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Contextos Clínicos, 3(2):76-87, julho-dezembro 2010

© 2010 by Unisinos - doi: 10.4013/ctc.2010.32.01

Três perspectivas em psicoterapia infantil:


existencial, não diretiva e Gestalt-terapia

Three perspectives in children’s psychotherapy:


Existential, non-directive and Gestalt-therapy

Cristine Monteiro Mattar


Universidade Federal de Sergipe. Cidade Universitária Professor José Aloísio de Campos. Av. Marechal
Rondon, s/n, Jardim Rosa Elze, 49100-000, São Cristóvão, SE, Brasil. cristinemattar@ig.com.br

Resumo. O artigo apresenta três perspectivas em psicoterapia infantil: a psi-


cologia existencial, de acordo com as reflexões de Sören Kierkegaard, a pro-
posta não diretiva de inspiração rogeriana e a perspectiva da Gestalt-terapia.
As três possuem aproximações no que se referem às atitudes do psicotera-
peuta e à opção pelo método fenomenológico, o qual visa apreender o sen-
tido do brincar e de outras expressões da criança. Diferem, contudo, quanto
à concepção do homem, já que a psicologia existencial discorda de que haja
neste uma tendência à totalidade ou de que ele seja regido por uma força que
busca sempre o equilíbrio. A psicologia existencial vai pautar-se na estraté-
gia de aproximação indireta e paciente que caracteriza a relação de ajuda de-
finida por Kierkegaard, a qual permite nítida aproximação entre a filosofia e
a psicologia clínica. No trabalho de Axline acerca da ludoterapia, destacam-
se as oito atitudes definidas como indispensáveis para a atuação do psicote-
rapeuta infantil. A suspensão de todo julgamento e a aceitação incondicional
do modo de ser da criança, como quer que esta se apresente, fundamentam
uma prática não diretiva que facilite a expressão dos sentimentos. A Gestalt-
terapia, por sua vez, vai propor técnicas e atitudes também com o objetivo
de facilitar a autoexpressão dos sentimentos vivenciados pela criança e o
desenvolvimento da awareness de si e do mundo. Dessa forma, este artigo
apresenta as contribuições de três perspectivas fenomenológicas para aque-
les que se propõem a atuar na prática da psicoterapia com crianças.

Palavras-chave: psicoterapia infantil, psicologia humanista, psicologia exis-


tencial, Gestalt-terapia.

Abstract. This article presents three methodological perspectives in children’s


psychotherapy: existential psychology, according to Kierkegaard’s reflections;
the non-directive proposition, of Rogerian inspiration and Gestalt-therapy’s
perspective. The three perspectives show some proximity regarding the psycho-
therapist’s aitudes and the option for the phenomenological method, which
aims at comprehending the sense of playing and other of the child’s expressions.
They differ, however, in relation to the concept of men that will ground their
practices, since existential psychology disagrees that there is in men a tendency
to totality or a force always in search of balance, notions which are pertinent to
the other two. Existential psychology will be guided by a strategy of patient and
indirect approach, characterizing the aid relationship defined by Kierkegaard,
Cristine Monteiro Mattar

which allows clear approximation between philosophy and clinical psychology.


In Axline’s work about ludotherapy, eight aitudes are highlighted as essential
for the children’s psychotherapist’s performance. The suspension of all judg-
ment and the unconditional acceptance of the child’s way of being, although
present, sustain a non-directive practice, which makes the expression of feelings
easier. Gestalt-therapy, on its turn, proposes varied techniques and aitudes also
with the objective of making self-expression of the feelings experienced by the
child easier, developing an awareness of him/herself and the world. Therefore,
this study seeks to discuss the contributions of these three perspectives to those
who intend to perform in the psychotherapy practice with children.

Key words: children’s psychotherapy, humanist psychology, existential-phe-


nomenological psychology, Gestalt-therapy.

Apresentação o que faz com que, muitas vezes, tais questões


levem a família a procurar psicoterapia para os
A escritora de contos infantis Eva Furnari filhos, caso estes não correspondam ao mode-
(2000) narra a história do personagem Lolo lo que “deveriam” seguir. A criança ideal será
Barnabé e sua família. No início da narrativa, aquela que se mostrar disciplinada, com ini-
Lolo e sua mulher viviam em uma caverna e ciativa, desinibida, produtiva, que for (hiper)
todas as noites eles se reuniam em torno do ativa – no sentido de ter que dar conta de vá-
fogo para conversar. Aos poucos, a fim de ob- rias tarefas em diversos espaços – e, ao mesmo
ter mais conforto, Lolo começou a inventar e tempo, organizada em suas múltiplas ativida-
construir móveis e eletrodomésticos, roupas e des além da escola, a fim de se preparar desde
objetos. Com o tempo, precisaram de mais es- já para o futuro. Quando a criança não se en-
paço e construíram uma casa. Como estavam caixa neste modelo, quando se mostra agitada
muito ocupados, era preciso uma empregada demais, ou quieta demais, com raiva ou triste,
para cuidar da casa e do filho que tiveram. As muitos pais decidem procurar o psicoterapeu-
conversas à noite já não aconteciam mais. ta, ouvir a palavra do “especialista” e, se pos-
O bordão que se repete ao longo do texto sível, consertar o que vai mal. O psicólogo, por
a cada nova invenção, “todos ficaram felizes, sua vez, deve estar atento, pois corre o risco
mas nem tanto” (Furnari, 2000, p. 8), revela de também se deixar aprisionar pelos mesmos
que a insatisfação estava sempre presente e valores e querer adequar a criança ao padrão
que os objetos fabricados não bastavam, tra- considerado ideal pelos pais, pela escola, pela
zendo sempre a necessidade de novas inven- mídia. Tentará apressá-la, se for “lenta”, fazê-
ções. Ao final, Lolo e Brisa já não sabem mais la falar, se for “tímida”, ou acalmá-la, se for
o que inventar. Neste momento, param para “agitada, ansiosa, hiperativa”. Desta forma,
pensar. A história termina sem um final con- estará afinado com as expectativas externas
clusivo, sugerindo ao leitor que reflita, quem sobre a criança, mas não estará próximo desta.
sabe vendo na história um espelho de seus Tendo em vista essa demanda e a neces-
próprios questionamentos. sidade de reflexão sobre a prática da psicote-
A história de Lolo e sua família, lida com rapia infantil, este trabalho tem por objetivo
alguns clientes na clínica psicoterápica ou com apresentar três perspectivas fenomenológicas
os pais no contexto da clínica com crianças, é que poderão ser úteis na clínica com crianças,
vista sempre como algo muito familiar e co- lembrando sempre que cada criança é um in-
tidiano. As preocupações com o consumo, a divíduo singular e que o mais importante é a
falta de tempo, a insatisfação que nada sacia, relação genuína de aceitação, confiança e cum-
a criação de necessidades para comprar mais, plicidade que se estabelece com ela.
a procura pela novidade, a agenda cheia, tan-
to dos pais quanto da criança, são fenômenos O método fenomenológico e a epoché
corriqueiros na sociedade contemporânea e, na clínica
muitas vezes, valorizados. Em geral, tais preo-
cupações estão atreladas aos ideais de desem- A fenomenologia surgiu com o matemáti-
penho, sucesso, perfeição, produção e rapidez, co e filósofo Edmund Husserl (1859-1938), que

