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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
DISCIPLINA: TEORIA SISTÊMICA E TERAPIA DE FAMÍLIA E CASAL
CÓDIGO: PSI 01084 SEMESTRE: 2018/II
DEPARTAMENTO: PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E DA
PERSONALIDADE
Porto Alegre
Setembro, 2018
LAURA SAN MARTIN E PEDRO FAGUNDES
Porto Alegre
Setembro, 2018
1. Descrição do Filme: A Família Bélier
A trama conta a história de uma família de uma pequena cidade no interior da França. A
família é composta pela mãe Gigi, o pai Rodolphe, o irmão caçula Quentin e uma adolescente de
16 anos chamada Paula. Com o detalhe importante de que, tanto os pais quanto o irmão mais
novo são surdos, e Paula é a única mediadora de sua família com o resto os outros habitantes.
Observamos principalmentes nas cenas da mesa de jantar, que Paula assume o papel de intérprete
de todos. Ela também acaba administrando boa parte dos negócios da família, produtora de leites
e queijo em uma fazenda (assim, Paula necessita ser intérprete entre clientes e os pais, por
exemplo). Vemos no filme, logo de princípio, uma adolescente com responsabilidades marcantes
para com a família, ao passo em que ainda é vista pelos pais como uma criança.
Ao desenvolver do filme acabamos, como telespectadores, percebendo que por trás de
todas essas responsabilidades, Paula não deixa de ser uma típica adolescente, com seus medos,
inseguranças, paixões, irritações, privações, a busca por independência, etc. Vamos, portanto,
acompanhando curiosos essa fase da vida de Paula, não só no âmbito familiar, mas no escolar,
onde Paula começa a se descobrir. A garota entra no coral da escola, por estar interessada em um
novo aluno, e lá, acompanhada de seu professor rigoroso, acaba revelando o seu dom para o
canto. O professor sugere que tanto ela quanto o garoto se preparem para a seleção de uma escola
de canto famosa, em Paris. No caso de Paula ser aprovada, isso significaria a iminente mudança
para a capital, tendo que se despedir da família e, principalmente, deixar de exercer o seu papel
de intérprete. Por isso, Paula prefere não contar nada aos pais sobre o tal concurso.
Aproximando-se o final do filme, os pais, Gigi e Rodolphe, acabam por descobrir que
Paula teria essa possibilidade de se mudar (quando a garota conta em uma janta), e ali se instaura
um conflito familiar. Os pais custam muito a aceitar que Paula pode os deixar. Isso os obrigaria a
se reorganizar dentro da família, revendo seus conceitos sobre si e sobre a filha, evidenciando
um grande grau de dependência que tinham com Paula. Percebendo o desconforto, a garota
desiste de ir ao concurso para ficar com seus pais.
Gigi é quem mais externaliza revolta com a situação. Em um dado momento, embriagada,
ela diz que Paula deveria ter nascido surda. Afirma ter sido uma má mãe, ao mesmo tempo em
que se mostra incrédula pela filha cantar - “só faltaria você ser alérgica ao leite de vaca”. A
garota, magoada, pergunta se ela está condenada a passar a vida vendendo queijo por não ter tido
a sorte de nascer surda. O casal se abraça, e o pai a manda ir, pois eles ficarão bem sozinhos.
A reviravolta começa com Rodolphe, que se dispõe a ouvir a filha. Paula tem uma
apresentação com o coral, onde conta com a presença dos pais. A única devolução que eles
podem oferecer, contudo, é dizer o quanto ela estava linda. Eles voltam para casa, e pai e filha
têm um momento a sós no jardim. Ele pede que ela cante ali para ele. Ele põe uma mão no peito
e a outra nas costas dela, podendo sentir o som saindo da boca dela. Emocionado, ele apoia a
filha no sonho de ir a Paris estudar o canto, e o seu apoio reverbera em toda a família.
O filme termina por uma cena emocionante da adolescente na apresentação do concurso
na escola de Paris, sendo acompanhada pelos olhos cheios de orgulho dos pais da menina.
Destaca-se aqui essa inversão de paradigmas de seus pais, outrora vendo a garota como uma
adolescente que ainda precisava de muita proteção e afago e que agora conseguiam enxergar a
menina como uma Paula mais forte, independente, capaz de correr atrás de seus sonhos e
enfrentar os seus medos. É através da música que Paula consegue transmitir isso para seus pais.
2. A Família
A configuração familiar mostrada no filme compõe-se de 4 personagens principais, isto é,
os elementos que compõe aquele núcleo familiar: Gigi, a mãe, Rodolphe, o pai, Paula, a filha
mais velha, e Quentin, o filho mais novo. Essa composição nos remete a um modelo mais
clássico de família, definido pela consanguinidade e o parentesco entre eles (Wagner, 2009).
