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Parte 1

INTELIGÊNCIA

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AVALIAÇÃO DA INTELIGÊNCIA:
UMA INTRODUÇÃO
Carmen Flores-Mendoza
Renan Saraiva

U
m processo seletivo apresentou aos 27% teriam dificuldade de apagar um incêndio
candidatos a seguinte questão: “Fabio, seguindo as instruções de equipamentos con-
David e Pedro estavam alegremente trafogo e 35% teriam dificuldade de interpretar
conversando sentados ao redor de uma mesa os resultados de um exame de sangue a partir
redonda. David não estava à direita de Pedro. dos valores de referência fornecidos pelo labo-
Quem estava à direita de Fabio? Alternativas: a) ratório. Dificuldades essas não explicadas pelo
David, b) Pedro e c) Não dá para saber”. Trata- nível de instrução.
-se de uma pergunta simples, mas 30% dos can- A relação entre o desempenho em provas
didatos erraram a resposta. Perguntas simila- de raciocínio e o desempenho cotidiano foi vis-
res a essa são rotineiramente apresentadas em lumbrada na China há muito tempo, cerca de
processos seletivos de recursos humanos rea- 200 ou 150 anos a.C., no final da dinastia Qin
lizados em contextos organizacionais, clínicos e início da dinastia Han. Segundo uma ­busca
ou educativos. Entretanto, qual seria a utilida- pontual de informação conduzida por Bow-
de desse tipo de pergunta? man (1989) relativa ao sistema de avaliação chi-
Hoje em dia sabemos com alto grau de pre- nês das diferenças individuais, o imperador
cisão que os processos mentais que subjazem ao chinês era quem avaliava os candidatos ao ser-
êxito da resposta a perguntas que requerem ra- viço público por meio de provas escritas.
ciocínio são os mesmos que subjazem à solução Após um período de uso e desuso de di-
de problemas cotidianos. Veja-se, por exemplo, versas formas de provas, seria na dinastia Ming
o resultado do estudo de letramento científico (1368-1644 d.C.) que o processo de recrutamen-
realizado no País pelos institutos Abramundo e to e seleção se tornaria bastante especializa­do e
Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa institucionalizado em todo o território chinês.
(Gomes, 2015). No nível 4 de letramento cientí- Esse sistema tentava evitar privilégios aristo-
fico (em geral pessoas com ensino superior que cráticos e promover a meritocracia ao conferir
poderiam avaliar propostas que exigem o do- aos candidatos exitosos certos “títulos” análo-
mínio de conceitos e elaborar argumentos so- gos aos títulos acadêmicos de hoje em dia. Exi-
bre a confiabilidade ou a veracidade de hipóte- gia-se principalmente inteligência verbal, isto
ses formuladas), encontrou-se que 8% tiveram é, capacidade de construir argumentos abstra-
dificuldade de interpretar uma conta de luz, tos e elegantes. Em geral, nesses exames, apenas

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2% dos candidatos eram aprovados. Aos bem- do Protestantismo, que transmitiu novos valo-
-sucedidos nas exigentes provas (p. ex., memo- res de trabalho e progresso individual. Assim,
rizar 400 mil caracteres de um texto de Con- a necessidade de ler a bíblia (cada vez mais dis-
fúcio), era conferida uma melhor condição de ponível em pequenas comunidades) levou a um
vida. Não era de se estranhar que os processos maior letramento da sociedade europeia e, com
seletivos para o serviço público chinês fossem isso, favoreceu a atividade intelectual e a obser-
tão concorridos. Dessa forma, a seleção permi- vação das diferenças individuais.
tia ao imperador contar com um grupo de fun- Depois da Idade Média (período com-
cionários talentosos para o exercício público preendido entre 476 e 1453 d.C.), a Idade Mo-
em todas as suas províncias, cidades ou esta- derna (de 1453 até 1789) viu florescerem as
dos. A prática desse sistema de seleção se man- discussões, de ordem filosófica, sobre as doen-
teve até 1905, época em que foi abolido. ças mentais, assim como as primeiras tentati-
Atualmente, o sistema de seleção retornou vas científicas, de ordem médica, de entendê-
com força sob o nome de gaokao para os estu- -las (Millon, 2004). Seria, entretanto, na Idade
dantes chineses que estão finalizando o ensi- Contemporânea, especificamente durante a
no médio. E, como na época do império chinês, Era Vitoriana na Inglaterra (período que vai de
famílias e comunidades inteiras seguem aten- 1838 até o início do século passado), que surgi-
tamente o resultado do rigoroso gaokao, pois o ria um acadêmico de múltiplos talentos, o in-
candidato exitoso poderá ingressar em alguma glês Francis Galton, que estabeleceu o estudo
das universidades chinesas, melhorando signi- científico das diferenças individuais2 .
ficativamente seu status socioeconômico. Galton, que foi, entre outros ofícios, mate-
Na cultura ocidental, diferentemente da mático, geógrafo, meteorologista, inventor, es-
chinesa, a preocupação era identificar apenas tatístico e psicólogo diferencialista, percebeu
as pessoas com deficiência intelectual que de- que o projeto de “física social”, que entendia o
veriam ser protegidas pelos reinados ­europeus. “homem médio” a partir da distribuição nor-
Em um contexto em que somente o clero e a mal dos valores médios de características men-
aristocracia podiam ter acesso a uma melhor suráveis, proposto pelo francês Adolphe Que-
qualidade de vida, as diferenças individuais telet, poderia, de fato, aplicar-se às habilidades
nos recursos cognitivos da população ­pouco humanas. Galton publicou seu ­famoso livro
importavam. O interesse pelo mérito indivi- Hereditary Genius, em 1869, no qual afirmou:
dual, e com ele o desenvolvimento da curio- “mostrarei neste livro que as habilidades natu-
sidade científica em avaliar a inteligência, so- rais do homem são consequência da herda­bi­­
mente viria após uma série de fatos históricos li­dade, sob exatamente as mesmas ­limitações
que permitiram uma cultura de apreciação da que acometem o mundo orgânico no que diz
individualidade. De acordo com o professor res­peito à sua forma e características físicas”
Douglas Detterman, editor da revista científica (Galton, 1869; p. 1). Galton compreen­dia a habi­
Intelligence1, esses fatos históricos europeus se li­­dade mental como uma qualidade e uma dispo­
referem ao invento da impressora de tipo mó- sição do intelecto que direcionavam uma pessoa
vel, em 1449, pelo alemão Johannes Gutenberg à sua reputação. E, por reputação, ele queria di-
(é importante notar que, na China, a máquina zer “a opinião de contemporâneos revisada pela
de impressão já havia sido idealizada por vol- posteridade por vários biógrafos. (...) não se tra-
ta de 1040), que permitiu a rápida impressão de ta de alta posi­ção social ou oficial (...) mas an-
livros e, como consequência, uma ágil difusão tes a repu­ta­ç ão de um líder de opinião, de
da informação. Outro fator seria o surgimento um inovador, de um homem a quem o mun-
do reconhece que está em débito” (p. 37).

1 Livro em preparação encaminhado pelo professor Det-

terman à primeira autora do presente capítulo no final de


dezembro de 2015. 2 Para mais informações, acesse: www.galton.org.

