos da vida social no sentido de que somente seus atos são irre­
dutíveis em princípio aos atos de outros agentes e são essencialmente
não-delegados.
Vimos que as posições desse tipo são fundamentalmente essencia-
listas. Dependem da pressupòsição de que ser um locus de decisão é
AG EN TES E RELAÇÕES SOCIAIS 263

partilhar de uma essência decisória, que se localiza no nível do sujeito


humano. O próprio sujeito humano pode ser concebido com o o agente
constitutivo da vida social ou com o o portador de funções determina­
das pela sua posição social. Ambas as posições são igualmente insus­
tentáveis e não oferecem meios de conceituar as condições de existên­
cia e a efetividade das ações particulares de agentes específicos. Se os
agentes são constitutivos da vida social, há então características de
suas ações (valores supremos ou últimos, ou qualquer outra coisa)
que não têm condição determinada de existência. Vimos que a depen­
dência em que os agentes se encontram do reconhecimento é suficiente
para estabelecer que não podem ser concebidos com o constitutivos de
suas relações sociais. Por outro lado, conceber, com o faz Althusser, os
agentes com o efeitos da estrutura, é tornar impossível a conceituação
da especificidade dos agentes particulares e suas ações: é reduzir todos
os agentes a expressões de uma única essência interna, a estrutura. Na
concepção de Althusser, a essencialização do sujeito reforça a essen-
cialização da estrutura. É precisamente porque todos os agentes são
sujeitos e portanto dotados da faculdade subjetiva da experiência que
a estrutura pode impor-lhes as formas de consciência adequadas à sua
posição na estrutura.
N a ausência de tal essencialismo, não pode haver base para se
manter que os agentes devem ser conceituados com o sujeitos hum a­
nos. Argumentamos que as relações sociais são irredutíveis às ações
constitutivas dos agentes e que pode haver outros agentes que não os
indivíduos. Isso não significa, é claro, que não existem diferenças mar­
cantes entre os agentes. Estes têm condições sociais de existência defi­
nidas, e tais condições, e as formas pelas quais são asseguradas, gover­
nam os tipos de relações e práticas a que os agentes se podem dedicar.
Em particular, diferentes categorias de agentes bem podem ser privile­
giadas nas formas de reconhecimento legal e costumeiro, na medida
em que atribuem, digamos, capacidades e responsabilidades diferen­
ciais ao indivíduo, em oposição a outros tipos de agentes - de modo
que, por exemplo, os indivíduos podem ser considerados responsáveis
por certos atos de agentes não-hum anos para cuja direção são empre­
gados. Contudo, as formas de privilégio legal ou costumeiro atribuí­
das aos indivíduos humanos nesses casos não significam que os agen­
tes outros que não os indivíduos são redutíveis aos agentes humanos
que os dirigem. Mas, se pode haver outros agentes além dos seres hu­
manos, segue-se que a participação nas classes, com o categorias de
agentes econôm icos, pode incluir outros agentes que não os indiví­
duos, com o, por exem plo, as sociedades anônimas. Duas conseqüên­
cias devem ser notadas, no caso. Primeiro, essa conclusão proporciona
outra prova do absurdo de se tentar conceituar as classes com o forças
sociais em termos da consciência de classe real ou potencial dos indiví-
264 CLASSES E E ST R U T U R A D A FO R M A Ç Ã O SOCIAL

duos: se há outros agentes além dos seres humanos, então as suas


ações não podem ser conceituadas simplesmente com o uma função da
consciência dos sujeitos humanos. Pela mesma razão, é impossível sus­
tentar a noção althusseri&na de aparelhos ideológicos que reproduzem
relações de produção dotando os sujeitos humanos com subjetividades
adequadas às suas posições. Segundo, o exemplo das sociedades anô­
nimas levanta a possibilidade de um capitalism o no qual todos os
meios de produção são possuídos por agentes econôm icos não-
hum anos - um capitalism o sem “capitalistas” . Além de levantar a
questão da posição dos administradores, essa possibilidade também
problematiza concepções das distinções entre o capitalismo e o socia­
lismo. Se pode haver um capitalism o sem uma classe de capitalistas
humanos individuais e na qual todos os agentes humanos da produção
são empregados, com o isso diferiria do socialismo? Voltaremos a essa
questão no últim o capítulo.
Finalmente, talvez seja necessário insistir em que não argumenta­
m os que os indivíduos hum anos não podem ser concebidos com o loci
de decisão; mas antes que, sob condições sociais definidas, pode haver
agentes outros que não os indivíduos, e que as relações sociais não po­
dem ser reduzidas às ações constitutivas dos agentes. Para operar
com o agente social, o indivíduo humano depende de condições de
existência definidas, reconhecimento por outros agentes pertinentes e
pela lei ou costum e, a disponibilidade cultural de meios de cálculo dis­
cursivos e conceituais adequados, e as condições nas quais os agentes
as podem adquirir, e assim por diante, por um lado, e a capacidade do
indivíduo de adquirir e dispor de seus meios conceituais e discursivos,
por outro lado. O segundo conjunto de condições suscita um proble­
ma que não discutimos aqui, ou seja, o problema das condições de
existência dessa capacidade nos indivíduos, enquanto que o primeiro
conjunto assegura que tais indivíduos não podem ser os sujeitos cons­
titutivos da vida social.
Capítulo 12
Relações Econômicas de Classes
e Organização da Produção

Este capítulo se ocupa das conexões entre as relações de classes econô­


micas, de um lado, e a divisão de funções técnicas na organização da
produção (divisão técnica do trabalho) e a distribuição da força de tra­
balho social numa variedade de atividades (divisão do trabalho so­
cial), do outro. Argumentamos, em particular, que, embora a divisão
técnica do trabalho e a divisão do trabalho social não sejam indepen­
dentes da estrutura das relações de classes econômicas, não há necessi­
dade de uma correspondência direta entre a participação numa classe
e o desempenho de certas funções técnicas na organização da produ­
ção. Argumentamos anteriormente que a formação social deve ser
concebida com o um conjunto definido de relações econômicas de clas­
ses juntamente com as formas e relações econômicas, políticas e cultu­
rais nas quais suas condições de existência são asseguradas. A s classes
são categorias de agentes econôm icos definidos pela sua posse ou se­
paração dos meios e condições de produção. As relações de classes
econômicas compreendem os que estão empenhados na organização
da produção, seja com o possuidores ou com o não-possuidores separa­
dos. Nesse sentido, não há razão para supor que as relações de classes
econômicas devam compreender todos os membros da formação so­
cial. Esse ponto tem sido questionado com freqüência. Poulantzas, por
exemplo, parece argumentar que a divisão dos membros de uma socie­
dade em classes é exaustiva e não pode haver agrupamentos sociais
fora das classes:
a luta de classes e a p o larização que envolve n ã o d á, e n ão p o d e d ar, origem a g ru p a ­
m entos ao lado das classes, ou m arginais a elas, g ru p am en to s sem p articip ação de clas­
se, pela sim ples ra z ã o de que essa particip ação de classe n a d a m ais é do que a lu ta de
classes, e de que essa lu ta só existe através da existência dos lugares das classes sociais.
{Classes in C ontem porarv Capitalism , p. 201)

Já vimos que a noção do primarlo da luta de classes deve ser problema-


tizada, mas, mesmo que a aceitássemos, a “ razão simples” de Poulant­
zas não implicaria a conclusão a que ele nos quer levar. As classes defi­
nidas à base da luta não precisam ter relação com a definição taxionô-
266 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

mica que Poulantzas efetivamente emprega. A luta de classes só pode


existir se houver classes,, mas não se segue que a luta de classes só pode
existir se todos os membros da sociedade pertencerem a classes.
Mas, voltando ao argumento geral, vimos que é necessário distin­
guir entre relações econômicas de classes e as formas pelas quais suas
condições sociais de existência são asseguradas. A s relações de produ­
ção capitalistas, por exemplo, dependem da satisfação de suas condi­
ções legais e políticas de existência por aparelhos, organizações e práti­
cas definidos. M as essas organizações e práticas não são as emanações
nem os produtos das próprias relações de produção capitalistas. Os
funcionários do Estado e outros agentes podem estar empenhados
nessas práticas e organizações sem estarem, de modo algum, implica­
dos diretamente nas relações de classes econôm icas capitalistas. Pou­
lantzas pretende que os chefes dos aparelhos estatais pertencem à clas­
se burguesa “ principalmente porque administram as funções do Esta­
do a serviço do capital” (ibid., p. 187). M as também nesse caso não há
uma conexão necessária entre a razão que ele apresenta e as conclusões
que deseja estabelecer. O fato de que os aparelhos estatais proporcio­
nam certas condições de existência para as relações de produção capi­
talistas não implica a conclusão de que os próprios membros desses
aparelhos participem nas relações de produção capitalistas.
As relações de classes econôm icas envolvem agentes participantes
na esfera da produção e distribuição, seja com o possuidores ou como
não-possuidores separados de alguns dos meios e condições de produ­
ção. Uma formação social também pode incluir agentes empenhados
em práticas que proporcionam condições de existência para suas rela­
ções de classes econôm icas, mas não se segue que esses agentes necessi­
tem, ser membros das classes econôm icas em questão. Este capítulo,
portanto, vai ocupar-se principalmente da diferenciação de funções na
'organização social da produção e distribuição e sua relação com a es­
trutura das relações de classes econôm icas. Os marxistas têm usado,
com freqüência, as distinções de Marx entre trabalhador e não-
trabalhador, e entre trabalho produtivo e improdutivo, e seus com en­
tários sobre a dupla natureza da supervisão, para argumentar em fa­
vor de uma correlação entre a distribuição dos agentes em classes, de
um lado, e o desempenho de determinadas tarefas funcionais, de ou­
tro. A distinção trabalhador/não-trabalhador foi examinada no Capí­
tulo 10, quando argumentamos que a noção de posse pressupõe o de­
sempenho de certas tarefas de coordenação e supervisão pelo agente
possuidor ou em seu nome. Se tais tarefas não são desempenhadas, en­
tão a produção não ocorre, ou a posse efetiva passa às mãos de outros
agentes econôm icos. Assim , o papel da posse efetiva envolve sempre o
desempenho de certas tarefas que são necessárias ao processo de pro­
dução. As categorias de trabalhador e não-trabalhador são, portanto,
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E CL A SSES 267

totalmente inadequadas à apálise das relações de classes econômicas e


envolvem uma representação imperfeita do papel do agente possuidor
na organização da produção. Este capítulo vai, portanto, concentrar-
se nas discussões de Marx do trabalho produtivo e improdutivo e a du­
pla natureza da supervisão e administração e na forma pela qual fo­
ram usadas para proporcionar a base de uma demarcação entre as fun­
ções da burguesia, proletariado e pequena burguesia na organização
da produção e distribuição. Uma seção final examina os conceitos de
administração e capital, tanto em relação a essas discussões com o em
referência à posse dos meios de produção por outros agentes que não
os indivíduos humanos.

Trabalho produtivo e improdutivo


As distinções entre trabalho produtivo e improdutivo têm sido usadas
por muitos marxistas com o meio de distinguir entre empregados que
estão empenhados primordialmente no trabalho produtivo e portanto
pertencem ao proletariado, e empregados que são improdutivos e por­
tanto membros da pequena burguesia. Esta seção examina as distin­
ções de Marx e a maneira pela qual foram usadas para estabelecer dis­
tinções de classes dentro das fileiras dos empregados do capital. Marx
estabelece dois tipos diferentes, mas correlatos de distinção entre o tra­
balho produtivo e improdutivo, que são diversos e incompatíveis.
Uma dessas distinções depende do argumento de que certas tarefas fun­
cionais são essencialmente improdutivas, quer sejam realizadas pelos
capitalistas, quer por seus empregados, enquanto a outra é claramente
hegemonizada pela teoria do valor. N ão pode, portanto, ser conserva­
da na forma em que Marx a apresenta. Veremos que essas distinções
não podem oferecer uma base coerente para a divisão dos empregados
do capital em classes. \
As principais discussões de Marx sobre trabalho produtivo e im­
produtivo estão em Teorias da M ais-Valia, livro 1, Cap. 4 e adendo 12;
em O Capital, livro 2, em relação aos custos de circulação, e em O Ca­
pital, livro, 3, em conexão com formas não-industriais de capital e lu­
cro. Há também uma breve, discussão no esboço de Marx do Capítulo
6 do livro 1 de O Capital, “ Resultados do Processo Imediato de Produ­
ção” . Nessas discussões, Marx se ocupa do trabalho que é ou pode ser
considerado com o produtivo do ponto de vista do capitalismo. Ele
portanto distingue entre “trabalho produtivo em geral” , isto é, traba­
lho que resulta num valor de uso, e trabalho que é produtivo do ponto
de vista do capital. O primeiro tipo de distinção de Marx se faz, por­
tanto, entre o trabalho que deve s.er considerado com o produtivo ou
268 CLASSES H E STR U TU R A DA FO R M A Ç Ã O SOCIAL

improdutivo do ponto de vista do capital - por mais produtivo que pos­


sa ser considerado de outros pontos de vista.
O tra b a lh o p ro d u tiv o , 110 seu significado p a ra a p ro d u ç ã o cap italista , é tra b a lh o assala­
riad o que. tro c a d o c o n tra a p a rte variável d o cap ital (o cap ital q u e é g asto em salários),
rep ro d u z n ã o só essa p a rte d o cap ital (ou o v alo r de sua p ró p ria força de tra b a lh o ), m as
além disso p ro d u z m ais-valia p a ra o c a p italista ... Só é p ro d u tiv o o tra b a lh o que p ro d u z
cap ital. (Theoríes o f Surplus Value. vol. 1, p. 152)

