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ATOS DE VIOLÊNCIA

Marici Salomão
Beatriz Carolina Gonçalves

O sinal // indica pausa.


/ o corte na fala de um personagem.
Em Itálico, o texto é sussurrado ou dito de uma forma inusual.
Em caixa alta, gritado.
A ação se passa em São Paulo, nos dias atuais.

Personagens: Jovem 1
Jovem 2
Umzé
Xaxá

1
Shangrilá
(Marici Salomão)

A porta de um casebre é aberta violentamente.


Dois jovens encapuzados entram apressados e ofegantes, no escuro.
Têm praticamente a mesma idade.
Sala da casa do Jovem 1. Ele acende a luz.
Estão salpicados de sangue.
Jovem 1 olha para dentro de um cômodo, rapidamente.
Ambos tiram os capuzes.
Há um pôster de Batman, que foi rasgado e colado, mas continua amassado, no
centro da parede ao fundo, além de duas poltronas simples -- com braços de
madeira, sobre as quais eles desabam, e uma mesinha no centro.
Continuam muito ofegantes.

Jovem 1 batendo no espaldar da cadeira.

Jovem 1 Cadeira.

Jovem 1 bate cada vez mais forte, emendando as palavras, nervoso.

Jovem 1 Cadeira-cadeira-cadeira-cadeira-cadeira-
cadeiracadeiracadeiracadeira...

Jovem 2 Pára! Mas que saco!

Jovem 1 Quesacoquêsacoquêsacoquê...

Jovem 2 tampando e soltando a boca de Jovem 1.

Jovem 2 Cala a boca, vai, vai, agora respira devagar.

2
Jovem 1 Não dá.

Jovem 2 Solta a cabeça.

Jovem 1 Ela tá fincada num pedaço de pau.

Jovem 2 Você tá parecendo uma mina histérica.

Jovem 1 Então diz que isso não aconteceu.

Jovem 2 Isso não aconteceu.

Jovem 1 Aconteceu.

Jovem 2 Tá legal, aconteceu, mas a gente esquece.

Jovem 1 Aconteceu e a gente não esquece.

Jovem 2 Ótimo, então não esquece. Ponto.

Jovem 1 Parece que o mundo tá virando geléia.

Jovem 2 Pra você, caralho.

Jovem 1 É claro que é pra mim, caralho!

Jovem 2 suavizando o tom.

Jovem 2 Tenho bala, tá a fim?

Jovem 1 Não fala essa palavra.

Jovem 2 Que palavra? // Bala? Bala-bala-balabalabalabala.

Descasca bala de Jovem 1.

Jovem 2 Pega.

Jovem 1 Não quero.

Jovem 2 Pega.

Jovem 1 Não.

Jovem 2 Chupa.

Jovem 1 Pára com isso.

3
Jovem 2 Estou mandando.

Jovem 1 Em mim você não manda.

Jovem 2 enfia bala na boca de Jovem 1.


Subitamente paternal ou fraternal.

Jovem 2 Mas o que é isso, meu irmãozinho? Se todos os planos saíssem


como estão no papel, mas a vida não é um conto de fadas, não tem
nada a ver com história em quadrinho, tá legal? Não, não tá legal,
então tá legal, um dia você aprende. Como eu tô aprendendo com a
morte do meu tio // Hoje faz um mês.

Jovem 1 Eu sei.

Jovem 2 Que bom que você sabe de alguma coisa.

Jovem 1 Eu sei.

Jovem 2 Então, a gente tem que ir em frente em nome dele e das idéias dele.

Jovem 1 Mas não era idéia do seu tio apagar nego que nem velinha de bolo
de aniversário.

Jovem 2 A gente não fez isso.

Jovem 1 Fez só um pouco pior.

Jovem 2 Se apega na palavra de Deus e pensa um pouco mais lá na frente.

Jovem 1 Que palavra exatamente? Que palavra de Deus diz pra gente fazer o
que a gente fez?

Jovem 2 Deus dá o plano; o homem dá a regra.

Jovem 1 Daí tanta cagada.

Jovem 2 Eu não tô reconhecendo você.

Jovem 1 Tirou isso da minha boca.

Jovem 2 Por que que iam condenar a gente? O que tinha de ser feito, foi
feito.

Jovem 1 Quem disse que tinha de ser feito?

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Jovem 2 Quem disse que não tinha?

Jovem 1 Quem disse que era pra gente chegar nisso?

Jovem 2 Quem disse que não era?

Jovem 1 Só Deus dá, só Deus tira.

Jovem 2 E os caras que tiraram a vida do meu tio?

Jovem 1 A gente combinou de melhorar Shangrilá, não de sair por aí


acabando com todo mundo.

Jovem 2 A gente vai melhorar Shangrilá. Escreve, escreve que os velhos, as


crianças e os animais, todo mundo que é inocente, todo mundo que é
inocente vai agradecer um dia dois mino louco que mudaram a cara
desse cortição. Porque a gente vai melhorar Shangrilá. Vai mudar
cada cabeça torta, cada cabeça ruim e deixar boa // O problema é que
o filho da puta não ajudou.

Jovem 1 Você acha que a gente matou o cara?

Jovem 2 Matou.

Jovem 1 Matamos o cara?

Jovem 2 Não, ele saiu dançando frevo com uma sombrinha na mão, você não
viu?

Jovem 1 Eu tô morrendo de medo.

Jovem 2 Medo de que? Às picas com o medo.

Jovem 1 “Não sei nada da vidinha do pernilongo que esmaguei contra a


parede; só sei que era a única que ele tinha.”

Jovem 2 O que?

Jovem 1 “Não sei nada da vidinha do pernilongo que esmaguei contra a


parede; só sei que era a única que ele tinha.”

Jovem 2 O que é isso?

Jovem 1 "Não sei nada da vidinha do pernilongo que esmaguei contra /

Jovem 2 Eu ouvi. Qual é a mensagem?

5
Jovem 1 Não sei, já não sei mais nada.

Jovem 2 Mas de Qumram, você ainda sabe alguma coisa?

Jovem 1 Claro, o Alfredo só falava nisso, o exército santo dos mil dias. Agora
não sei, tô triste, cara, tô muito triste.

Jovem 2 No final, a luz vencerá as trevas.

Jovem 1 Tá falando igualzinho ao Alfredo.

Jovem 2 Se apega nisso.

Jovem 1 Quero me desapegar disso.