Atualmente, sabemos que as famílias podem ter diferentes tipos de configurações, não se
restringindo apenas a essas características, indo além de fatores biológicos ou legais.
Um segundo conceito muito importante para pensarmos a Família Bélier, é o de estrutura
familiar. Estrutura familiar se refere a um conjunto de regras e contratos de convivências que
governam as transações daquela família (Minuchin, 1982; Minuchin, Colapinto e Minuchin,
1999). Isso ocorre uma vez que as famílias operam através de padrões de funcionamentos que se
ativam sempre que ocorrem interações entre os membros daquela família. Assim, é instaurado
padrões, determinados papéis, e, portanto, uma previsibilidade (Nichols e Schwartz, 2007).
Sendo assim, podemos inferir que a família do filme apresenta uma estrutura bem
definida e visível. É evidente que a Família Bélier tinha a filha Paula como referência nas suas
interações sociais, tanto entre eles quanto com os outros (médico, clientes). Era principalmente
durante as cenas de jantar de família que observávamos a interação entre eles, com Paula
assumindo esse papel de propor assuntos e construir as conversas para os quatro. Chama a
atenção, igualmente, a estreita relação de Paula com a mãe, que buscava se envolver demais nas
questões particulares da filha (agindo como uma amiga próxima), acabando por ser intromissiva
em vários momentos. Já as cenas que retratam Paula com o pai refletem um relacionamento
marcado por cumplicidade e companheirismo, com a garota sempre demonstrando desejo de
ajudá-lo em seus planos (como na ideia audaz de seu pai em se candidatar a prefeito).
Por último, vale destacar a relação invasiva que os pais tem com Paula, não se
constrangendo em lhe fazer perguntas mais delicadas (como quanto a sua menstruação ou a um
possível ‘encontro’ com um menino), ou mesmo a expor sobre suas vidas sexuais em frente a
filha e ao médico. Fato é que às “fronteiras” entre o privado e público dentro daquela família
eram perigosamente tênues, graças ao excesso de expansividade dos pais de Paula, o que, em
algumas situações, acabava por gerar conflitos na medida em que a garota se sentisse
incomodada demais de expor sua privacidade. A cena em que os pais trazem a calça de Paula
manchada de sangue pela primeira menstruação para a sala da casa, onde estava seu colega de
canto, exemplificam bem essa questão incômoda.
3. Os Subsistemas Familiares
Como comentamos no conceito de estrutura, a família é regida por certas regras e
convenções para convivência dos membros, colocando-se assim, como um sistema dinâmico. A
organização familiar se dá através de acordos de convivência dos familiares. Essa organização
irá se estrutura a partir dos chamados Subsistemas, os quais configuram a forma como os
membros de uma família se organizam, considerando o tipo de relação e vinculação estabelecida
entre eles (Ríos-González, 1994, 2003, 2009). Portanto, a partir dessas formas de organizações,
as principais relações estabelecidas no núcleo familiar, o que nos leva aos principais subsistemas:
conjugalidade, parentalidade e fraternidade. Todos eles bem ilustrados no filme.
Entre Gigi e Rodolphe observamos a presença de um subsistema conjugal que se uniram
para constituir um sistema familiar. Podemos notar claramente no filme o desejo do casal de dar
carinho e proteção a Paula e Quentin, seus dois filhos, por vezes até mesmo excedendo o
necessário e superprotegendo ambos. O subsistema conjugal tem por características a
complementaridade e acomodação mútua para ocorrer de forma saudável. Durante o filme, é
normal notarmos cenas que ilustrem conflitos ligados ao choque de pensamentos de Gigi e
Rodolphe, como quando a mãe cobrava o marido de conversar e explicar a situação para Paula e
ele não sabia o que dizer.
Apesar dos conflitos, entretanto, o casal aparenta ter alto nível de satisfação conjugal.
Considerando o amor como um conceito que engloba três esferas - intimidade, paixão e
compromisso - percebemos que o casal possui muito amor um pelo outro. Eles oferecem suporte
emocional um ao outro e se comunicam internamente, demonstrando a existência da intimidade.
A paixão fica muito evidente com as diversas cenas de sexo, mostrando que eles frequentemente
têm o desejo de estarem juntos. Por último, o casal demonstra estar comprometido, pois, no
momento da crise, eles se apoiaram e continuam unidos. Todos esses elementos apontam para a
boa satisfação conjugal (Rizzon, Mossmann & Wagner, 2013). Qualidade conjugal e
parentalidade são conceitos diretamente relacionados. Casais mais felizes e com maior facilidade
de resolução de conflitos entre si tendem a replicar essas habilidades na relação com os filhos,
podendo ser melhores pais (Hameister, Barbosa e Wagner, 2015).