O trabalho dos pequenos produtores de mercadorias é, portanto, im­


produtivo do ponto de vista do capital. Mas o trabalho dos que execu­
tam tarefas em troca de dinheiro? O trabalho é produtivo se produzir
mais-valia para o capitalista, e é improdutivo se “ não for trocado con­
tra o capital, mas diretam ente contra a renda, isto é, salários ou lucro”
(Ibid., p. 157). Essa distinção, portanto, nada tem a ver com as carac­
terísticas materiais do trabalho ou do produto. Ela deriva, antes, “ da
forma social definida, das relações sociais de produção, dentro das
quais os trabalho é realizado” (ibid.). O desempenho de um serviço,
pode ser produtivo ou im produtivo, dependendo de ser esse serviço
vendido por um capitalista que paga ao trabalhador para executá-lo,
ou comprado diretamente pelo consumidor do serviço, do executante,
sem intermediário capitalista. Marx dá o exemplo de cozinheiros, ato­
res, músicos, prostitutas, cujo trabalho pode ser produtivo ou impro­
dutivo, dependendo da natureza da relação econôm ica na qual é reali­
zado. O trabalho de um empregado pode ser produtivo ou improduti­
vo. Só será produtivo se estiver em penhado na produção de mercado­
rias para a venda pelo comprador da força de trabalho.
Nesse sentido, a categoria de trabalhador produtivo inclui todos
os empregados que contribuem para a produção de mercadorias para
um capital “ desde o operador até o gerente ou engenheiro (com o dis­
tintos do capitalista)” (ibid.). Marx volta a esse ponto em outro tre­
cho de Teorias da M ais-Valia, e no esboço do capítulo “ Resultado do
Processo Imediato de Produção” . Por exemplo, refere-se aos efeitos da
divisão capitalista do trabalho: “os trabalhadores não-qualificados de
uma fábrica [qu e] não têm nenhuma ligação direta com o processa­
mento da matéria-prima... os trabalhadores que funcionam com o su­
pervisores ... o engenheiro da fábrica que trabalha apenas com seu cé­
rebro, e assim por diante. Mas a totalidade desses trabalhadores...
produz o resultado” (ibid., p. 411). Mas essa diferenciação das funções
técnicas
de m o d o algum m od ifica a relação de cad a u m a dessas pessoas com o c a p ita l, relação
q u e é a do tra b a lh a d o r assaláriad o e, nesse sentido im p o rta n te , a de um trabalhador p ro ­
dutivo. T o d as essas pessoas n ã o só e stão diretam ente e m p en h ad as n a p ro d u ç ã o d a riq u e­
za m aterial, m as tam b ém tro c a m seu tra b a lh o diretam ente pelo d in h eiro com o capital, e
em co n seq ü ên cia rep ro d u z em diretam en te, além de seus salários, um a m ais-valia p a ra o
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A S S E S 269

cap italista . Seu tra b a lh o consiste em tra b a lh o p ag ó m ais excedente de tra b a lh o não-
pago. (Ibid., p. 412)

A discussão de Marx dessa primeira distinção entre trabalho produti­


vo e improdutivo é claramente hegemonizada pela teoria do valor,
mas encerra também um aspecto fundamental que não é dependente
de formulações de valor, ou seja, o de que o trabalho produtivo é o
trabalho realizado numa posição definida dentro das relações de pro­
dução capitalistas.
M as Marx também faz uma segunda distinção, que depende da
opinião de que certas tarefas são essencialmente improdutivas. A mais-
valia deriva do trabalho produtivo, mas só pode ser realizada para o
capitalista sob a condição de que as mercadorias entrem em circula­
ção. A realização da mais-valia, portanto, parece depender da execu­
ção de outras tarefas que, em si mesmas, não são produtivas de valor,
pertencem aos fa u x fra is da produção capitalista e não ao processo de
produção de valor. Para essa distinção, o caráter material do trabalho
é decididamente pertinente. N o caso da indústria de transporte, por
exemplo, Marx argumenta que o trabalho é produtivo precisamente
porque resulta numa modificação material no objeto do trabalho:
“ Sua existência espacial é modificada, e juntamente com isso temos
uma modificação no seu valor de uso, já que a localização desse valor
de uso se m odifica” (ibid., p. 412). Mas os aspectos mais significativos,
aqui, relacionam-se ao tratamento dado por Marx à compra e venda,
ao capital mercantil e ao dinheiro e capital bancário com o compreen­
dendo tarefas que são intrinsecamente improdutivas. A discussão mais
clara dessa posição ocorre, talvez, em O Capital, livro 2, Capítulo 6,
“Os Custos da Circulação” . Marx argumenta com a existência de cus­
tos necessários à produção capitalista, mas que não são produtivos.
Com o a empresa capitalista depende da compra e venda de mer­
cadorias, Marx argumenta que o tempo despendido na compra e ven­
da é uma parte necessária do tempo no qual o capitalista funciona
com o capitalista. Mas a esfera de circulação afeta apenas a distribui­
ção de mercadorias já produzidas e a conversão do valor em forma de
mercadoria para valor em forma de dinheiro, ou vice versa. Assim, o
tempo e o trabalho envolvidos na compra e venda não criam valor:
“ Nem pode o milagre dessa transformação ser realizado por uma
transposição, isto é, pelo capitalista industrial que faz desse ‘trabalho
de combustão' a tarefa exclusiva de terceiras pessoas, que são pagas
por eles, em lugar de a realizarem pessoalm ente” (O Capital, livro 2, p.
130). Esse argumento gira em torno da noção de que certas funções
são essencialmente improdutivas e que portanto o trabalho por elas
exigido não pode ser produtivo em nenhuma circunstância:
270 C L A SSES E E S T R U T U R A DA F O R M A Ç Ã O S O C IA L

Se, p o r um a divisão do tra b a lh o , um a função, im p ro d u tiv a em si m esm a, em b o ra ele­


m en to necessário de re p ro d u ç ã o , é tra n sfo rm a d a de o cu p açã o incidental de m uitos na
o cu p açã o exclusiva de uns poucos, em suas ocupações especiais, a n atu reza dessa função
n ão é m o dificada. (ibid., p. 131)

O trabalhador na circulação pode desempenhar uma função necessá­


ria ã produção capitalista, mas “intrinsecamente seu trabalho não cria
valor ou produto. Ele pertence aos fa u x fra is da produção” (ibid., grifo
nosso). Marx emprega o mesmo argumento em relação ao custo da
contabilidade e em O Capital, livro 3, em relação ao trabalho emprega­
do pelo capital mercantil e pelo dinheiro e capital bancário. Trata-se
apenas de capitais funcionando na esfera da circulação, onde nem va­
lor, nem mais-valia, são criados. Assim , mesmo que sejam empregados
trabalhadores, o capital mercantil “ não age com o capital colocando
em movimento o trabalho de outros, com o faz o capital industrial,
mas realizando seu próprio trabalho, isto é, realizando as funções de
compra e venda...” (O Capital, livro 3, p. 294, grifo nosso). O princípio
básico em funcionamento é claro. O capital industrial é a forma pri­
mária de capital e todas as funções improdutivas quando realizadas
pelo capitalista industrial continuam improdutivas quando desempe­
nhadas de maneira independente:
C o m o o cap ital m ercantil n ão é n ada m ais d o q u e um a form a individualizada de um a
p arte d o cap ital in d u strial ded icad a ao processo de circulação, todas as questões a ele re­
feren tes devem ser resolvidas representando-se o problem a prim ordialm ente num a fo rm a na
qual os fenôm enos peculiares ao capital m ercantil ainda não surgem independentemente,
m as ain d a em ligação direta com o capital ind u strial, com o um ram o dele. (Ibid., 298)

O capital mercantil deve ser analisado sem referência às suas carac­


terísticas distintivas.
Temos, assim, dois princípios correlatos de demarcação entre tra­
balho produtivo e improdutivo. O primeiro distingue o trabalho reali­
zado nas empresas capitalistas pelos não-possuidores dos meios de
produção, e o trabalho realizado em outras condições, enquanto o se­
gundo demarca certas funções realizadas pelas empresas capitalistas,
ou dentro delas, com o sendo essencialmente improdutivas. Voltare­
mos a examinar esses princípios logo adiante, mas primeiro é necessá­
rio indicar com o podem ser usados com o meio de demarcação entre
classes de agentes econôm icos. O primeiro princípio distingue os não-
possuidores empenhados na produção capitalista e todos os outros
agentes econôm icos, isto é, define uma classe econôm ica no sentido
deste capítulo, com o uma categoria de agentes econôm icos definidos
em termos de sua posição de não-posse em relação aos meios de pro­
dução capitalistas. O segundo impõe uma nova distinção dentro dessa
categoria, entre os empregados em funções produtivas e aqueles cujas
funções são intrinsecamente improdutivas. Essa diferenciação foi em-
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A S S E S 271

pregada com o a base de uma distinção proposta entre o proletariado e


a pequena burguesia, dentro das fileiras dos não-possuidores emprega­
dos pelas empresas capitalistas. Basta examinar a discussão que faz
Poulantzas em Classes no Capitalismo Contemporâneo com o ilustração
desse tipo de proposta.
Poulantzas argumenta que há trabalhadores assalariados capita­
listas que não são membros da classe operária, antes fazem parte da
pequena burguesia. A classe operária não é definida apenas em refe­
rência à sua posição com relação aos meios de produção, mas também
pelo trabalho produtivo. Poulantzas adota a distinção de Marx, entre
trabalho produtivo e improdutivo, exceto numa correção significativa.
Vejamos primeiro essa correção. Para evitar as ambigüidades da posi­
ção de Marx, Poulantzas propõe ir além da definição básica do traba­
lho produtivo em termos de mais-valia:
D irem o s q u e o tra b a lh o p ro d u tiv o , no m o d o de p ro d u ç ã o cap italista , é aq u ele q u e p ro ­
d uz m ais-v alia ao re p ro d u z ir d ire ta m e n te os elem entos m ateriais que servem co m o o
s u b stra to d a relação d e exploração: o tra b a lh o qu e está d ire ta m e n te envolvido na p ro ­
d u ção m aterial p ela p ro d u ç ã o de v alores d e u so q u e a u m e n ta m a riq u eza m aterial.
(C lasses in C ontem porary C apitalism , p. 216)

Embora existam trechos em que Marx argumenta a partir do caráter


material do trabalho, vimos que não são as características materiais
que têm importância decisiva, mas a produção de mais-valia. Poulant­
zas admite o argumento de Marx sobre esse ponto, mas afirma “ que o
que Marx procura evitar a todo custo é a confusão do trabalho produ­
tivo com o trabalho útil, a utilidade geral do trabalho e seu produto”
(ibid., p. 218). Aqui Poulantzas adota a pfática tradicional de ler em
Marx posições que são manifestamente contraditadas pelo texto.
Quando Marx afirma que suas definições “não são derivadas das ca­
racterísticas materiais do trabalho... mas da forma social definida, as
relações sociais de produção, dentro da qual o trabalho é realizado”
( Theories o f Surplus Value, livro 1, p. 157), ele realmente quer dizer
que as características materiais são cruciais, e quando se refere a “ ato­
res, músicos, prostitutas” {Ibid., p. 166) dedicados ao trabalho produ­
tivo, ele quer dizer que seu trabalho é essencialmente improdutivo.
Poulantzas exclui, portanto, os trabalhadores de serviços das fileiras
da classe operária.
Mas a distinção principal está relacionada com a produção de mais-
valia. Os trabalhadores assalariados na esfera da circulação e os em­
pregados das empresas financeiras não produzem mais-valia e, portan­
to, não fazem parte da classe operária:
Esses assalariad o s sim plesm ente c o n trib u em p a ra a red istrib u iç ão d a m assa d a m ais-
v alia en tre as v árias frações do capital, segundo a ta x a m éd ia de lucro. É claro qu e esses
assalariad o s são , eles p ró p rio s, ex p lo rad o s... O tra b a lh o excedente é a rra n c a d o d o s assa-
272 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

la n a d o s n o com ércio, m as estes não são d ire ta m e n te ex p lo rad o s na form a d a relação de


ex p lo ração capitalista do m in an te, a criação de m ais-valia... su a rem u n era ção é um a
despesa im p ro d u tiv a e faz p a rte dos fa u x fra is d a p ro d u ç ã o cap italista. ( Classes in Con-
tem porary C apitalism , p. 212)'

Outros autores, com o por exemplo Carchedi, podem reservar o termo


“exploração” para se referirem à extração da mais-valia, embora con­
cordando com o ponto central da concepção de Poulantzas. A classe
operária é definida pela produção de mais-valia e os trabalhadores as­
salariados que não produzem valor pertencem à pequena burguesia.
Dessa forma, a distinção de Marx entre trabalho produtivo e impro­
dutivo parece permitir uma diferenciação de classes dentro das fileiras
dos trabalhadores assalariados capitalistas.
Embora essas definições do proletariado e pequena burguesia de­
pendam das distinções de Marx entre trabalhadores produtivos e
improdutivos dentro das fileiras dos trabalhadores assalariados capita­
listas, elas não são, evidentemente, exigidas por essas distinções. N ão
há nada em sua análise que assegure que a solução de Marx a um
problema levantado dentro da teoria do valor, ou seja, a distinção en­
tre o trabalho que produz valor e o trabalho que não produz, deva ser
considerada com o definidora de duas classes essencialmente diferentes
de trabalhadores assalariados, empregados em empresas capitalistas.
N ão há razão pela qual a classe operária não deva ser definida como
abrangendo todos os agentes econôm icos não-possuidores empenha­
dos na produção capitalista. A concepção de uma classe não-proletária
de trabalhadores assalariados capitalistas é uma conseqüência possí­
vel, mas não necessária, das distinções de Marx.