Jovem 2 Se a nossa missão é essa, de dar o paraíso à Shangrilá, de seguir


passo a passo a missão do velho, quem é a gente pra contrariar a
vontade de Deus?

Ri de alegria pensada.

Jovem 2 Um dia, Shangrilá vai sorrir de uma puta felicidade e de uma puta
prosperidade, vai sair desse buraco cheio de horror, não vai mais
depender dessa gente escrota – e você sabe do que eu tô falando! E
não está longe de chegar esse dia se a gente prosseguir com o
plano.

Jovem 1 Mas e o que aconteceu com o seu tio? Um pastor que quis acabar
com o tráfico e acabaram rapidinho foi com ele. Também, dedurar os
caras à polícia.

Jovem 2 Mas a gente deu tempo ao tempo, as coisas viram poeira tão rápido.
E o nosso jeito, o jeito de fazer as coisas já é outro. (PAUSA) Por falar
nisso, que horas são?

Jovem 1 Por quê?

Jovem 2 A noite é longa, meu irmãozinho. Não é longa?

Jovem 1 boceja forçadamente.

Jovem 1 Hoje, não, eu paro por aqui.

Jovem 2 O que? Você não disse isso, você disse isso? Depois de um mês, a
gente arranjando tudo, você vai saltar fora? A gente tem muito
trabalho pela frente. E a ação de hoje ainda não acabou – tem

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gente que ainda tem que levar um susto.

Jovem 1 Ah, acabou, sim. Por hoje acabou.

Jovem 2 Olha o pernilongo falando.

Jovem 1 Pensa o que você quiser.

Jovem 2 agarra o outro pelo pescoço.

Jovem 2 Como assim? Quem você pensa que é e onde pensa que está?

Jovem 1 Calma aí.

Jovem 2 Aqui não é o parque da Xuxa!

Quase chorando.

Jovem 2 Aqui é Shangrilá. Shangrilá! E aqui onde a polícia só aparece pra


cobrar a rapa da semana alguém que botar moral.

Fala didaticamente.

Jovem 2 O que foi que a gente combinou? Um mês pensando direitinho, pegar
um por um, na calada, começar pela raia miúda, um por um esses
porcos salgados e dar um bom susto neles, um bom susto, como dizia
o Alfredo, como nunca tomaram na vida, esse bando de arruaceiro,
bêbado, de torturador de velho e bicho, esse bando de comedor de
criancinha. Você pergunta que direito a gente, mas eu pergunto: Que
direito eles têm de acabar com a paz das pessoas, de botar crueldade
num monte de vidinha inocente? Não estamos fazendo nada, nada de
ruim, só intimidando. A gente vai dar um puta susto num monte de
gente só pra arrancar promessa de mudança.

Jovem 1 Do porco de hoje, não saiu promessa nenhuma.

Jovem 2 Por isso perdi a cabeça.

Jovem 1 Você quebrou ele inteiro.

Jovem 2 Mas se eu mandava ele se arrepender e nada.

Jovem 1 "Só me arrependo na frente do padre", ele disse. E ele tinha esse
direito. Você não devia ter dado tanto chute.

Jovem 2 Eu perdi a cabeça.

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Jovem 1 Você quebrou as mãos e os pés dele.

Jovem 2 Eu já disse que perdi demais a cabeça.

Jovem 1 Você arrebentou a cabeça dele no chão.

Jovem 2 Ele não colaborava. "Se arrepende", seu filho da puta /

Jovem 1 Eu pedia pra você parar.

Jovem 2 E ele nada.

Jovem 1 Belo início o nosso. O paraíso arrebentado.

Jovem 2 Vamos ter mais sorte agora.

Jovem 1 Não diz isso, porque agora não vai ter outro agora.

Jovem 2 Está com medo porque é a vez da mamãezinha?

Jovem 1 Cara, por hoje chega.

Jovem 2 Meu irmão, por Deus, ele está esperando que a gente se mexa.

Jovem 1 Pára com esse papo de Deus. Alfredo era pastor, você não é pastor.

Jovem 2 Mas você é um assassino!

Jovem 1 O que?

Jovem 2 Você matou o cara, não fui eu quem matou o cara.

Jovem 1 Você não pode falar assim comigo: eu só dei o tiro da misericórdia.
Você sabe o que é isso, misericórdia? Eu vi um filho da puta todo
arrebentado. Parecia mais um frango de domingo do que um homem.

Avança subitamente sobre Jovem 2.

Jovem 1 Seu filho da puta!

Jovem 2 Ei, calma, calma.

Jovem 1 Pensa que eu sou um idiota? Eu não sou. Você mesmo disse: "Olha
lá o coitado do porco se esgüelando de dor". Eu não posso ver
ninguém sofrendo, eu dei o tiro, mas foi o tiro da misericórdia.

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Jovem 2 E quem diz que ele ia morrer?

Jovem 1 Você disse.

Jovem 2 Eu disse?

Jovem 1 Você disse, lá mesmo, "olha só, o filho da puta já está morrendo. Os
olhos revirando."

Jovem 2 Então você atirou porque eu disse que o filho da puta ia morrer?

Jovem 1 Pra diminuir o sofrimento do filho da puta.

Jovem 2 Você não devia confiar tanto em mim.

Jovem 1 Eu não confio tanto em você.

Jovem 2 Então por que atirou? Se não confia em mim, atirou porque quis?

Jovem 1 Você está me confundindo.

Jovem 2 Irmãozinho, meu querido irmão, não fique confuso, eu sempre tô do


seu lado. Você vai dizer que é mentira?

Jovem 1 Não.

Jovem 2 Então, me dá um abraço, deixa eu abraçar você.

Sussurra.

Jovem 2 Khirbet Qumran.

Jovem 1 O que tem o Khirbet Qumran?

Jovem 2 Não esquece, as barracas e as cabanas em torno dos edifícios,


cheias de soldados da salvação. Nós somos parte desse exército que
luta na Guerra Santa de Shangrilá, na guerra dos Filhos da Luz
contra os Filhos das Trevas – os Filhos da Puta.

Jovem 1 Não sei de onde o Alfredo tirava essas histórias.

Jovem 2 Um santo não tira histórias; elas são enviadas por Deus.

Jovem 1 Deus, deus, quem ainda acredita em Deus? Como é que ele envia
essas histórias? Por e-mail?

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Jovem 2 Eu acredito. A gente tem que acreditar em alguma coisa. Relaxa,
bundinha de ferro. O porco ia morrer mesmo.