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Para Galton, a reputação seria a manifesta- com características desejáveis. Essa proposta,
ção de uma capacidade inata e de uma grande conhecida como “eugenia”, foi usada em algu-
quantidade de trabalho árduo (uma caracterís- mas sociedades como justificativa para aber-
tica muito valorizada na Era Vitoriana). rantes experimentos sociais, o que provocou,
Galton analisou as biografias de homens por longas décadas, uma rejeição da psicologia
da ciência, da literatura e da arte, e a observa- à produção acadêmica de Francis Galton. A lei-
ção de certa recorrência familiar no alcance da tura em sequência temporal dos escritos pro-
reputação levou-o a conjecturar a ocorrência duzidos por ele permite observar que a ideia de
da transmissão genética das habilidades cogni- aperfeiçoamento humano veio depois de suas
tivas de pais para filhos, embora reconheces- viagens à África, continente em que observou
se desconhecer os mecanismos pelos quais essa (e registrou) com tristeza e espanto as precárias
transmissão ocorria. Galton realizou diver- e desumanas condições de vida dos habitantes.
sos estudos de observação em gêmeos e famí- Uma visão que deve ter chocado extremamente
lias com diversos parentescos, registrando si- sua cultura vitoriana.
milaridade comportamental e ancestralidade. A leitura justa da produção de Francis Gal-
Em todos os seus estudos, aplicou e/ou desen- ton permite visualizar que o acadêmico inglês,
volveu princípios estatísticos. Assim, sua firme de fato, abriu à psicologia a possibilidade de en-
convicção da herdabilidade da alta capacidade tender que as diferenças individuais cognitivas
cognitiva ficou evidenciada quando, por exem- existiam, que a herdabilidade teria um papel
plo, em relação à eminência artística e literária, considerável nessas diferenças, que elas pode-
ele afirmou: riam ser mensuráveis e que obedeceriam a um
certo padrão (hoje conhecido como “distribui-
1- Os homens superdotados mesmo de ção normal”). Em essência, nenhuma dessas
classe E facilmente superam os obstá- propostas foi cientificamente negada até o mo-
culos causados pela inferioridade do mento.
ranking social; 2- países onde há menos No entanto, seria outro inglês, o psicólo-
obstáculos sociais do que na Inglaterra go Charles Spearman (1863-1945), influencia-
[daquela época] produzem uma maior do por Galton, que inauguraria o estudo cientí-
proporção de pessoas de boa cultura, fico das diferenças individuais em inteligência
mas não necessariamente aquilo que eu humana. O princípio de correlação já estava
chamo de homens eminentes; 3- homens desenvolvido por Karl Pearson, e Spearman o
que estão largamente apoiados em van- usou em seus estudos sobre habilidades men-
tagens sociais são incapazes de alcançar tais. Spearman desenvolveu, então, o que co-
a eminência, a menos que eles estejam nhecemos atualmente como “análise fatorial”,
dotados de altas habilidades. (Galton, ou redução de dados a fatores dado o grau de
1869, p. 43). similaridade entre as variáveis. Segundo sua
estratégia de análise, a correlação entre dois ou
Galton também foi o primeiro a definir os mais fatores se deve a um componente comum
conceitos de correlação (posteriormente desen- (ou fator g), já o resíduo (a parte que não se cor-
volvido pelo matemático e psicólogo Karl Pear­ relaciona) corresponderia a fatores específicos
son), assim como percentil e regressão, con- (ou fatores s) da tarefa (Flores-Mendoza & Nas-
ceitos esses que o definiram como o pai da cimento, 2001). Essa posição bifatorial seria re-
psicometria. Contudo, a ideia de que as habi- plicada ou contestada por inúmeros estudos
lidades mentais eram predominantemente “na- que se seguiram ao de Spearman e que permiti-
turais” (ou herdáveis) permitiu a ele postular ram refinar as técnicas psicométricas.
uma outra ideia, que historicamente se tornou Entre as contestações históricas ao fator g
associada a práticas antiéticas: a possibilidade de Spearman se encontra a de Edward Thorn-
de aperfeiçoar a natureza humana (excluindo dike, fatorialista do início do século XX, se-
doenças) por meio do acasalamento de pessoas gundo o qual g seria um artifício estatístico

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sem relevância psicológica, pois haveria dife- ao todo), incluindo a inteligência fluida e a cris-
rentes tipos de inteligência, como a social e a talizada, a memória e a aprendizagem, a per-
mecânica, a serem considerados. Naquela épo- cepção e a velocidade. No estrato I, estariam ao
ca, também o psicólogo e engenheiro norte- redor de 60 fatores específicos.
-americano Louis Leon Thurstone criticou o Na década de 1990, surgiu a ideia de inte-
modelo de inteligência como fator único e pro- grar a proposta de Carroll com a de Raymond
pôs a independência das habilidades por meio Cattell e John Horn, de forma a propor uma ta-
do seu teste Primary Mental Abilities, teste ins- xonomia cognitiva útil para pesquisa, classifi-
pirador para a criação de outras famosas ba- cação e diagnóstico clínico. Seriam os psicó-
terias, inclusive no Brasil, como a Differential logos educacionais norte-americanos Kevin
Aptitude Tests, mais conhecida como DAT. De McGrew e Dawn P. Flanagan os que desenvol-
forma semelhante a Thorndike e Thurstone, veriam essa ideia, apresentando o modelo de
vários outros fatorialistas propuseram modelos Cattell, Horn e Carroll (CHC). No início, a pro-
não hierárquicos em que a inteligência era vista posta previa 12 habilidades amplas e 70 habili-
como um sistema de dimensões diferenciadas dades específicas (Flanagan & McGrew, 1997).
e sem generalidade. Talvez o mais famoso fos- Posteriormente, o modelo se estendeu a 16 ha-
se o de Raymond Cattell e John Horn, por des- bilidades amplas e 80 habilidades específicas
tacar o que chamaram de “inteligência fluida” (McGrew, 2009; Schneider & McGrew, 2012). O
(habilidade de raciocinar e resolver problemas modelo CHC é um modelo hierárquico, e o fa-
independentemente de conhecimento anterior) tor g é considerado o fator representativo da in-
e “inteligência cristalizada” (capacidade de uti- teligência geral.
lizar o conhecimento e a experiência passados), Apesar de os autores do modelo CHC ad-
proposta bastante usada até os dias atuais (Flo- vogarem por um consenso acadêmico so-
res-Mendoza & Nascimento, 2001). bre sua validade, pertinência e utilidade, ou-
A história da inteligência e sua medição, tro modelo hierárquico surgiu como modelo
tanto em nível internacional (Hunt, 2011; Neis- explicativo da estrutura da inteligência. Tra-
ser, 1998) quanto nacional (Da Silva, 2003; Flo- ta-se do modelo de quatro estratos, chamado
res-Mendoza, 2006; Flores-Mendoza & Nasci- g-VPR (verbal-perceptual-image rotation), pro-
mento, 2001; Pasquali, 1997), é bastante ampla posto por Johnson e Bouchard (2005). No pri-
e rica de informação. Em geral, o que se obser- meiro estrato estariam os fatores primários, no
va desde a proposta pioneira de Spearman é a segundo estrato estariam os fatores amplos, no
discussão entre modelos hierárquicos e mode- terceiro estrato estariam os fatores verbal, per-
los não hierárquicos. Uma discussão que, con- ceptual e de rotação, e, no quarto e último es-
forme veremos a seguir, caminha para um rela- trato, estaria o fator g.
tivo consenso. Uma comparação entre os modelos hie-
A obra de 810 páginas intitulada Human rárquicos (CHC e g-VPR) e um não hierár-
Cognitive Abilities: A survey of factor-analytic quico (Cattell-Horn) foi conduzida por Major,
studies, escrita pelo psicólogo de linguagem e Johnson e Deary (2012). Para tanto, os auto-
psicometrista norte-americano John Carroll res analisaram os dados do projeto TALENT,
(1993), constitui o início do fim da discórdia um estudo norte-americano realizado em 1960
sobre a estrutura fatorial da inteligência. Sua em uma amostra representativa de estudantes
análise psicométrica de 460 matrizes de dados dos Estados Unidos (N = 376.213). Nesse pro-
produzidos nas décadas de 1950 e 1960 gerou jeto, delineado pelo próprio Flanagan (coautor
um modelo hierárquico chamado de teoria dos do modelo CHC), foram administrados 59 tes-
três estratos. O estrato III representaria o ní- tes (37 que avaliavam as habilidades amplas e
vel mais elevado da hierarquia das habilidades 22 que avaliavam as habilidades específicas).
cognitivas e, nele, estaria a habilidade intelec- As análises confirmatórias mostraram o mo-
tual geral (ou o equivalente ao famoso g). No delo g-VPR como o de maior ajuste aos dados
estrato II, estariam as habilidades amplas (oito observados.