Podemos agora voltar ao exame das distinções de Marx entre tra­


balho produtivo e improdutivo. Vimos qué, embora a discussão de
Marx da primeira distinção seja hegemonizada pela teoria do valor,
não obstante tem um ponto central que não é dependente da teoria de
valor, ou seja, o de que o trabalho é produtivo do ponto de vista do ca­
pita!, se realizado em empresas capitalistas por agentes econôm icos
não-possuidores em troca de salários. Mas a segunda distinção estabe­
lecida por Marx, dentro das fileiras dos trabalhadores assalariados ca­
pitalistas, é impossível de ser sustentada, em qualquer forma. N ão só
lhe falta sentido fora do contexto da teoria do valor-trabalho, a qual,
com o já vimos, deve ser rejeitada; mas também, mesmo se conservada
a teoria do valor, a distinção de Marx não pode ser mantida na forma
em que ele a estabelece. Há certas funções que são intrinsecamente im­
produtivas, embora sejam absolutamente necessárias à produção ca­
pitalista. Como são intrinsecamente improdutivas, continuam a sê-lo
mesmo se executadas por trabalhadores em troca de salários. O essen-
cialismo desse argumento é evidente: certas atividades são essencial­
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A S S E S 273

mente improdutivas e certos capitais, embora possam empregar traba­


lhadores assalariados, “não agem como capital colocando em m ovim en­
to o trabalho de outros, com o faz o capital industrial, mas realizando
seu próprio trabalho” (O Capital, livro 3, p. 294, grifo nosso). O sim­
ples fato de que capitais não-industriais podem colocar em m ovimento
o trabalho não lhes pode afetar o caráter essencialmente improdutivo
porque as funções que executam são essencialmente improdutivas. A
posição de Marx, no caso, depende de uma essencialização das fun­
ções do trabalho industrial: o trabalho empregado pelo capital indus­
trial é essencialmente produtivo, o empregado pelos outros capitais
não é.
Mas a essencialização de Marx de certas funções entra em confli­
to com sua insistência de que as definições de trabalho produtivo e im­
produtivo derivam não do caráter material do trabalho, mas antes da
“ forma social definida, as relações sociais de produção, dentro das
quais o trabalho se realiza” ( Theories o f Surplus Value, livro 1, p. 157).
Para estabelecer a contradição, no caso, devem os lembrar, primeiro, o
tratamento que Marx dá aos serviços prestados pelos atores, prostitu­
tas, etc. O trabalho deles é improdutivo do ponto de vista do capital se
é comprado pelo consum idor do serviço diretamente do trabalhador.
É produtivo do ponto de vista do capital, se o consumidor compra o
serviço de um capitalista que paga um trabalhador assalariado para
executá-lo. Consideremos o caso de uma empresa capitalista que age
como agente vendedor ou comprador para capitalistas industriais,
vendendo seus produtos ou comprando matérias-primas e com ponen­
tes em troca de uma taxa ou com issão. São os trabalhadores assalaria­
dos empregados por essa empresa produtivos ou improdutivos? São
evidentemente improdutivos em termos do argumento de Marx de que
as funções de compra e venda são intrinsecamente improdutivas. Mas,
se seguirmos a argumentação de Marx no caso dos serviços, teremos
de concluir que o corpo de vendedores empregado por essa empresa
consiste em trabalhadores produtivos. Eles desempenham um serviço
para os capitalistas industriais e o consum idor compra o serviço de um
capitalista que paga a trabalhadores assalariados para executá-lo. A
contradição é clara. Ou o caráter material do trabalho é decisivo ou
não é. Se não for, não se pode argumentar que certas funções são in­
trinsecamente improdutivas. Mas, se certas funções são intrinseca­
mente improdutivas de valor, então o caráter material do trabalho
deve ser decisivo. Num caso, o simples fato de ser o trabalho emprega­
do na compra e venda, ou por uma empresa financeira capitalista, não
tem qualquer relação com ser produtivo ou não. Em termos dos argu­
mentos de Marx, por exemplo, teríamos de dizer que o trabalho de
compra e venda é produtivo em certas condições, e improdutivo em
274 C L A SSES E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

outras. N o outro caso, é o caráter material do trabalho que determina


se é produtivo de valor ou não. Mas dizer isso seria definir o valor não
com o faz Marx em termos de trabalho abstrato, mas antes em termos
de uma decisão arbitrária segundo a qual só certos tipos concretos de
trabalho merecem ser chamados de produtivos.
Assim, mesmo em termos de sua teoria do valor, a distinção de
Marx entre trabalhador assalariado capitalista produtivo e improduti­
vo é extremamente problemática. C om o a própria teoria do valor não
pode ser mantida, devemos concluir que não há base coerente para a
divisão dos trabalhadores assalariados capitalistas em trabalhadores
produtivos e os que não o são. N ão há, portanto, base para as tentati­
vas de Poulantzas e outros de estabelecer uma distinção de classe à
base de uma divisão de funções entre empregados dos capitalistas.

A dupla natureza da supervisão e adm inistração


Uma segunda tentativa importante de estabelecer uma distinção de
classe dentro das fileiras dos trabalhadores assalariados capitalistas
baseia-se na discussão de Marx da dupla natureza da supervisão e ad­
ministração. O argumento de Marx é apresentado de forma mais cla­
ra em O Capital, livro 3, capítulo 23, “Juros e Lucros da Empresa” .
O tra b a lh o d e supervisão e ad m in istração é n a tu ra lm e n te necessário o n d e quer que o
processo d ireto de p ro d u ç ã o assum a a form a de um processo social co m b in ad o , e não
do trab alh o isolado de p ro d u to re s independentes. T em , porém , um a d u p la natureza.
De um lado, to d o o tra b a lh o no q u al m ujtos indivíduos co operam necessariam ente
exige um a v o n tad e de co m an d o , p a ra c o o rd e n a r e unificar o processo, e funções que se
aplicam não a operações parciais, m as à ativ id ad e to ta l da oficina, m ais ou m enos com o
um regente de o rq u estra. É um trab alh o p ro d u tiv o , que deve ser realizado em to d o s os
m o d o s de p ro d u ç ã o com binados.
D e o u tro lado - à p a rte q u alq u er d e p a rta m e n to com ercial - esse tra b a lh o de super­
visão surge necessariam ente em todos os m o d o s de p ro d u ç ã o baseados na antítese entre
o tra b a lh a d o r, com o p ro d u to r direto, e o d o n o d o s m eios de p ro d u ção . Q u a n to m aior
esse an tag o n ism o, m aio r o papel d esem penhado pela supervisão. D aí alcan çar ele o seu
auge no sistem a escravista. M as é indispensável tam bém no m odo de p ro d u ç ã o capita­
lista, já que o processo de p ro d u ç ã o nele é sim u ltan eam e n te um processo pelo qual o ca­
p italista consom e força de trab alh o . (O Capital, livro 3. pp. 383-4)

Mais uma vez, os comentários de Marx não implicam uma divisão de


classes dentro das fileiras dos não-possuidores, entre os que trabalham
e os que supervisionam seu trabalho. É fácil, porém, ver com o pode­
riam ser usados em apoio dessa divisão. Comentando o segundo as­
pecto discutido por Marx, Poulantzas diz: “Sob esse último aspecto, a
supervisão representa parte dos fa u x fra is da produção capitalista”
(Classes in Contemporary Capitalism, p. 226). O trabalho de supervi­
são e administração é produtivo, sob um aspecto, e improdutivo, sob
outro. Poulantzas argumenta qué o m odo de separação entre o traba­
lhador e seus meios de produção significa que não há divisão ou coor­
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A SSES 275

denação de tarefas que tenha caráter puramente técnico. Pelo contrá­


rio. a administração e a supervisão sob o capitalismo é sempre “ a re­
produção direta, dentro do próprio processo de produção, das rela­
ções políticas entre a classe capitalista e a classe operária” (ibid., p.
228). É por essa razão que os agentes da supervisão e administração,
os sargentos da produção capitalista, devem ser considerados com o
pequenos burgueses e não com o membros da classe operária:
A razão pela qu al esses agentes não pertencem à classe o p e rá ria é que su a determ in ação
e stru tu ral d e classe e o lugar que ocupam na divisão social do tra b a lh o são m arcad o s
pela d o m in ân cia das relações políticas que m antêm so b re o aspecto do tra b a lh o p ro d u ti­
vo n a divisão d o tra b a lh o . A principal fu n ção deles é e x trair m ais-valia d o s tra b a lh a d o ­
res - “ reco lh ê-la” . Exercem poderes o riu n d o s do lugar do capital, cap ital esse que assu­
m iu a “ função de c o n tro le ” do processo de tra b a lh o ; esses poderes n ão são necessaria­
m ente exercidos pelos p ró p rio s capitalistas. (Ibid., pp. 228-9)

Poulantzas argumenta que as relações de produção “ são expressas na


forma de poderes delas derivados, em outras palavras, pode­
res de classe, constitutivamente ligados às relações políticas e ideológi­
cas que os sancionam e legitimam” (ibid., p. 21). Acrescenta que essas
relações “estão presentes... na constituição das relações de produção”
(ibid.) Relações de produção são constituídas por relações políticas e
ideológicas e estas, por sua vez, “ sancionam e legitimam” poderes de
classe definidos na organização do processo de produção. As relações
de classes econômicas são efetivamente reduzidas a relações de domi­
nação. A fábrica capitalista é portanto concebida com o estruturada
pelo despotismo do capital sobre o trabalho. As relações de produção
capitalistas envolvem, portanto, uma divisão fundamental de agentes
econôm icos em dominadores e dominados, sendo o papel dos admi­
nistradores ou gerentes como agentes da dominação que permite a
Poulantzas separá-los da classe operária. Assim, é precisamente a poli-
tização das relações de produção que permite a Poulantzas distinguir
entre a classe operária e essa seção da pequena burguesia - embora
ambas estejam igualmente separadas dos meios de produção.
Poulantzas afirma o primado dos aspectos políticos sobre os as­
pectos: produtivos do trabalho de administração e supervisão, e argu­
menta, portanto, em favor de uma divisão política entre a administra­
ção e a classe operária. Uma forma diferente do argumento de que ad­
ministradores e supervisores pertencem à nova pequena burguesia é
apresentada por Carchedi em “ On the Economic Identification o f the
New Middle Class” . Carchedi distingue entre o processo de trabalho
que “investe apenas o produtor e os meios de produção” e o processo
de produção de mais-valia, que “investe também o não-produtor, o
não-trabalhador” (Ibid., p. 7). O m odo de produção capitalista é então
definido com o a unidade desses dois aspectos sob o domínio do pro-
""sso de produção de mais-valia. As funções do capitalista são, por­
276 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

tanto, “ desempenhadas fora do processo de trabalho e, não obstante,


dentro do processo de produção capitalista” (Ibid., p . 20). Ora, se com
a divisão do trabalho administrativo essas funções são executadas por
empregados do capital, o fato de que estejam “fora do processo de tra­
balho” assegura que aqueles que realizam esse trabalho não são parte
da classe operária: “todos os agentes que executam uma dessas opera­
ções, qualquer que seja seu conteúdo técnico, executam ao mesmo
tempo a função global do capital” (ibid.). A classe média pode, por­
tanto, ser definida com o abrangendo aqueles que nem são plenamente
trabalhadores nem plenamente não-trabalhadores: isto é, eles execu­
tam tanto as funções globais do capital como as funções do trabalha­
dor coletivo.
Esses exemplos servem para ilustrar a maneira pela qual uma di­
visão de classes entre empregados do capital pode ser estabelecida à
base da “ dupla natureza” da supervisão e administração. O argumen­
to gira em torno de uma separação entre duas partes ou aspectos da
organização capitalista da produção. D e um lado, está o processo de
trabalho, e, do outro, o processo de extração da mais-valia. Há as for­
ças de produção, de um lado, e as relações de produção, do outro. En­
quanto uma envolve uma organização técnica dos trabalhadores e
meios de produção, a outra envolve os não-trabalhadores em relações
coercivas de dom inação e controle.Portanto, esses argumentos pouco
mais fazem do que ampliar a distinção clássica entre trabalhador e
não-trabalhador para que abarque os casos nos quais funções atribuí­
das ao não-trabalhador são executadas por alguns de seus emprega­
dos.
Mostramos no Capítulo 10 que as categorias de “trabalhador” e
“ não-trabalhador” são totalmente inadequadas para a análise das re­
lações de classes e que implicam uma representação bastante inexata
das funções dos agentes possuidores e não-possuidores na organização
da produção. O “ não-trabalhador” desempenha certas funções que
são tecnicamente necessárias à organização do processo d-' produção.
N o caso da produção capitalista, por exemplo, as empreses produzem
mercadorias e proctiram vendê-las, e compram os elementos do pro­
cesso de produção, meios de produção, matérias-primas, força de tra­
balho, na forma de mercadorias. Se esses elementos não forem com ­
prados em quantidades adequadas relativas entre si, então a produção
não pode ocorrer. Além disso, com o os elementos do processo de pro­
dução são propriedade do capitalista e os trabalhadores estão separa­
dos deles, a produção só pode ocorrer com o uma função da coordena­
ção pelo capitalista ou era seu nome. Assim, certas funções definidas
de contabilidade monetária, orçamento, compra e venda e dé coorde­
nação devem ser realizadas pelo capitalista, ou em seu nome, para que
a produção ocorra.
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A S S E S 277

M as, se as funções do capitalista são necessárias à existência da


produção capitalista, então não pode haver divisão do processo de
produção capitalista numa esfera do processo de trabalho e numa esfe­
ra de relações entre trabalhador e não-trabalhador. Os conceitos de re­
lações de produção e forças de produção não designam duas coisas
distintas. Funcionam conjuntamente com o o meio de conceituar a es­
trutura e a organização de processos de produção definidos. A posição
de Carchedi é simplesmente absurda: não há “ funções desempenhadas
fora do processo de trabalho e, entretanto, dentro do processo de pro­
dução capitalista” (“On the Econom ic Identification” , p. 20). O argu­
mento de Poulantzas é m enos imediatamente absurdo, mas não menos
problemático. Primeiro, o aspecto produtivo e o aspecto de “ relações
de produção” da coordenação e supervisão são interdependentes e in­
separáveis. N ão pode haver relações de produção se não houver pro­
dução e não pode haver produção sem uma forma definida de posse
dos meios e condições de produção. Dizer que uma predomina sobre a
outra, quando uma evidentemente depende da outra, envolve precisa­
mente as doutrinas do primado ontológico consideradas e rejeitadas
nos Capítulos 8 e 9 - é dizer que as relações dominantes criam as suas
próprias condições de existência. Segundo, a politização e ideologiza-
ção das relações de produção envolvem a fusão das relações econômi­
cas, formas definidas de posse e separação dos meios e condições de
produção, com suas condições políticas e ideológicas de existência. D i­
zer que a administração e supervisão internalizam na fábrica “ as rela­
ções políticas entre a classe capitalista e a classe operária” (Classes in
Contemporary Capitalism, p. 228) é confundir as condições políticas
necessárias à existência da produção capitalista com a própria organi­
zação da produção capitalista. Algum a forma de coordenação é sem­
pre necessária quando muitas pessoas cooperam na produção. M as a
produção só pode ocorrer se os m eios e condições de produção estive­
rem sujeitos a uma forma definida de posse - seja a forma comunal,
capitalista, feudal ou qualquer outra. Segue-se que as tarefas de coor­
denação, com o todas as outras tarefas produtivas, só podem ocorrer
em condições de alguma forma definida de posse. Essa dependência do
modo de coordenação para com a forma de posse assegura que os m o­
dos de coordenação variarão de uma forma de posse para outra. Mas
não se segue que os não-possuidores empenhados na coordenação
constituam uma classe diferente daqueles cujo trabalho é coordenado.