Jovem 1 Ia mesmo?

Jovem 2 Eu quebrei o pescoço dele.

Jovem 1 E eu sujei as minhas mãos.

Jovem 2 Mas sabe o que isso faz de você? // Um líder. Agora você é o líder,
porque é o mais forte.

Jovem 1 Eu sou?

Jovem 2 É.

Jovem 1 Demorou.

Jovem 2 Agora você é quem manda.

Jovem 1 Então vamos tirar um sono. Amanhã a gente conversa.

Jovem 2, irritando-se:

Jovem 2 Escuta, enquanto tem gente pensando, tem que ter gente fazendo.
O cara de hoje era legal?

Jovem 1 Não.

Jovem 2 Era trabalhador, amava os filhos?

Jovem 1 Não.

Jovem 2 E ainda, dizem, comia o cú das criancinhas. Em troca de umas


balinhas.

Cospe.

Jovem 2 Você acha que alguns tipos de filhos da puta mudam por causa de
um susto? Isso não é festa das bruxas, meu irmão. Nem santo dos
santos às vezes muda com susto. Olha só os caras que seguiam
Cristo. Qual o nome daquele, fala!

Jovem 1 Não sei.

Jovem 2 Lembra aí.

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Jovem 1 Dos seguidores?

Jovem 2 É, qual aquele?

Jovem 1 Não sei, aquele qual? Judas?

Jovem 2 Não, o que negou Cristo.

Jovem 1 Paulo.

Jovem 2 Não.

Jovem 1 Então sei lá. Pedro.

Jovem 2 Isso. Pedro. Jesus disse: “Olha, Pedro, você vai me negar três
vezes.” O cara tomou um susto. “Mas Mestre, porque negaria o
Senhor três vezes?” “Foda-se”, Jesus respondeu, “mas você vai me
negar três vezes e vai me deixar numa tremenda pior.” E não é que o
cara foi lá e negou o Jesus três vezes? Adiantou tomar um susto? E
do próprio Cristo. Não adiantou nada.

Jovem 1 Mas isso está na Bíblia... só que aqui... aqui é real. Não sou covarde,
mas...

Jovem 2 Tinha que morrer como viveu. Foi um favor.

Simula tiro.

Jovem 2 Páaaa!!! Você acabou com o sofrimento dele. Olha, assim do jeito
que a gente fez hoje /

Jovem 1 “Assim na terra como no céu - Venha a nós o vosso reino - Perdoai
as nossas ofensas, assim como nós perdoamos quem nos tem
ofendido. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal –
LIVRAI-NOS DO MAL -, amém.”

Jovem 2 repete baixinho.

Jovem 2 Amém // E por falar em "mal", que hora ela chega?

Jovem 1 Quem?

Jovem 2 Quem? Pensa bem, quem?

Jovem 1 A mãe?

Jovem 2 Há-há! Que hora chega a mamãe?

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Jovem 1 Acabou por hoje.

Jovem 2 Tá com medo da puta levar cacete?

Jovem 1 Cara, não fala assim.

Jovem 2 Por que não? O que é que ela é?

Jovem 1 É puta, mas deixa que eu falo, tá?

Jovem 2 Ela não vai levar cacete. Você manda, você agora é o líder. Você dá
as ordens e eu sigo.

Jovem 2 olha para o relógio.

Jovem 2 Está atrasada, não está?

Jovem 1 Falei que varia.

Jovem 2 A noite é uma criança.

Jovem 1 Tem vez que ela só volta de manhã.

Jovem 2 Mas está na nossa lista já faz um mês. Além de puta, namorava um
dos traficantes. Vai saber se não foi ela quem dedurou o Alfredo.
Você não acha, não? Até ontem você achava. Tinha certeza. Então
vamos esperar.
Silêncio.

Jovem 2 Você algum dia gostou da sua mãe?

Jovem 1 Não sei.

Jovem 2 Já teve vontade de beijar ela?

Jovem 1 Como assim?

Jovem 2 É, já teve vontade de beijar?

Jovem 1 Na boca?

Jovem 2 Não, droga, que nem filho beija mãe! Aqui.

Aponta para a própria bochecha.

Jovem 1 Não sei.

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Jovem 2 Todas as mães são putas.

Jovem 1 Você diz isso porque não conheceu a sua.

Jovem 2 E você que conheceu a sua tem outra opinião?

Jovem 1 Por hoje, estou sem mais opinião.

Jovem 2 Odeio puta. Olha o que ela fez com o teu nariz.
Jovem 1 Já faz tempo.

Jovem 2 Outro dia mesmo ela tentou te espancar de novo, não tentou? Cadê
o cano de ferro que ela usou?

Jovem 1 Cara, já esqueci isso. Ela até já parou de beber.

Jovem 2 Há-há!

Jovem 1 É, sim.

Jovem 2 Há-há!

Jovem 1 Tô falando a verdade.

Jovem 2 Eu também. Há-há.

Jovem 1 Então pára com esse há-há.

Jovem 2 Só que eu duvido. Você disse que uns dias atrás ela chegou muito
louca e até rasgou o seu pôster.

Jovem 1 Ela está mudando. É sério.

Jovem 2 Tá com medo, Menino-Prodígio?

Jovem 1 Mãe é mãe.

Jovem 2 E daí? Antes de ontem você queria matar ela.

Jovem 1 Foi a raiva, o momento.

Jovem 2 Quem queria enfiar um macaco de ônibus na goela dela?

Jovem 1 Não falei sério.

Jovem 2 Quebrar os dedos dos dois pés dela com um martelo?

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Jovem 1 Eu 'tava revoltado, agora não tô mais.

Jovem 2 Cadê o cano de ferro, hem?

Jovem 1 Melhor a gente tirar o pé daqui agora.

Jovem 2 De jeito mane'ra; vamos esperar ela chegar.

Jovem 1 Tô cansado.

Jovem 2 Você está cansado é de não ter palavra. Eu não estou cansado. A
palavra faz o homem. A gente não combinou dar um susto na
bruaca?

Jovem 1 Não fala assim, é minha mãe, cara.

Jovem 2 Ei, ei, ei!

Jovem 1 Que foi?

Jovem 2 Você não está dando pra trás não, né? Parece que você tá
começando a se cagar de medo de fazer o serviço.

Jovem 1 Serviço? A gente não combinou nenhum serviço.

Jovem 2 O que é que tá pegando? É só um susto.

Jovem 1 Mãe é mãe, cara!