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AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DA INTELIGÊNCIA E DA PERSONALIDADE 21
Portanto, o modelo hierárquico (Fig. 1.1) responderia de forma unitária. Esse tipo de res-
se apresenta como a melhor representação da posta cerebral explicaria as correlações positi-
inteligência, embora o fator g seja ainda me- vas entre testes cognitivos. Os outros pesqui-
recedor de análises que desafiam a sua com- sadores apontaram para as fracas correlações
preensão como ente unitário. Por exemplo, em entre funções executivas e inteligência quando
recente publicação, Kovacs e Conway (2016) se controla a memória de curto prazo. Portanto,
propuseram um modelo que integra teoria de a sobreposição de processos executivos, no fim
resposta ao item, estudos da neurociência e psi- das contas, teria pouca i­ mportância prática, na
cologia cognitiva. Segundo os autores, o fator medida em que, havendo fraca asso­ciação com
g representaria uma sobreposição de processos inteligência, sua validade preditiva seria escas-
gerais (p. ex., processos executivos operaciona- sa. No entanto, adiante da observação de Ko-
lizados em tarefas de working memory) que en- vacs e Conway (2016) de que os processos exe-
cobririam processos específicos. Essa sobrepo- cutivos se relacionam bem com a atividade do
sição seria capturada por meios psicométricos lobo frontal, enquanto não se observam evidên-
(fator g). Nesse sentido, o significado psicoló- cias neuropsicológicas do fator g, Colom e co-
gico de g não perpassaria pela unicidade ou ge- laboradores (2016) responderam, à semelhança
neralidade da capacidade, mas, sim, pela sobre- de Gottfredson (2016), que é possível não haver
posição de diversos processos gerais. um lugar especial para a inteligência geral no
O modelo recebeu comentários de renoma- cérebro porque este seria o próprio lugar.
dos pesquisadores de inteligência que levaram
suas críticas pelo terreno de suas especialida-
des. Entretanto, no nosso parecer, as melho- DEFINIÇÃO DE INTELIGÊNCIA
res críticas foram a de Gottfredson (2016) e a
de Colom, Chuderski e Santarnecchi (2016). Considerando os diversos modelos de inteli-
A primeira sustentou que g é uma proprieda- gência, não é surpreendente que haja dificul-
de do cérebro e não uma capacidade em si mes- dade em conceituá-la. E, como afirma o pro-
ma. Assim, diante de um desafio cognitivo (p. fessor Douglas Detterman em sua obra a ser
ex., calcular a gorjeta do garçom), o cérebro publicada em breve, há de se ter consciência de

Figura 1.1 / Modelo hierárquico da inteligência. No primeiro estrato (quadrados) estariam habilidades
muito específicas (p. ex., listar palavras que iniciam com a letra “t” e discriminar diferenças de figuras).
No segundo estrato (círculos menores) estariam habilidades amplas (p. ex., raciocínio verbal e raciocínio
figurativo). No terceiro estrato estaria o fator g.

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que qualquer definição que se tenha sobre inte- as­sinada por 52 renomados pesquisadores e pu-
ligência poderá significar diversas coisas para blicada na revista Intelligence, em 1997, sobre o
diferentes pessoas. que seria a inteligência seja a mais aceita e uti-
Em termos acadêmicos, três grandes le- lizada em numerosos artigos e livros. Segundo
vantamentos sobre a definição de inteligência essa declaração, a inteligência:
constituem referências clássicas em tratados
sobre diferenças individuais em inteligência. (...) é uma capacidade mental muito
São eles o de 1921, publicado no The Journal geral que, entre outras coisas, implica
of Educational Psychology; um segundo, pu- a habilidade para raciocinar, planejar,
blicado na forma de livro por Sternberg e Det- resolver problemas, pensar de maneira
terman (1986); e um terceiro, conduzido por abstrata e aprender da experiência. Não
Snyderman e Rothman (1987). Em todos os de- se pode considerar um mero conheci-
bates, um pool de especialistas foi convidado a mento enciclopédico, uma habilidade
tratar do assunto. Observou-se que a definição acadêmica particular ou uma destreza
de inteligência variou conforme a ­especialidade para resolver um teste. Entretanto, reflete
do pesquisador, embora no levantamento de uma capacidade mais ampla e profunda
Sternberg e Detterman houvesse maior conver- para compreender o ambiente – perceber,
gência no que se refere a processos cognitivos, e dar sentido às coisas ou imaginar o que
no levantamento de Snyderman e Rothman te- deve ser feito (Gottfredson, 1997, p. 13).
nha se observado maior reconhecimento de ra-
ciocínio abstrato, resolução de problemas e ca- A inteligência vista dessa maneira é com-
pacidade de aquisição de conhecimento como preendida como uma dimensão maior do que
elementos essenciais da inteligência. aquela observada na resolução de um deter-
Recentemente, Rindermann, Becker e minado teste psicológico. Trata-se de uma
Coyle (2016) publicaram um levantamento de qualida­de psicológica que permite ao ser hu-
opinião que replicou o design do estudo de Sny- mano sua sobrevivência, sua adaptação e a su-
derman e Rothman (1987). Com menor sucesso peração dos desafios do seu meio ambiente.
de retorno dos especialistas contatados (18%), Uma qualidade que opera na discriminação da
o estudo de Rindermann, Flores-Mendoza e informação relevante da irrelevante, na aplica-
Woodley, conduzido em 2012, apresentou al- ção e generalização de ações exitosas e na iden-
guns resultados interessantes. Entre eles, o de tificação de oportunidades relativas ao bem-
que existem tênues diferenças de conceituação -estar psicossocial. Nesse sentido, o grau de
entre os termos “competência cognitiva”, “ha- qualidade de vida construído (não simples-
bilidade cognitiva” e “inteligência”. Por exem- mente adquirido) por uma pessoa adulta seria a
plo, 54% da amostra de especialistas que disse verdadeira prova de sua capacidade cognitiva,
haver diferenças conceituais entre esses ter- desde que essa construção tenha ocorrido em
mos apontou os mesmos componentes da inte- uma sociedade meritocrática, isto é, em uma
ligência (p. ex., raciocínio, pensamento abstra- sociedade que oferece igualdade de oportuni-
to, resolução de problemas, aplicação de lógica, dades a seus cidadãos.
compreensão e capacidade de adquirir conhe- Entretanto, conforme veremos a seguir,
cimento) como sendo também componentes da embora seja correto afirmar que os testes de in-
habilidade cognitiva. Memória e acuidade sen- teligência não capturam a inteligência em sua
sorial foram os únicos componentes apontados plenitude, eles, sim, capturam uma parte es-
mais como características de habilidade cogni- sencial dela e oferecem aos psicólogos informa-
tiva do que como inteligência. ção valiosa sobre o potencial (e as limitações)
Diante desse cenário de diversidade e da capacidade de resolução de problemas das
convergência conceitual, talvez a declaração pessoas que atendem.

