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MATERIALIZAÇÃO DA RESISTÊNCIA NEGRA À ESCRAVIZAÇÃO:

TERRITÓRIO QUILOMBOLA CUPIRENSE COMO PATRIMÔNIO


CULTURAL

José Luiz Xavier Filho1

RESUMO

O trabalho propõe o esclarecimento acerca da ideia de Quilombo e sua origem, dando ênfase ao
Quilombo Sambaquim como patrimônio imaterial municipal da cidade de Cupira - PE, em
propósito de compreender e valorizar a identidade cultural desses indivíduos, que está sendo
levado ao esquecimento pela própria sociedade. Na prática, a maioria das comunidades
quilombolas permanece à míngua, convivendo com a iminente possibilidade de serem
extintas lentamente. Viabilizar a conscientização da população em geral, e levar ao
conhecimento acerca da situação destes povos para que se possa modificar a atual
situação dos quilombolas.

Palavras-chaves: Quilombo; Território; Patrimônio; Identidade,

PRIMEIRO DIÁLOGO

Pensar em quilombo é pensar em resistência, luta, liberdade. É pensar em um


capítulo da história dos negros no Brasil. Mas o que poucos sabem, é que a origem do
quilombo começa na África, e não, como muitos pensam que é “criação” dos negros no
Brasil. A presença de grupos quilombolas está em todas as regiões onde existiram
escravos, que eram maiores quando ligados aos centros econômicos mais dinâmicos.

1
Mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL
A preservação dessa cultura que é umas das raízes da história negra do país, não
é preservada e nem muito reconhecida. Não apenas no cenário nacional, mas
principalmente no cenário regional. Grupos quilombolas fazem parte do patrimônio
imaterial nacional. A não preservação dessa cultura, além de levá-la ao esquecimento,
levará a exclusão registros importantes da cultura afro-brasileira e da identidade de um
povo.

ESCLARECENDO

Muito tem se falado sobre Patrimônio Material e Imaterial. Mas pouco tem sido
informado à sociedade o que significa. Segundo o IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), responsável pela preservação do acervo patrimonial do
país: Patrimônio Histórico Cultural pode ser definido como um bem material, natural ou
imóvel que possui significado e importância artística, cultural, religiosa, documental ou
estética para a sociedade; e, o Patrimônio Imaterial, é aquele em que as práticas,
representações, expressões, conhecimentos e técnicas, instrumentos, objetos, artefatos e
lugares são reconhecidos por comunidades como parte integrante de seu patrimônio
cultural.

Assim, como nas comunidades quilombolas, a cultura é transmitida de geração


em geração, é constantemente recriado pelas comunidades em função de seu ambiente,
interação com a natureza e de sua história. Esse processo gera um sentimento de
identidade e continuidade. A preservação do patrimônio cultural fortalece a ideia de um
sujeito de que ele pertence a um grupo social.

A adoção deste conceito por parte de órgãos internacionais como a UNESCO se


deu dentro do contexto do pós-guerra. O homem começou a perceber que não é por
meio da sobreposição hierárquica de valores que se sustenta o poder. Foram
reconhecidos os direitos humanos em âmbito internacional, recepcionados por muitas
constituições.
Segundo Carla Gabrieli Souza2:

O redirecionamento das preocupações mundiais foi fator importante


para que o mundo enxergasse novos patrimônios e se desprendesse do
reducionismo artístico e histórico. As convenções e os tratados
internacionais refletem o despertar para o dinamismo inerente às
manifestações culturais: Convenção sobre a Proteção do Patrimônio
Mundial Cultural e Natural, Recomendação sobre a Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular, ambas aprovadas pela UNESCO
respectivamente em 1972 e 1989, Convenção de Diversidade
Biológica, assinada durante a ECO 92, Declaração Universal sobre a
Diversidade Cultural, de 2001, e Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial, de 2003, todas elas são importantes na
contextualização acerca da nova concepção de patrimônio cultural.
(SOUZA, 2005, p.7).

Os mencionados dispositivos preveem também formas de proteção e resguardo


do patrimônio cultural dos grupos formadores da nação.