O subsistema parental começa a se configurar após o nascimento do primeiro filho, no
caso, Paula. Os pais precisam superar certos desafios da parentalidade. No filme, um exemplo
forte disso é quando Gigi desabafa dizendo que quase não suportou com Paula nasceu e viu que
ela não era surda, pois não sabe lidar com pessoas que ouvem bem. Isso aliado ao fato de Paula
gostar de cantar, foi para Gigi uma afronta, não permitindo ela se identificar e ‘estar junta’ da
filha, pois nem conseguia a ouvir. Característica importante desse sistema, é que ele carece sofrer
diferenciações ao longo do desenvolvimento dos filhos, pois à medida que a criança cresce, suas
exigências de desenvolvimento, tanto de autonomia como de orientação, impõem demandas ao
subsistema parental, que deve ser modificado para atendê-las (Strumer, 2016). .Essa
diferenciação parece bem prejudicada na família Bélier, uma vez que os pais não respeitam as
questões íntimas de relacionamentos de Paula, expondo-os entre si e para outras pessoas, como
ao seu amigo no caso da menstruação.
Ao longo do filme vamos notando a evolução desse subsistema, na medida em que os
pais se veem obrigados a aceitar que Paula seguirá seu próprio caminho, tendo seu próprio
espaço e seus planos. Em contrapartida, Quentin é bastante infantilizado, especialmente por Gigi.
Ele não possui a prerrogativa de cuidar dos pais que a irmã tem. Muito pelo contrário, ele é
superprotegido pelos pais. A cena em que isso fica particularmente é quando ele tem seu
primeiro intercurso sexual com Mathilde. Gigi, ao chegar em casa e descobrir que isso
aconteceu, abraça-o e diz para Paula que não aguenta mais a “sua Mathilde”, como se Mathilde
tivesse atentado contra a vida do garoto indefeso, demonstrando a sua dificuldade em deixá-lo
crescer (Goldsmid & Férres-Carneiro, 2007).
Por último, o subsistema fraternal é onde os irmãos demarcam um espaço para
experimentar as suas primeiras relações com seus iguais. Assim, eles utilizam esse conhecimento
para posteriormente utilizá-los nas suas relações interpessoais fora do sistema família (Wagner,
2009). No caso do filme, observamos que Quentin começa a desenvolver uma relação amorosa
com a amiga de Paula, Mathilde, ensinando-a a língua de libras. Podemos imaginar que a relação
forte com sua irmã, Paula, serviu de base para Quentin conseguir desenvolver esse tipo de
relações com outras meninas para além da família. Além disso, também é notório que Paula
detém uma responsabilidade e carinho com o irmão, como típico de irmãs mais velhas. Isso é
demonstrado na cena em que Paula volta correndo para casa junto com a mãe para cuidar do
irmão após ele ter uma reação alérgica.
4. As Fronteiras Familiares
Logo no início do filme, vemos o quanto Paula é adulta no cuidado dos pais e dos
negócios da família. Em alguns momentos, ela faz as vezes de mãe dos próprios pais. Na cena
em que ela os leva ao médico, esse funcionamento fica particularmente evidente. A mãe tem uma
micose vaginal refratária ao tratamento. Paula tem que ser meio de campo entre médico e
pacientes. Sua mãe diz que sempre coloca os cremes na vagina, já o seu pai se negou a fazer o
tratamento por não gostar dos grumos que ficam no seu pênis. Em resposta a isso, a mãe se
revolta, pois ela tem ardor e fungos, e pergunta se ele não se importa. Ele diz: “são como
champignons, eu vou cozinhar eles e você vai…”. Nesse momento, Paula estabelece um limite e
se nega a traduzir o que lhe disseram. O médico os instrui a parar as relações sexuais por um
tempo. Paula traduz, e os pais se negam a passar três semanas sem sexo. Paula tenta dar uma
lição neles dizendo que eles não são animais.
Essa cena é bastante emblemática de uma família com as fronteiras difusas. Embora a
conjugalidade esteja sempre envolvida com a parentalidade, uma não deve impedir a outra.
Nesse momento, Paula não está no lugar de filha, mas no de amiga. A vida sexual dos pais está
tão presente ali ao ponto de ela sentir a necessidade de barrá-los. Isso evidencia que os papéis
dos pais e o da filha estão misturados, às custas da saúde da garota.