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AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DA INTELIGÊNCIA E DA PERSONALIDADE 23
O SIGNIFICADO PSICOLÓGICO das extremidades? A socióloga Linda Gottfred­
DA DISTRIBUIÇÃO NORMAL DA son oferece diversos exemplos do que significa
INTELIGÊNCIA uma variação de escores de inteligência (ou fa-
tor g, como ela prefere nomear) na prática coti-
A comprovação de que os escores de testes de diana. Segundo Gottfredson (2006), se consi-
inteligência apresentam uma distribuição con- derarmos uma escala de QI com média igual
tínua em forma de sino, ou distribuição gaus- a 100, pessoas com QI entre 80 e 90 necessita-
siana, deve ser de especial atenção profissional riam de um acompanhamento tutorial no ensi-
pelas consequências observadas nos próprios no ou de um treinamento baseado mais na ex-
indivíduos, nas famílias e na sociedade em ge- periência do que em livros, enquanto pessoas
ral. Observe a Figura 1.2. A primeira foi desen- com QI entre 90 e 110 aprenderiam rotinas e
volvida com base nos dados de 2.010 crianças esquemas rapidamente e seu treino poderia es-
escolares de Belo Horizonte com idades entre 9 tar baseado em material escrito. Já pessoas com
e 11 anos, às quais se aplicou o teste das Matri- QI entre 110 e 130 mostrariam aprendizagem
zes Progressivas de Raven – Escala Geral (co- independente, infeririam informações abstra-
nhecido também pela sigla em inglês SPM), no tas rapidamente, levantariam hipóteses e con-
ano de 2009. A segunda foi desenvolvida com clusões baseadas em raciocínio acurado, assim
base nos dados de 530 estudantes universitá- como necessitariam pouco tempo de treina-
rios de três estados brasileiros (MG, BA e SP), mento (ou talvez nenhum) em situações novas.
aos quais se aplicou o teste das Matrizes Pro- Vejamos com dados nacionais se tais pres-
gressivas de Raven – Escala Avançada (conhe- supostos de Gottfredson podem ser observados.
cido também pela sigla em inglês APM), entre Entre os anos de 2007 e 2008, aplicamos uma
2009 e 2011. Em ambas as figuras se observa versão curta da prova PISA (Programme for In-
um grupo de escores baixos (extremidade es- ternational Student Assessment) – uma prova de
querda) e de escores altos (extremidade direita) desempenho escolar administrada a cada três
da curva, embora na amostra de crianças ob- anos a estudantes de países-membros e convi-
serve-se uma tendência de concentração dos dados da Organização para Cooperação e De-
escores na metade direita da curva, um fenô- senvolvimento Econômico (OCDE) – e o SPM a
meno comentado a seguir. uma amostra de 530 estudantes brasileiros com
Que significado psicológico comporta- idade entre 14 e 15 anos de oito escolas públi-
mental teria uma distribuição dos escores em cas e três escolas particulares da cidade de Belo
testes de inteligência, especialmente aqueles Horizonte. A prova PISA apresenta itens que

300 30

250 25

200 20

150 15

100 10

50 5

0 0
0 10 20 30 40 50 60 0 5 10 15 20 25 30 35 40

a b

/
Figura 1.2 (a) Distribuição dos escores no SPM de crianças entre 9 e 11 anos; (b) distribuição dos escores
no APM de universitários.

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solicitam, além de conhecimento, o uso de ra- teste de inteligência, enquanto apenas 15% dos
ciocínio na resolução de problemas cotidianos. estudantes de baixo desempenho no teste de
Na Figura 1.3, há dois itens dessa prova. inteligência resolveram o item. Cabe destacar
O primeiro item requer apenas discriminação que o item difícil não exigia necessariamente
perceptual, enquanto o segundo requer racio- conhecimento específico, como cálculo de pro-
cínio abstrato. Logo, separamos a amostra en- babilidade. O item podia ser solucionado ape-
tre aqueles de baixo escore (abaixo de 1 desvio nas somando as combinações de cada elemento
padrão em relação à média 0) e aqueles de alto (sabor da pizza). Se considerarmos uma escala
escore (acima de 1 desvio padrão em relação à de conversão métrica de QI, abaixo de um des-
média 0) no teste de inteligência SPM. Na Fi- vio padrão em relação à média corresponderia
gura 1.3, está a proporção de acertos de ambos a um QI igual ou inferior a 85 e acima de um
os grupos (abaixo -1 DP e acima +1 DP) para desvio padrão em relação à média correspon-
cada item (fácil e difícil). O item fácil, que exi- deria a um QI igual ou superior a 115.
gia apenas identificar a coluna que representa- Nosso exemplo se refere ao desempenho de
va o ano de 1998 e o valor da porcentagem de adolescentes entre 14 e 15 anos. Consideran­do-
exportação, foi resolvido por quase todos os es- -se os estudos sobre desenvolvimento e treina-
tudantes (96%) do grupo com escore acima da mento cognitivo (Foroughi, Monfort, Paczyns­
média no teste de inteligência SPM, enquanto ki, McKnight, & Greenwood, 2016; Thompson
somente a metade do grupo com escore abai- et al., 2013), é pouco provável que haja mudan-
xo da média resolveu o item. Já o item difícil, ças substanciais nas diferenças desses g­ rupos
que exigia raciocínio, foi resolvido pela maioria na idade adulta. Teoricamente, essas diferen-
(62%) dos estudantes de alto desempenho no ças teriam um sério impacto no ingresso no

Dificuldade SPM SPM


Itens PISA
do item - 1 DP + 1 DP
Total das exportações anuais da Zedelândia
em milhões de zeds, 1996-2000
42,6
45
37,9
40
35
30 27,1
25,4
25
20,4 Baixa 50% 96%
20
15
10
5
0
1996 1997 1998 1999 2000

Qual foi o valor total (em milhões de zeds) das exportações de Zedelândia em 1998?