Jovem 2 Só chegar junto.

Jovem 1 No cara de hoje também era. E olha no que deu.

Jovem 2 Ninguém vai notar a falta dele. E foi na porta do prédio, logo levam
embora, a polícia não quer nem saber, a esposa vai dar graças a
deus.

Muda de postura.

Jovem 2 Mas por que essa merda de amor pela cadela agora?

Jovem 1 Não fala assim, pelo amor de deus.

Jovem 2 O que ela fez de bom que eu não estou sabendo? Ela só acabou
com a sua vida, cara.

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Jovem 1 As cadeiras.

Jovem 2 O que tem?

Jovem 1 Ela comprou outro dia. Uma pra mim e uma pra ela. Pra gente ver TV
junto.

Jovem 2 Há-há, que engraçado.

Jovem 1 Não zoa, é sério.

Jovem 2 E cadê a TV?

Jovem 1 A segunda coisa que ela vai comprar.

Jovem 2 Que bom que ela dá que nem xuxu pra poder comprar a TV.

Jovem 1 Ela disse que a gente tem que tentar.

Jovem 2 Tentar o que?

Jovem 1 Ser uma família.

Jovem 2 Quando ela disse isso?

Jovem 1 Outro dia.

Jovem 2 Faz quanto tempo?

Jovem 1 Não sei, outro dia.

Jovem 2 E você acredita? Hm? Acredita?

Jovem 1 Não sei.

Jovem 2 As pessoas não mudam do nada. Não é porque é sua mãe, não.

Jovem 1 Não sei.

Jovem 2 Tô falando.

Jovem 1 E se ela tá querendo mudar?

Jovem 2 Não muda assim, do nada.

Jovem 1 Mas ela comprou as cadeiras.

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Jovem 2 E daí que “ela comprou as cadeiras”? Vocês já sentaram nelas
juntos? Você sentou com ela aqui?
Jovem 1 Ainda não.

Jovem 2 Ela sentou aqui com você?

Jovem 1 Vamos sentar.

Jovem 2 Ela passou a mão na sua cabeça e perguntou de quantas polegadas


você quer a TV?

Jovem 1 está vacilante.

Jovem 1 Não.

Jovem 2 Ela beija você antes de dormir?

Jovem 1 Não.

Jovem 2 Cara, ela só comprou as cadeiras porque tem medo de você.

Jovem 1 Não sei.

Jovem 2, imperativo.

Jovem 2 Voê vai dizer que sabe.

Jovem 1 Mas eu não sei mesmo.

Ouvem-se passoa lá fora.

Jovem 2 Chegou, cara. Mamãe chegou.

Jovem 1 Ah, não.

Jovem 2 Rápido.

Pega os capuzes atrás das cadeiras.

Jovem 2 Pega o seu.

Jovem 1 Deusdeusdeusdeus...

Jovem 2 Cala a boca! Agora você é o líder.

Jovem 1 Eu sou?

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Jovem 2 O mais forte, é o Batman.

Jovem 1 Ai, ai, ai.

Jovem 2 Vai, meu irmão! Pensa que se ela tiver um anjo da guarda, ela vai se
arrepender.

Colocam os capuzes.
Pegam suas armas.
Ouve-se o barulho de portão.

Jovem 1 levanta a arma devagar.

Jovem 1 Tô tremendo, cara.

Jovem 2 Então pára de tremer.

Jovem 1 fala baixinho.

Jovem 1 Mãemãemãemãemãemãemãe...

Jovem 2 sussurra.

Jovem 2 Pára com isso!

Jovem 1 Então repete!

Jovem 2 Repete o que?

Jovem 1 Repete o que é que eu sou?

Jovem 2 Você é um puta babaca.

Jovem 1 Não. Não é isso! Repete!

Jovem 2 Você é o líder. O líder, você é o líder, o líder, o líder!

Subitamente, mas num movimento circular e contínuo, Jovem 1 vira a arma para
a cabeça de Jovem2.

Jovem 2 O que é isso? O que é que você está fazendo?

Jovem 1, gravemente:

Jovem 1 Você ainda não viu nada.

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Ficam com as armas assim: Jovem 1 apontando para Jovem2, que está
apontando arma para a porta, ambos imóveis.
A porta é aberta.
Blackout.

Sobe som de helicóptero voando baixo.


Por alguns instantes, o som é ensurdecedor.
Luz em facho começa a rastrear o proscênio e a platéia.
No palco, os quatro atores podem se revezar na preparação do cenário de Umzé.
Temporariamente o som do helicóptero cede para o chiado intermitente do rádio
da PM e para os ruídos de um aparelho de TV, que é colocado sobre a mesa da
cena anterior.
Ator ligar o aparelho.
Frases truncadas.

Rádio PM Off viaturas / se dirigindo / para o local /

TV Off o corpo foi encontrado / irreconhecível / nosso helicóptero está


agora /

Rádio PM Off repit / elemento / fortemente armado /

TV Off depois de driblar dois comandos / carro usado para a fuga /


abandonado na avenida /

Luz continua a vasculhar a boca do palco e a platéia.

Rádio PM Off atenção / todas viaturas /

TV Off as ruas que dão ligação / interditadas pela PM

Rádio PM Off repit / fortement / armad /

TV Off as negociações foram encerradas / cinco viaturas da PM / já se


aproximam da entrada principal /

Ouve-se nitidamente um tiro e, em seguida, vários disparos.


Cães latindo.
Som de helicóptero encobre todos os outros ruídos.
Blackout total.

18
3
Umzé
(Beatriz Carolina Gonçalves)

Luz sobe sobre cubículo estreito, com cama beliche, à esquerda.


Sobre os colchões de espuma, travesseiros e almofadas velhas.
Na cama de baixo, vários bichos de pelúcia estão amontoados sobre o travesseiro.

Na parede oposta, há um cômoda com três gavetas grandes e duas pequenas.


Sobre ela, a TV de cinco polegadas,ligada.
Vidros de xampu, perfume, desodorante, pacotes de bolacha e vários maços de
cigarro.

Na parede do fundo, está a porta gradeada da cela.

Umzé corta as unhas dos pés com uma tesoura sem ponta.
Está na cama de cima.
Xaxá está embaixo.
Com o controle remoto tenta sintonizar a TV, que emite os mesmos ruídos da
cena anterior, só que menos audíveis.

Xaxá Merda!

Levanta.
Vai até o aparelho.
Ajeita a antena interna.