Administração e capitai
Consideremos, finalmente, as relações entre formas de posse e formas
de direção do capital por agentes econôm icos que estão separados dos
278 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

meios de produção. A noção convencional da administração é muito


difusa, estendendo-se em muitos casos a qualquer empregado não-
manual com responsabilidade administrativa. Aqui, “ administração”
será usada num sentido mais específico para referir-se ao desempenho
das funções de uma posse exclusiva por agentes não-possuidores. N o
caso da posse capitalista, “ administração” refere-se à direção das ope­
rações de um capital. Os administradores são agentes econôm icos em­
pregados para exercer a capacidade de direção em nome de um capital.
Vimos que as tentativas para distinguir, dentro da organização da pro­
dução capitalista, entre trabalhador e não-trabalhador ou entre traba­
lho produtivo e improdutivo não podem ser defendidas. Essas distin­
ções propostas não podem, portanto, justificar a inclusão dos adminis­
tradores numa classe de trabalhadores assalariados não-possuidores,
distinta do proletariado. D a mesma forma, o duplo caráter da supervi­
são e administração não acarreta uma distinção de classe entre não-
possuidores que desempenham as funções do capital e os que não as
desempenham. Setores da administração podem formar um com po­
nente especializado e altamente pago da força de trabalho capitalista,
mas isso não define um tipo distintivo de posição de classe no sentido
da posse ou separação dos meios de produção. Muitos autores têm
usado a remuneração elevada dos altos administradores com o índice
de seu caráter capitalista, sob a alegação de que são pagos essencial­
mente dos lucros da empresa (por exemplo, Poulantzas, Classes in
Contemporary Capitalism, p. 229; Carchedi, “ On the Economic Identi­
fication” , pp. 54-9; Braverman, Labour and M onopoly Capital, pp. 404
e seg.) Mas essa sugestão é totalmente circular. É precisamente porque
esses empregados altamente remunerados são considerados com o ca­
pitalistas disfarçados que seus salários podem ser separados dos custos
de força de trabalho da empresa: porque não são parte dos custos do
trabalho, eles devem ser pagos a partir dos lucros.
Argumentamos, no Capítulo 11, que pode haver outros agentes
econôm icos além dos sujeitos humanos. Esses agentes dependem, para
suas condições de existência, da delegação de funções a outros agentes
- por exemplo, quando a assinatura de um alto dirigente é necessária
para um contrato. As sociedades anônimas com o agentes econôm icos
dependem da delegação das funções de direção de seu capital a
membros de uma estrutura administrativa. Os administradores servem
com o representantes do capital de uma sociedade anônima ou “ trust” .
N ão exercem essa função porque possuam os meios de produção que
dirigem, mas porque estão combinados com esses meios de produção
por uma decisão econôm ica (contratar certo número de funcionários)
tomada por parte do capital. N o que respeita ao modo de combinação
com os meios de produção, ocupam a mesma posição de trabalhado-
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A SSES 279

res assalariados (embora geralmente com maiores obrigações contra­


tuais por parte do empregador). Embora os administradores dirijam
as ações de um capital, é este, e não eles, o responsável legal pelas obri­
gações e o possuidor dos rendimentos que se seguem dessas ações.
Nem a maior eficiência no desempenho da função de direção confere
ao administrador a capacidade de alienar ou apropriar-se dos meios de
produção em questão, ou mesmo o direito de continuar exercendo a
função de direção.
O administrador está separado dos meios de produção e ainda as­
sim os dirige. O que significa o fato de o administrador “ representar”
ou “dirigir” o capital? Será necessário definir as funções contidas na
operação de qualquer “capital” a fim de compreender e separar as di­
ferentes funções combinadas e confundidas na noção convencional de
“ administração” . Para tratar dessa questão, devemos examinar, pri­
meiro, um conceito que poderia parecer uma solução, o “capitalista”-
não será o administrador simplesmente um substituto do capitalista?
A simples combinação das divisões social e técnica do trabalho
produz sua fusão num sujeiro humano, o “capitalista” , que exerce
sua função em razão da posse. Essa fusão de posse e função levou à
identidade prática do sujeito humano e do sujeito econôm ico (locus do
exercício das funções econômicas) no marxismo. Enquanto as escolas
clássica e neoclássica encontraram o sujeito econôm ico numa natureza
humana definida (num caso, necessidades e atributos, no outro, uma
certa psicologia calculadora), Marx concebe o capitalista com o uma
“personificação do capital” . O capitalista é a encarnação de uma força
social, é um sujeito vazio que ocupa um lugar econôm ico (“capitalis­
ta”) e recebe através de sua capacidade de experiência as aparências da
estrutura que lhe conferem a subjetividade adequada ao seu lugar.
Marx evita uma Antropologia ou Psicologia ingênuas através desse
uso da estrutura de encarnação hegeliana de esquerda (cf. Rancière).
O efeito, porém, é semelhante ao do psicologism o, as funções desapa­
recem no sujeito, mas com a diferença de que o sujeito por sua vez de­
saparece na estrutura. O capitalista é uma simples “parte alíquota” do
capital social total e a experiência das aparências da estrutura pelos ca­
pitalistas tem forma universal. E a estrutura que gera as formas de re­
conhecimento qiie a mantêm. A efetividade diferencial de cálculo e or­
ganização é fixada em zero. A concepção do capitalista como personi­
ficação do capital é, ao seu m odo, tão pouco esclarecedora quanto o
“economizar” com o forma universal de cálculo humano.
Argumentamos que as condições de existência dos agentes eco­
nômicos capitalistas devem ser analisadas em termos das condições de
reconhecimento de entidades com o agentes econômicos, as possibili­
dades da delegação de funções a outros agentes, e as condições cultu­
rais de cálculo econôm ico. Consideremos, por exemplo, a relação en­
280 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

tre o sujeito jurídico e o sujeito econôm ico em relação a um capital,


entre a forma de uma posse e seu funcionamento. A subjetividade jurí­
dica é um reconhecimento da forma de posse (no capitalismo, as di­
ferenças jurídicas na forma de propriedade não são reflexos de formas
preexistentes de posse; o próprio reconhecimento legal gera a diferen­
ça: sem uma fo rm a jurídica adequada as sociedades anônimas não po­
deriam existir). N a pessoa do “ capitalista” , coincidem o sujeito jurídi­
co e o sujeito econôm ico. N a sociedade anônima, o sujeito jurídico
pertinente para o capital com o um todo é a própria companhia (as
obrigações dos acionistas se estendem apenas à sua parte do capital).
A unidade da com panhia é uma unidade de reconhecimento com o
uma entidade capaz de certas ações (posse, alienação, contrato, etc.) -
é um locus de posse diferente das pessoas físicas. A posse e os sujeitos
econôm icos também estão com binados aqui (o sujeito econômico deve
ser operativo no nível da posse efetiva) - é a companhia com o fundos
monetários combinados que é o capital e é esse capital que deve ser di­
rigido. A subjetividade econôm ica não é a subjetividade humana, é a
posse em operação. D aí a subjetividade econôm ica ter de ser definida
abstratamente. Os sujeitos econômicos devem ser definidos como o “lo­
cus" do exercício da função de direção de uma posse - esse locus corres­
ponde à forma de posse.
M as direção de quê? O conceito de “meios de produção” é inade­
quado para definir o que é dirigido no capitalismo. A produção de
mercadorias é simplesmente um meio de expansão do capital m onetá­
rio. O capital financeiro e comercial não implica necessariamente a di­
reção de “ meios de produção” : os mercados para os bens financeiros,
crédito ao consumidor, venda de mercadorias financeiras (seguros,
etc.), a compra especulativa de mercadorias, tudo isso pertence ao cir­
cuito M - M 1 e não implica contato direto com o capital industrial. O
capital financeiro indica a necessidade de uma definição mais abstrata
de um “ capital” . Um “capital”, a fo rm a de subjetividade econômica nc
capitalismo, só pode ser definido como quaisquer fundos monetários ope­
rados por uma única direção. Essa direção será exercida dentro da fo rm a
de uma posse exclusiva {quer os fundos dirigidos sejam ou não possuídos
dessa maneira.) Tais definições podem parecer elípticas, mas não são
vazias. Posse e função combinam-se para definir uma unidade de ope­
ração econômica: a direção define a subjetividade econôm ica, é consti­
tuída de quaisquer fundos dirigidos, a forma de posse indica os limites e
os objetos da direção, que nesse caso é a expansão do capital m onetá­
rio de posse exclusiva.
Marx define a unidade e os limites de um capital de maneira dife­
rente. A análise da forma dos capitais é hegemonizada pela teoria da
mais-valia e sua distribuição. Os capitais industrial, comercial e usurá-
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A S S E S 281

rio diferenciam-se à base do m odo pelo qual partilham da mais-valia.


O capital industrial é a forma primária de capital, deve sê-lo porque o
capital é concebido com o um processo de auto-expansão do valor de­
rivado da exploração da força de trabalho e realizado através da venda
de mercadorias. Os objetos primários de análise são as relações distri­
butivas entre as frações do capital (redistribuição da mais-valia) e ten­
dências na produção e realização da mais-valia que transcendem a em ­
presa. Marx não precisa teorizar a empresa capitalista, sua forma e
funções. Os capitais são designados por um sujeito, o capitalista com o
possuidor e agente, e por um processo de geração - todos os capitais
representam um certo conjunto de mais-valia arrancado dos trabalha­
dores num processo de trabalho definido. Os capitais são unificados
pela sua origem: no processo de exploração do trabalho que cria o ca­
pital e através da redistribuição a outros pretendentes na classe capita­
lista. Um capital é definido essencialmente na produção; o “capitalis­
ta” é o possuidor da mais-valia produzida. U m a vez abandonado o
conceito do capital com o auto-expansão do valor, então a unidade de
um capital deixa de ser concebível com o o processo de sua própria ge­
ração. A rejeição da teoria de valor exige a teorização da empresa; sem
valor, os limites, operações e financiamento da empresa tornam-se ob­
jetos problemáticos para a teorização. Daí perguntar: que é um capi­
tal? o que é dirigido? é uma conseqüência de se abandonar o valor e o
problema da fonte d o’ lucro.

A concepção abstrata de um capital com o quaisquer fundos sujei­


tos a uma direção que serve a uma posse exclusiva torna-se inevitável
quando o valor é afastado e se supõe o crédito com o fonte do financia­
mento. Para compreender-se melhor o que é dirigido é necessário in­
troduzir certos conceitos formais relacionados com o financiamento,
já que o financiamento é o determinante dos fundos disponíveis para
um capital. Esses termos relacionam-se com coisas que são em parte
uma conseqüência de uma agência diretora e também lhe impõem condi­
ções. Esses conceitos são a fo n te, o nível (relativo a uma escala social
predominante) e os objetos dos fundos de capital. Um capital é deter­
minado em seus objetos pelas suas fontes e nível de financiamento. O
capital financeiro e o industrial podem ser diferenciados em termos de
suas fontes de financiamento. O capital financeiro centraliza fundos
monetários, que funcionam com o capital na forma de crédito e juros.
O capital industrial é um recipiendário do crédito (inclusive a venda de
emissões de ações), mas tem, além disso, outra fonte de financiamen­
to, os lucros retidos. Ambas essas formas de financiamento dependem
do investimento de fundos de capital num ramo definido da produção
de mercadorias e da venda de mercadorias a preços que permitam o
pagamento de juros, de dividendos e /o u a retenção dos fundos de in­
282 CLASSES E E ST R U T U R A DA FO R M A Ç Ã O SOCIAL

vestimento. Os capitais podem ser diferenciados em termos do nível


de acesso ao financiamento. Isso tem um efeito crucial sobre os obje­
tos específicos de suas operações dentro da divisão geral do capital fi­
nanceiro e industrial. N o capital financeiro, uma certa escala é impos­
ta em diferentes tipos de operações financeiras pelas condições predo­
minantes de concorrência (diferentes níveis de centralização/financia­
mento serão necessários em operações bancárias ou financiamento de
vendas a prestações, por exem plo, novas empresas tenderão a desen-
volver-se em áreas não dominadas por grandes centralizadores con­
correntes de crédito). N o capital industrial, as formas técnicas impõem
certos níveis necessários de financiamento, sendo essa uma das condi­
ções dominantes da concorrência. Os diferentes ramos da produção
exigem diferentes níveis de capitalização e diferentes formas de acesso
ao financiamento,
Um com plexo de empresas relacionadas (formalmente ou não)
funciona com o um capital único se estiverem sujeitas a uma mesma
agência de direção em relação às suas fontes e nível de financiamento.
Vamos agora procurar definir os quatro níveis de funções compreendi-
. dos na direção das operações de qualquer capital (o capital industrial
será usado com o ilustração, mas análogos das funções 2, 3 e 4 podem
ser encontrados em instituições financeiras com o bancos e com pa­
nhias de seguros, relativos ao planejamento técnico de taxas de juro e
prazos de empréstimos, e a coordenação de departamentos).
1. Direção de Investim ento: a função central, aqui, é o cálculo do
financiamento (fonte e nível de fundos), a definição das áreas de ope­
ração do capital - isso tomará a forma de uma decisão ou plano geral
de investimento. A temporalidade das decisões aqui se relaciona com o
giro do investimento; período de reprodução do capital com o um todo
(fixo e circulante).
2. Planejamento da Produção: com o conseqüência das decisões
básicas de investimento, este nível envolve decisões quanto aos produ­
tos, tipo de processo de produção, nível geral de produção, etc.; isso
envolve cálculos de custos de investimento e preços de produção relati­
vos aos fundos disponíveis e a taxa de lucro prevista no período de
giro (turnover) do investimento. Este nível implica uma contabilida­
de e um cálculo técnico - servirá, dependendo da empresa, de base téc­
nica para as decisões financeiras no nível 1.
3. Operação da Produção: as decisões quanto às compras de ma-
térias-primas, força de trabalho, etc., são tomadas à base da avaliação
das condições de mercado dentro das limitações impostas pela estraté­
gia financeira. A temporalidade das decisões se relaciona com o perío­
do de giro da produção e com o nível de aplicação *do capital circulante
e de seu giro.
RELAÇÕES E C O N Ô M IC A S D E C L A S S E S 283