Em uma pizzaria, você pode pedir uma pizza básica


com duas coberturas: queijo e tomate. Você pode
igualmente compor sua própria pizza com as
seguintes coberturas extras: azeitonas, presunto,
cogumelos e salame. Rose quer pedir uma pizza
com duas coberturas extras diferentes. Alta 15% 62%

A partir de quantas combinações diferentes Rose


pode escolher?

Resposta: ..................................... combinações.

/
Figura 1.3 Porcentagem de estudantes que acertaram dois itens (fácil e difícil) do teste PISA de acordo
com o grupo de desempenho no teste de inteligência SPM.

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AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DA INTELIGÊNCIA E DA PERSONALIDADE 25
mercado de trabalho. Embora outros fato- no raciocínio, na leitura, na escrita ou em ma-
res sejam importantes para o trabalho (p. ex., temática. O NJCLD considera que esses trans-
conscienciosidade e ética), é muito difícil es- tornos, de intensidade e frequência variada, são
perar que as vagas sejam ocupadas por pessoas devidos a uma disfunção do sistema nervoso
com menos recursos cognitivos se houver ou- central e podem ocorrer ao longo da vida. A se-
tras com maiores recursos cognitivos, ainda guir serão apresentados dois estudos sobre es-
mais se o mercado de trabalho estiver inserido sas limitações cognitivas.
em uma sociedade meritocrática, de forte com- O primeiro deles diz respeito à compara-
petição e baseada na informação. ção de 24 jovens com deficiência intelectual
O estudo de Rindermann e colaborado- leve (alfabetizados) com 34 jovens sem defi-
res (2016) mostrou que os especialistas concor- ciência intelectual em tarefas cognitivas bási-
daram (acima de 80%) que pessoas altamente cas, isto é, em tarefas que não exigiam proces-
competentes influenciam o desenvolvimento sos cognitivos superiores como raciocínio
científico e tecnológico de um país mais do que abstrato (Colom & Flores-Mendoza, 2001; Flo-
pessoas de nível cognitivo médio. Curiosamen- res-Mendoza, 1999; Flores-Mendoza, 2003).
te, observou-se uma situação inversa em rela- Uma das 12 tarefas informatizadas adminis-
ção ao desenvolvimento político e democrático tradas demandava observar uma linha de cin-
de um país: a opinião dominante entre os es- co figuras (matrizes 3 x 3, com células brancas
pecialistas foi a de que pessoas com nível mé- e pretas). Depois de um tempo fixo, as cinco fi-
dio de inteligência parecem influenciar mais a guras desapareciam. Logo, uma das figuras, se-
política do país do que pessoas altamente in- lecionada entre as cinco previamente apresen-
teligentes. De qualquer forma, nosso exemplo tadas, aparecia. O participante deveria apontar
mostra que as ponderações de Gottfredson so- em qual posição da sequência a figura estava
bre as implicações práticas da inteligência são, posicionada.
no mínimo, empiricamente sustentáveis. Em uma outra versão da mesma tarefa, o
A seguir, vamos expor considerações mais tempo de observação de cada uma das cinco fi-
detalhadas sobre o processamento cognitivo guras era controlado pelo participante (tem-
em ambas as extremidades da distribuição nor- po variável). Tanto na versão de tempo fixo
mal da inteligência. quanto na de tempo variável, a ordem das fi-
guras de ensaio para ensaio era aleatória, isto é,
cada ensaio apresentava figuras diferentes em
DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E ordem diferente. Não era, portanto, uma tare-
DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM fa de aprendizagem, e, sim, de memória de cur-
to prazo e discriminação perceptual. Na Figura
Segundo o site da respeitada American Asso- 1.4 os resultados são apresentados.
ciation on Intellectual and Developmental Di- Três importantes informações podem ser
sabilities (c2017), a deficiência intelectual se inferidas a partir da Figura 1.4. A primeira delas
caracteriza por sérias limitações no funciona- é de que os participantes com deficiência inte-
mento cognitivo e comportamental antes dos lectual apresentaram maior tempo de reação do
18 anos. A recomendação padrão para a sua que os participantes sem deficiência intelectual
identificação, no que se refere à dificuldade de (Fig. 1.4a). A segunda observação é de que esse
processamento de informação, são os testes de maior tempo de reação se vincula ao grau de exi-
inteligência normatizados. Por outro lado, o gência da tarefa. As últimas posições são lembra-
site do também respeitado National Joint Com- das com maior facilidade porque requerem me-
mittee on Learning Disabilities (NJCLD, 2016) nor tempo de armazenamento na memória do
estipula que as dificuldades de aprendizagem que as primeiras posições e é por isso que as di-
constituem um termo geral para descrever um ferenças no tempo de reação entre os grupos de
grupo heterogêneo de transtornos de aprendi- participantes se reduzem drasticamente. A ter-
zagem como, por exemplo, dificuldades na fala, ceira observação, com impacto em programas

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26 HUTZ, BANDEIRA & TRENTINI (ORGS.)

2000 40
Com DI Tempo fixo
1800 Sem DI 35 Tempo variável
1600
30
1400
1200 25

1000 20
800 15
600
10
400
200 5

0 0
0 2 3 4 5 1 2 3 4 5

a b

/
Figura 1.4 (a) Tempo de reação (em milissegundos) na evocação da figura em cada posição; (b) diferen-
ças nas porcentagens de respostas corretas entre pessoas com deficiência intelectual (DI) e sem deficiência
intelectual na tarefa de recordação com tempo fixo e com tempo variável.

educacionais, é de que as ­diferenças entre parti- equações com duas (p. ex., A = B + 2, B = 3.
cipantes com e sem deficiência inte­lectual dimi- Qual é o valor de A?) ou três letras (p. ex., A =
nuem (mas não se extinguem) quando o tempo 2 + B, B = 3 + C e C = 4. Qual é o valor de A e
de resolução da tarefa é geren­cia­do pelo próprio B?). Na tarefa verbal, eram apresentadas séries
indivíduo. Provavelmente essa inferência seria de palavras (de 4 ou 5 letras) e era solicitado ao
correta somente em casos de tarefas que exigem participante que recordasse as primeiras letras
cognição básica. Em tare­fas de maior complexi- de cada palavra (p. ex., ilha, bola, gelo e casa)
dade, o tempo de exposição à informação teria e as escrevesse em ordem alfabética (B, C, G e
pouco impacto nas diferenças entre os grupos I). Os resultados mostraram diferenças estatis-
com e sem deficiência intelectual. ticamente significativas em todos os parâme-
Um segundo estudo (Flores-Mendoza & tros avaliados pelas tarefas. Os tempos de rea-
Colom, 2000; Flores-Mendoza, Colom, Gar- ção dos grupos de participantes em ambas as
cia, & Castilho, 2001) refere-se ao processa- tarefas são apresentados na Figura 1.5.
mento cognitivo de 30 alunos com problemas Os dois estudos apresentados, o da defi-
de aprendizagem e 30 sem problemas de apren- ciência intelectual e o dos alunos com dificul-
dizagem em matemática e português, com ida- dades de aprendizagem, mostraram que o défi-
des entre 14 e 16 anos e matriculados entre a 7ª cit de processamento de informação em ambas
e a 8ª série de duas escolas públicas. Os grupos as populações perpassa por déficits na veloci-
com e sem dificuldade de aprendizagem apre- dade e na memória de curto prazo. Observe
sentavam uma média de 33 e 45 pontos, respec- que, no estudo da deficiência intelectual, a ta-
tivamente, no teste SPM. A ambos os grupos refa não requeria processos cognitivos de or-
foram administradas duas tarefas informatiza- dem superior (p. ex., raciocínio). No caso do
das, uma numérica e outra verbal, que reque- estudo de alunos com problemas de aprendiza-
riam memorização ativa (ou chamada também gem, a tarefa numérica referia-se a operações
de “memória de trabalho”). A tarefa numéri- matemáticas simples (adição, subtração, mul-
ca solicitava ao participante que mantivesse na tiplicação e divisão) já dominadas pelos parti-
memória o valor de cada letra de cada parte de cipantes que cursavam a 7ª ou a 8ª série. Em
uma equação de forma que, no final, por meio ambos os casos, a memória colapsou, e a velo-
de operações matemáticas simples, resolvesse cidade de processamento ficou comprometida.