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buscava uma fundamentação rigorosa para o consciência. Esta descrição será feita pela in-
conhecimento. Voltou-se primeiramente para tuição, quer dizer, olhando de forma penetrante
as ciências exatas e, em seguida, para a filosofia, para os fenômenos, apreendendo-os de forma
ao procurar a fundamentação das primeiras. intuitiva em sua plena evidência, como são
Em 1884, ele começou a assistir às aulas de em si mesmos. “Nada está em contato mais
Franz Brentano, que ensinava filosofia em Vie- íntimo conosco do que a própria consciência”,
na, modificando, assim, sua concepção de filo- afirma Fragata (1959, p. 81). Não se trata, na
sofia. Husserl não a assumia, até então, como fenomenologia, de deduzir, partindo dos efei-
verdadeira ciência, tendo em vista a diversida- tos às causas para buscar a raiz profunda dos
de de sistemas filosóficos, incompatíveis com fenômenos. A descrição atende apenas ao que
o seu desejo de rigor científico. De acordo com aparece na consciência, isto é, aos objetos sin-
Fragata (1959), Brentano contrastava com esta gulares apreendidos imediatamente que são
visão pessimista, o que trouxe a Husserl novo considerados como conteúdo da consciência,
entusiasmo: fenômenos. Segundo Fragata (1959, p. 82):

A pura objetividade com que (Brentano) tocava De um modo geral e no seu sentido mais vasto,
todos os problemas, a sua exposição por meio de fenômeno estende-se a tudo aquilo de que po-
aporias, a finura dialética com que ponderava to- demos ter consciência, de qualquer modo que
dos os argumentos possíveis, o discernimento das seja. Portanto, não só objetos de consciência, mas
equivocações, o retorno às fontes primitivas dos também os próprios atos enquanto conscientes,
conceitos filosóficos na intuição – tudo isto, es- sejam eles intelectivos, volitivos ou afetivos, são
creve Husserl, encheu-me de admiração e segura para Husserl ‘fenômenos’.
confiança (Husserl, 1919, p. 154-155).
Husserl não põe em dúvida a existência
Husserl compreendeu que a filosofia me- do mundo em si, o que ele faz é suspender o
recia ser considerada com seriedade, como ci- próprio juízo relativo a esta existência, “mes-
ência rigorosa. Para dar consistência científica mo que se trate da existência do próprio ‘eu’ e
à filosofia, e, a partir dela, a todas as ciências, dos seus pensamentos” (Fragata, 1959, p. 92).
decide começar estabelecendo seus funda- Esta suspensão foi designada com a palavra
mentos. Este esforço dará início à Fenomeno- grega epoché, usada na Antiguidade pelos cé-
logia husserliana. ticos pirrônicos da filosofia que “‘suspendiam’
A palavra fenomenologia deriva do verbo ou se ‘abstinham’ de qualquer assentimento
grego phaíno, que significa fazer brilhar, fazer por não reconhecerem razões decisivamen-
ver, indicar, mostrar-se, aparecer. Fenômeno é te eliminatórias da incerteza” (Fragata, 1959,
o que se mostra ou aparece. Husserl vai tornar p. 92). Todavia, Husserl não irá recorrer à epo-
independente aquilo que aparece na consciên- ché no sentido dado pelos céticos, mas como
cia do objeto exterior, da existência da coisa um instrumento de depuração, ou seja, em
em si mesma, à qual o fenômeno estivera apri- lugar de duvidar da existência do mundo ou
sionado na tradição. O fenômeno que antes era suprimi-lo, ele será entendido apenas “sob o
pensado sempre como relativo a um objeto, aspecto como se apresenta à consciência, – re-
exterior, ficará agora encerrado no campo da duzido à consciência” (Fragata, 1959, p. 92).
consciência: A tese do mundo em si mesmo será colocada
entre parênteses. Para sair da atitude natural
Sem negar qualquer relação a um objeto exteri- ou mundana, aquela em que habitualmente
or, Husserl prescindirá dele radicalmente, con- vivemos, para a transcendental ou fenome-
siderando o fenômeno na sua pureza absoluta, nológica, Husserl parte da atitude natural,
como aparecimento em si mesmo, isto é, como e “eleva-nos à ‘consciência transcendental’
a própria coisa simplesmente enquanto revelada
através da ‘consciência psicológica’” (Fragata,
à consciência, - e por isso caracterizá-lo-á de
puro ou absoluto. [...] A fenomenologia [...], 1959, p. 100). Esta elevação se faz por meio de
no sentido husserliano, será, portanto, o estudo duas reduções, psicológica e transcendental.
dos fenômenos puros ou absolutos, isto é, uma Na primeira, em lugar do mundo em si, sur-
‘fenomenologia pura’ (Fragata, 1959, p. 80, gri- ge o mundo consciente, reduzido às vivências,
fos do autor). ou psicológico, quando se fala na primeira
pessoa do singular. Ao sujeitar os fenômenos
O objetivo da fenomenologia é descrever singulares a uma série arbitrária de variações,
com rigor os fenômenos, ou seja, as coisas redução eidética, se chega ao que se apresenta
consideradas como meros aparecimentos na como invariável, comum, a essência ou eidos.