4. Coordenação e Supervisão: a integração das fases de um proces­


so de produção e a manutenção do desempenho da produção.
As funções 1 e 3 envolvem decisões que afetam diretamente a na­
tureza e o nível da operação econôm ica das empresas - são funções
que de certo m odo devem ser unidas numa única agência de cálculo e
decisão. Essas funções definem o sujeito econômico - a agência de dire­
ção de um capital. As funções 2 e 4 são em geral conseqüências técni­
cas de decisões econôm icas e operacionais ou fatores destas, e a elas
estão subordinadas. A coordenação é uma função necessária da com ­
posição técnica do processo de produção. A supervisão, quando con­
cerne à fiscalização do desempenho do pessoal no processo de produ­
ção, e uma operação necessária do capital, mas que pode na prática ser
realizada sem especialistas administrativos através de sistemas de pa­
gamento ou formas de organização do trabalho.
As funções 1 e 3 são específicas ao sujeito econôm ico. Exigem cál­
culos e decisões econôm icos não-técnicos (“ não-técnicos” no sentido
de que se ocupam com a definição de objetivos que não são dados por
decisões anteriores). As funções 2 e 4 são cálculos ou decisões técnicos
subordinados às duas outras - em qualquer empresa complexa, serão
realizados por pessoal especializado. “ Administradores” que desem­
penham as funções 1 e 3 são especialistas contratados para atuar como
agentes de uma subjetividade econôm ica, diretores de capital. Os espe­
cialistas que desempenham as funções 2 ou 4 exclusivamente são fun­
cionários técnicos subordinados ao sujeito econôm ico. Essas afirma­
ções definem funções, e não as essências sociais dos sujeitos. “ Adm i­
nistradores” não são capitalistas em razão da função, nem são neces­
sariamente diferenciados do resto dos especialistas técnicos. E a dife­
renciação das tarefas, sua relação com o cálculo e a operação econô­
mica que nos interessa, não as características “sociológicas” de seus
ocupantes.
As duas amplas divisões de funções envolvem, caracteristicamen­
te, cálculo “econôm ico” e “ técnico” . O desconhecimento do problema
de direção levou ao desconhecimento de seus efeitos no marxismo e a
uma rejeição dos efeitos de direção em virtude de sua representação
absurda nas opiniões dos especialistas em administração. O problema
da direção levanta as questões da existência e efetividade de formas de
estratégia de investimento e sua conexão com formas de cálculo. O cál­
culo, no qpal as decisões operacionais imediatas baseadas nas infor­
mações de mercado existentes são dominantes e determinam as formas
de estratégia de investimento, existe tanto no capital industrial com o
no financeiro. Pode ser analisado em termos das fontes de financia­
mento e dos objetos para os quais, em conseqüência, é dirigido (ban­
cos de capitalização versus bancos de investimento - periodicidade do
giro dos fundos centralizados). O cálculo, no qual decisões estratégicas
284 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

tendem a predominar sobre decisões operacionais, corresponde a uma


extensão do período de giro dos fundos investidos, e isso pode ter de­
terminantes técnicos (escala de investimento necessária) ou financeiros
(periodicidade dos fundos centralizados, termos de crédito). Essas
questões de m odo de direção exigem investigação, mas isso só é possí­
vel em termos de uma análise de formas de financiamento e condições
de concorrência técnica. A s fontes e nível de financiamento não po­
dem ser investigados independentemente de sistemas financeiros defi­
nidos.
A existência de tarefas funcionais distintas e a diferença em formas
de cálculo suscitam a questão da formação de quadros administrati­
vos e especialistas. As questões do mercado para trabalho administra­
tivo, treinamento, diferenciação funcional, em geral a organização dos
administradores com o força de trabalho, foram negligenciadas pelos
marxistas. O mesmo ocorre com o desenvolvim ento e disseminação de
formas de cálculo. O mercado para administradores e especialistas de­
penderá, em suas características, do grau de especialização das empre­
sas, do grau de concentração/centralização do capital, do nível de de­
senvolvim ento dos aparelhos administrativos não-capitalistas, etc. A
difeienciação entre agentes de subjetividade econôm ica e funcionários
técnicos, a formação de um estrato distinto de pessoal administrativo
ocupado com a “direção”, é uma tendência observável em várias econo­
mias capitalistas adiantadas. A sistematização dos processos de cálculo e
administração empresarial, o treinamento rigoroso e a competição de
especialistas, bem pode afetar diretamente (outras questões à parte) as
condições de concorrência entre empresas e o seu desempenho geral.
Pode-se argumentar que a administração especializada teve um efeito
direto e radical na escala, eficiência organizacional e produtiva do ca­
pital industrial, que é tão grande quanto a influência das modificações
na complexidade técnica, períodos de giro e volume das operações. A
efetividade dos agentes especialistas altamente qualificados sobre os
sujeitos econôm icos cujas operações apóiam não pode ser ignorada,
com o os marxistas se inclinaram a fazer, e deve ser investigada.
Os administradores dirigem fundos de capital, mas não os pos­
suem. Essa separação entre a posse e o desempenho de função corres­
ponde ao desenvolvim ento do capital centralizado ou socializado. Es­
sas formas de capital estão ligadas ao desenvolvimento do capital fi­
nanceiro e às transformações na escala de investimento e períodos de
giro em certos ramos do capital industrial. Com o os fundos de capital
necessários à operação de empresas foram transformados em escala e
im posios pela concorrência, assim também a figura formada pela uni­
dade de posse e função na pessoa do capitalista perdeu importância.
Ideólogos da administração com o Berle e Means concebem o desen­
volvim ento do capital por ações e a administração como uma separa­
R E L A Ç Õ E S E C O N Ô M IC A S D E C L A S S E S , 285

ção entre a propriedade e o controle. Essa posição é absurda, pois iden­


tifica títulos individuais de riqueza com posse efetiva e a subjetividade
humana com a econôm ica. Posse e função estão combinadas na empre­
sa, o sujeito possuidor e o sujeito econôm ico são correspondentes. A
função de direção é apoiada pelo recurso a um mercado de trabalho
do especialista, que, com o todos os outros, depende da não-posse.
As unidades que possuem com o capital (e que deles separam a popula­
ção trabalhadora) os meios de reprodução da força de trabalho são su­
jeitos não-hum anos, jurídico-econôm icos, as empresas. Essas formas,
de posse exigem que a função de direção que separam de todas as ou­
tras funções sejam desempenhadas por especialistas que agem como
agentes do sujeito econôm ico. Essas formas reproduzem sistematica­
mente esses especialistas com o não-possuidores, com o servidores do
capital socializado. O capital controla seus administradores.
A divisão social do trabalho do capital socializado cria uma cate­
goria singular de especialistas técnicos, diretores dos meios de produ­
ção. A com binação de posse e funç’ão é preservada naquela direção
com o uma atividade diferenciada de todas as outras e colocada a servi­
ço de uma posse exclusiva. As divisões social e técnica do trabalho es­
tão combinadas e separadas: a direção é uma função m onopolizada
pela posse, e a direção serve à posse; a direção é, porém, uma função
específica numa divisão técnica do trabalho e sua ocupação depende
do desempenho. Os “ administradores” não se podem apropriar daqui­
lo que dirigem; o que dirigem pode existir com o o capital que é apenas
numa forma socializada. O desempenho da função de direção do capi­
tal (ou dos meios de produção equivalentes em outros m odos) não re­
sulta na posse. O capitalismo, em sua forma socializada, conserva a
conseqüência da posse na separação, são os “capitais” que existem, e
não os “ capitalistas” . O desempenho da tarefa técnica torna possível a
existência de uma forma social, isto é, os “capitais” com o sujeitos eco­
nômicos, e também a continuação das relações de produção e da divi­
são social do trabalho do capitalismo. A s relações de classes conti­
nuam a existir, mas os possuidores na separação não são necessaria­
mente sujeitos humanos; a operação das relações de produção é manti­
da por funcionários pagos separados dos meios de produção.
C ap ítu lo 13

Conclusão

N os capítulos anteriores, propusemos uma reconstrução fundamental


das concepções marxistas clássicas da estrutura da formação social,
classes e relações de classes econôm icas. Os argumentos não são com ­
pletos nem definitivos, mas abrem áreas significativas para novos tra­
balhos no campo da teoria marxista. Esta conclusão delineia algumas
dessas áreas, em relação à estrutura da formação social, classes e rela­
ções econôm icas de classes.

A estrutura da formação social


N a concepção clássica a formação social é uma estrutura articulada de
níveis econôm ico, político e ideológico dominada por um m odo de
produção específico. O nível econôm ico desempenha o papel de “ de­
terminação em última instância” , pelo fato de que determina o caráter
de cada um dos níveis e as relações entre eles. N ã o obstante, os níveis
político e ideológico são “ relativamente autônom os” : exercem um efei­
to recíproco sobre a econom ia e em certos casos podem ocupar o lugar
de dominância na formação social. Argumentamos que essa concep­
ção envolve uma epistem ología racionalista específica na qual as rela­
ções entre conceitos são transpostas para relações entre as relações e
práticas sociais especificadas nesses conceitos. Uma relação entre o
conceito de uma econom ia e os conceitos de suas condições de existên­
cia é transposta para uma relação de determinação entre a econom ia e
os níveis político e ideológico. A econom ia determina esses níveis “em
última instância” , criando as suas próprias condições de existência
políticas e ideológicas.
Em concepção oposta, argumentamos que as ligações entre as re­
lações, instituições e práticas sociais devem ser concebidas não em ter­
mos de quaisquer relações de determinação, “ em última instância” ou
outras, mas antes em termos de condições de existência. Isso significa
que, embora relações e práticas sociais específicas pressuponham sem-
C O N CLU SÃ O 287

pre condições sociais de existência definidas, elas nem asseguram essas


condições através de sua própria ação, nem determinam a forma pela
qual serão asseguradas. Assim , embora um conjunto de relações de
produção possa ter condições de existência jurídicas, políticas e cultu­
rais, tais condições não são, de m odo algum, determinadas ou assegu­
radas pela ação da econom ia. Os argumentos dos capítulos 8 e 9 m os­
traram que a análise em termos de condições de existência e as formas
pelas quais são asseguradas acarreta a rejeição das doutrinas de “ de­
terminação em última instância” , e da sua variante althusseriana, a
“causalidade estrutural” , da doutrina correlata da correspondência
necessária de relações e forças de produção, e, finalmente, da concep­
ção da form ação social com o organizada em vários níveis estruturais
distintos e unitários. Argumentamos, portanto, pelo afastamento do
modo de produção como objeto primordial da conceituação marxista, e
em favor da form ação social concebida com o um conjunto definido de
relações de produção, juntamente com as formas econôm icas, políti­
cas, jurídicas e culturais em que se asseguram suas condições de exis­
tência.
Devem ser notadas, no caso, quatro implicações. Primeiro, segue-se
que as práticas, instituições e ideologias políticas já não podem ser
concebidas com o mais ou m enos diretamente redutíveis aos efeitos,
expressões ou representações das relações econôm icas. As instituições
e práticas políticas podem proporcionar algumas das condições de
existência das relações de classes econôm icas, mas não expressam es­
sas relações, ou representam os interesses das classes nela empenha­
das. É necessário abandonar a tradicional prática marxista de identifi­
car nas formas e relações políticas e ideológicas as classes, frações de
classes ou interesses que supostamente representam. Mas abandonar
essa prática é problematizar a maior parte das análises marxistas clás­
sicas da política, do Estado e ideologia, que são caracterizadas precisa­
mente pela identificação de fenôm enos políticos e culturais para as
classes e interesses representados. A necessária reformulação das teo­
rias marxistas da política e da ideologia não foi tentada aqui, mas tra-
ta-se, sem dúvida, de uma tarefa teórica urgente.
Insistir na análise das relações e práticas sociais em termos de
suas condições de existência não é dizer que não existam ligações en­
tre práticas, instituições e ideologias políticas, por um lado, e as rela­
ções de classes econôm icas, pelo outro. É dizer que tais conexões não
podem ser concebidas da maneira pela qual o marxismo se tem incli­
nado a concebê-las. As instituições e práticas políticas não represen­
tam a estrutura das relações de classes econôm icas, mas podem ofere­
cer algumas de suas condições de existência. O que está em jogo, no
caso, é a especificidade das questões e lutas políticas e os aparelhos es­
tatais, partidos ou outras forças políticas que atuam em relação a elas.
288 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

Dizer que as questões e forças políticas não são redutíveis a efeitos das
relações econôm icas é insistir em sua especificidade. É dizer que os in­
teresses representados nas organizações e práticas políticas não são de­
terminados em outro lugar: são constituídos no campo da própria
política. Observações semelhantes podem ser feitas com relação às for­
mas e práticas culturais e ideológicas: dizer que não são redutíveis a al­
guma outra coisa é dizer que devem ser levadas a sério em relação ao
seu conteúdo específico e aos seus efeitos. Vimos, em particular, que a
efetividade da cultura e ideologia não pode ser reduzida à formação de
consciências dos agentes adequadas às suas posições na estrutura da
formação social.