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AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DA INTELIGÊNCIA E DA PERSONALIDADE 27

16.000 14.000
14.000 12.000
12.000 10.000
10.000
8.000
8.000 DA DA
6.000
6.000 SDA SDA
4.000 4.000

2.000 2.000
0.000 0.000
4 letras 5 letras 2 Operações 3 Operações

a b

/
Figura 1.5 Tempo de reação (em milissegundos) de alunos com dificuldade de aprendizagem (DA) e
sem dificuldade (SDA) em (a) tarefa verbal e em (b) tarefa numérica.

SUPERDOTAÇÃO à maioria da população. A melhor forma de


identificação, até o presente, é a observação
Aos leitores com curiosidade sobre o assun- do desempenho cognitivo em testes psicomé-
to da superdotação, sugere-se revisar os escri- tricos que demandem cognição, especialmente
tos de Francis Galton no site mencionado an- em testes de maior peso no fator g. No Labora-
teriormente e também examinar um trabalho tório de Avaliação das Diferenças Individuais,
considerado extraordinário pela grandiosidade do Departamento de Psicologia da Universida-
do esforço e originalidade para a época, qual de Federal de Minas Gerais (UFMG), inicia-
seja o estudo do psicólogo norte-americano mos um estudo a esse respeito.
Lewis Terman, o adaptador do teste Binet para A seguir serão apresentados dois casos de
os Estados Unidos. Nesses escritos estão as ba- suspeita de superdotação encaminhados pelos
ses (pouco reformuladas até o momento) do co- pais para avaliação cognitiva em 2016. O pri-
nhecimento sobre o alto rendimento cognitivo. meiro deles refere-se a uma criança de 11 anos,
Os estudos de Terman e sua equipe de colabo- do sexo masculino, que chamaremos de Paulo.
radores referem-se à avaliação e ao acompa- Segundo a mãe, desde o início da vida escolar,
nhamento de 1.528 crianças de alto desempe- Paulo apresentava muita facilidade para enten-
nho cognitivo no teste Binet (e outras medidas der o conteúdo e aprendia de forma rápida. In-
complementares), iniciados no ano de 1921 no gressou na escola com 2 anos e foi encaminha-
estado da Califórnia. Os escritos de Terman do para um ano acima daquele indicado para
constituem cinco volumes da série intitulada a sua idade. Os atuais professores costuma-
Genetic Studies of Genius, publicada pela Uni- vam referir-se a ele como inteligente, criativo
versidade de Stanford. Os resultados desses es- e curioso. Quando tinha 7 anos, a mãe foi aler-
tudos foram sucintamente descritos por Flores- tada por uma professora sobre a possibilidade
-Mendoza e Widaman (2015). Neles se aprecia de superdotação dada a sua facilidade com lei-
o alto retorno social que as pessoas de alto ren- tura e escrita assim como extrema facilidade
dimento intelectual podem oferecer à comuni- em matemática. Frequentemente essa facilida-
dade e infere-se a necessidade de valorizá-las, de levava Paulo a terminar as tarefas escolares
identificá-las precocemente e estimulá-las. bem antes que seus colegas de turma. A título
O que entendemos por superdotação? Em de curiosidade, a mãe contou que certa vez uma
termos práticos, a superdotação pode ser enten- professora de matemática acusou Paulo de ter
dida como o desempenho cognitivo superior colado na prova, pois havia terminado o exame

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28 HUTZ, BANDEIRA & TRENTINI (ORGS.)

em 20 minutos (com 90% de acertos) sendo que curta do teste PISA (de conteúdo matemáti-
o tempo oferecido para essa prova era de 1 hora co) com o intuito de verificar a suposta facili-
e 40 minutos. A mãe esperava que a avaliação a dade matemática alegada pela mãe. É impor-
auxiliasse na compreensão das necessidades es- tante lembrar que a prova PISA é aplicada em
peciais do filho. estudantes de 15 anos. O desempenho foi de
O segundo caso se refere a um pré-adoles- nove acertos em 16. Esse desempenho corres-
cente de exatos 13 anos, do sexo masculino, que ponde ao percentil 75 para adolescentes entre
chamaremos de Vitor. Segundo o pai, quando 14 e 15 anos, conforme estudo conduzido em
Vitor tinha 7 anos, sua professora relatou que a nosso laboratório. Isso significa que, se hou-
criança apresentava facilidade nas tarefas esco- vesse normas para crianças da idade de Pau-
lares e que, portanto, seria melhor que trocasse lo (11 anos), muito provavelmente o percentil
de escola de forma a adequar-se melhor ao po- seria bem superior a 75. Mais ainda, conside-
tencial da criança. Em sua nova escola, Vitor rando-se que, no período de avaliação de Pau-
ganhou prêmios de melhor aluno da sala, mas, lo, o menino se encontrava com forte resfriado
segundo o pai, a escola nunca o informou sobre mostrando apatia na execução de algumas ta-
supostas altas habilidades. O pai disse se im- refas, optou-se por testá-lo de novo nos subtes-
pressionar com a quantidade de gibis que Vitor tes do WISC-IV, que supostamente teriam sido
lia, com a extensão do seu vocabulário e com afetados. A fim de evitar efeito de aprendiza-
a sua fala formal para a idade dele. Embora o gem e testar sua potência cognitiva, emprega-
pai acreditasse que o filho pudesse ser super- ram-se os subtestes da Escala Wechsler de In-
dotado, essa percepção não teria sido unânime teligência para Adultos (WAIS-III). Ao utilizar
entre aqueles mais próximos do pré-adolescen- as normas oferecidas pelo manual da WAIS-III
te, daí a razão em solicitar uma avaliação cog- para a menor idade, no caso de 16 anos, foram
nitiva. observadas pontuações ponderadas acima da
A avaliação que realizamos em ambos os zona média de desempenho nos quatro subtes-
casos envolveu uma entrevista semidirigida tes, corroborando, portanto, a facilidade cog-
com os responsáveis legais das crianças, en- nitiva de Paulo.
trevistas com as próprias crianças, observação
comportamental e administração de testes psi- • Paulo
cológicos. • SPM (utilizando-se normas LADI)3 –
A seguir, são apresentados os resultados de Pontuação bruta 55; Percentil 99; QI 133
ambas as crianças. No caso do teste SPM, Paulo • WISC-IV – Percentil 99; QI 132
obteve uma pontuação bruta (55) maior do que • PISA – Pontuação bruta: 9/16
a de Vitor (48), o que o posicionou no percen- • Subtestes WAIS (utilizando-se as nor-
til 99 e Vitor no percentil 90-95. Se utilizarmos mas para 16 anos)
uma escala métrica de conversão, poderia ser • Códigos: PP 14
observado que o percentil 99 corresponde a um • Cubos: PP 18
QI de 133 e o percentil 90 a 95 representa um • Raciocínio Matricial: PP 14
QI entre 119 e 124. Ao avaliar as crianças com • Procurar Símbolos: PP 14
o uso da Escala Wechsler de Inteligência para • Vitor
Crianças (WISC-IV), essas estimativas de QI • SPM (utilizando-se normas LADI) –
para ambos os casos se confirmaram. Por ou- Pontuação bruta 48; Percentil 90-95; QI
tro lado, no caso de Vitor, optou-se por utilizar 119-124
também os testes de raciocínio verbal e abstra- • WISC-IV – Percentil 94; QI 123
to da Bateria de Provas de Raciocínio (Almeida
& Primi, 2000). O resultado em QI se mante-
ve o mesmo para raciocínio abstrato e um pou- 3 Normas para o contexto mineiro elaboradas pelo Labo-
co menor para raciocínio verbal. No caso de ratório de Avaliação das Diferenças Individuais – Depar-
Paulo, optou-se pela aplicação de uma versão tamento de Psicologia – UFMG.