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Fragata (1959, p. 108) exemplifica o método acesso ao fenômeno, que é o mundo apreendi-
das variações pelas quais é possível levar do do pela consciência.
indivíduo, “este homem”, à essência ou eidos A clínica pautada pelo método fenomeno-
ainda empíricos, “homem branco” ou “homem lógico pretende descrever o que se passa com
negro”, e daí à essência pura, “o homem como o cliente a partir daquilo que ele mesmo revela
tal”. Exercitando a epoché de forma mais radi- através da fala, do silêncio, do desenho ou das
cal, a subjetividade psicológica transforma-se técnicas projetivas. Considera que tal descri-
em subjetividade transcendental. Através des- ção, que é um modo de apreensão do mundo,
ta atitude, coloca-se entre parênteses o “eu” de si mesmo e do outro, será sempre singular
na sua realidade total, enquanto existente no (Mattar e Sá, 2008; Sá, 2002; Feijoo, 2000).
mundo, e todos os seus atos, a fim de atingir os Embora a psicologia existencial não espe-
fenômenos verdadeiramente puros. “O eu, as- cifique uma abordagem em psicoterapia in-
sim depurado, é o eu puro, apto a conhecer sem fantil, como acontece com a Ludoterapia não
vício, como ‘expectador desinteressado’ [...] ou diretiva e com a Gestalt-terapia – por não par-
imparcial [...], tudo o que se apresenta como tir de uma concepção desenvolvimentista da
é, ou melhor, tudo o que dele brota; é o eu existência –, alguns trabalhos foram publica-
numa nova atitude oposta à natural, - o eu em dos de forma a relacionar o método fenome-
‘atitude fenomenológica’ ou ‘transcendental’” nológico e a filosofia da existência ao contexto
(Fragata, 1959, p. 114-115, grifos do autor). A da psicoterapia infantil. Em um destes traba-
epoché radical permite o contato imediato com lhos, Feijoo (1997) discutiu os aspectos teóricos
as coisas como se apresentam na sua evidência e práticos da psicoterapia infantil sob a ótica
originária à consciência. O fenomenólogo deve fenomenológico-existencial. A autora afirma
apenas olhar puramente para esses fenôme- que é preciso exercitar a epoché para que o te-
nos puros, “deixar-se orientar por eles como rapeuta atue de forma própria que não se con-
se apresentam na sua ‘evidência originária’, funda com a vivência cotidiana. Através do
explorando, descrevendo as riquezas insondá- brincar, a criança poderá expressar toda a sua
veis deste novo mundo, que é a ‘consciência hostilidade, e o terapeuta vai criar um ambien-
pura’” (Fragata, 1959, p. 117). Por fim, tem-se te permissivo para que ela externe esses sen-
a definição da fenomenologia husserliana pelo timentos, sem criticá-la, censurá-la ou dar-lhe
próprio Husserl: “Disciplina puramente des- lições de moral. Essa forma de atuar vai dife-
critiva que explora, pela intuição pura, o cam- renciar o psicólogo das pessoas comuns, pois
po da consciência transcendentalmente pura” a ele cabe a compreensão desta expressão. A
(Husserl in Fragata, 1959, p. 116). expressão dos sentimentos pode ser ambígua
O objetivo deste trabalho não é aprofundar e contraditória. As intervenções do terapeuta
neste momento o estudo da Fenomenologia deverão mobilizar os sentimentos de forma
de Husserl, mas mostrar que o método feno- que estes apareçam através do brincar, da ação
menológico se justifica como uma interessante e pela linguagem (Feijoo, 1997).
possibilidade para a psicologia clínica, na me- Segundo Feijoo (1997), a atitude ética do
dida em que se volta para a descrição da apre- terapeuta frente ao cliente-criança é isenta de
ensão do mundo pela consciência, ou seja, do seus valores. Não cabe ao terapeuta avaliar
conteúdo intencional da consciência. Embora uma atitude feia ou bonita, certa ou errada.
o termo epoché tenha se vulgarizado no meio Deve evitar uma atitude de julgamento, uma
psi de forma muitas vezes pouco fiel à defini- direção quanto ao caminho que a criança deve
ção e aplicação que lhe foi dada por Husserl, seguir. Nesse sentido, também se aproxima da
uma vez conhecida e exercitada de forma ri- proposta de Axline (1972). Ressalta ainda que
gorosa, poderá fazer com que se esteja mais a atuação do psicoterapeuta deva ocorrer mui-
atento à própria consciência dos fenômenos na to mais como uma arte do que uma técnica e
clínica, ao modo como se apresentam em sua que os aprendizes de ludoterapia passam por
evidência originária. Afirma Fragata (1959, momentos difíceis em que se separar da forma
p. 117): “Graças à atitude aonde nos condu- como lidam com o cotidiano torna-se uma tare-
ziu a ‘epoché’ mais radical, estamos em contato fa árdua. Lembra que é comum que psicólogos
imediato com as ‘coisas’ que se nos apresen- inexperientes cometam alguns deslizes como
tam na sua evidência originária [...]”. Dessa entrar em competição com a criança que assu-
forma, em lugar de possuirmos o mundo em me no mundo uma postura autoritária, para
si, apenas podemos ter acesso à consciência do mostrar à criança “quem é que manda”. Agir
mundo. Em outras palavras, somente se tem desta forma implica em prejuízo do processo,

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pois neste contexto não há lugar para disputa, para ser bem visto em toda parte, para se elevar
a relação deve se estruturar como de ajuda. O na sociedade. Aqui, nenhuma dificuldade, aqui
psicólogo atua como facilitador que, junto com o eu e sua infinitização deixaram de ser um en-
a criança, cria condições de crescimento num trave. Polido como um seixo, o nosso homem gira
dum lado para outro como moeda corrente. Bem
ambiente que lhe permita a expressão dos seus
longe de o tomarem por um desesperado, é pre-
significados. Desse modo, o terapeuta irá aon- cisamente um homem como a sociedade o quer.
de o cliente está, agindo de acordo com o mé- (Kierkegaard, 2002b [1849], p. 37).
todo proposto por Kierkegaard (2002a [1849])
para aquele que pretende ajudar o outro. O “eu”, para Kierkegaard (2002b [1849]), se
constitui como desespero, até que decida as-
A estratégia da comunicação indireta sumir-se em sua singularidade, ou seja, aceite
em Kierkegaard e a relação de ajuda ser o “eu” que verdadeiramente é e se aceite
na psicologia existencial como lançado ao mundo de contingências e
possibilidades. A palavra desespero não tem
O filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard aqui o sentido corrente, de reação a um aconte-
(1813-1855) empreendeu importante crítica da cimento desesperador, mas diz respeito a uma
filosofia como especulação ou sistema. Defen- condição do homem pelo fato de se constituir
deu que o interesse do filósofo deveria ser a como síntese de opostos, que são os paradoxos
existência concreta do homem e sua ação no da existência: necessários e possíveis, tempo-
mundo, em lugar dos intermináveis esquemas
ral e eterno, finito e infinito.
teóricos distanciados da vida. O que um filóso-
O projeto autoral de Kierkegaard teve a
fo pensa e escreve, defendia Kierkegaard, deve
intenção de promover uma aproximação do
fazer sentido para si mesmo como existente,
leitor, atraindo-o com os temas sobre os quais
ou não passará de mera teorização acadêmica.
escrevia, para então começar a desfazer os la-
Kierkegaard alertava para o distanciamen-
ços de sua ilusão. Este projeto está descrito na
to do existente em relação a si mesmo, seu des-
obra Ponto de vista explicativo da minha obra de
conhecimento de si mesmo, que o faz viver na
escritor (2002a [1849]), em que o filósofo suge-
ilusão de ser o que não é. Perdendo-se na mul-
re as atitudes nas quais deve pautar-se aquele
tidão, tentando se esquecer de que é um Indi-
que deseja ajudar o outro. De acordo com Fei-
víduo1 (Kierkegaard, 2002a [1849]), o homem
joo (2000), estas atitudes podem ser também
se deixa levar pelos outros, pela moda, por
aquelas do psicoterapeuta existencial.
aquilo que todos são e fazem. Ao querer ser
Kierkegaard (2002a [1849]) propõe o se-
como “todo mundo” transforma-se em “nin-
guinte: a ilusão só pode ser destruída por meios
guém”. Para o pensador dinamarquês, a doen-
indiretos, pois a intervenção direta a fortalece;
ça mortal é o desespero, miséria espiritual que
aquele que pretende ajudar não deve esperar
consiste no querer libertar-se de si mesmo.
reconhecimento por sua ajuda, nem orgulhar-
Afirmava Kierkegaard (2002b [1849]) que o
se dela; é preciso promover de forma cuidado-
psicólogo sabe o que é o desespero quando se
sa e paciente a aproximação, a fim de chegar
encontra diante dele, conhece-o e não se con-
onde o outro está e começar por aí, caminhan-
tenta com a opinião de quem não se crê ou crê
desesperado. Compara-o ao médico, o qual do com ele; deve-se entender o que o outro en-
tem condições de saber se aquele que se julga tende, da forma como entende, colocando-se
são é, no fundo, um doente. Assim, o psicó- de maneira humilde na relação, como desco-
logo também tem condições de reconhecer o nhecendo mais do que aquele a quem ajuda;
desesperado mesmo que este não aparente sê- deve-se assumir a responsabilidade por sua
lo, não tenha consciência de o ser e tenha uma atuação, e usar metáforas, quando necessário,
vida tranquila do ponto de vista da opinião pois as interpretações poéticas podem ajudar
comum. O desespero é justamente a “incons- aquele que fala do seu sofrimento; o ajudan-
ciência em que os homens estão de seu destino te precisa ser um ouvinte atento, escutando o
espiritual” (Kierkegaard, 2002b [1849], p. 28). que o outro tem mais prazer em contar sem as-
sombro; deve se apresentar com o mesmo tipo
Este tipo de desespero passa completamente des- de paixão do outro homem, seja em tom ale-
percebido. Perdendo assim o seu eu, um desespe- gre, para os alegres, seja em tom menor, para
rado desta espécie adquire uma aptidão sem-fim os melancólicos. Por fim, deve fazer tudo isso