ORIGEM

A palavra "Quilombo" tem origem nos termos "kilombo" (Quimbundo) ou


"ochilombo" (Umbundo), presente também em outras línguas faladas ainda hoje por
diversos povos Bantus que habitam a região de Angola, na África Ocidental.
Originalmente, designava apenas um lugar de pouso utilizado por populações nômades
ou em deslocamento; posteriormente passou a designar também as paragens e
acampamentos das caravanas que faziam o comércio de cera, escravos e outros itens
cobiçados pelos colonizadores.

Foi no Brasil que o termo "quilombo" ganhou o sentido de comunidades


autônomas de escravos fugitivos. No período de escravidão no Brasil (séculos XVII e
XVIII), os negros que conseguiam fugir se refugiavam com outros em igual
situação em locais bem escondidos e fortificados no meio das matas. Estes locais
eram conhecidos como quilombos. Nestas comunidades, eles viviam de acordo com

2
SOUZA, Carla Gabrieli Galvão de. Patrimônio Cultural: O processo de ampliação de sua concepção
e suas repercussões. Revista dos Estudantes da UNB, 7 edição
sua cultura africana, plantando e produzindo em comunidade. Na época colonial, o
Brasil chegou a ter centenas destas comunidades espalhadas, principalmente, pelos
atuais estados da Bahia, Pernambuco, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Alagoas.

Quilombo é um movimento amplo e permanente que se caracteriza


pelas seguintes dimensões: vivência de povos africanos que se
recusavam à submissão, à exploração, à violência do sistema colonial
e do escravismo; formas associativas que se criavam em florestas de
difícil acesso, com defesa e organização sócio-econômicopolítica
própria; sustentação da continuidade africana através de genuínos
gruposde resistência política e cultural. (NASCIMENTO, 1980, p.32).

Desde o princípio da colonização no século XVI, os africanos escravizados se


engajaram num combate firme contra a condição de escravizados em núcleos de
resistência diversos. Os quilombos, entre os quais destaca-se a República de Palmares, a
Revolta dos Alfaiates, Balaiada, Revolta dos Malês, entre tantos outros núcleos que
continuam no pós-abolição em oposição às conseqüências da escravidão, continuam
numa luta por uma liberdade que sempre lhes foi negada (NASCIMENTO, 1980).

A origem da presença africana no atual território nacional situa-se na


implantação do Sistema Colonial que, insere-se no processo de formação e expansão do
capitalismo, ou seja, o “escravismo moderno floresceu com a expansão do capital
mercantil e foi um dos fatores da acumulação capitalista, que transformou
profundamente as relações econômicas viabilizando o surgimento da produção
capitalista. A escravidão moderna foi fruto do mercado”.3

Segundo Clóvis Moura, a primeira referência a existência de quilombos em


documentos oficiais portugueses data de 1559, mas em 1740 o Conselho Ultramarino,
define-o como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte
despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”
(MOURA, 1981: p.16), o autor define ainda quilombo como forma de organização
sociopolítica, ligado ao conceito de resistência, inserindo os quilombos para além do

3
A chegada do Estranho. Editora Hucitec:1993, Martins, José de Souza. 1993, p. 163-164. SANTOS,
Carlos Roberto Antunes dos. Preços e Profissões de Escravos no Paraná 1860/1887, mestrado em
História, UFPR, 1974. p. 73 apud NOVAIS, F. A. SP: CEDRAP, 1974.
contexto da escravidão, estendendo-o às dinâmicas de territorialização étnica ocorridas
após a abolição.

Muitos dos quilombos permaneceram nos mesmos sítios ou próximos de onde


eles se formaram desde a época da escravidão, praticando a agricultura de excedentes
comercializáveis, mantendo relações comerciais com os mercados próximos ou com os
comerciantes que passavam próximo aos sítios onde estavam localizados. Eles
continuam sendo sociedades livres, igualitárias, em busca de felicidade. Eram
sociedades político-militares, que nasceram de movimentos de insurreições, levantes,
revoltas armadas, proclamando a queda do sistema escravocrata. Freqüentemente
aqueles movimentos tomavam a forma de quilombos à semelhança de Palmares. Os
quilombos existiram em múltiplos pontos do país em decorrência das lutas ocorridas em
diferentes lugares onde houvesse negação de liberdade, dominação, desrespeito a
direitos, acrescidas de preconceitos, desigualdades e racismo. Segundo Rafael Sanzio
dos Anjos:

É no território étnico, um espaço político, físico e social, que estão


gravadas as referencias culturais e simbólicas da população, um
espaço construído, materializado a partir das referencias de identidade
e pertencimento territorial e, geralmente, dotado de uma população
com traço de origem comum. A terra tem grande importância na
temática da pluralidade cultural brasileira, no processo de ensino,
planejamento e gestão, principalmente no que diz respeito ás
características territoriais dos diferentes grupos étnicos que convivem
no espaço nacional.(SANZIO, 2006, p. 15).