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AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DA INTELIGÊNCIA E DA PERSONALIDADE 29
• BPR-RV – Percentil 75; QI 110 on-line típicos da idade em que se encon-
• BPR-RA – Percentil 95; QI 124 trava). Durante a entrevista, Paulo manifes-
tou linguagem sofisticada (“Por favor, não
Na Figura 1.6, são apresentados os desem- estranhe as minhas loucuras” ao tentar jus-
penhos, em pontuações ponderadas, de Pau- tificar os rabiscos feitos na prova PISA). Vi-
lo e Vitor nos subtestes do WISC-IV. Acima da tor, apesar de sua preferência por composi-
zona média (marcada por um retângulo), ob- ção de histórias, utilizava linguagem apro-
serva-se que Paulo apresentou maior potência priada para a idade.
cognitiva (e provável superdotação) do que Vi- 2. Em nível afetivo, Paulo mostrou extrema
tor. autocrítica em relação ao seu desempenho,
As razões que sustentaram nosso parecer o que lhe causava muita ansiedade. Em cer-
foram as seguintes: ta ocasião, chegou a lacrimejar ao final de
um determinado teste por não concluir to-
1. Em nível comportamental, Paulo ­chamou dos os itens. Já Vitor era pouco falante, po-
a atenção da escola desde os primeiros rém verbalizava muita tristeza e desaponta-
anos escolares pela sua facilidade cogniti- mento por não viver com os pais (separa-
va, especialmente em matemática. Vitor, dos) e, sim, com uma tia. Seu refúgio era o
de maior idade e, portanto, com maior ex- computador. Ambos, portanto, tinham ra-
periência escolar, não chamou a atenção zões afetivas que podiam ter comprometi-
da escola com relação a seu desempenho. do seu desempenho nos testes administra-
A curiosidade cognitiva de Paulo era am- dos. Entretanto, os dois mostraram desem-
pla (matemática, ciência, ficção, jogos de penho acima da média, com maior ênfase
tabuleiro, física, literatura – seus preferi- no caso de Paulo.
dos eram Sherlock Holmes e Agatha Chris- 3. Quanto ao nível de planejamento, Paulo
tie), enquanto a de Vitor era restrita (jogos queria ingressar no Instituto Tecnológico

20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
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Seq
Paulo Vitor

/
Figura 1.6 Desempenho de Paulo e Vitor nos subtestes da bateria WISC-IV em pontos ponderados (a área
retangular refere-se à área de desempenho normal).

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30 HUTZ, BANDEIRA & TRENTINI (ORGS.)

de Aeronáutica (ITA) quando adulto e, pa- entender como os testes psicológicos (bem
ra tanto, apresentou-se em um processo se- construídos) fornecem estimativas valiosas
letivo de uma das escolas mais procuradas para a compreensão e o diagnóstico da super-
de Belo Horizonte, competindo com cente- dotação. A superdotação é um assunto pou-
nas de postulantes. Apesar de uma excelen- co estudado no Brasil desde a perspectiva di-
te pontuação, por razões de número de va- ferencial. Contrários à tendência de ignorar o
gas, não conseguiu ingressar. Vitor almeja- termo “inteligência” na compreensão da super-
va ser escritor e se expressava escrevendo dotação substituindo-o por termos como “altas
algumas histórias, mas suas leituras (sem- habilidades” ou “desempenho cognitivo acima
pre na internet) eram pontuais. da média”, como algumas correntes acadêmi-
4. Desempenho cognitivo. Paulo obteve de- cas propõem, somos do parecer de resgatá-lo e
sempenho acima da zona média em nove começar a prestar atenção à produção acadê-
dos 15 subtestes do WISC-IV, enquanto Vi- mica a respeito. Nesse sentido, Warne (2016)
tor obteve desempenho acima da zona mé- apontou algumas razões sobre por que o estu-
dia em seis subtestes. O QI total, portanto, do da superdotação deveria focar-se no fator g
foi de 132 para Paulo e de 123 para Vitor, o e no modelo CHC. Elas seriam: 1) revelaria in-
que os situam, considerando-se o erro pa- formação relevante haja vista que inteligência é
drão de medida, na classificação Superior e um dos construtos melhor estudados pela psi-
Muito Superior, no caso de Paulo, e entre cologia; 2) os educadores sabem melhor ajustar
Média Superior e Superior, no caso de Vi- as propostas educativas segundo o construto de
tor. Porém, igualmente importante é obser- inteligência do que segundo outros fatores psi-
var os subtestes nos quais ambos manifes- cológicos (p. ex., construir um currículo peda-
taram facilidade. Os subtestes que em ge- gógico baseado no nível de motivação dos alu-
ral apresentam maior peso no fator geral da nos seria mais complexo do que baseado no
inteligência são Vocabulário, Informação, nível de abstração necessário para a compreen-
Semelhança, Raciocínio Matricial, Cubos e são de um conteúdo); e, algo que se verá logo
Aritmética. Foram justamente nesses testes depois, 3) a inteligência é um excelente preditor
que Paulo se sobressaiu (é importante lem- de resultados sociais.
brar que, em Cubos e Raciocínio Matricial Nesse sentido, afirmamos que, embora
da WAIS-III, Paulo de 11 anos obteve uma fatores não cognitivos sejam importantes na
pontuação ponderada de 18 e 14, respecti- compreensão da superdotação (p. ex., perseve-
vamente, considerando-se as normas para rança e preferências), são os fatores cognitivos
16 anos). Entretanto, se considerarmos os que primeiramente discriminam as diferenças
níveis de superdotação (leve, moderada, al- individuais na população.
ta e extremamente alta), a facilidade cog-
nitiva de Paulo é a mais comum, isto é, ele
mostra um nível de superdotação de maior CORRELATOS SOCIAIS DA
frequência ou superdotação leve (QI 132), INTELIGÊNCIA
aquela que se encontra na taxa de um ca-
so para cada 44 indivíduos (a título de com- A importância de avaliar a inteligência e do uso
paração, um indivíduo de QI 160, ou com dos testes psicométricos se ancora nas nume-
superdotação muito alta, corresponderia a rosas investigações em que se associam os re-
uma taxa de um caso para cada 10.000 indi- sultados em testes de inteligência a diversos fe-
víduos e é o tipo de superdotação que cos- nômenos sociais. Sabe-se, por exemplo, que a
tuma chamar a atenção da imprensa). associação entre as pontuações de testes de in-
teligência e o rendimento escolar gira em tor-
Obviamente existem mais detalhes dos no de 0,50 (Neisser et al., 1996) e entre 0,50
casos aqui apresentados, porém as observa- e 0,90 com o rendimento laboral (Hunter &
ções supracitadas são as mais importantes para Hunter, 1984; Jensen, 1998; Ree & Earle, 1992;