1
O filósofo escrevia o termo indivíduo com inicial maiúscula (Kierkegaard, 2002a [1849]).

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sem temor, embora não se possa fazê-lo com em crise [...]. [...] Freud escrevia no nível técnico,
plena certeza e segurança. onde seu gênio era supremo; talvez ele soubesse, a
Kierkegaard (2002a [1849]) pressupõe que respeito da ansiedade, mais do qualquer outro até
o outro se encontra iludido e distanciado de si aquela época. Kierkegaard, um gênio de categoria
diferente, escrevia em nível existencial, ontológi-
mesmo, não se conhece nem sabe de si mesmo.
co; ele conhecia a ansiedade2 (May, 1974, p. 2-3).
Por este motivo, a aproximação deve dar-se de
modo sutil, a fim de que aquele que está sob a
Não obstante a importância das influências
ilusão não sinta a ajuda como ameaça e permi- da filosofia da existência levadas por May da
ta que o ajudante se aproxime, como alguém Europa para os Estados Unidos, ao cunhar a ex-
que compartilha de seus pontos de vista, de pressão psicologia existencial-humanística, May
sua ilusão. Ao invés de romper os laços da ilu- (1974) tentou fundir duas perspectivas que
são diretamente, o que se propõe é desfazê-los apresentam pressupostos filosóficos e origens
aos poucos e de forma cuidadosa. Portanto, históricas diferentes (Feijoo e Mattar, 2008). A
a suspensão dos juízos e representações e a psicologia humanista pauta-se nos valores do
aproximação indireta através do brincar per- Humanismo, que remonta à Grécia Antiga, aos
mitirão ao terapeuta infantil estabelecer com a ideais do Renascimento, e, principalmente, ao
criança uma relação de confiança e permissi- Movimento do Potencial Humano que floresce
vidade. Ao deixar de avaliá-la ou julgá-la, de na década de 1960 nos Estados Unidos, perí-
procurar ajustá-la às expectativas dos adultos odo de grande prosperidade econômica e oti-
a seu respeito, e de competir ou mostrar-se im- mismo. A psicologia existencial, por sua vez,
paciente com as dificuldades que ela revele, o se fundamenta na Filosofia da Existência, que
terapeuta estará aberto ao que se apresentar, tem seu surgimento com Kierkegaard, na pri-
a fim de captar e compreender o sentido das meira metade do século XIX, na Dinamarca, no
experiências vividas pela criança e ajudá-la no Existencialismo sartreano francês dos trágicos
processo de expressão de sentimentos, autor- anos do pós-guerra, na década de 1940, e na
reconhecimento e singularização. Daseinsanalyse de Martin Heidegger, Medard
Rollo May (1974, 1980) estabeleceu apro- Boss e Ludwig Binswanger. Enquanto a psico-
ximações entre a filosofia da existência e a logia humanista crê em uma essência humana
psicologia clínica. Um dos poucos psicólogos positiva inata, que confere uma tendência ao
a citar Kierkegaard, May (1974, 1980) deixou crescimento, ao equilíbrio e à autorrealização,
clara a influência da filosofia kierkegaardiana a psicologia existencial recusa qualquer traço
em seu pensamento quando narrou um episó- essencial a priori, pois compreende o homem
dio sobre o período em que esteve internado como uma abertura livre, indeterminada, lan-
com tuberculose, por exemplo. Ao longo da çada ao mundo, que não possui potenciais la-
internação, que durou um ano, ele estudou os tentes, mas possibilidades, frente às quais está
dois únicos livros escritos até aquele momen- fadado a escolher. Traz à luz de forma mais
to sobre a angústia: O problema da ansiedade de intensa as temáticas da solidão, angústia, vul-
Freud, onde a ansiedade, na primeira teoria, nerabilidade e ser-para-a-morte, que marcam
é o ressurgimento da libido reprimida, e, de- inevitavelmente a existência do homem em
pois, na segunda hipótese, uma reação do ego qualquer idade.
à ameaça da perda do objeto amado; e O con-
ceito de angústia de Kierkegaard, que descreve a O método não diretivo de Virginia
angústia como um desejo daquilo que se teme, Axline: as atitudes do psicoterapeuta
uma antipatia simpática. Eis como descreve a infantil
diferença entre as duas leituras:
Na psicoterapia infantil, pode-se dizer que
O que me impressionou fortemente foi que Ki- o brincar será o modo indireto de ir onde a
erkegaard escrevia precisamente sobre o que
criança se encontra, partindo daí a fim de aju-
meus companheiros doentes e eu próprio está-
vamos sofrendo. Freud, pelo contrário, escre-
dá-la no autorreconhecimento. A perspectiva
via em nível diferente, dando formulações dos da ludoterapia desenvolvida por Virginia May
mecanismos psíquicos pelos quais se evidencia a Axline (1911-1988), a partir da não diretivida-
ansiedade. Kierkegaard estava retratando o que é de, em muito se aproxima desta forma de co-
diretamente experimentado pelos seres humanos municação indireta.