Umzé Já te falei! Não adianta fazê isso, porra! É a transmissão, entende?

Xaxá Não.

Umzé É que nem o rádio.

Xaxá Isso aqui é uma TV, sua ignorante.

Umzé É tudo igual. É tudo onda. Magnético, sei lá. Não sei explicá. Só sei que
não vai ficá melhor.

Xaxá Eu quero ver a novela, com licença?

Umzé Que novela?

Xaxá High Society.

Umzé Rái o quê? Que merda é essa?!

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Xaxá Gente famosa. Gente famosa e rica. Percebe? Rio de Janeiro, a
Rede Globo de Televisão // Hoje é o primeiro capítulo.

Umzé Novela é coisa de otário, Xaxá!

Xaxá Otária é você! Ignorante.

Umzé Eu não gosto que me chame de ignorante!

Xaxá Você nem sabe o que quer dizer “high society”.

Umzé Ah, vai se fodê!

Xaxá continua a regular a antena.

Xaxá Sabia que quando me prenderam eu passei na Globo? A minha foto saiu
em todos os jornais. Fiz questão de mostrar o rosto. Todo mundo
perguntava como é que uma mulher bonita como eu podia fazer aquilo.

Umzé Essa história de novo, não né, Xaxá?

Xaxá Um empresário me viu na TV e se apaixonou por mim. Até me escreveu


uma carta.

Umzé Você vai quebra essa merda!

Xaxá Foi a minha chance de entrar pra alta.

Umzé Já falei, porra!

Umzé larga a tesoura.


Pula da cama, ágil.
Tira a antena da mão de Xaxá.

Umzé Essa antena vai ficá aqui mesmo. E você não vai mexê. Amanhã tem
jogo do Corintia. Corintia e River Pleite. Entendeu?

Canta.

Umzé Ê.. Êêêô!...


Sou Gavião, eu sô
Onde o Corintia for, eu vô
Vou dar porrada, eu dô.
E ninguém vai me segurá: amanhã é a final da Libertadores, Xaxá! E eu
não vou perdê isso por nada e não vou dexá, mas não vou dexá mesmo,
você fodê essa TV!

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Xaxá E a minha novela?

Umzé Tô me lixando pra sua novela.

Xaxá desliga a TV.


Silêncio.

Xaxá vai até a cama.


Pega um caderno que está embaixo do travesseiro e dos bichos de pelúcia.

Umzé Eu tava brincando // Ei, Miss Cadeião 2004? // Tô falando com você!
Pode assisti sua novela.

Umzé pega o controle remoto.


Liga de novo a TV.
Chiado.
Rearranja a antena sobre o aparelho.

Volta pra cama.


Agora é ela quem assisti TV.

Umzé Eu ainda lembro da primeira vez que eu vi televisão. Eu já morava lá no


Morro Grande e a vizinha de frente de casa tinha acabado de comprá
uma TV. Ela foi a primeira a tê uma televisão no bairro. A TV era no
quarto e ficava todo mundo em cima da cama dela, pulando que nem
loco. Um dia a gente pulô tanto mas tanto que a cama quebrô. Quando o
marido da vizinha viu a cama quebrada, pô, ele ficô uma fera. Pegô um
revólve que ele tinha e atirô pro alto. Todo mundo saiu correndo,
assustado!

Ri.

Umzé Depois desse dia eu nunca mais fui na casa da vizinha assisti televisão.

Umzé fica alguns segundos ligada na TV.

Umzé Que você tá fazendo?

Espia Xaxá, na cama de baixo.

Umzé Ei! Eu fiz uma pergunta.

Xaxá Não tá vendo? Tô escrevendo.

Umzé O quê?

Xaxá Uma carta.

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Umzé Pra quem?

Xaxá Não é da sua conta?

Umzé Tudo bem. Não pergunto mais // Não pergunto mais nada // Nem uma
palavra.

Umzé zapeia.

Umzé É uma carta pra sua mãe?// Eu queria escrevê uma carta pra minha
mãe.

Xaxá Merda!

Umzé A filha tem de amá a mãe, não importa o que ela fez com a gente.

Xaxá Eu não consigo pensar com você falando feito uma matraca.

Umzé Quando eu nasci ela me largô na rua.

Xaxá Quem?

Umzé A minha mãe, porra!

Umzé desce de sua cama.


Senta ao lado de Xaxá.

Umzé O porteiro de um prédio me pegô pra criar. Ele chamava Genibaldo.

Ri.

Umzé Era baiano // Um dia, acho que eu tinha uns cinco ano, a minha mãe
voltô. Voltô com um homem e me levô com eles lá pro Morro Grande.

Umzé fica novamente alguns segundos ligada na TV.

Umzé De vez em quando ela vem me visitá de domingo // Não é sempre, só


quando ela pode. Mas eu sempre espero. Todo o domingo, cada minuto //
Teve uma vez que ela veio me visitá e tava muito quente. Então eu
estendi o cobertor no pátio pra gente sentá e ficá conversando lá fora.
Quando ela sentô, eu pus a cabeça no colo dela e fiquei bem quieta,
com medo que ela não gostasse. Então ela passô a mão no meu cabelo e
começô a chorá // Acho que isso qué dizê que ela gosta de mim, né?

Xaxá E eu é que sei?

22
Umzé Ela não ia acreditá seu eu escrevesse uma carta pra ela.

Ri.

Umzé Ela ia achá que não era eu.

Xaxá Tá. Então por que você não escreve logo uma carta pra sua mãe e pára
de encher o saco?

Umzé Sei lá // Não tenho papel.

Xaxá arranca a folha em que escrevia.


Entrega o caderno a Umzé.

Xaxá Pode usar o meu caderno. Perdi a vontade de escrever.

Umzé pega o caderno.


Fica imóvel com o objeto entre as mãos.

Xaxá vai até a cômoda.


Acende a bituca que está num pires.

Xaxá Tá esperando o quê?

Umzé Eu não tenho caneta.

Xaxá joga a caneta pra Umzé.


Observa-a de longe, enquanto fuma a bituca.

Xaxá O que foi?

Umzé É que eu não sei.

Xaxá O quê criatura?

Umzé Não sei o que escrevê.

Xaxá Escreve o que você tá sentindo.

Umzé Não sei como.

Xaxá Respira fundo e escreve!

Umzé Não é isso.

Xaxá O que é então?

23
Umzé Eu não sei, porra!

Xaxá pega o caderno das mãos de Umzé.

Xaxá Que merda é essa, Umzé?

