Você está na página 1de 30

ESTILHAÇO

Texto de DANIELA SMITH

1
ATO ÚNICO

Num apartamento pequeno e cafona de periferia decorado com muitas imagens

de santos, Dinorá, professora de um colégio estadual, está pensativa sentada em

uma cadeira próxima à mesa de refeições com uma agulha de costura presa entre

os lábios. Ouve um ruído, repentinamente levanta-se. Olha a porta, ninguém

aparece. Vai até a estante e serve-se de uma dose de cachaça. Coloca um disco

numa velha vitrola e caminha até sua poltrona predileta situada próxima à janela.

Olha para fora e vê a vizinha, se irrita com o que vê, com a curiosidade da vizinha.

Pega sua caixinha de costura e um vestido jogado nos braços da poltrona.

Caminha até o sofá situado fora da direção da janela. Dinorá tem um band-daid no

lado esquerdo da testa. Começa a costurar. Fala sozinha.

Dinorá- Enxerida, essa gorda aí do lado. Não tem mais o que fazer...é o que me

faltava! Um dia te espremo, azeitona, e você vira óleo!

Dinorá analisa o vestido. Pega sua caixinha de costura com o intuito de

achar uma tesoura, vê dentro da caixa de costura sua delicada e pequenina

caixinha de música, retira-a e segura-a nas mãos. Suas feições, por um

instante, ficam suave e emocionada. Sibele, sua filha, chega da rua, joga as

chaves sobre a mesa. Dinorá olha rapidamente a filha, esconde a caixinha de

música. Sibele percebe o movimento da mãe, escondendo algo. Sibele veste-

se de forma ligeiramente extravagante, está com óculos escuros, com

design bem moderno.

Sibele- Escondendo alguma coisa? O que é?

Dinorá- Esse síndico! Será que não tem algo melhor pra fazer? Passa os finais de

2
semana andando pelos corredores, ah...eu me sinto sufocada, a gorda na janela,

a bicha no corredor...

Sibele sai em direção à cozinha.

Sibele- Deve ser solidão, solidão.

Dinorá- Não na minha porta! Eu não posso resolver os problemas dele, eu não

consigo resolver os meus! Arrastando esse chinelinho...Tem bolo de fubá. No

forno. Eu fiz!

Sibele retorna à sala, vai até a vitrola e tira a música. Dinorá olha a filha.

Dinorá- Mas eu acabei de colocar...

Sibele- Música chata.

Dinorá- E desde quando música é chato? Música eleva o espírito, vem dos

deuses para alegrar o coração, não é chato.

Sibele- Depende...Onde você achou esse band-aid? Ontem eu procurei um por

tudo quanto é canto.

Dinorá- Por que não comprou?

Sibele- Tô sem um puto.

Dinorá olha o vestido e com os dois braços estende para a filha.

Dinorá- Experimenta?

Sibele- Ah, não! Tô com preguiça. Depois eu vejo...

Dinorá- Ah, experimenta! Eu quero ver como fica em você...se está certinho!

Sibele sai novamente, como subterfúgio para cortar o assunto.

Sibele- Não!

Dinorá- Ah, minha filha, eu só quero te deixar bonita! Hoje eu sonhei com a festa

do colégio, com o tal encontro de professores... e você menina, entrou na sala

3
com um vestido preto, um véu negro cobrindo o rosto, os pés sujos de lama...

você pisou na mesa marcando os papéis com os pés. Eu tentei falar contigo, mas

da minha boca não saía nada. O mais esquisito é que era você quem entrava ali

dançando daquele jeito tão estranho, mas quando eu arranquei o véu do seu

rosto, o seu rosto era o meu.... Eu acordei assustada! Encafifada!

Sibele volta para a sala.

Sibele- Os sonhos não são por acaso, Dinorá. A gente se misturando... mãe e filha

numa só, num corpo só, já pensou? (ri) - Você tentando ir para um lado e eu

gritando “não, não, para lá não!”.- (secamente) - Alguém me ligou?

Dinorá-(secamente)- Não sei.

Sibele- Como não sabe?

Dinorá- (ainda segurando o vestido, muda de tom) - Você não gostou do vestido?

Fala logo, se não, dou para outra pessoa....Estou tentando te deixar mais

arrumada, você faz questão de ignorar meu esforço!

Sibele- Não é isso...

Dinorá volta a costurar o vestido e ao enfiar a agulha no vestido fura o dedo.

Dinorá- Ai!

Dinorá olha o dedo com pequeno sangramento, coloca o dedo na boca e ao

fazê-lo, relaxa. Suas feições descontraem-se. Sibele observa o gesto da mãe

e repete-o. Repentinamente Dinorá tira o dedo da boca, levanta-se e serve-se

novamente de aguardente. Toma um grande gole.

Sibele- Você toma esse negócio feito água...

Dinorá- Água não tem gosto de nada.

Sibele- Me dá um gole?

4
Dinorá- (serve num copo)- Toma.

Sibele- O Mário ligou?

Dinorá- Essa geringonça me irrita, não sei se tocou, tocou? Não sei.

Sibele- Ficou louca de vez, é isso?