Segundo, insistir na análise em termos de condições de existência


e as formas pelas quais são asseguradas é insistir em que nenhum pri­
mado ontológico e nenhuma prioridade discursiva necessária podem
ser atribuídos a quaisquer relações ou conjunto de relações específicas.
As conexões entre as relações econôm icas e outras relações sociais não
podem ser analisadas em termos do tipo de primado ontológico atri­
buído à econom ia pelas doutrinas da determinação em última instân­
cia ou causalidade estrutural; a conexão entre relações e forças de pro­
dução não se pode analisar em termos da correspondência necessária
entre umas e.outras, e assim por diante. A ordem do discurso na análi­
se das relações sociais e das ligações entre elas não é dada na ordem
das próprias relações sociais: é uma conseqüência de ideologias políti­
cas definidas e de objetivos políticos específicos. O primado discursivo
atribuído às relações econôm icas no marxismo, e mais geralmente no
discurso socialista, não pode ser concebido com o um efeito da estrutu­
ra ontológica da realidade. Pelo contrário, é o efeito de uma ideologia
política e de um objetivo político definidos, ou seja, o objetivo de uma
transformação socialista das relações de produção capitalistas. Os
conceitos de relações de produção, classes e outros conceitos da teoria
marxista adquirem pertinência política na forp ação de conceitos de
formações sociais definidas. N esse nível, a análise marxista jam ais
pode ser reduzida a um exercício acadêmico desinteressado, já que de­
pende sempre de problemas políticos com o um ponto de partida ne­
cessário, ainda que problemático. Os problemas políticos não podem
ser tom ados simplesmente do m odo que surgem e são especificados no
debate político. Exigem uma avaliação teórica crítica e podem exigir
' reconstrução, mas são, não obstante, de importância fundamental
para a conceituação de form ações sociais definidas com o arenas da
prática política. A maneira pela qual os problemas políticos são for­
mulados e teorizados depende do nível de desenvolvimento tanto da
política com o da teoria marxista, e da medida em que se influenciam
mutuamente. Em M ode o f Production and Social Formation sugeriu-se
CO N CLU SÃ O 289

que uma das razões da fragilidade das análises marxistas do moderno


capitalismo britânico está na fraqueza da “esquerda” na Grã-
Bretanha, sua política doutrinária simbólica, sua incapacidade de en­
frentar as principais questões e forças políticas e sua conseqüente inca­
pacidade de gerar problemas políticos para a teorização.
Terceiro, a proposta de conceituar a formação social com o cons­
tituída de um conjunto definido de relações de produção, juntamente
com as formas econôm icas, jurídicas, políticas e culturais nas quais as
suas condições de existência são satisfeitas, exige uma reconsideração
da natureza da política socialista e das formas de prática política so­
cialista que são possíveis. A concepção clássica da estrutura da forma­
ção social a apresenta com o dominada por um m odo de produção de­
finido, exceto por períodos relativamente curtos de transição entre a
dominação de um m odo e a de outro m odo. O m odo de produção ca­
pitalista é dominante ou não é. Se não é, então a formação social está
em transição ou é dominada por algum outro m odo de produção. É
fácil ver com o essa concepção pode criar uma distinção entre reforma
e revolução. Os m odos reformistas de prática política visam a m elho­
ria social e a m odificações sociais reais, mas deixam intata a estrutura
essencial do m odo de produção dominante. A prática política revolu­
cionária visa a desalojar esse m odo de produção derrubando os apare­
lhos estatais que asseguram seu predomínio. A reforma se preocupa
com os fenôm enos superficiais da formação social, enquanto a revolu­
ção ataca a sua estrutura essencial. Em termos dessas concepções, a
política socialista na sociedade capitalista é necessariamente revolu­
cionária. Pode ser insurrecional, ou pode pretender atingir seus objeti­
vos por meios pacíficos, mas visa sempre à derrubada mais ou m enos
rápida da estrutura econôm ica essencial da sociedade capitalista.
Mas, se a concepção clássica da estrutura da formação social for
desalojada, então essa dicotomia entre reforma e revolução desapa­
recerá. Se a formação social não for concebida com o governada pela
estrutura essencial de um m odo de produção e suas formas correspon­
dentes de Estado, política e ideologia, então as opções enfrentadas
pela política socialista já não podem ser reduzidas a uma questão de
confrontar essa estrutura essencial, ou de recusar-se a isso. A política
socialista já não pode ser concebida com o necessariamente orientada
no sentido do grande empurrão que finalmente derruba o capitalismo
e abre caminho para alguma outra coisa. Isso significa que os socialis-:
tas se devem preocupar com a expansão das áreas de socialização e de­
mocratização na form ação social, e que as lutas existentes com tais fi­
nalidades não podem ser julgadas diversionárias simplesmente porque
deixam de confrontar as estruturas gerais do poder estatal e da econo­
mia. Os tipos de luta concretamente possíveis dependerão, é claro, das
estruturas e poderes dos. aparelhos estatais, das formas vigentes de
290 CLASSES E EST R U T U R A DA FO RM A Ç Ã O SOCIAL

política e ideologias políticas - e há casos bem conhecidos nos quais


uma política socialista séria só pode ser revolucionária. Mas isso é
sempre uma função de condições políticas definidas e não de relações
de produção capitalistas, com o tal. Por exemplo, vim os que as rela­
ções de classes econôm icas só podem ser concebidas em relação a pro­
cessos específicos de produção e distribuição. Isso significa que as rela­
ções de classes econôm icas têm sempre um campo definido de aplica­
ção: cobrem certas áreas da produção e distribuição e não cobrem ou­
tras.. A maioria das sociedades capitalistas adiantadas deslocaram á-
reas significativas da educação da esfera de formas mercantis de distri­
buição e várias delas fizeram o mesmo com a distribuição da assistên­
cia médica. O fato de que a oferta de educação, e em muitos casos de
assistência médica, não está totalmente subordinada a formas mercan­
tis de distribuição não se deve a nenhuma característica essencial do
capitalismo ou às propriedades intrínsecas da educação e da medicina.
É conseqüência de condições e lutas políticas definidas. Mas, se formas
de distribuição não-mercantis podem ser alcançadas dentro da socie­
dade capitalista, então a democratização e expansão de formas não-
mercantis a outras áreas da economia e o afastamento destas do campo
de aplicação das relações econôm icas capitalistas representam possí­
veis objetivos de política socialista. Os socialistas precisam argumen­
tar, em casos particulares e em geral, em favor da importância das for­
mas não-mercantis de distribuição e produção. Observações seme­
lhantes podem ser feitas com relação ao desenvolvimento e expansão
de formas de controle democrático popular. Quando as condições
políticas possibilitam lutas limitadas pela democratização e socializa­
ção de determinadas áreas da vida social, seria loucura para os socia­
lista tratá-las com o diversionárias e reformistas.
Finalmente, tais argumentos questionam a pertinência freqüente­
mente atribuída à análise de classes para os cálculos políticos socialis­
tas. Argumentamos que não há efeitos políticos ou ideológicos de clas­
ses necessários. As práticas, instituições e ideologias políticas não são
geradas com o efeitos da estrutura de relações de classe econôm icas,
mas podem oferecer algumas de suas condições de existência. A perti­
nência das relações de classes econôm icas para o cálculo político socia­
lista não deriva de qualquer primado ou efetividade ontológica supos­
ta da econom ia para a determinação de formas políticas e ideológicas.
Pelo contrário, é o objetivo político da transformação socialista das
formas de posse e separação dos meios e condições de produção que
assegura a importância central dessas formas para a análise política
socialista. A análise das relações de classes econôm icas oferece o pon­
to de partida do cálculo político socialista, mas não é necessário ir
além dessa análise até a investigação das formas nas quais suas condi­
ções políticas, jurídicas e ideológicas de existência são asseguradas, e
CO N CLU SÃ O 291

até as condições de sua transformação. Mas essas formas e condições


não são dadas pela identificação das relações de classes econômicas
com o tais.

Classes e agentes econômicos


Argumentamos no Capítulo 10 que as classes devem ser concebidas
com o categorias de agentes econôm icos que ocupam posições defini­
das em relação a determinadas formas de posse ou de separação dos
meios e condições de produção. As relações de classes econôm icas são
constituídas pela “posse em separado” de algumas das condições ne­
cessárias ao processo de produção. Em certos casos, a forma de posse
exige que as tarefas de direção e controle do processo de produção se­
jam desempenhadas pelo agente possuidor, ou em seu nome, enquanto
em outros casos o agente possuidor simplesmente exerce controle
sobre a alocação de algumas das condições de produção para determi­
nadas unidades de produção. O agricultor capitalista é um exemplo do
primeiro tipo, e o dono da propriedade que lhe aluga a terra constitui
um exemplo do segundo tipo. Quando a agricultura capitalista é reali­
zada em propriedade arrendada, há relações de classes econômicas en­
tre o dono da terra e o agricultor, e entre o agricultor e seus trabalha­
dores. Os argumentos dos Capítulos 11 e 12 mostraram que a catego­
ria de agentes econôm icos pode incluir outros agentes além dos indiví­
duos humanos e que não há correspondência direta e necessária entre
o desempenho de funções técnicas exigidas pelo controle das condi­
ções de produção e a posição de classe econôm ica. Um capitalista
pode desempenhar ele próprio as tarefas de direção e supervisão, ou
pode empregar outros para fazer isso em seu nom e. Se administrado­
res e diretores são empregados de um capital, então estão separados
dos meios e condições de produção. O simples fato de que executam
funções do capitalista não basta para situá-los numa classe diferente
da classe de outros trabalhadores assalariados.
Esses argumentos têm implicações sérias para a conceituação das
relações de classes econôm icas e exigem, em particular, que os concei­
tos de posse comunal e de sociedades sem classes sejam problematiza-
dos. Se as classes forem concebidas com o categorias de agentes econô­
micos, então a possibilidade de outros agentes que não os indivíduos
humanos deve transformar completamente as concepções tradicionais
de classes com o consistindo precisamente em indivíduos humanos.
Definim os a posse efetiva dos meios de produção com o envolvendo a
capacidade de controle das condições nas quais esses m eios entram no
processo de produção e a capacidade de excluir outros de seu uso.
Como a produção pressupõe sempre um controle efetivo dos meios e
292 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

condições de produção, só pode ocorrer numa forma definida de pos­


se. A posse pode ser comunal ou privada, e pode ser distribuída entre
vários agentes econôm icos diferentes, mas, se os meios de produção
não forem possuídos de alguma forma, então a produção será im possí­
vel. Isso significa que, uma vez definidas as classes com o categorias de
agentes econôm icos e não com o grandes grupos de pessoas, então a
noção de sociedades sem classes já não se pode manter de pé. A posse
comunal envolve uma classe de agentes comunais de posse. A posse,
comunal dos meios e condições de produção evita, certamente, a pre­
sença de uma classe possuidora de indivíduos humanos, mas ainda
assim envolve a presença de agentes com posse efetiva dos meios de
produção e a capacidade de excluir outros de seu uso. Segue-se que a
tradicional distinção marxista entre formas de produção comunais e
baseadas em classes não pode ser mantida. A posse comunal significa
a ausência de relações de classes no sentido tradicional. N ão significa a
ausência de uma classe de agentes de posse, mas significa a ausência de
uma classe de indivíduos humanos possuidores.
Consideremos, por exemplo, o debate entre Meillassoux, Terray e
Rey sobre a questão de se os anciães na sociedade de linhagem constitu­
em uma classe possuidora, em comparação com os jovens e outros. Em
Pre-Capitalist M odes o f Production, argumentou-se que diferenças
funcionais não acarretam relações de classes e que, longe de constituir
uma classe, os anciães agem com o executantes ou funcionários de uma
propriedade comunal, de linhagem. Mas dizer que os anciães não
constituem uma classe não é dizer que não há categoria distinta de
agentes econôm icos com posse efetiva dos meios de produção. Os an­
ciães não formam uma classe, tal com o não a formam os administra­
dores discutidos no capítulo anterior, mas isso não significa a inexis­
tência de classes na sociedade de linhagem. Se a linhagem e seções da
linhagem têm posse exclusiva de certos meios de produção cruciais,
então tanto os anciães com o os jovens estão separados da posse desses
meios. A participação na linhagem é uma condição para a participa­
ção no processo de produção e a linhagem pode, através de seus repre­
sentantes, excluir certos indivíduos do processo de produção, ou puni-
los de outras maneiras.
Vimos que pode haver um capitalismo no qual a posse cabe a ou­
tros agentes que não os indivíduos. A distinção entre a produção capi­
talista e a socialista não pode, portanto, fazer-se em termos da presen­
ça ou ausência de uma classe possuidora de indivíduos. Os socialistas
terão de reconsiderar o que entendem por posse comunal dos m eios de
produção. Isso significa, em particular, a necessidade de desenvolver
conceitos de agentes comunais de posse e dos possíveis m odos de posse
na separação, comunal, dos meios e condições de produção. A discus­
são seguinte tem dois objetivos. Primeiro, mostrar que não pode haver
CO N CLU SÃ O 293