2
A tradução mais adequada seria angústia, termo usado por Kierkegaard.

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Três perspectivas em psicoterapia infantil: existencial, não diretiva e Gestalt-terapia

Axline trabalhou com Carl Rogers (1902- por guardar os brinquedos, ou o contrário, que
1987), fundador da Abordagem Centrada na é preguiçosa ou indisciplinada por não guar-
Pessoa. Adotando o método não diretivo no dá-los. Observa-se o seu modo de revelar-se,
atendimento a crianças, Axline publicou, em sem julgar ou criticar. Evitam-se as sugestões,
1947, a obra Ludoterapia (1972), que viria a se deixando que a criança escolha o que quiser
tornar, ao lado do conhecido Dibs em busca de si fazer durante a sessão. Evitar-se-ão também as
mesmo (1989), uma referência para o psicotera- falas do impessoal, que esperam que a criança
peuta infantil não diretivo. No livro, a autora aja como todas as outras.
apresenta os princípios que considera indis- É importante refletir os sentimentos que se
pensáveis para os que se propõem a atender mostram. Se a criança diz, após um desenho,
crianças e que dizem respeito muito mais à “eu não pinto muito bem”, não cabe ao tera-
atitude do terapeuta do que a técnicas ou in- peuta dizer que não é verdade, que o desenho
formações teóricas. está muito bonito etc., pois, assim, se afasta
De acordo com Axline (1972), a primeira do sentimento da criança e fica centrado em
condição é gostar de crianças, respeitá-las e si próprio.
tratá-las com sinceridade. O terapeuta deve (ii) É necessário aceitar a criança exatamen-
assumir uma atitude diferente daquela dos te como ela é, aceitar genuinamente o que ela
outros adultos com os quais a criança convive, diz ou faz, já que a criança pode perceber a
no sentido de que deve ser permissivo e acei- rejeição, mesmo que velada. Esse ato permite,
tador, não dar ordens e não apressar a criança assim, à criança a coragem para exprimir os
por impaciência. Seu papel não é passivo e sim sentimentos verdadeiros, sem se sentir culpa-
de alerta, de sensibilidade e de constante apre- da por estes. Ressalta que a aceitação não é o
ciação daquilo que a criança diz ou faz. São mesmo que aprovação no sentido de incentivo
necessários uma compreensão e um genuíno aos sentimentos expressos, o que se busca é
interesse pela criança, de modo a encorajá-la possibilitar o seu reconhecimento. De acordo
a compartilhar seu mundo interior. Mantém com este princípio, o terapeuta não tenta mu-
uma atitude profissional em seu trabalho e não dar a criança e não começa a fazer algo espe-
revela as confidências da criança aos pais, pro- rando que a criança o acompanhe.
fessores ou quem quer que seja que pergunte (iii) O terapeuta deve estabelecer uma sen-
sobre o que ela fez ou disse durante a sua hora sação de permissividade no relacionamento
de terapia. Esta hora é da criança, e o que faz com a criança, de forma que esta se sinta livre
ou diz é estritamente confidencial. para expressar por completo os seus sentimen-
Axline (1972) resume em oito as atitudes tos. A hora da terapia pertence à criança, para
básicas do terapeuta junto à criança. São elas: ser usada como ela quiser. A criança escolhe
usar ou não usar o material, o terapeuta não
(i) O terapeuta deve desenvolver um amis- a encoraja nem faz sugestões. O objetivo, se-
toso e cálido relacionamento com a criança, gundo Axline, é levar à autossuficiência, in-
de forma que logo se estabeleça o rapport. O dependência e capacidade de autodireção.
contato inicial é de imensa importância para o O terapeuta aceita o silêncio, como qualquer
sucesso da terapia. Axline denomina “estrutu- outra expressão. A criança, segundo a autora,
ração” ao desenvolvimento do relacionamento resiste aos esforços para mudá-la, e, por vezes,
de acordo com os princípios básicos, que vi- o seu silêncio, ou o fato de não brincar podem
sam conduzir a criança à autoexpressão, en- ser “testes” para o terapeuta, quando a criança
tendimento de seus sentimentos e autoconhe- está atenta se ele também deseja modificá-la e
cimento. É necessário um empenho sincero em se, de fato, ela é livre para agir ali como quiser.
entender a criança e o controle sobre respostas Não deve fazer nenhuma pergunta tencionan-
que contrariem os princípios básicos, além da do esquadrinhar a vida íntima da criança, o
aceitação e reflexão de sentimentos sem ten- que o fará permanecer na própria curiosidade.
tar fazer a criança agir como outras crianças A criança deverá sentir-se à vontade para fazer
e sem coagir. Lembra que é preciso não ser cá- tudo o que quiser, sem sentimento de culpa ou
lido e amigável em excesso. Revela ainda que de ridículo, a fim de libertar-se das tensões,
a maioria das crianças entra prontamente na tornando-se emocionalmente relaxada, e, as-
sala de brinquedos. Uma vez nesta, deve-se sim, chegar ao que a autora chama de compor-
cuidar para evitar os elogios ou críticas feitos tamento construtivo.
às ações praticadas na sala, dizendo, por exem- (iv) O terapeuta fica atento para reconhecer
plo, que a criança é organizada e comportada os sentimentos que a criança está exprimindo