Dinorá- Não, minha filha. Você não viu? Hoje um passarinho bateu na vidraça,

quebrou, fez uma esparramação de sangue, sujou minha cara. Parece profecia de

mau agouro.

Sibele pegando um gibi.

Sibele- Esquisito.

Dinorá- Não é? Os gregos previam seus destinos pelo vôo dos pássaros. Eu

adoro os gregos! Ah! Imagino homens de ferro imolando animais aos deuses, o

seu sangue grosso encharcando os pulmões da terra.

Sibele - O quê você está falando?

Dinorá- (rindo)- Hoje a Dinorá está poeta!

Sibele - Sabe o que eu descobri? Sangue tem gosto de coisa enferrujada e

quando o sangue seca piora, fica com cheiro de lata velha.

Dinorá (desconcertada) – (resmunga) Enlouqueceu de vez. Mas... menina, você

está abatida! O que aconteceu?

Sibele- Por quê?

Dinorá- Esses óculos na cara, não combinam com você.

Sibele- Eu gosto, qual o problema?

Dinorá- Você estava chorando?

Sibele- Chorando? De jeito nenhum. Eu não choro.

Dinorá- Esse seu jeito...por que não procura um emprego, Sibele? Olha a sua

5
cara. Já se olhou no espelho? (cúmplice) Se estivesse trabalhando, não teria

tempo para ficar cozinhando idéias, colocando caraminholas na cabeça.

Sibele- Seria uma idiota gritando “amém” para outro idiota.

Dinorá- O que é isso?! O trabalho é uma coisa santa. E religião é uma virtude. O

trabalho não passa de religião. Sabe a estória da ovelha no rebanho? Eu sou uma

ovelha do rebanho, e é o trabalho, Sibele, o trabalho e Deus que me conduzem!

Sibele- Que papo chato! O pior é ser da boca pra fora!

Dinorá- Estou querendo te ajudar, somente te ajudar!

Sibele- Constrói uma bolha de silicone.

Dinorá- E para que serve isso?

Sibele- Para viajar por aí, vou dentro dela.

Dinorá- Cai na real, Sibele! Reza para o Santinho.

Sibele- Rezar para quê?

Dinorá- Santos são bons, repara as roupinhas deles...essas carinhas alvas, tão

bonitinhos. Eu me sinto diferente, eles causam um sentimento....ah, é bom....por

que não reza? Pede para o Santo dos Aflitos!

Sibele- Você é louca! Pára de viver essa fantasia religiosa e esperar solução para

a sua vida infeliz!

Dinorá- (categórica)- Os santos são diferentes de todo mundo, olha a carinha

deles! Não tenho culpa se você não enxerga.

Sibele- Culpa? É esse o seu problema. E culpa pesa, o corpo amolece, você vai

ficando curva, vai tudo caindo, daqui a pouco o bico do peito está lá

embaixo...arrastando no asfalto.

Dinorá- Sibele, chega! Não vou gastar saliva tentando te dar clareza. Não vou

6
dizer mais uma palavra, você não me escuta!

Dinorá estica as pernas e finge entreter-se com uma revista. Observa a filha

de soslaio que lê um gibi. Dinorá está inquieta.

Dinorá- (fingindo preguiça)- Ai, ai, domingo me dá uma moleza! Talvez um pouco

de poesia nos faça bem.(Sorrindo, tentando ser simpática) Nos inebrie um pouco

mais. Eu acho importantíssimo para a formação de uma menina....

Dinorá vai até a estante e pega um livro de sua predileção. Sibele continua

lendo o gibi.

Sibele (seca)- Eu não sou mais uma menina.

Dinorá- Conhecer livros, sentir os cheiros que exalam quando os tocamos, você

precisa disso....leia!

Sibele- Ah, por favor, sem essa agora! Eu não estou aqui para ser sua aluna. Não

percebeu o quanto me irrita essa sua postura de grandíssima professora...

Dinorá- Faça como preferir! Não está mais aqui quem falou.

Pausa

Dinorá- Sibele, eu não quero ser chata, mas amanhã é a festa na escola...

Sibele- Você já disse!

Dinorá- Pensei que você gostaria de usar o vestido....Se quiser termino o

conserto, eu não me importo em costurar, não levo muito jeito, mas.....(tentando

seduzir a filha) eu conheci seu pai com ele. Ele gostava desse vestido. Dizia que

eu ficava Afrodite. Já pensou? Afrodite! Aquela deusa...na época eu não entendia

muito bem! Onde ele leu essa história? Dificilmente via seu pai lendo, só jornal, ele

gostava de ler jornal. (Dobrando o vestido) Eu realmente não conheci seu pai...

Sibele vai até a estante e tira de um gibi uma foto, do pai com Dinorá e ela.

7
Sibele- Eu até hoje não te mostrei isso.

Dinorá aproxima-se da filha e olha a foto.

Sibele- Eu peguei na carteira dele, não sabia que ele guardava ...ele nunca me

mostrou. Junto com ela estava seu endereço, por isso eu te achei.

Dinorá fica em silêncio.

Sibele- Eu quero te fazer uma pergunta. Posso?

Dinorá não responde.