Umzé Eu disse!

Xaxá Você rabiscou todo o meu caderno!

Umzé Eu não sei nem assiná o meu nome!

Xaxá Quê?

Xaxá ri.

Xaxá Você é uma ignorante mesmo. Eu sabia! Que burra!

Umzé parte pra cima de Xaxá.


A tesoura na mão.

Umzé Quem é burra? Fala! Quem é ignorante? Fala!, que eu vô tirá um pedaço
da sua língua. Não era assim que você fazia com os otário que você
seqüestrava?

Xaxá Você tá me machucando!

Umzé Ah, é. Esqueci. Você tirava um pedaço do dedo também.

Xaxá Me solta!

Umzé Fala agora que eu sou ignorante! Fala!

Xaxá Ignorante!

Umzé bate a cabeça de Xaxá contra a parede.


Empurra-a com violência.
Ela cai no chão, o nariz sangrando.

Umzé começa a bater a própria cabeça contra a parede.

Umzé Eu não sou ignorante!

Xaxá Olha só o que você fez, sua imbecil!

Umzé Precisa de tê inteligência pra fazer o que eu fiz.

24
Umzé continua a bater a própria cabeça contra a parede.

Xaxá Pára com isso, idiota!

Umzé Eu não sô burra!

Xaxá Chega Umzé!

Tenta inutilmente acalmá-la.

Umzé Eu não preciso de ninguém.

Xaxá Dá um tempo!

Umzé Eu sou sozinha, porra.

Xaxá Vem cá.

Umzé Sozinha!

Xaxá Vem...

Desiste da força.

Xaxá Eu tenho uma coisa pra você.

Revira o bolso do moletom.

Xaxá Olha só // Olha!

Xaxá abre a mão.


Mostra uma chupeta.

Umzé precisa de alguns instantes pra se concentrar no gesto de Xaxá.

Umz Onde foi que você achô?

Xaxá ri.

Xaxá Gostou?

Umzé pega a chupeta das mãos de Xaxá.

Umzé Procurei ela em tudo que era lugar.

Confere a chupeta, carinhosamente.

25
Umzé Precisa de sê muito inteligente pra fazer o que eu fiz, Xaxá // Eu tinha
treze ano. Peguei a arma que me deram e esperei. Eu atirava bem. Eles
me disseram que o cara morava ali. Então eu vi o carro chegando e
parando. Cheguei perto da janela e sentei o dedo: atirei uma, duas vez. O
cara deixô de se mexê na hora // Vi que a janela de trás do carro tava
aberta. Em cima do banco tinha um saco de plástico com uma pizza
dentro. Nossa, que cheiro bom! Peguei o saquinho e saí andando. Vi os
home chegando do outro lado da rua, mas ninguém ia pensá que uma
menina podia fazê aquilo.

Ri.

Umzé Uma menina comendo pizza Margarida, no meio da rua, não ia matá
ninguém. Percebe? // Foi a minha primeira pizza.

Xaxá vai até a cômoda.

Umzé Eu não sou ignorante, Xaxá, só porque eu sô preta e não sei escrevê.

Xaxá começa a enrolar um baseado.

Umzé Foi você que escondeu, não foi? Quero dizê, a chupeta?

Xaxá continua com o baseado.

Xaxá Hoje a gente vai fazer uma coisa diferente.

Umzé Diferente como?

Xaxá Eu vou te ensinar a escrever.

Umzé guarda a chupeta no top, sob a camiseta.

Umzé Não quero que você me ensine nada, não. Ninguém nunca me ensinou
nada. Só a atirá. Foi o meu padrasto. Foi a única pessoa que me ensinô
alguma coisa que preste. Ganhei muito dinhero com isso. O resto eu
aprendi sozinha. Eu não preciso de ninguém pra nada, não.

Xaxá Tudo bem. Problema seu.

Xaxá acende o baseado.


Vai até a cama.
Pega o caderno e recomeça a escrever.

Umzé também volta para a sua cama.


Aumenta o som da TV com o controle remoto.

26
Umzé Vai começar Tela Quente, Xaxá // Você não vai vê?

Em Off ouve-se o som de tiros e explosões que vem da TV.

Umzé Vai ser só porrada, Xaxá! // Olha isso! // Olha só o cara!

Ouve-se o som de tiros, na TV.


Explosões.
Umzé grita.

Umzé Nossa!

Xaxá pára de escrever.

Xaxá Merda!

Umzé Uuuuuh-uuuuuh!

Xaxá MER-DA!

Umzé Agora os home vão atrás dele. É a vingança // É sempre assim. Mas tudo
bem. Valeu! Faz bem vê um filha da puta de um polícia morrê, mesmo
que não seja de verdade.

Umzé zappeia.
O som dos tiros e das explosões é substituído por fragmentos de música.
Sons eletrônicos, comerciais.

Umzé Que que você tá fazendo?

Espia Xaxá, na cama de baixo.

Umzé Ei! Eu fiz uma pergunta.

Xaxá bate as mãos fechadas sobre o caderno.

Xaxá Merda! // MERDA!

Umzé Ei, que que deu em você?

Xaxá Eu só estava tentando escrever! Só isso.

Umzé pega o caderno.

Umzé É uma carta pra sua filha?

Xaxá tira o caderno das mãos de Umzé.

27
Xaxá A minha filha não é da sua conta!

Umzé Tudo bem. Não pergunto mais // Não pergunto mais nada // Nenhuma
palavra // Faz tempo que ela não vem te vistitá, né? É foda não tê visita
de domingo.

Xaxá A minha filha não vem porque eu não quero.

Umzé Qual é, Xaxá? Pra cima de mim? Ela não vem porque a sua mãe não traz.

Xaxá Não é verdade!

Umzé Não é a sua mãe que cuida dela?

Xaxá E daí? Eu acho isso justo. Ela tá fazendo pela minha filha o que não fez
por mim.

Umzé Ela não era obrigada a fazê nada por você. Você é que tinha de fazê.

Xaxá E o que é que você sabe da minha vida?

Umzé O que todo mundo sabe.

Xaxá O quê?

Umzé Que você é uma porra-lôca.

Umzé ri.

Xaxá Quem disse isso?

Umzé Nóia.

Xaxá Eu?!

Umzé Todo mundo diz.

Xaxá Porra-louca e nóia é a puta que te pariu.

Umzé Não tô nem aí.

Xaxá reacende o baseado que apagou.