Contextos Clínicos, vol. 3, n. 2, julho-dezembro 2010 82


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e os reflete de maneira tal que possibilite a o brinquedo, quando parece que ela está bem
ela obter uma visão interior do seu compor- próxima do centro do problema e, no entanto,
tamento. Durante os primeiros contatos, as vê-se que ela gira em torno dele. A experiência
respostas do terapeuta parecerão inexpressi- ensina que não se pode apressar a terapia.
vas: serão respostas ao conteúdo, não ainda (vii) O terapeuta não tenta abreviar a du-
ao sentimento que a criança está exprimindo; ração da terapia. É um processo gradativo e
terapeuta e criança estão se experimentando assim deve ser reconhecido por ele. Axline
e tentando estabelecer contato, a criança está (1972) fala em “prontidão”: quando a crian-
explorando a sala de brinquedos. Pode-se ça estiver pronta para exprimir seus senti-
responder às perguntas objetivas de maneira mentos em presença do terapeuta, ela o fará,
direta, o que permite à criança ir adiante, par- e não se pode forçá-la a fazê-lo às pressas,
tindo daquele ponto. o que a fará retroceder. Frequentemente a
Axline (1972) estabelece uma diferença en- criança passa por um período de brinquedo
tre o reconhecimento e a interpretação. O re- aparentemente sem significado, durante a
conhecimento consiste em captar o sentimen- hora de terapia. Exige paciência e compre-
to expresso e reconhecê-lo, a fim de ajudar ensão por parte do terapeuta. Deve deixá-la
a criança a ter uma visão clara de si mesma. “em paz”, demorar o quanto quiser, respei-
Deve-se devolver exatamente as palavras da tar o ritmo da criança. Se a criança tem um
criança, incluindo o símbolo que for por ela problema, ela o trará apenas quando estiver
utilizado, sem tentar traduzir o comportamen- pronta. O terapeuta não expressa os senti-
to simbólico em palavras. Se a criança disser mentos da criança, apenas os reflete.
“o boneco”, “o menino”, o terapeuta usará os (viii) Por fim, o terapeuta estabelece apenas
mesmos termos. Se disser “eu”, o terapeuta aqueles limites necessários para que se situe a
pode dizer “você”. Na interpretação, ao con- terapia no mundo da realidade e para que a
trário, se tenta traduzir o comportamento sim- criança tome consciência de sua responsabili-
bólico em palavras, dizendo o que acha que a dade no relacionamento. Os limites são pou-
criança quis dizer com seus atos. cos, mas importantes. Restringem-se às coisas
(v) O terapeuta mantém um profundo res- materiais, como evitar que se destrua irreme-
peito pela capacidade da criança de solucionar diavelmente o material de brinquedo, que se
seus próprios problemas, se uma oportunida- danifique a sala ou que se ataque o terapeu-
de lhe for dada. A responsabilidade de fazer ta, e aos limites do senso comum, que visem à
escolhas, ou de estabelecer mudanças, perten- proteção da criança. Não há valor terapêutico
ce à criança, e a mudança advém do insight. em permitir situações de risco. A hora de tera-
Diferente do conformismo que às vezes se es- pia não deve estar tão desvinculada da vida
pera da criança, a adaptação a certos padrões cotidiana, a ponto de que o que nela acontece
estabelecidos não é um sinal de ajustamento. não possa ir além da sala de terapia.
Por mais limitações que apresente, sempre é
possível que a criança escolha. Os limites propostos por Axline (1972) são
(vi) O terapeuta não tenta dirigir os atos ou os mínimos necessários, como o tempo da ses-
a conversa da criança de maneira alguma. É são e o cuidado para que a criança não se fira e
ela quem o faz e indica o caminho, o terapeu- não fira a outra pessoa. Se a criança ficar com
ta a acompanha. Na orientação não diretiva, raiva, reflete-se o sentimento. O terapeuta in-
o terapeuta não faz perguntas indiscretas; ex- terferiu em algo que queria fazer, e isto a ir-
clui os elogios, não critica o que a criança faz. ritou. Pode-se ajudar a criança a enfrentar os
Pode ajudar, se a criança pedir e dar informa- limites que lhe serão impostos pelos relaciona-
ções sobre a maneira de usar o material, mas mentos humanos em sociedade. Caso a criança
não sugerir. A hora de terapia não é uma hora insista em ultrapassar o limite colocado, não
de recreio, ou social, ou de experiência esco- cabe ao terapeuta passar um sermão nem fazê-
lar, é a hora da criança. O terapeuta não é um la sair da sala ou agir como se não se importas-
companheiro de brincadeira, não é um profes- se. Não irá rejeitar a criança como se esta o ti-
sor, nem é um substituto da mãe ou do pai. vesse desobedecido, uma vez que não se trata
Guarda para si suas opiniões, seus sentimen- de uma relação pedagógica. Poderia dizer: era
tos e sua orientação. O terapeuta deixa seus importante para você fazê-lo de qualquer jeito;
próprios sentimentos fora da situação. Esse queria me mostrar que podia fazê-lo.
princípio impõe restrições ao terapeuta. Não é Axline (1972) sugere usar material o mais re-
fácil deixar que a criança dirija por si mesma, sistente possível e define que qualquer ataque

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Três perspectivas em psicoterapia infantil: existencial, não diretiva e Gestalt-terapia

ao terapeuta deve ser interrompido imediata- As técnicas propostas pela autora são vistas
mente. A expressão de sentimentos negativos como meios de promover uma expressão de si
nos brinquedos não é censurada, e a criança mesmo que ajude a estabelecer a autoidenti-
pode usar o material que há na sala para esse dade e proporcione uma forma de expressar
fim. Após estabelecidos os limites, é preciso sentimentos. Procura trabalhar primeiro com
mantê-los. Deve-se esperar até o momento em o que é fácil e confortável para a criança, antes
que seja necessário falar deles, e a colocação dos de entrar nos lugares mais difíceis e descon-
limites é diferente da pressão para mudar ou fortáveis.
transformar a criança. Nessa perspectiva, quando a criança reve-
Axline (1972) define uma terapia bem su- la algum tipo de perturbação, acredita-se que
cedida como aquela que liberta sentimentos e existe alguma disfunção no equilíbrio e no fluxo
traz o desenvolvimento de insight que promo- do organismo total, e a terapia pode ser descri-
verá uma autodireção mais positiva. Seu livro ta como o voltar-se para localizar e restaurar a
Dibs: em busca de si mesmo (1989) exemplifica função mal colocada.
as intervenções pautadas nestes oito princí- O desenvolvimento e crescimento normal de
pios. Sob suspeita de problemas mentais, Dibs uma criança é parte essencial neste modelo de
passou a ser acompanhado em sessões de lu- trabalho. O desenvolvimento sadio, contínuo
doterapia, no decorrer das quais teve a pos- dos sentidos, do corpo, dos sentimentos e do
sibilidade de se expressar livremente, sem a intelecto da criança constitui a base subjacente
presença de críticas e julgamentos, logrando, do senso de eu da criança. Um senso de eu forte
assim, contrariar todas as previsões feitas a seu contribui para um bom contato com o meio am-
respeito. A obra tornou-se um clássico para os biente e com as pessoas desse meio ambiente,
que se interessam pela psicoterapia com crian- valor importante para a Gestalt-Terapia.
ças nesta perspectiva. A maioria das crianças consideradas neces-
Por fim, Axline (1972, p. 124) resume o que sitadas de ajuda possui uma coisa em comum:
compreende por psicoterapia infantil: alguma deficiência em suas funções de conta-
to: olhar, falar, tocar, escutar, mover-se, cheirar
A experiência terapêutica é uma experiência de e sentir o gosto (Oaklander, 1980). Crianças
crescimento. Dá-se à criança a oportunidade de se com problemas são incapazes de fazer bom
libertar de suas tensões, de se desfazer, por assim uso de uma ou mais de suas funções de conta-
dizer, de seus sentimentos mais perturbadores e, to ao se relacionarem com os adultos de suas
assim fazendo, de ganhar uma compreensão de si
vidas ou com o ambiente em geral. A forma
mesma que lhe permita autocontrolar-se. Através
dessa viva experiência na sala de brinquedos, ela como fazemos uso de nossas funções de con-
descobre a si mesma como uma pessoa, assim tato evidencia a força ou fraqueza relativa que
como novos caminhos que lhe permitam ajustar- sentimos. Se um senso de eu forte predispõe
se ao relacionamento humano, de maneira sau- a um bom contato, Oaklander (1980) não se
dável e realista. admira de que quase toda criança que atende
em terapia não pense muito bem de si mesma,
A autora descreve, dessa forma, a concep- embora possa fazer tudo ao seu alcance para
ção não diretiva pautada nos valores da Psico- manter este fato oculto.
logia Humanista, em que a terapia constitui-se As crianças se protegem de alguma manei-
em espaço privilegiado para a atualização dos ra. Algumas se retraem para não serem feridas.
potenciais de crescimento e libertação da ten- Algumas criam fantasias para se entreterem e
dência autorrealizadora do indivíduo, ajudan- tornarem suas vidas mais fáceis de serem vivi-
do-o a ser o autor de si mesmo. das. Algumas brincam, trabalham e aprendem
como se nada importasse, deixando de fora o
A perspectiva da Gestalt-Terapia com que é doloroso. Algumas se protegem, queren-
crianças do “aparecer”, e estas são as que recebem mais
atenção, o que tende a incentivar o comporta-
Considerada uma referência para a prática mento mais detestado pelos adultos. As crian-
da Gestalt-Terapia voltada para o atendimen- ças fazem o que podem para ir em frente, para
to infantil, a obra de Violet Oaklander (1980) sobreviver, em direção ao crescimento. Em
descreve a abordagem gestáltica com crianças, face de ausência ou interrupção no funciona-
cuja meta é ajudar a criança a tomar consci- mento natural, elas adotam algum comporta-
ência de si mesma e da sua existência em seu mento que parece servir para fazê-las avançar.
mundo. Assim, elas poderão agir de modo agressivo,