Sibele- Uma curiosidade que me coça a cabeça ...

Dinorá- Quantas vezes eu já te pedi Sibele? Como é teimosa! Esqueça esse

assunto. Vamos continuar com a música! Que tal?

Sibele- Não! Eu quero saber a verdade.

Dinorá- Que verdade? Me diga! Para que se enganar? Melhor a música!

Sibele- Dinorá, eu quero falar sobre a vida, a nossa vida.

Dinorá fica em silêncio.

Sibele- Você não tem nada para me dizer? Que escolha foi essa? O que

aconteceu na sua cabeça para sumir e não querer mais nos ver?

Dinorá-(segredando)- Um dia um helicóptero me disse que eu precisava voar dali.

Sibele- Pára com isso.

Dinorá- (irônica)- Fazia sinais de fumaça vermelha no céu, eu saí perseguindo

aquela trilha de sangue vaporoso ....

Sibele- Eu tenho cara de palhaça?

Dinorá- Que situação chata! Por que não perguntou a ele? Eu simplesmente não

tenho....ai, Sibele, não tenho nada, entendeu? Nada para contar.

Sibele- Ele nunca entendeu... ele não tinha respostas. Um dia você foi embora.

8
Por que?

Dinorá- Nós fizemos um trato, lembra-se? Quando você chegou aqui eu disse que

não queria falar sobre meu casamento. É problema meu! Eu não vou dar

explicações de coisa alguma, a ninguém.

Sibele- Ele te amava.

Dinorá- Chega! O passado não me interessa. É assunto morto.

Dinorá sai para a cozinha.

Sibele (com os olhos úmidos)- Eu chorava de saudades de você, ele me abraçava

calado, ele passou muito tempo calado, eu aprendi a não chorar, então, eu não

choro.

Dinorá volta com um pano de chão e enxuga a bebida que ela mesma

derrubou.

Dinorá- Tira esse passarinho morto da janela! Faz alguma coisa, criatura!

Sibele vai até a janela, olha o passarinho.

Sibele- O dia que você me pariu, você me espirrou para fora mesmo, com tanta

força que eu nunca soube onde fui parar, onde vou chegar, perto de você eu sei

que não vai ser.

Dinorá aproxima-se de Sibele, insinua que vai fazer carinho na filha, mas

desiste. Pega a bebida e caminha em direção a mesa da sala.

Dinorá- Você já tomou sua vitamina hoje?

Sibele- Não.

Dinorá- Por que não toma?

Sibele- Engorda.

Dinorá- O Mário gosta de você esquelética.

9
Sibele- Pára de ser exagerada. Você devia ter sido atriz, uma atriz de uma boate

fuleira.

Dinorá- Quer mais um trago?

Dinorá serve o aguardente em dois copos. Coloca-os na mesa. Senta-se em

uma das cadeiras e Sibele senta-se na outra. Ficam frente a frente. Ambas

fumam. Sibele imita a mãe fumando. Dinorá ri.

Sibele- O que foi?

Dinorá- Eu jamais pensei que um dia isso iria acontecer!

Sibele- Isso o quê?

Dinorá- Você sentada aqui na minha frente, bebendo comigo.

Sibele- Pois eu sempre quis sentar num boteco contigo... era um sonho bobo de

uma adolescente.

Dinorá- Aqui estamos!

Sibele- Ah, mas na minha cabeça tudo era bonito e fácil !

Dinorá- Agora a atriz fuleira é você!

Sibele- Não, eu não tive escolha, por isso eu não posso ser como você.

Pausa

Dinorá- Você vai se casar com o Mário?

Sibele- Como?

Dinorá- Parece...

Sibele- Isso não existe mais. Casamento é coisa do passado, só gente careta

casa, gente que insiste ser infeliz.

Dinorá- Verdade... a solidão é um sentimento que nos acompanha. Mesmo

casado! É triste viver ao lado de alguém sentindo solidão....é a pior solidão que

10
existe.

Sibele- Meu pai me disse um dia que felicidade é somente um desejo de alguma

coisa, que ela não existe, faz apenas o coração bater por alguns minutos de forma

acelerada, mas passa logo.

Dinorá- E você acreditou?

Sibele- E por que não?

Dinorá- Uma garota na sua idade.... talvez... outra idéia de felicidade!

Sibele(seca)- Por que você fica puxando os pêlos do braço enquanto conversa?

Você sempre faz isso.

Dinorá- Ah, mania, você terá as suas, espere. São implacáveis. Por mais que

fujamos, numa esquina qualquer elas te assaltam.

Sibele- Não dói?

Dinorá- Não.

Sibele- Nem as giletes?

Dinorá- O quê? Isso é um problema meu! Não se meta. Cala tua boca, menina,

porquê eu não vou ter dó em te expulsar daqui. Por dezenove anos, eu não fui

mãe, e posso continuar a não ser. Ainda é fácil para mim.

Sibele- Tudo bem. Eu também não quero te ver me espreitando atrás da porta

enquanto eu estiver com o Mário. Te excita me ver transar?