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AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DA INTELIGÊNCIA E DA PERSONALIDADE 31
Ree, Earles, & Teachout, 1994). Também foram A INTELIGÊNCIA E OS DESAFIOS
encontradas significativas correlações nega- DO SÉCULO XXI
tivas, embora pequenas, entre QI e problemas
sociais como delinquência, alcoolismo, auto- O reconhecimento de que os recursos cogniti-
ritarismo e acidentes automobilísticos graves vos de uma população são importantes para o
(Brand,1987; O’Toole & Stankov,1992). A efi- desenvolvimento de uma nação impele diversas
ciência neuronal (tempo de reação e tempo de organizações e governos ao mapeamento e fo-
inspeção) também se correlaciona entre -0,40 e mento desses recursos. Por exemplo, as iniciati­
-0,50 com inteligência (Bates & Eysenck, 1993; vas do governo britânico sob o título The Fore-
Chaiken & Young, 1993; Deary & Stough 1996; sight Project on Mental Capital and Wellbeing
Kranzler & Jensen, 1989). (Beddington et al.2008) ou o projeto Future
Nessa mesma direção, estudos brasileiros of skills and lifelong learning (descrito no site
mostram associação significativa entre inteli­ https://www.gov.uk/government/collections/
gência e desempenho escolar (Colom & Flo- fu­ture-of-skills-and-lifelong-learning) têm co­
res-Mendoza, 2007), orientação política (Rin- mo objetivo mapear as características de ­capital
dermann, Flores-Mendoza, & Woodley, 2012), humano presentes e necessárias na população
interesses profissionais (Godoy, Noronha, Am- britânica para lidar com os desafios de socie-
biel, & Nunes, 2008), desempenho universi- dades altamente competitivas nos próximos 10
tário (Primi, Santos, & Vendramini, 2002) ou ou 20 anos. Em 2015, o Banco Mundial, por sua
com o grau de informação geral e atualizada vez, assume que a compreensão dos processos
(Flores-Mendoza, Jardim, Abad, & Rodrigues, cognitivos humanos poderia assistir favoravel-
2010). mente as políticas públicas de desenvolvimento
Atualmente as pesquisas sobre ­diferenças e intervenção. Mais ainda, em outro documen-
cognitivas em nível individual se dirigem to, o Banco Mundial (Cunningham, Acosta, &
ao es­tudo de diferenças de grupo, es­pe­cial­ Muller, 2016) reconheceu que fatores cogniti-
mente diferenças entre nações (Lynn & Vanha- vos e emocionais da força de trabalho são vi-
nen, 2002). Nesses estudos, observa-se que a tais para analisar o grau de desenvolvimento
corre­la­ção entre o produto interno ­bruto (PIB) do mercado de trabalho das nações.
e o QI médio das populações de diversas na- O reconhecimento do papel importante
ções é de 0,757. Outros estudos têm mostra- da inteligência no desenvolvimento social se
do asso­cia­­ções significativas entre QI das na- deve em última instância ao fato de que o sé-
ções e expectativa de vida (Kanazawa, 2006); culo XXI vem se caracterizando, por um lado,
taxa de ma­­trí­cula no ensino médio e de anal­­ pelo declínio das tarefas rotineiras e de esforço
fa­betismo (Barber, 2005); crime (Rushton & físico e, por outro lado, pela demanda em au-
Templer, 2009); produção de ­conhecimento mento de tarefas abstratas e de atividades dinâ-
­tec­nológico (Gelade, 2008; Jones & ­Schneider, micas. Por exemplo, no mercado de trabalho, o
2010); ­ateís­mo (Lynn, Harvey, & Nyborg, 2009; novo cenário exige outras modalidades de ges-
­Reeve, 2009); produção científica (Morse, 2008); tão empresarial como o de chief operating offi-
ta­xa de fertilidade (Reeve, 2009; Shatz, 2008); ta­ cer (COO), que décadas atrás quase não apa-
xa de mor­talidade materna e ­infantil (Ree­ve, recia em processos de seleção. A habilidade de
2009); taxa de aids (Rindermann & Meisen- resolver e gerenciar problemas em curto espa-
berg, 2009) e desigualdade social (Meisenberg, ço de tempo é, portanto, a habilidade de maior
2012). demanda nas organizações (Neubert, Mainert,
Não há dúvida, portanto, de que a inte- Kretzschmar, & Greiff, 2015).
ligência é um construto ubíquo e de alta rele- Graças aos instrumentos de medição, a
vância social. Nesse sentido, ela não pode ser psicologia diferencial tem avançado muito na
ignorada em pesquisas e tomadas de decisão precisa identificação das diferenças individuais
relativas a populações humanas. em inteligência – conhecimento esse usufruído

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32 HUTZ, BANDEIRA & TRENTINI (ORGS.)

em outras áreas de saber como a neurociência. Beddington, J., Cooper, L., Field, J., Goswami, U., Huppert, F., Jenkins,
R., … Thomas, S. (2008). The mental wealth of nations. Nature, 455,
Entretanto, menos êxito tem-se tido na identi- 1057-1060.
ficação das causas das diferenças individuais. Bowman, M. L. (1989). Testing Individual Differences in Ancient China.
Por exemplo, perguntas como: quais são os ge- American Psychologist, 44(3), 576-578.
nes responsáveis pela variação cognitiva? O Brand, C. (1987). The importance of general intelligence. In S. Modgil,
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importância de g em grupos de baixo QI (altas achievement irrespective of SES factors: Evidence from Brazil. Intelligence,
correlações entre testes) e menor importância 35(3), 243-251.
de g em grupos de alto QI (menores correlações Colom R., Chuderski A., & Santarnecchi E. (2016). Bridge over troubled
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diminuído de g”? São perguntas ainda não res-
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pondidas satisfatoriamente. Entretanto, duas Work: Boosting Socioemotional Skills for Latin America’s Workforce. Direc-
questões parecem já ter sido resolvidas: 1) os fa- tions in Development--Human Development. Washington: World Bank.
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científica produziu, e ainda produz, relevan-
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profissional do psicólogo como também serve
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