Contextos Clínicos, vol. 3, n. 2, julho-dezembro 2010 84


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hostil, irado, hiperativo; poderão se recolher evitar interpretações e julgamentos, aceitando


para mundos de sua própria criação; poderão a criança com respeito e consideração; come-
falar o mínimo possível, ou talvez nada; ter çar com a criança no ponto em que ela está, in-
medo de todo mundo e de tudo, ou de algo em dependente do que ouça, leia ou diagnostique;
particular; tornar-se exageradamente solícitas relacionar-se com ela da forma que escolheu
e “boazinhas”; se apegar de forma irritante aos ser com ele agora; não fazer nada que não es-
adultos em suas vidas; ter enurese ou encopre- teja à vontade para fazer, e se não estiver real-
se, ter asma, alergias, tiques, dores de barriga, mente disposto, sugerir outra atividade; estar
dores de cabeça, acidentes. Não há limite para atento à forma como a criança aborda a tarefa.
o que possa fazer na tentativa de atender as Aguiar (2005) propõe a necessidade de uma
suas necessidades. Debaixo destas tentativas visão mais atualizada da Gestalt-terapia com
de lidar com o mundo existem sempre neces- crianças. Embora reconheça os méritos do tra-
sidades não satisfeitas que resultam numa per- balho de Oaklander (1980), não deixa de consi-
da do senso de si próprio (Oaklander, 1980). derar que esta autora se concentra em recursos
O terapeuta, nessa abordagem, trabalha lúdicos e técnicas facilitadoras, em detrimento
para construir o senso de eu da criança, para de um arcabouço teórico que as contextualize
fortalecer as funções de contato e para renovar e dê sentido à condução do processo terapêu-
o seu próprio contato com seus sentidos, sen- tico. O risco de tal abordagem, que acabou se
timentos e uso do intelecto. Ao fazer isso, os tornando frequente entre gestalt-terapeutas,
comportamentos e sintomas que ela tem utili- está em reduzir a Gestalt-terapia à mera com-
zado para a expressão e crescimento mal diri- pilação de técnicas, definida apenas como fle-
gidos frequentemente caem por terra sem que xível e intuitiva, como se isto já definisse tudo,
ela tenha plena consciência de que sua conduta sem uma fundamentação mais rigorosa do
está mudando. A sua consciência é redirigida trabalho clínico com crianças. Tal fundamen-
para a percepção sadia de suas próprias fun- tação, ressalta Aguiar (2005), deve ser buscada
ções de contato, seu próprio organismo, em na fenomenologia e no existencialismo, bem
direção a comportamentos mais satisfatórios. como na visão de campo e atitude dialógica.
Para isso, Oaklander (1980) sugere diversas O homem é considerado em uma perspectiva
técnicas, como a da fantasia, dos desenhos de holística e relacional, e, ao mesmo tempo em
família, e materiais diferentes ao longo do li- que é influenciado pelo meio, age sobre este,
vro, como argila, tinta para pintura a dedo etc. modificando-o. A autora refere os trabalhos de
Quando a criança em terapia experiencia os Axline e Oaklander, no já reportado período
seus sentidos, o seu corpo, os seus sentimen- pós-guerra nos Estados Unidos, como sendo
tos, e o uso que pode fazer do seu intelecto, ela o surgimento de uma perspectiva existencial
recupera uma postura sadia frente à vida. Pro- fenomenológica.
porciona-se à criança o máximo de experiência Para Aguiar (2005), a prática da Gestalt-te-
nas áreas em que mais necessita, encorajando- rapia com crianças tem por objetivo a retoma-
a a ter presente o seu processo de experienciar. da do curso satisfatório de desenvolvimento
A tarefa do terapeuta será, desse modo, a da criança. Para isso, deve oferecer à criança a
de ajudar as crianças a sentirem-se fortes den- oportunidade de libertar-se daquilo que obstrui
tro de si próprias, ajudá-las a ver o mundo a seus sentidos e seu contato pleno com o mun-
sua volta tal como ele realmente é, escolhendo do. O fio condutor do processo terapêutico está
sua forma de viver no mundo. na relação estabelecida entre a criança e o psi-
Para Oaklander (1980), são princípios fun- coterapeuta, por intermédio da metodologia fe-
damentais: gostar de crianças, estabelecer com nomenológica e das técnicas facilitadoras, que
elas uma relação de aceitação e confiança, proporcionarão à criança uma maior awereness
conhecer algo acerca de como as crianças se a respeito de si mesma e do mundo, com a con-
desenvolvem, crescem e aprendem e compre- sequente expansão e flexibilização de suas fron-
ender as questões importantes que correspon- teiras de contato. A autora retorna a Oaklander
dem a faixas etárias especificas; ter a habilida- em suas ideias mais recentes, já na década de
de de ser direto sem ser invasor, de ser leve 1990, como referência para definir o objetivo da
e delicado sem ser demasiadamente passivo e Gestalt-terapia infantil, que se refere a:
não diretivo; saber algo sobre os sistemas fa-
miliares, conhecer as influências ambientais [...] reencontrar a vivacidade e o contato pleno
que agem sobre a criança (lar, escola, igreja, com o mundo através da desobstrução de seus
cursos etc.); ser aberto e honesto com a criança, sentidos, do reconhecimento do seu corpo, da