Dinorá bate na cara de Sibele. Sibele sai da sala. Dinorá está visivelmente

abalada. Bebe do aguardente. Anda pela sala desnorteada. Vai até à janela.

Volta. Olha as unhas, estão descascadas. Na estante, pega uma caixinha de

manicure. Senta-se, tira a acetona, algodão. Começa a tirar o esmalte.

Repentinamente pára, pega a ponta da sua própria saia, encharca de acetona

11
e cheira profundamente. Chora. Sibele retorna com um vaso de girassóis

quase secos.

Sibele- Esqueceu de molhar...

Dinorá- É mesmo!

Sibele- Por que?

Dinorá- Não sei...

Sibele- Não molhou....

Dinorá- Esqueci.

Sibele- Como?

Dinorá- Esqueci!

Sibele- Por que?

Dinorá- Não sei.

Sibele- Não sabe?

Dinorá- Não.

Sibele- Não acredito!

Dinorá- Se não sei, como vou te dizer?

Sibele- Inventa!

Dinorá- Mas, por que?

Sibele- Por mim!

Dinorá- Eu não sei!

Sibele- Secaram, sede...

Dinorá- Sibele...

Sibele- Me dá um trago?

Dinorá- Pega.

12
Sibele- Não, esquece. Será que, se plantar de novo, elas vivem?

Dinorá- Claro que não, joga no lixo. Que idéia!

Sibele enfia as mãos no vaso e tira a planta com raízes.

Sibele- Vou plantar.

Dinorá- Que sujeira! Você vai limpar. Isso não presta mais, Sibele!

Sibele- Deixa eu tentar.

Dinorá- Inútil, inútil...

Sibele sai de casa. Dinorá acende uma vela no seu altar, reza por alguns

segundos. Coloca novamente a música que Sibele tirou, pega a revista,

senta-se no sofá e tenta ler. Sibele retorna da rua imunda de terra. Forra o

chão, senta-se em posição de meditação.

Dinorá- Você pirou, minha filha?

Sibele- É um tipo de terapia!

Dinorá- Você inventa cada estória!

Sibele- Não, eu li que a terra... a gente retorna... equilibra.

Dinorá- O quê?

Sibele- É assim, mãe, a terra é o útero, você passa ela no corpo e então, faz

umas respirações e aí, é o retorno, como se a gente voltasse para a barriga da

mãe, para resolver a cabeça, equilibrar o pensamento.

Dinorá- Pára com isso. Retorno, retorno...bobagem.

Sibele- Por que?

Dinorá- Isso aí pira, entendeu? Bem, não faz. Vá tomar banho!

Sibele- Não.

Dinorá- Eu te jogo um balde de água!

13
Sibele deita no chão em posição fetal.

Sibele- A gente fica que nem bebê e respira.

Dinorá- Pára com isso, pára!

Sibele deitada faz respirações sonoras e intensas.

Dinorá- Chega, levanta daí!

Sibele não levanta.

Dinorá- Pára de criar problema. Eu não agüento! Que porcaria é essa? Levanta!

Eu chamo o médico, te interno, anda! Pára! Levanta daí, sua....é para o hospício

que eu vou te mandar, é para lá mesmo, levanta!

Sibele continua a brincadeira, Dinorá irritada tenta puxar com as mãos a filha

e não consegue. Dinorá anda de um lado para o outro, está desnorteada com

a brincadeira da filha. Sibele está cada vez mais fora de si. Dinorá vê a

acetona, pega-a, encharca a ponta do vestido que ela estava costurando e

coloca no nariz de Sibele, que esperneia desesperada, tosse, sente-se

sufocada. Sibele luta para tirar Dinorá de cima, não consegue, e aos poucos

vai perdendo as forças. Dinorá insiste e Sibele finge desmaiar. Dinorá olha a

filha desmaiada. Dinorá emocionada, suavemente acaricia a filha. A

campainha toca. Dinorá levanta-se rapidamente.

Dinorá- Meu Deus! O que eu faço?

Dinorá olha a porta e aflige-se, hesita em abrir a porta. A campainha toca

mais um vez. Dinorá ajeita o vestido, o cabelo. Constata que a filha está ali

no chão e que certamente irão vê-la. Tira um lençol que forra o sofá e cobre

a filha.

Dinorá- Já vai, estou indo!

14
Dinorá abre a porta. Em pé, um sujeito de óculos segurando um delicado

buquê de flores e uma marmita.

Jaime- Di-no-rá! Dinorá!

Jaime estende os braços e entrega as flores para Dinorá.

Dinorá- O Sr. me conhece?

Jaime- Di-no-rá.

Dinorá- Sou eu....

Jaime entrega a Dinorá a marmita.

Jaime- Carne de coelho... assada...eu que fiz.

Dinorá- Sim?

Jaime- É uma receita nova! Dinorá! Cozido no leite, tenro, tenro....

Dinorá- Eu ando tão sem apetite, você acredita?

Jaime- Dó ré mi fá...Di no rá.

Dinorá- Jorge!

Jaime- É Jaime.

Dinorá- Sim! Jaime! Quanto tempo! Parece que você encolheu, na minha

memória você era grande! Impressionante como...