Xaxá Minha mãe me pôs pra fora de casa quando eu tinha quinze anos. Ficou
com medo que eu roubasse o homem dela // Até que era bem capaz que
eu fizesse isso mesmo.

28
Fuma.

Xaxá Hoje é diferente. Ela não depende mais de homem nenhum // A minha
filha tem tudo.

Umzé Não. Ela é que nem a gente, Xaxá. Ela também não tem mãe.

Xaxá Ela tem mãe, sim! Ao contrário de você, eu pari // Eu sei que ela tem
orgulho de mim // Eu sou diferente. Sempre fui. Sempre fiz as coisas da
minha cabeça. Eu sou original, cara. Percebe? Vivi tudo o que eu tinha de
viver. A minha vida era muito louca. Era como um filme // Balada o
tempo todo. Boate, roupa de grife. Tinha o dinheiro que eu queria.
Dinheiro que eu nunca ia conseguir juntar trabalhando a vida inteira. Vivia
rodeada de gente bacana. Gente boa e gente ruim. Tudo misturado.

Trava repentinamente.

Xaxá Tinha vezes que eu entrava numas. Não sei // Via a cara dele aparecendo
em todo lugar. Na janela do restaurante, no vidro do carro // Os dentes //
Meu Deus, eu nunca vi dente daquele jeito // Tem dias que eu ainda
vejo.

Olha ao redor.

Xaxá Ele aparece rindo. É horrível!

Fuma.

Xaxá Eu não devia ter transado com ele. Foi por isso que ele riu // Quando eu
pedi o cartão do banco e a senha, ele riu. Riu da minha cara e disse que
eu era uma putinha pobre // Entendeu? Ele só disse isso porque tinha
trepado comigo. Então eu disse que não era putinha, porra nenhuma.
Mas ele continuou a rir da minha cara. Me chamou de maloqueira e veio
pra cima de mim. Então eu atirei. Bem no meio dos dentes dele.

Fuma.

Xaxá Peguei todo o dinheiro que ele tinha. O cartão do banco e os cartões de
crédito. Ele tinha um monte de cartão de crédito e tinha um que tava em
nome da mulher dele. Peguei o cartão e fui pro shopping. Esperei as lojas
abrirem e comprei todas as roupas que eu queria. Comprei sapato, bolsa.
Comprei uma jaqueta de couro, um monte de camiseta // Acho que o cara
de uma das lojas desconfiou. Ele era um gato. Todo sexy me dizendo que
a roupa tava um tesão em mim. Filho da puta // Quando eu saí a polícia
tava na porta.

29
Xaxá trava novamente.

Umzé vai até a cômoda.


Começa a vasculhar as gavetas.

Xaxá Eu ainda ouço ele rindo // É como se ele ficasse escondido atrás das
coisas.

Umzé O que esses comprimido tão fazendo aqui?

Xaxá Ouviu?

Umzé Que merda, Xaxá!

Xaxá joga um bicho de pelúcia num dos cantos da cela.

Xaxá Tem alguma coisa ali!

Umzé Há quanto tempo que você não toma o comprimido?

Xaxá repete a ação: joga outro bicho de pelúcia num dos cantos da cela.

Xaxá Vai ver!

Umzé Não tem nada ali!

Umzé tira o baseado da mão de Xaxá.

Umzé Pô, Xaxá, isso custô mais de vinte maço de cigarro! // Já deu, né?

Guarda a ponta numa lata de leite em pó.


Pega os comprimidos e os entrega a Xaxá.

Umzé Agora, toma, vai!

Xaxá Eu não vou tomar isso!

Xaxá joga os comprimidos longe.

Umzé Vai tomá, sim!

Xaxá se encolhe.

Xaxá Não quero.

Umzé recolhe o remédio do chão.

30
Umzé Se você não tomá o comprimido ela vai aparecê.

Xaxá Como você sabe?

Umzé sussurra.

Umzé Ele me contou.

Xaxá Como é que ele /

Umzé Chiu...

Xaxá Você viu ele?

Umzé balança a cabeça afirmativamente.


Cúmplice.

Xaxá Onde?

Umzé Fala baixo // É melhor tomá... Se não ele vai aparecê.

Xaxá pega os comprimidos e os engole.


Tem ânsia de vômito.

Xaxá É muito ruim.

Umzé A mulher da enfermaria disse que você tem que tomá.

Umzé dá um copo de água pra Xaxá.


Ela termina de engolir os comprimidos.

Xaxá Quando eu tomo essa merda eu não sou eu. A minha cabeça fica
diferente. Vazia. Não consigo pensar. Não consigo nem escrever uma
carta pra minha filha.

Umzé Não pensa nada, não. Encaixa aqui.

Umzé enlaça Xaxá por trás.


Põe a perna no meio de suas coxas.

Umzé Assim. Fui eu que te ensinei a encaixa // Tu só sabia fazê com homem.

Xaxá Às vezes sinto falta.

Umzé Sente?

Xaxá Sei lá.

31
Umzé começa a acariciar os seios de Xaxá.

Umzé Não esconde mais, tá?

Xaxá O quê?

Umzé Chupeta é falta de mãe. Falta de teta de mãe // Uma tesão que não passa
nunca. Maior que tesão por home.

Umzé continua a acariciar os seios de Xaxá.

Xaxá Eu queria tanto sentir alguma coisa.

Umzé Então sente.

Xaxá Não consigo.

Umzé Tudo bem.

Xaxá Eu /

Umzé Não diz nada, não.

Ficam enlaçadas ainda por alguns segundos.

Umzé Sabe o que eu queria? // Eu queria sabê assiná o meu nome.

Xaxá E qual é o seu nome?

Umzé Umzé.

Xaxá Umzé é o seu apelido, ignorante!

Umzé solta Xaxá.

Umzé Já disse pra não me chamá assim!

Xaxá Ninguém pode assinar o apelido!

Umzé O meu nome de certidão é Maria José do Nascimento. Foi o cara que me
pegô pra criá que me registrô assim. Umzé é como a minha mãe me
chamava quando ela voltô // É a mãe que dá o nome pra filha, não é?

Xaxá E eu é que sei?!

Umzé Não foi você que deu o nome pra sua filha?

32
Xaxá Tá. Tudo bem // Vou te ensinar a escrever o seu “nome”.

Umzé Eu disse que queria aprendê. Mas eu não disse que queria aprendê
agora!

Xaxá pega o caderno e uma caneta-marcador.


Escreve em letras grandes e maiúsculas.