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Três perspectivas em psicoterapia infantil: existencial, não diretiva e Gestalt-terapia

identificação, aceitação e expressão de seus sen- tos filosóficos e alguns objetivos, uma vez que
timentos suprimidos, da possibilidade de reali- a primeira admite o homem como detentor de
zar escolhas e verbalizar suas necessidades, bem potenciais inatos ao crescimento e a segunda fala
como de encontrar formas para satisfazê-las, em estar lançado às possibilidades, sem nenhu-
além de aceitar quem ela é na sua singularidade
ma tendência inata que direcione o homem. En-
(Aguiar, 2005, p. 186).
quanto a psicologia humanista rogeriana fala em
autenticidade como condição na terapia Kierke-
Aguiar (2005) enfatiza que a escolha pelo
gaard, propõe, contudo, que se compartilhe da
método fenomenológico dá-se pelo fato de que
ilusão daquele que se quer ajudar. Sendo assim,
este não visa interpretar ou prescrever, mas
a não diretividade no trabalho de Axline (1972)
sim descrever o significado do que é expresso
pretende permitir que o cliente cresça, o que ele
pela criança na sessão terapêutica. Na inter-
fará por si só, quando lhe forem oferecidas as
pretação se concede um significado ao que é
condições para tal, pois tem em si mesmo o po-
trazido pela criança, pautado em um a priori
tencial e o conhecimento do que é o melhor para
teórico; na prescrição, o terapeuta estabelece
si próprio. O cliente, portanto, sabe o caminho.
formas específicas do uso de recursos lúdicos
Para a psicologia existencial, todavia, a grande
para que a criança resolva o que traz como pro-
maioria dos homens vive o desconhecimento de
blema; na descrição fenomenológica, o tera-
si, ignorando até mesmo ter um “eu”. Além dis-
peuta possibilita que a própria criança “cons-
so, o existente, nessa perspectiva, não alcançará
trua gradativamente o significado do material
a plena autonomia, tendo em vista as contingên-
que traz para a sessão terapêutica, sem a in-
cias às quais está lançado.
terferência de qualquer ‘a priori’ do terapeuta,
Buscou-se, por fim, refletir com aqueles
seja ele de caráter teórico ou oriundo de seus
que se encontram diante do desafio da psico-
próprios valores” (Aguiar, 2005, p. 187). Desta
terapia infantil, contribuindo de forma mais
forma, as intervenções do terapeuta são feitas
prática no que se refere às atitudes do psico-
de forma descritiva, exercitando a colocação
terapeuta, possíveis técnicas a serem usadas
entre parênteses de ideias pré-concebidas.
para auxiliar a expressão dos sentimentos e
Entretanto, não se detém apenas na reflexão e
a importância de aproximar-se da criança de
na pura descrição do que a criança faz, como
forma interessada e cuidadosa.
no trabalho de Axline, mas assume um papel
mais ativo, fomentando um maior desenvolvi-
Referências
mento do material trazido pela criança.
AGUIAR, L. 2005. Gestalt-terapia com crianças: teoria
Considerações finais e prática. São Paulo, Livro Pleno, 326 p.
AXLINE, V.M. 1972. Ludoterapia. Belo Horizonte,
O artigo apresentou três perspectivas de Interlivros, 350 p.
atuação em psicoterapia infantil, sendo as AXLINE, V.M. 1989. Dibs em busca de si mesmo. Rio
mesmas fundamentadas pelo método fenome- de Janeiro, Agir, 290 p.
FEIJOO, A.M.L.C.; MATTAR, C.M. 2009. Psicolo-
nológico, o que as diferencia de abordagens
gia Humanista e Psicologia Existencial. In: C.D.
diretivas, explicativas ou interpretativas. No TOURINHO; R.S. LIMA, Estudos em Psicolo-
caso da psicologia existencial, foi acrescentada gia: uma introdução. Niterói, Proclama Editora,
a estratégia de comunicação indireta de acor- p. 139-160.
do com a proposta kierkegaardiana. Alguns FEIJOO, A.M.L.C. 1997. Aspectos teórico-práticos
princípios e atitudes que podem auxiliar no na Ludoterapia. Fenômeno Psi, 1:4-11.
trabalho da psicologia clínica com crianças FEIJOO, A.M.L.C. 2000. A escuta e a fala em psicote-
rapia: uma proposta fenomenológico-existencial. São
foram trazidos, bem como apresentadas algu- Paulo, Vetor, 193 p.
mas diferenças entre as perspectivas aborda- FRAGATA, J. 1959. A Fenomenologia de Husserl
das, guardadas as suas semelhanças. como fundamento da filosofia. Braga, Livraria
Pôde-se notar, com o trabalho de Axline Cruz, 286 p.
(1972), que existem aproximações interessantes FURNARI, E. 2000. Lolo Barnabé. São Paulo, Moder-
entre a não diretividade rogeriana e o método na, 32 p.
indireto de Kierkegaard, pois ambos propõem ir HUSSERL, E. 1919. Erinnerungen an Franz Bren-
tano. In: O. KRAUS, Franz Brentano. Munique,
onde o outro está, promovendo a aproximação Brech, p. 153-167.
de maneira cuidadosa, e a escuta, sem pressa, de KIERKEGAARD, S.A. 2002a [1849]. Ponto de vista
maneira atenta e interessada no que o cliente re- explicativo da minha obra de escritor. Lisboa, Edi-
vela. Diferem, entretanto, quanto aos pressupos- ções 70, 207 p.

Contextos Clínicos, vol. 3, n. 2, julho-dezembro 2010 86


Cristine Monteiro Mattar

KIERKEGAARD, S.A. 2002b [1849]. O desespero hu- OAKLANDER, V. 1980. Descobrindo crianças: abor-
mano. São Paulo, Martin Claret, 128 p. dagem gestáltica com crianças e adolescentes. São
MATTAR, C.M.; SÁ, R.N. de. 2008. Os sentidos de Paulo, Summus Editorial, 362 p.
“análise” e “analítica” no pensamento de Heide- SÁ, R.N. 2002. A psicoterapia e a questão da
gger e suas implicações para a psicoterapia. Re- técnica. Arquivos Brasileiros de Psicologia,
vista Estudos e Pesquisas em Psicologia, 8(4):191-203. 54(4):348-362.
MAY, R. (org.). 1974. Psicologia existencial. Porto Ale-
gre, Globo, 134 p.
MAY, R. 1980. O significado de ansiedade: as causas da
integração e desintegração da personalidade. Rio de Submetido em: 14/03/2010
Janeiro, Zahar, 374 p. Aceito em: 19/07/2010

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