Jaime- Eu trabalho aqui pertinho, então pensei: vou fazer uma visitinha, qualquer

hora dessas!

Dinorá- Ah, que ótimo! Mas sabe Jaime, você me perdoa, eu estou de saída!

Estava já... catando a bolsa! Vamos conversando no caminho, tudo bem?

Dinorá pega a mochila de Sibele jogada no chão, volta-se para Jaime

fazendo menção de sair. Jaime aproxima-se e pega no queixo de Dinorá,

como fazia no passado. O gesto sai de maneira estranha, não muito

15
confortável para ambos.

Jaime- Um copo de água!

Dinorá- Você quer um copo de água?

Jaime balança a cabeça afirmativamente, esboçando um sorriso. Dinorá

pega o copo de aguardente que está próximo.

Dinorá- Dá um trago aqui! Água não tem gosto de nada.

Jaime (segurando o copo nas mãos)- Eu não bebo.

Dinorá- Ah, por favor....eu estou sem água, faltou!

Jaime dá um pequeno gole.

Jaime- Forte.

Dinorá ri nervosa.

Dinorá- É bom assim, vai ficando na garganta.

Dinorá aproxima-se de Jaime para sair do apartamento com ele. Jaime

aponta com os dedos para os pés sem sapatos de Dinorá.

Dinorá- Ah! Que cabeça a minha! Espera só um pouquinho, estão aqui perto do

sofá.

Jaime- Bonito seu apartamento!

Jaime entra realmente na sala. Dinorá calça os sapatos.

Dinorá- Você acha mesmo?

Jaime- Uma mulher de bom gosto, sempre teve bom gosto!

Dinorá- Que isso!

Jaime- Eu costumo ver você de manhã, sempre correndo...

Dinorá- É...trabalhar.... vivo atrasada. Detesto acordar cedo.

Ambos ficam constrangidos, sem assunto. Olham-se, desviam olhares.

16
Dinorá faz menção de sair.

Jaime- Continua a mesma!

Dinorá- Quem? Eu?

Jaime- Claro! Fresca, fresquinha!

Dinorá- Imagina! Fresquinha!

Jaime- Verdade, Dinorá! Casada?

Dinorá- Viúva.

Jaime- Sinto muito!

Silêncio. Dinorá aponta a porta para Jaime e este a interpela.

Jaime- É, sabe, Dinorá, é que.... há muito tempo que eu penso nisso, e eu quero

muito, muito....é...o beijo! Eu gostaria de rever.

Dinorá- Beijo?

Jaime- É, Dinorá, você sabe do que eu estou falando...

Dinorá- Que história é essa?

Jaime- A foto...

Dinorá- Ah, sei....a foto?

Jaime- Do beijo....nosso!

Dinorá- Perdi!

Jaime- Você perdeu nosso beijo?

Dinorá- Roubaram!

Jaime- Como?

Dinorá- Estava na bolsa....roubaram.

Jaime- Mas...como podem levar um beijo?

Dinorá- Pois é! Fiquei tão chateada! As coisas são assim mesmo, vão embora.

17
Jaime- Eu gostaria tanto de rever!

Dinorá- Impossível!

Dinorá caminha para a porta.

Dinorá- Vamos?

Jaime senta-se em uma cadeira.

Jaime (falando para si)- O beijo do meu único amor...único amor...levaram o beijo

do meu único amor.

Dinorá desiste de sair e senta-se no lado oposto ao de Jaime, na mesa.

Dinorá- Jaime....( muda de tom) Você cozinha coelhos?

Jaime- Coelhos, eu crio...crio coelhos, no meu quintal.

Dinorá- Ganha dinheiro?

Jaime- Um pouco.

Dinorá- Eu agora sou professora. Jaime, não suportava aquele escritoriozinho...

acabei voltando para casa de meu pai....mas.... e você?

Jaime- Continuo naquele escritório. Vinte e três anos. Eu consigo agüentar aquele

porco gritar na minha orelha. Não vai provar o coelho?

Dinorá- Mais tarde. Como você me achou?

Jaime- Eu adoro fazer listas! Tenho fascinação por listas, sempre tive, desde

criança, atualmente tenho feito listas de listas.

Dinorá- Um dia você me encontrou numa dessas suas listas?

Jaime- Quem sabe...

Dinorá- (servindo um outro copo)- Quer mais um trago?

Jaime- Eu não bebo.

Jaime dá um golinho da bebida.

18
Dinorá- Bom te rever!

Jaime- É!

Pausa

Jaime- Você tem gatos?

Dinorá- Não, eu não gosto de bichos.

Jaime- Tem um cheiro azedo aqui.

Dinorá- É cisma sua. Você deve ter sonhado com o bicho, está cismado.

Jaime- Pode ser!

Jaime olha o corpo de Sibele embrulhado.

Jaime- Um pacote?!

Dinorá- Minha filha.

Jaime- Sua filha?

Dinorá- Me tirou do sério...aí, não tive como não fazer, eu pedi para que ela

parasse, não me obedeceu... eu...

Jaime levanta-se e pega a ponta do lençol.

Jaime- Posso?

Dinorá não responde, mas consente. Jaime puxa o lençol de cima do corpo

de Sibele.