sistema de produção no qual o trabalhador não esteja, de algum mo­


do, separado das condições de produção. Segue-se que a produção en­
volve sempre relações de classes econôm icas e a posse na separação de
pelo menos alguns dos meios e condições de produção. Segundo, apre­
senta um esboço experimental e provisório de algumas das conseqüên­
cias desses argumentos para a conceituação das relações econômicas
de classes nas sociedades socialistas contemporâneas.
Consideremos, primpiro, que condições seriam necessárias para a
não-separação dos trabalhadores da totalidade de seus meios e condi­
ções de produção. Parece haver três possibilidades:
1. N ão há organização social da produção capaz de manter a re­
produção. A produção é uma questão dos agentes humanos indivi­
duais e de coletividades temporárias e intermitentes possibilitadas por
reuniões ocasionais. Os meios de produção são, na melhor das hipóte­
ses, primitivos e rudimentares, e não pode haver instrumentos de pro­
dução cuja produção ou uso exija o emprego de trabalhadores nume­
rosos. N esse caso de não-separação primitiva, não há agências repro­
dutíveis de produção senão os indivíduos humanos, e, na ausência de
vida social organizada, não há base evidente para a reprodução a lon­
go prazo nem mesmo desses agentes. A não-separação primitiva postu­
la, efetivamente, uma fase pré-social especulativa da existência huma­
na.
2. Uma sociedade de produtores autônom os que trocam merca­
dorias entre si sob condições tais que nenhum agente econôm ico pode
monopolizar as condições de produção de qualquer outro agente. N es­
se caso, as mercadorias devem ser produzidas e trocadas em propor­
ções suficientes para assegurar tanto a reprodução das condições de
produção para todos os agentes econôm icos com o a existência de uma
oferta adequada de todos os produtos socialmente necessários. Com
efeito, as mercadorias são trocadas pelos seus valores, isto é, não há
desvio sistemático dos preços relativos das mercadorias em relação aos
tempos de trabalho relativos exigidos para a sua produção.
A idéia dessa sociedade é absurda. Se os produtores individuais
de mercadorias são realmente autônom os e não estão sujeitos a ne­
nhum m odo supra-individual de posse na separação, então não pode
haver mecanismo social para assegurar que as várias mercadorias se­
jam realmente produzidas em proporções e tem pos adequados. Os
produtos são produzidos com o mercadorias pelos produtores autôno­
mos. N ão são produzidos segundo um plano social. Assim, não há um
meio social de assegurar qíie os agentes econôm icos possam adquirir
as condições de sua reprodução econôm ica através da troca de merca­
dorias. Isso significa que haverá agentes econôm icos que não podem
persistir com o pequenos produtores de mercadorias autônom os. Por
outro lado, se houvesse um mecanismo social assegurando que todos
294 C L A S S E S E E S T R U T U R A D A F O R M A Ç Ã O S O C IA L

os agentes econôm icos poderiam adquirir as condições de sua repro­


dução econômica através da troca de mercadorias, por exemplo, se a
produção fosse regulada por um plano social, então os produtores in­
dividuais não seriam totalmente autônom os e as condições cruciais de
produção seriam a posse efetiva pelas agências comunais e não pelos
produtores individuais. Uma sociedade de pequenos produtores de
mercadorias não-separados em nenhum sentido dos seus meios e con­
dições de produção é impossível.
3. A comunidade possui os meios e condições de produção. Mas o
que é essa comunidade? Se ela e seus agentes comunais de posse têm
formas organizacionais definidas com condições de existência sociais
definidas, então os agentes humanos individuais estarão separados dos
meios de produção possuídos pelos agentes comunais. Conceber a
posse comunal com o representação de um estado de não-separação da
parte dos indivíduos é supor que esses indivíduos não estão separados
dos agentes comunais dos quais fazem parte: os sujeitos humanos são
assimilados numa comunhão intersubjetiva na qual a vontade de cada
um é a vontade de todos. O romantismo absurdo dessa posição é evi­
dente - e está bem representado em muitas das descrições clássicas da
sociedade comunista utópica. O livre e pleno desenvolvimento de cada
indivíduo humano ocorre num reino de harmonia social - ver, por
exemplo, o trecho de Ancient Society, de Morgan, citado por Engels
com aprovação, ao concluir A s Origens da Família, da Propriedade
Privada e do Estado. A harmonia social é um efeito da ausência de es­
cassez e a conseqüente realização, na sociedade, de qualidades huma­
nas essenciais:
E n tão pela prim eira vez o hom em , num certo sentido , é finalm ente d em arcad o do resto
d o reino anim al e passa de sim ples condições an im ais p a ra condições realm ente h u m a ­
n as... Só a p a rtir d aí é q u e o hom em , com p le n a consciência, fará sua p ró p ria história...
E a ascensão do hom em , do reino da necessidade p a ra o reino da liberdade. (Anti-
Dühring, p. 336)

Sentimentos semelhantes são expressos, vez por outra, nas páginas de


O Capital.
Mas, pondo de lado os apelos duvidosos do romantismo utópico-,
é necessário reconhecer que a posse comunal envolve sempre agentes
comunais de posse definidos e a conseqüente separação entre os traba­
lhadores e pelo menos algumas de suas condições de produção. A or­
ganização social da produção envolve sempre relações de classes eco­
nômicas e a posse na separação de alguns dos meios e condições de
produção por uma categoria definida de agentes econôm icos. Esses
agentes podem ser particulares ou comunais, mas não pode haver or­
ganização social da produção que não esteja sujeita a certos modos de­
finidos de posse e à correlata separação entre os trabalhadores e al-
CO N CLU SÃ O 295

guns de seus meios e condições de produção. A alegação de Marx de


que “ a existência de classes está ligada apenas a fa ses históricas parti­
culares do desenvolvimento da produção” (Marx a Weydemeyer, 5 de
março de 1852) depende da identificação do indivíduo humano e do
agente econôm ico que é constante no marxismo. A noção de uma so­
ciedade sem classes e a concepção de sociedades anônimas e institui­
ções de crédito com o formas transitórias para o socialismo são resulta­
dos do mesmo erro fundamental.
Considerem os agora a questão do socialism o e, em particular, o
problema de conceituar as relações de produção nas sociedades socia­
listas contemporâneas. A maior parte dos trabalhos sobre a produção
e a distribuição socialistas se ocupou de sua possibilidade ou de sua
operação técnica com o uma “ econom ia” . A literatura é dominada pe­
los problemas do planejamento com o técnica econôm ica, formação de
preços, o papel dos incentivos, a “eficiência” relativamente ao capita­
lismo, e assim por diante. O trabalho pioneiro de Charles Bettelheim
representa apenas o início de uma tentativa de teorizar as condições de
posse dos meios e condições de produção no socialism o. A discussão
das relações de produção nas sociedades socialistas contemporâneas
limitou-se ou à simples afirmação de que os meios de produção foram
realmente socializados, já que são agora propriedade legal de um Esta­
do que representa os interesses da sociedade com o um todo, ou ao de­
bate sobre se os membros da alta hierarquia e das burocracias dos Es­
tados e dos partidos e os diretores de empresas estatais representam
uma classe possuidora, uma “ burguesia estatal” . Q uanto ao primeiro
aspecto, uma vez distinguida a questão da relação econôm ica de posse
da questão de suas condições políticas e legais de existência, é claro
que a forma jurídica de propriedade estatal não pode ser simplesmente
identificada com a socialização efetiva da produção. Quanto ao de­
bate sobre a “ burguesia estatal” , é digno de nota que o problema de
uma classe possuidora tenha sido colocado em termos de se uma certa
categoria de indivíduos constitui uma classe. A forma mais rigorosa
do argumento de que a Rússia e as econom ias socialistas da Europa
(mas não a China) são dominadas por um capitalismo de Estado foi
apresentada por Bettelheim em EconOmic Calculation and Forms o f
Property, e também em sua Introdução a Class Struggles in the U SSR :
1917-1923. Voltarem os aos seus argumentos mais adiante. Observe­
mos, primeiro, que os nossos argumentos dos Capítulos 11 e 12 sobre
a possibilidade de outros agentes econôm icos que não os indivíduos e
a posição de classe dos empregados administrativos minaram as ba­
ses de grande parte do debate sobre o capitalismo de Estado. Esse de­
bate se organiza em torno da questão: são as relações entre uma cate­
goria de empregados (a “ burguesia estatal”) e outra (trabalhadores
nas empresas estatais) relações de classes, ou não? Um a resposta nega-
296 CLASSES E E ST R U T U R A DA FO R M A Ç Ã O SOCIAL

tiva deixa em aberto a questão da relação entre as empresas estatais na


União Soviética e seus empregados. Argumentamos que um trabalha­
dor assalariado realizando funções de direção em nome de um capital,
por mais alto que seja seu salário, está, não obstante, separado da pos­
se dos meios de produção. Argumentos semelhantes se aplicam aos
membros do Estado e aparelhos partidários e aos diretores de empre­
sas estatais na U nião Soviética. O simples fato de que podem executar
funções de direção no sistema de empresas estatais ou em determina­
das empresas não significa que estejam menos separados da posse dos
meios e condições de produção.

Podemos voltar agora à análise de Bettelheim do sistema de em­


presas estatais na U R SS. Ele levanta a questão da significação das re­
lações mercantis dentro do sistema de empresas estatais e entre empresas
e trabalhadores, e argumenta que o sistema das empresas estatais se
caracteriza por uma dupla separação. Primeiro, as unidades de produ­
ção estão separadas umas das outras e suas trocas tomam uma forma
mercantil. Segundo, os trabalhadores estão separados dos spus meios
de produção com a única exceção de sua força de trabalho, que ven­
dem às empresas em troca de salários. O sistema das empresas estatais
pode ser considerado socialista precisamente na medida em que as em­
presas e as relações entre elas estão sujeitas a um controle superior por
um aparelho estatal de planejamento, ele próprio dominado pela clas­
se operária. Mas o aparelho estatal está longe de ser dominado pelos
trabalhadores. Pelo contrário, ele é: “o lugar onde os meios de repres­
são dirigidos contra os trabalhadores são criados, o lugar onde o po­
der de utilizar os meios de produção e de dispor de seus produtos está
concentrado” (Econom ic Calculation and Forms o f Property, p. 98).
Bettelheim argumenta, portanto, que relações econôm icas capitalistas
são dominantes e que a forma legal de propriedade estatal, longe de re­
presentar a socialização da economia, simplesmente entroniza a pro­
priedade privada coletiva da burguesia estatal. Em sua introdução à
edição inglesa de Economic Calculation, Barry Hindess argumenta que
as conclusões de Bettelheim sobre o caráter capitalista da U R SS fa­
lham sob dois aspectos. Primeiro, ele não distingue a questão das rela­
ções políticas predominantes dentro do aparelho estatal e a das rela­
ções econômicas nas quais esse aparelho está implicado no sistema de
empresas estatais. O caráter político do aparelho de Estado, o fato de
que está longe de ser submetido a um controle democrático popular
pelos trabalhadores não é suficiente para mostrar que relações econô­
micas capitalistas são dominantes no sistema de empresas estatais. Se­
gundo, se uma propriedade privada única no sistema de empresas esta­
tais representa uma forma de posse efetiva, então ela deve subordinar
as relações mercantis entre empresas através de seu controle das condi­
CON CLU SÃO 297

ções materiais e financeiras de reprodução econôm ica das empresas es­


tatais. Argumentar que a forma jurídica de propriedade estatal repre­
senta um capital é argumentar que o aparelho planificador do Estado
não tem controle efetivo sobre a provisão de condições de produção
no nível da empresa. É argumentar em favor da decomposição efetiva
do sistema de empresas estatais. Mas não é esse o caso na URSS e nas
econom ias socialistas da Europa.
Com o se comportam esses argumentos à luz da análise das classes
e agentes econôm icos desenvolvida neste texto? Primeiro, vimos que a
questão das relações de classes econôm icas no sistema de empresas es­
tatais já não pode ser formulada com o uma questão da relação entre
uma categoria de empregados e outra. D iz respeito às relações entre
agentes econôm icos possuidores e não-possuidores. N o sistema de em­
presas estatais, temos um duplo sistema de posse na separação, envol­
vendo relações entre empresas e seus empregados, por um lado, e em­
presas e o aparelho planejador do Estado, pelo outro. A s empresas são
os agentes da posse no nível do processo imediato de produção. C om ­
pram os meios de produção e a força de trabalho na forma de merca­
dorias e contratam trabalhadores assalariados especialistas para de­
sempenhar as funções de administração e direção. N esse nível, tem os a
posse na separação e as relações de classes econôm icas capitalistas, en­
tre empresas e seus empregados, do diretor ao trabalhador braçal.
Mas as próprias empresas estão sujeitas a uma forma superior de pos­
se por parte do aparelho de planejamento econôm ico do Estado. Esse
aparelho tem a posse efetiva de certas condições de produção, através
de sua capacidade de fixar preços, regular o acesso à compra de má­
quinas e outros meios de produção, e assim por diante. N esse nível, te­
mos então uma forma de posse comunal e uma correspondente separa­
ção entre as empresas e algumas de suas condições de produção. O sis­
tema de empresas estatais representa, portanto, um duplo conjunto de
relações de classes econôm icas, envolvendo tanto formas econômicas
capitalistas com o não-capitalistas. Quando o sistema inclui comunas
populares além de empresas estatais, o conjunto de relações de classes
econôm icas é mais com plexo, já que a forma de comuna popular re­
presenta um afastamento da posse na-separação capitalista.
Consideremos as ligações entre o sistema de empresas estatais e
suas condições sociais de existência. Vimos que qualquer conjunto de
relações de classes econôm icas deve ter condições de existência econô­
micas, jurídicas, políticas e culturais. O sistema de empresas estatais
envolve meios e processos de produção definidos, e pressupõe a forma
legal de propriedade estatal, o reconhecimento jurídico da empresa
com o agente econôm ico e alguma forma legal de contrato de trabalho
assalariado. Pressupõe condições políticas nas quais essas formas le­
gais são efetivaá e pressupõe claramente que formas definidas de cálcu-
298 CLASSES E E ST R U T U R A DA FO R M A Ç Ã O SOCIAL