Xaxá Olha só: “UMZÉ” tem quatro letras.

Umzé Não sei se eu tô afins de sabê.

Xaxá A primeira é “U”.

Umzé espia.

Xaxá A segunda é “M”.

Umzé vai se aproximando devagar.

Xaxá Depois “Z” e “É”. Juntando tudo dá “UM-ZÉ”... Agora é você.

Umzé Eu o quê?

Xaxá Experimenta escrever.

Xaxá dá a caneta e o caderno pra Umzé.

Umzé Eu?

Xaxá Você tem de segurar a caneta com esses três dedos.

Umzé pega o caderno e a caneta, decidida.

Umzé Isso eu sei, né, Xaxá?

Xaxá Não. Não é assim! // É assim, olha // Experimenta. Vai. Escreve o “U”.

Umzé tenta.

Xaxá Não precisa fazer tanta força!

Umzé Eu não sei!

Xaxá Você vai rasgar o caderno!

33
Umzé Merda!

Umzé destaca a folha.

Umzé Eu falei que não sabia, porra!

Rasga a página em vários pedaços.

Umzé Eu não quero aprendê nada.

Xaxá Tá. Vamos tentar de novo // Com que mão você atira?

Umzé Com esta. Quem pergunta besta!

Xaxá Então experimenta pegar a caneta com essa mão.

Umzé pega a caneta com a mão esquerda.


Recomeça a escrever.

Xaxá Isso! // Melhor. Bem melhor // Você é canhota, Umzé!

Umzé E isso é bom?

Xaxá Agora o “M”.

Umzé O “M” é difícil.

Xaxá Tenta.

Umzé obedece.

Xaxá Um pouco torto, mas tá bom.

Umzé Cansei.

Chacoalha a mão, tentando relaxá-la do esforço.

Xaxá Agora o “Z” // Começa por cima // Devagar! Isso // Falta o “É”. Assim.

Mostra como se escreve o “É”.


Dá o caderno a Umzé, que tenta imitá-la.

Xaxá Tá vendo não foi difícil?

Umzé Quem disse que não foi difícil? Foi difícil sim! Foi difícil pra caralho!

Xaxá Tá. Então escreve de novo.

34
Umzé De novo?

Xaxá É. De novo!

Umzé Por quê?

Xaxá Pra não esquecer.

Umzé Eu nunca esqueço nada não, Xaxá.

Umzé volta a escrever

Xaxá vai até o canto da cela, com cuidado.


Apanha os bonecos que atirou no chão.
Olha ao redor.
Está ainda um pouco encanada.

Volta para a cama.


Começa a rearranjar os bichos de pelúcia sobre o travesseiro.

Xaxá Sabe que ele até que parecia com o meu pai.

Umzé Quem?

Xaxá O cara // Eu ainda lembro dele.

Umzé De quem?

Xaxá Do meu pai // O de verdade // Ele sempre dizia que eu era bonita. Me
elogiava. Falava um monte de coisa bacana. Depois ele bebia e dizia que
eu era uma merda. Que eu não prestava // Eu tinha dez anos.

Continua arrumando os bichos de pelúcia.


Toca-os carinhosamente.
Quase brinca com eles.

Umzé Sabe, Xaxá, se um dia eu escrevê uma carta pra minha mãe, ela não vai
podê lê // Ela é que nem eu. Não sabe nem escrevê o nome dela.

Há um silêncio maior do que os anteriores entre Xaxá e Umzé.


Ambas estão concentradas em suas ações.

Umzé Xaxá?

Xaxá Quê?

35
Umzé Xaxá é o seu nome ou é apelido?

Xaxá Você já viu alguém chamar Xaxá?

Umzé Ué, o que é que tem?

Xaxá O meu nome é Maria Xavier dos Santos e daí?

Umzé Maria Xavier!

Umzé ri.

Umzé Não acredito! É nome de mulher e homem ao mesmo tempo. Que


nem o meu!

Ri.

Umzé Maria Xavier!

Xaxá Ah, vai se fodê!

Xaxá pega a vassoura e começa a varrer a cela.


Começa varrendo embaixo da cama, minuciosamente.

Umzé Sabe que palavra eu queria aprendê a escrever?

Varre os papéis picados ao redor de Umzé.

Umzé Corintia // Amanhã eu quero escrever aqui, nessa parede: “Corintia


Campeão”!

Xaxá É Corinthians.

Umzé Foi o que eu disse.

Xaxá Corinthians é difícil.

Umzé Por quê?

Xaxá É muito grande.

Xaxá continua a limpar a cela.

Umzé E Brasil?

Xaxá Que que tem?

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Umzé Como é que escreve?

Xaxá É mais fácil que “conrintia”.

Umzé Eu sempre torço pelo Brasil quando a seleção joga // Eu sei a


escalação de tudo que é seleção // Pergunta uma pra você vê // Até dos
reserva eu sei o nome.

Xaxá se reaproxima de Umzé.

Umzé O Brasil pra mim é que nem o Corinthians, Xaxá. É que nem a minha
Mãe, sabe? // Não sei explicá.

Xaxá Brasil tem seis letras.

Fala enquanto escreve.

Xaxá “B-R-A-S-I-L”. Tenta.

Umzé Não vô consegui!

Xaxá pega na mão de Umzé.

Umzé Que que você tá fazendo?

Xaxá Relaxa a mão // Isso.

Escrevem juntas.
Xaxá fala enquanto escreve.

Xaxá “B-R-A-S-I-L” // Agora lê.

Umzé Eu?

Xaxá É.

Umzé pega o caderno cuidadosamente com as duas mãos.

Umzé “UMZÉ”.

Xaxá E depois?

Umzé “BRA” / “SIL”.

Xaxá ri.
Umzé começa a rir também.

37
Umzé tira a chupeta do top.
Põe na boca.
Lê novamente, com a chupeta na boca.

Umzé “umzédobrasil”.

Chupa a chupeta com voracidade.


Ruidosamente.

Umzé É isso o que eu vô escrevê! // Pra todo mundo vê.

Vai até a parede do fundo, ao lado da porta da cela.


A chupeta na boca.

Umzé Aqui nessa parede!

Bate com a mão fechada na superfície da parede, delimitando o lugar.

Umzé Bem aqui!

Começa a escrever o próprio nome.


Garrancho torto e incerto.

Luz cai sobre o palco.


Mas persiste na TV, iluminando Xaxá, que ri.
E sobre Umzé, que escreve.

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