Jaime- Por que faz isso?

Dinorá- Eu não costumo fazer isso. Jaime, por favor, não me olhe dessa maneira!

Jaime (para Sibele)- Olá!

Sibele- Oi!

Jaime- Eu sou o Jaime.

Sibele- Eu já ouvi.

19
Jaime- Qual o seu nome?

Sibele- Sibele, com S!

Jaime- Com S! Si bele! A “belle” em si! Levanta daí!

Sibele- É, esse chão está gelado.

Dinorá- Não vai dar outro chilique, Sibele!

Jaime- Vermelho! Gosto do seu cabelo vermelho.

Sibele- Ah, pois é, eu pintei!

Jaime- Ficou muito bom! E você estuda o quê?

Sibele- Eu não estudo.

Jaime- Ah, certo!

Sibele- Eu gostaria, talvez um dia estudar veterinária.

Dinorá- Veterinária? Nossa! Eu sou alérgica, alérgica a pêlo de bicho.

Jaime- Eu tenho coelhos. Se quiser um, eu...

Dinorá- De jeito nenhum! Eu sou alérgica, Jaime!

Sibele- Você mora onde?

Jaime- Longe, bem longe...

Sibele- Ah, que bom, né?

Jaime- Você parece minha filha.

Dinorá- Ah, Jaime, você tem uma filha?

Jaime- Não... tenho não!

Sibele- Ah, você inventou uma!

Jaime- Talvez! Essa casa cheira a gatos, então, não é uma invenção que aqui

tenha gatos, não consigo deixar de pensar em gatos quando respiro...aqui moram

gatos.

20
Sibele- Gatos? É verdade!

Dinorá- Verdade?

Jaime- Verdade.

Jaime faz sons para chamar o gato (chaninho, chaninho...). Sibele,

divertindo-se, imita um gato, fazendo sons procura pelo animal. Sibele olha

debaixo do sofá, da estante, enfim, olha pela sala. Dinorá ri, faz os mesmos

sons que Jaime e Sibele, sem levar à sério a procura do gato. Jaime

procurando pelo gato, vê o passarinho morto na janela.

Jaime- Nossa! Impressionante!

Dinorá- Está impressionado? Devia estar grávida, muito gorda. Gravidez deixa a

gente assim, transtornada.

Jaime- Ah, é uma passarinha!

Sibele – Por quê?

Jaime – O que?

Sibele (para Dinorá)- Porque gravidez deixa a gente transtornada?

Dinorá (para Jaime)- Você gosta de bolo? Tem bolo, quer?

Jaime- Provavelmente, sim!

Dinorá- Estava quentinho. Mas bolo frio, há quem goste. Eu vou dar uma

esquentadinha!

Jaime- Bolo com café, combina.

Dinorá- Café?!

Sibele- Ô! Visita sempre toma café!

Dinorá- Verdade!

Dinorá sai.

21
Sibele (sem olhar Jaime, pega um joguinho manual)- Posso te dizer uma coisa?

Jaime- Sim.

Sibele (continua sem olhar Jaime, joga com o brinquedo) - Você tem cara de

doente. Mas eu gosto! Eu sinto vontade de ficar perto e cuidar. Pensa bem, gente

saudável é monótono, é chato olhar para a cara delas, elas não dão a sensação

que alguma coisa pode acontecer a qualquer momento, enche o saco!

Jaime- Às vezes eu vou até lá, ver as filas dos hospitais, mas eu não consigo ver

a cara deles. Só ouço gritos, gritos... aí eu paro na frente deles,

procurando...procurando enxerga-los melhor. Porque alguém tem que fazer isso!

Tento achar um pouquinho só, um pouco deles. Eu gosto de ajudar as pessoas.

Sibele - A cara deles pregou em você.

Jaime- Você acha mesmo?

Sibele- Acho.

Jaime- Nunca pensei que as caras pudessem colar assim na gente!

Sibele- Eu, quando estou andando na rua, desvio. Você tem que sair fora da reta

delas. Tem cara que gruda na gente. Aí, é difícil arrancar fora.

Jaime- Eu não tenho cara de nada.

Sibele- Tem sim!

Jaime- Bobagem, tenho não!

Sibele- Tem. Escuta o que eu digo, você tem.

Jaime- Os coelhos, têm sempre a mesma cara, vão surgindo a toda hora. De dois,

nascem quatro, e depois, já são dez, depois, vinte e um, a mesma cara, todos! Os

olhos vermelhos, sempre... os coelhos não tem cara de nada, eu não tenho a cara

de nada, sempre a mesma cara.

22
Jaime pega uma lista.

Sibele- O que é isso?

Jaime- Uma lista. Estão aqui anotados. São 1534 com a mesma cara. Confere!

Sibele- Não, eu não quero conferir.

Jaime- Por que?

Sibele- É muito coelho...

Jaime continua tirando listas do bolso. As listas podem estar também em

uma pasta levada por Jaime.

Sibele- Estas listas são todas sobre coelhos?

Jaime- Algumas, sim. Outras, são lá do escritório...outras...

Sibele- E para que servem todas elas?