lo econôm ico são operativas nos níveis tanto da empresa com o do


aparelho planejador. Essas condições jurídicas, políticas e culturais
não podem ser interpretadas com o a expressão mais ou menos ade­
quada dos interesses do proletariado, da “ burguesia estatal” ou de
qualquer outra classe que se possa invocar. Proporcionam as condi­
ções de existência das relações de classes econômicas, mas não repre­
sentam classes. As relações de classes econôm icas não podem determi­
nar a forma pela qual suas condições de existência políticas são asse­
guradas - a supressão de excêntricos inofensivos, minorias religiosas e
dissidentes políticos na U R SS não é um efeito de suas relações de clas­
ses econôm icas - mas a forma precisa na qual essas condições são asse­
guradas bem pode ter efeitos econôm icos definidos. A s condições polí­
ticas, por exemplo, bem podem ter efeitos significativos sobre as con­
dições de negociação salarial, o leque dos diferenciais de ordenados e
salários, as formas de regulamentação das empresas pelo aparelho pla­
nejador do Estado e a capacidade deste de controlar a distribuição no
mercado negro e relações comerciais não-autorizadas entre as empre­
sas. Dizer que as relações de classes econôm icas não podem determi­
nar a forma precisa na qual suas condições de existência são satisfeitas
é dizer, entre outras coisas, que essas formas e seus efeitos podem estar
sujeitos a conflitos e debates políticos. Mas não há nada nas relações
econôm icas de classes com o tais para assegurar a existência de forças
políticas que visem à sua transformação. As relações de classes econô­
micas capitalistas não garantem o aparecimento de forças políticas so­
cialistas, e o sistema de empresas estatais não garante o aparecimento
de forças políticas significativas que visem a maior socialização da
econom ia. O sistema de empresas estatais não é uma forma econôm ica
intrinsecamente transitória.
Mas o que estará implícito na maior socialização dessa economia?
O socialism o ocupa-se da posse comunal dos meios e condições de
produção, sob controle democrático popular. Uma maior socialização
do sistema de empresas estatais tem, portanto, de envolver transfor­
m ações complexas .em pelo menos três aspectos. D ois deles referem-se
à supressão de relações mercantis e o terceiro à natureza do agente co­
munal de posse. As relações mercantis no sistema de empresas estatais
envolvem uma dupla separação: as empresas estão separadas entre si e
os trabalhadores estão separados dos seus meios de produção. Dizer
que as empresas estão separadas entre si é dizer também que o agente
da posse comunal, nesse caso o aparelho planejador estatal, não está
em condições de dirigir o próprio processo de produção: pode regular
as condições nas quais a produção ocorre, mas seu controle sobre a
produção é limitado pela mediação de distintas agências de posse no
nível da empresa. Um a maior socialização exige, portanto, um contro­
le crescente pela agência comunal da produção e distribuição e a con-
CON CLU SÃO 299

seqüente supressão das formas mercantis de distribuição. Considere­


mos agora a separação entre os trabalhadores e seus meios de produ­
ção. Argumentamos acima que a organização social da produção en­
volve sempre alguma forma de posse na separação. O importante, nes­
se nível, não é se os trabalhadores estão ou não separados (desses
meios), mas a natureza de sua relação com o agente diretor da posse.
A supressão das relações mercantis entre os trabalhadores e empresas,
e a democratização das relações entre o agente de posse e seus empre­
gados, é um segundo aspecto da maior socialização do sistema de em­
presas estatais. Finalmente, os agentes da posse comunal na UR SS e
outras econom ias socialistas não estão manifestamente sujeitos a
controle dem ocrático popular - embora existam diferenças significa­
tivas em relação às proporções e possíveis efeitos de iniciativas popula­
res. O significativo, no caso, não é simplesmente o fato da posse por
uma agência comunal, mas também o caráter do agente comunal de
posse, a medida de sua sujeição ao controle democrático popular pela
massa da população trabalhadora.
Tais pontos indicam apenas alguns dos problemas enfrentados na
análise das relações econôm icas de classes nas sociedades socialistas
contemporâneas, e sugerem o que representaria uma maior socializa­
ção de suas econom ias. As instituições, práticas e ideologias políticas
não podem ser interpretadas com o reflexo dos interesses de uma classe
ou de todo um povo. Os intereses representados na política não podem
ser definidos independentemente dos meios políticos de sua represen­
tação. N ão são constituídos alhures e em seguida representados dentro
da esfera da luta política. Pelo contrário, são constituídos por ideolo­
gias políticas definidas e pelas práticas de organizações políticas. Isso
significa que as instituições e debates políticos devem ser analisados
em termos de especificidade de suas formas e condições de conflito,
das questões em jogo e das forças nelas empenhadas e em termos das
possibilidades de transformação das relações políticas e econômicas
na formação social em questão. As condições políticas de novas trans­
formações socialistas bem podem ser mais propícias em certos casos'
do que em outros - e em alguns deles são extremamente inoportunas,
no mom ento. Mas é essencial que os marxistas não sejam enganados
quanto à significação da forma legal da propriedade estatal ou da au­
sência de uma classe de agentes humanos individuais de posse. N a me­
lhor das hipóteses, essas características representam apenas o início da
socialização da produção, e não constituem garantia clara de novos
passos na direção do socialismo.
Bibliografia

A lth u sser, L., For M a rx (L o n d res, A llen L ane, 1969). (E d. b rasileira, A Favor de M a r x ,
R io , Z a h a r, 2? ed ., 1979.)
A lth u sser, L., L enin a n d Philosophy (L o n d res, N ew Left B ooks, 1971).
A lth u sser, L ., E ssays in Self-C riticism (L o n d res, N ew L eft B ooks, 1976).
A lth u sser, L., e B alibar, E., R eading Capital (L o n d res, N ew L eft B ooks, 1970). (E d. b ra ­
sileira, L e r " O C apital", R io, Z a h a r, 1979.)
A n d erso n , P., Lineages o f the A bsolutist S ta te (L o n d res, N ew Left B ooks, 1974).
B ettelheim , C ., E conom ic C alculation and Form s o f P roperly (L o n d res, R o u tled g e & K e-
gan P aul, 1976).
B ettelheim , C ., Class Struggles in the U S S R : 1917-1923 (B righton, H arv este r Press,
1977).
B õhm -B aw erk, E. v o n , K arl M a rx a n d the Close o f his S y ste m , p u b licad o ju n ta m e n te
com a o b ra de H ilferding, R ., B ohm -B aw erk’s C riticism o f M a rx (org. P. M . Swee-
zy) (L o n d res, M erlin Press, 1974).
Braverm an, H., Labour and M onopoly Capital (L o n d res e N ova Y ork, M o nthly Review
Press, 1974). (E d. b rasileira, Trabalho e C apital M onopolista, R io, Z a h a r, 1978.)
C a rch ed i, G ., “ O n th e E conom ic Identification o f th e N ew M iddle C lass” , E conom y
a n d S o ciety, 4, 1, 1975.
C h a y an o v , A .V ., The T heory o f Peasant E conom y (H o m ew o o d , Illinois, Irw in, 1966).
E ngels, F ., T he O rigin o f the Fam ily, Private P roperty, an d the S ta te e “ T he P a rt played
by L a b o u r in th e T ra n sitio n from A pe to M a n ” , a m b o s em M arx e Engels, Selec­
te d W orks (ver ad ian te).
Engels, F ., A nti-D ühring (M o sco u , P rogress P ublishers, 1969).
H egel, G .W .F ., The Science o f Logic (L o n d res, A llen & U nw in, 1969).
H ilferd in g , R ., L e C apital fin a n cier (P aris, M in o ir, 1970), tra d u ç ã o de D az Finanz Kapi-
ta l (V iena, 1910). ,
H ilferding, R ., ver B õhm -B aw erk.
H indess, B., The Use o f O fficial S ta tistics in Sociology (L o n d res, M acm illan, 1973).
H in d ess, B., Philosophy and M ethodology in the Social Sciences (B righton, H arv ester
Press, 1977a).
H in d ess, B., “ H u m an ism an d T eleology in Sociological T h e o ry ” , em H indess, B. (org.;,
Sociological Theories o f the E conom y (L o n d res, M acm illan, 1977b).
H in d ess, B„ e H irst, P .Q ., P re-C apitalist M odes o f P roduction (L ondres, R o u tled g e &
K eg an Paul, 1975). (E d. b rasileira, M odos de Produção P ré-Capitalistas, R io,
Z a h a r, 1976.)
H indess, B., e H irst. P.Q ., M ode o f Production and Social Form ation (L o n d res, M a c­
m illan , 1977). (E d . b rasileira, M odo de Produção e Formação Social, R io , Z a h a r,
1978.)
H irst, P .Q ., “ A lth usser a n d th e T h eo ry o f Ideology” , E conom y and Society, 5, 4, 1976.
BIBLIOGRAFIA 301

H irst, P.Q ., “ E conom ic C lasses and Politics” , tra b a lh o ap rese n ta d o em M a rxism Today
e à conferência d o P artid o C o m u n ista, g ru p o de S ociologia, so b re “ C lass an d
C lass S tru c tu re ” , n ov em b ro de 1976.
L ecourt, D ., “ Lenin, Hegel, M a rx ” , Theoretical Practice, 7 /8 , 1973.
Lenin, V .I., The D evelopm ent o f C apitalism in R ussia, C ollected W orks, vol. 3 (1957). T o-
dos os volum es de C ollected W orks são p u b licad o s p o r L aw rence & W ish art, L o n ­
dres.
L enin, V .I., W hat is to be Done?, C ollected W orks, vol. 5 (1963).
L enin, V .I., The A grarian P rogram m e o f Social D em ocracy in the First R ussian R evolu­
tion, C ollected W o rks, vol. 13 (1962).
Lenin, V .I., “ T h e D iscussion o f S elf-D eterm ination S u m m ed -U p ” , C ollected W orks,
vol. 22 (1964).
Lenin, V .I., “ A G re a t B eginning” , C ollected W orks, vol. 29 (1965).
L ukács, G ., H isto ry and Class Consciousness (L o n d res, M erlin P ress, 1971).
M arx, K ., Capital, 3 vols., C hicago, K err, 1909-1915.
M arx, K ., C apital, vol. 1 (H a rm o n d sw o rth , P enguin, 1976).
M arx, K.., Capital, vol. 1 (L o n d res, L aw rence & W ishart, 1967, p a ra p artes 1 & 2; 1974
p a ra p a rte 3); C apital, vol. 2 (M o sco u , F L P H , 1961); C apital, vol. 3 (M o sco u ,
F L P H , 1962, p ara p a rte I & 2) (P ro g ress P ublishers, 1966, p a ra p a rte 3). *
M arx, K „ Theories o f Surplus Value, 3 vol. L ondres, L aw rence & W ish art, 1969, 1972).
M arx , K ., Econom ic and Philosophical M anuscripts o f 1844, em M arx e Engels, Selected
W orks, vol. 3 (L o n d res, L aw rence & W ishart, 1975).
M arx, K.., A Contribution to the Critique o f Political E conom y (L o n d res, L aw rence &
W ish art, 1971).
M arx, K „ Grundrisse (H a rm o n d sw o rth , P enguin, 1973).
M arx , K „ The Eighteenth B rum aire o f Louis Bonaparte, em M arx e Engels, Selected
W orks.
M arx, K ., Critique o f the Gotha Program m e em M arx e Engels, Selected W orks.
M arx, K „ The C om m unist M anifesto, em M arx e Engels, Selected W orks.
M arx, K . e Engels, F., S elected W orks (1 vol.) (L o n d res, L aw rence & W ishart, 1968).
M arx, K . e Engels, F ;, S elected Correspondence (M o sco u , F L P H , s.d.).
M edvedev, R ., L e t H isto ry Judge (L o n d res, M acm illan, 1972).
M eillassoux, C ., A nthropologie économique des Gouro de C ôte d ’ivoire, P a ris/H a ia ,
M o u to n , 1964).
M o rg an , L .H . A ncient S o c ie ty (1877) (N o v a Y o rk , M eridian B ooks, 1967).
P o u lan tzas, N ., Political Power and Social Classes (L o n d res, New Left B ooks, 1973).
P o u lan tzas, N ., Classes in C ontem porary C apitalism (L o n d res, N ew Left B ooks, 1976).
(E d. brasileira, A s Classes Sociais no Capitalism o de H oje, R io, Z a h a r, 1978.)
R ancière, J., “ T h e C o n cep t o f ‘C ritiq u e’ an d the ‘C ritiq u e o f Political E conom y’ ” ,
Theoretical Practice, 1 ,2 ,6 , 1971 / ’72, e E conom y and S o ciety, 6 , 3, 1976 (p u b licad o
inicialm ente em A lth u sser, L. et al., L ire le C apital, vol. 1 (P aris, M a sp ero , 1965) ).
R êvai, J., “ A review o f H istory an d Class Consciousness” , Theoretical P ractice, 1, 1971
(p u b lic ad o inicialm ente em Archiv f u r die Geschichte des Soziatism us und d er A rbei-
terbewegung, xi, 1925).
R ey, P .-P., Colonialism e, neo-colonialisme et transition au capitalism e (P aris, M asp ero ,
1971).
Rey, P .-P., “ T h e L ineage M o d e o f P ro d u c tio n ” . C ritique o f A nthropology, 3, 1975.

* A ed ição soviética de O C apital foi usada, exceto q u a n d o houver in d icação em c o n ­


trá rio , n o texto. C o m o diferentes im pressões variam q u a n to à p ag in ação , foi in d icad a a
d a ta d a im pressão, p a ra p erm itir o c o n fro n to de referências.
302 B IBLIO G RA FIA

Ricardo, D., Principles o f Political Economy and Taxation, W orks (org. Sraffa), vol. 1
(C am b rid g e U niversity Press, 1951).
R u b in , 1.1., E ssays on M a r x ’s Theory o f Value (D e tro it, Black & R e d , 1972).
S m ith, A ., The W ealth o f N ations, W orks, vol. 2 (A alen: O tto Z eller, 1963).
S raffa, P ., Production o f C om m odities b y M eans o f C om m odities (C am b rid g e U niversity
Press, 1961). (E d. b rasileira Produção de M ercad orias'por M eio de M ercadorias,
R io , Z a h a r, 1977.)
S talin, J.V ., D ialectical and H istorical M aterialism (N o v a Y o rk , In te rn a tio n a l
P ublishers, 1972).
Stalin, J.V ., Economic Problems o f the U SSR , em Selected W orks (org. Davis) (Califor­
nia, C a rd in a l P ublishers, 1971).
Stalin, J.V ., Economic Problems o f Socialism iii the U SSR , em Selected W orks (org. D a­
vis) (C alifo rn ia, C a rd in a l P ublishers, 1971).
T erray , E., M a rxism and ‘P rim itive’ Societies (L o n d res & N o v a Y o rk , M o n th ly Review
Press, 1972).
W eber, M ., The P rotestant E thic a n d the S pirit o f C apitalism (L o n d res, A llen & U nw in,
1965).
W eber, M ., The Theory o f So cia l a n d E conom ic O rganization (N o v a Y o rk , T h e F ree
Press, 1964).

Você também pode gostar