Jaime- Eu não consigo deixar de contar. Um dia alguém vai querer conferir aí, eu

vou poder ajudar. Eu gosto de ser útil.( Jaime pega uma outra lista) Eu trouxe para

a Dinorá.

Sibele- Para minha mãe? Como assim?

Jaime- Dinorá se divertia em fazer listas comigo, nas horas vagas.

Sibele- Posso ver?

Jaime- Rasga! O papel está velho, cuidado!

Sibele pega o papel, começa a ler.

Jaime- A gente era noivo.

Sibele- Noivo? Vocês escreviam isto?

Jaime- É!

Sibele- Vocês queriam ser a mãe e o pai do mundo? Como assim?

Jaime- Acabar com a fome do mundo. São cálculos de quantos pães e etc.

23
iríamos precisar para alimentar 500 milhões de pessoas. Dinorá, a grande mãe e

eu, o pai!

Sibele- Jura?!

Jaime- O que?

Sibele- Nada não! E essa outra aqui, deixa eu ver? (lendo outra lista)- Quantas

pernas pararam em frente, na janela?

Jaime- O escritório é um porão, dá para ver a calçada pela janela! Às vezes, as

pessoas param em frente à nossa janelinha e conversam, ou pedem uma

informação. É divertido tentar adivinhar o que as pessoas conversam.

Sibele- Não consigo imaginar a Dinorá escrevendo essas besteiras!

Jaime- Você acha mesmo besteira?

Sibele- Não, foi maneira de dizer ...ah, deixa para lá, desculpa! Me diz uma coisa.

Qual é o seu maior sonho?

Jaime- O meu maior sonho.... são tantos!

Sibele- Mas aquele especial, o que é? O “the best”! Eu adoro fazer essa pergunta

para as pessoas.

Jaime- Bom, eu queria um dia conseguir andar de um jeito nas ruas, andar de um

jeito que todo o mundo me olhasse, eu não chamo atenção de ninguém, nunca

chamei. Eu queria uma vez, pelo menos...como um mico leão dourado!

Sibele- Como?

Jaime- Eu sou muito sem graça!

Sibele- Você se engana!

Jaime- Eu?

Sibele- Você tem uma cara assim...é ...diferente. Eu duvido que as pessoas não te

24
olhem, impossível não olhar, eu não deixaria passar.

Jaime (sem jeito)- A belle em si!

Sibele (pega revistas em quadrinho)- Você gosta de ler gibis?

Jaime- Gibis?

Sibele- Leva para você ler. Você está precisando ler. Eu pego outra hora... com

você.

Jaime- Obrigado.

Dinorá aparece com uma bandeja.

Dinorá- Aqui está!

Jaime- Café forte?

Dinorá- Muito forte, e o bolo está quente.

Sibele pega dois pedaços de bolo e oferece um deles a Jaime.

Dinorá- Tem pratinho, menina, assim suja todo o chão!

Sibele (entregando o bolo a Jaime)- Come!

Jaime- Sim! Obrigado!

Os três comem e somente Jaime toma o café. Sibele imita a mãe comendo o

bolo.

Jaime- Quando eu era pequeno, minha avó me dizia que tomar café sem açúcar

amarga não só a boca, mas a vida inteira. Então, nunca tomo café sem açúcar.

Dinorá- Desculpa. Pega lá, Sibele!

Sibele sai. Jaime pega as listas e mostra a Dinorá.

Dinorá- Você tem isso até hoje?

Jaime- Eu o pai, e você a mãe, lembra?

Dinorá emociona-se, fica em silêncio. Jaime toca nos cabelos de Dinorá.

25
Dinorá- Jaime! (Sibele entrando)- Eu a mãe?!

Sibele (agressiva)- Aqui está o açúcar.

Jaime- Obrigado.

Sibele- Este bolo está com gosto de queimado.

Dinorá olha insistentemente para as listas em suas próprias mãos

Dinorá- Eu não sei fazer bolos!

Sibele- Então por que fez?

Dinorá, repentinamente, começa a rasgar as listas, jogando os pedacinhos

sobre sua própria cabeça. Jaime fica estarrecido com a atitude de Dinorá.

Sibele- Olha só quem é você!

Dinorá- Cala a boca, Sibele.

Sibele- Não! Você não tem poder sobre mim.

Dinorá- Não? Me imita toda hora! O que é isso, então?

Sibele- Isso é o meu pai!

Dinorá- O seu pai?! O que você está dizendo, menina?

Sibele- Ele imitava você, seus gestos, o jeito de andar, de falar e me pedia para

imitar também. “Não, minha filha, ela quando ria jogava a cabeça para atrás, e

dava soluçinhos. Põe o dedo na ponta do nariz e olha com firmeza. O olhar é firme

e doce. O cabelo, atrás da orelha, era atrás da orelha!”. E me acariciava. Meu pai

cuidava de mim, algo que você nunca fez. Ele nunca deixou de me olhar. Ele só

tinha saudades, só isso! Eu sabia que eram saudades suas, por isso eu fazia o

que ele pedia. Uma saudade doída, pensa bem, Dinorá...

Sibele enfia o vestido que a mãe estava costurando para a filha usar.

Sibele- Ele me vestia igualzinho a você!

26
Olham-se por um instante, em silêncio.

Dinorá- O que ele fez com você?

Sibele- Ele me fazia ser uma Dinorá que não existe, só existiu na cabeça dele!

Dinorá arrancando o vestido de Sibele

Dinorá- Isso tudo para mim é loucura, doença.

Sibele- Assim você trata os sentimentos, como doença!

Dinorá- Sibele, do que mais eu sou culpada? Vamos! Quer me jogar numa

fogueira? É isso? Quanto tempo mais vou ter que assistir seus espetáculos?

Sibele- Eu... quero entender...

Dinorá- Entender o que? As coisas são o que são. (perguntando a si mesma)- Por

que a vida toma certos rumos? Por que? Eu não sei! Não sei.

Sibele- Você nunca gostou da gente.

Dinorá- Você está dentro de mim para saber?

Sibele- Só alguém que não gosta da filha age como você agiu!

Dinorá- Era impossível levar você comigo! Na época, era o melhor! Ficar com o

seu pai, na sua casa, entende?

Sibele- Posso até entender se imaginar uma circunstância terrível. Mas porque

nunca mais voltou?

Dinorá- Sibele, o amor pode significar tanta, mas tanta dor, que se torna

insuportável. Tem gente que não consegue sobreviver a ele, sucumbe.

Sibele – Por amor?! Não, não cabe aqui nesses miolos, não!

Dinorá- Se você não entende....não vamos chegar a lugar algum.

Sibele- É difícil mesmo! Você quer que eu entenda os seus motivos

extravagantes, mas não se esforça nem um pouquinho para entender os meus

27
motivos!

Dinorá- E o que eu tenho feito esses meses todos?!

Sibele – Por que você se engana dessa maneira?

Dinorá – Na verdade, você quer ouvir o que eu não tenho para dizer.

Sibele- Já te disseram que você é maluca? Eu estou dizendo, doida!

Dinorá- Não sou eu quem passa as noites na rua, que chega de manhã em casa,

com os olhos fundos, babando, sem conseguir articular nada direito!

Sibele- Eu não passo o dia inteiro enchendo a cara! Com que autoridade vem me

exigir alguma coisa? O que você sabe da vida?

Dinorá- Não sei de nada mesmo! Nada. Amnésia profunda! Chega dessa

ladainha!

Pausa

Sibele- Durante anos, eu convivi com um esboço, um rascunho de uma mulher

criado pelo meu pai. Uma mulher idealizada por nós dois!

Dinorá- Por favor, Sibele, não quero ser um desses fantasmas conversando com

o passado. Eu levei muitos anos para abandonar o passado e viver o meu

presente, a minha vida. Desde sua chegada... está muito difícil!

Sibele começa a arrumar suas coisas, catar revistinhas, roupas que estavam

jogadas na sala, etc...

Dinorá- Vou me sentar naquela poltrona velha e esperar a noite chegar.

Sibele- Claro! É isto que você deve fazer! Esperar. É o que você tem feito há

anos!

Dinorá- É o que todos fazem, Sibele! Os dias se sucedem, e se repetem, e nada

acontece. Eu não pretendo mudar nada.

28
Sibele- Eu, Dinorá, ainda tenho sonhos.

Dinorá- É natural, na sua idade....queremos mudar o mundo, não é ?

Sibele- Não. Não preciso e nem quero tanto! Mas a minha vida, esta eu quero

mudar!

Sibele sai da sala.

Dinorá- Faça como quiser.

Silêncio

Jaime- Eu gostaria de um gole da sua cachaça. Pode ser?

Dinorá- Jaime!

Jaime senta-se próximo a Dinorá. Dinorá serve no copo um tanto da bebida,

oferece o copo a Jaime.

Jaime - Ai, ai...a gente fica levinho, levinho...

Dinorá - Tem dia que me dá um sentimento tão forte no coração, um aperto, eu

olho para o céu e penso como deve ser boa a vida de pássaro, aí eu dou um gole

da minha cachaça...eu vôo com a minha cachaça.

Jaime- Entendo, Dinorá!

Sibele volta com uma pequena mala nas mãos. Sibele vai saindo.

Dinorá- Ei, menina...

Jaime- Escuta, pássaros cantando!

Sibele- ( irônica)- Vieram me buscar, é verão no outro canto da Terra!

Sibele sai. Jaime, atônito, olha Dinorá paralisada. Jaime sai apressado, atrás

de Sibele.

Jaime- Sibele! Sibele!

Dinorá vai até à caixinha de costura, e tira uma caixinha de música

29
minúscula e delicada.

Dinorá- Ah, minha filha, eu esqueci de te mostrar como é linda e delicada a minha

caixinha.(Chamando a filha como se esta estivesse num cômodo ao lado) Sibele!

Sibele! - Pausa - Minha menina! Porque despertou nesse coração solitário tanto

afeto? Hem? Por quê? – Pausa - Você não vai embora, não vai embora, não vai

não... eu sei.

Dinorá sozinha escuta a caixinha de música tocar.

FIM

30

Você também pode gostar