A terra é a fonte de renda e sustentabilidade dos quilombos, sendo um espaço


comum onde se formam vínculos socioculturais. Portanto, a relação destas pessoas com
o território em que ocupam é algo único, particular, fruto da historia, do medo das
perseguições e do instinto de sobrevivência que os levaram a se fixar em determinados
pontos.

TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE
O território é visto como um espaço físico, mas também como um espaço de
referência para a construção da identidade quilombola, pois é físico-material, é político,
é econômico e é também simbólico.

A invenção de identidades político-cultural é recorrente, ela acontece sempre


que determinado grupo põe-se em movimento para reivindicar o que lhe é essencial. No
caso das comunidades quilombolas, a terra. Terra aqui entendida num sentido amplo,
englobando a terra necessária para a reprodução material da vida, mas também a terra
na qual o simbólico paira, na qual a memória encontra lugar privilegiado, morada de
mitos e lendas, fonte de beleza, inspiração e do sentido sagrado da coletividade, tão
essencial à vida quanto a terra de trabalho. De acordo com Gonçalves:

A construção de uma identidade coletiva é possível não só devido às


condições sociais de vida semelhantes, mas também por serem
percebidas como interessantes e, por isso, é uma construção e não uma
inevitabilidade histórica ou natural. E, mais, na afirmação dessa
identidade coletiva há uma luta intensa por afirmar os „modos de
percepção legítima‟ da (di)visão social, da (di)visão do espaço, da
(di)visão do tempo da divisão da natureza. (Gonçalves, 2003, p. 379)

É necessário então entender a constituição da identidade quilombola face à


necessidade de luta pela manutenção ou reconquista de um território material e
simbólico. Por isso, talvez melhor do que discutir o conceito de território seja discutir o
processo de territorialização dessas comunidades.

A territorialidade adquire um valor particular, pois reflete a


multidimensionalidade do vivido territorial pelos membros de uma coletividade. Os
homens vivem, ao mesmo tempo, o processo territorial e o produto territorial por
intermédio de um sistema de relações produtivistas e simbólicas. Há interação entre os
atores que procuram modificar tanto as relações com a natureza como as relações
sociais. O homem transforma a natureza e a natureza transforma o homem.

O processo de territorialização pressupõe a tensão nas relações estabelecidas,


pois se um grupo se organiza em prol de territorializar-se ele está negando o lugar que
lhe havia sido destinado, numa dada circunstância espaço-temporal, por outros grupos
sociais melhor situados no espaço social pelos capitais de que já dispõem. Ou seja,
quando uma comunidade quilombola se organiza e reivindica seus direitos sobre um
território ancestral, quando ela luta para se territorializar, ela está negando o lugar
marginal que lhe havia sido designado pela sociedade abrangente.

Para o surgimento da mobilização que busca a territorialização


Gonçalves15enfatiza a importância dos movimentos sociais,
inventando de baixo, por baixo e para os de baixo, novos pactos,
novas relações, novos direitos nos interstícios e brechas desse
complexo processo de reorganização social. (Gonçalves, 2001, p. 81)

Todo movimento social se configura a partir daqueles que rompem a inércia e se


movem, isto é, mudam de lugar, negam o lugar que historicamente estavam destinados
em uma organização social, e buscam ampliar os espaços de expressão que, como já nos
alertou Michel Foucault, têm fortes implicações de ordem política. É em função das
disputas territoriais que identidades, como a quilombola, são forjadas.

As territorialidades são instituídas por sujeitos sociais em situações


historicamente determinadas. Se hoje existem territórios quilombolas é por que em um
momento histórico dado um grupo se posicionou aproveitando uma correlação de forças
políticas favoráveis e institui um direito que fez multiplicar os sujeitos sociais e as
disputas territoriais. Territorializar-se significa ter poder e autonomia para estabelecer
determinado modo de vida em um espaço, para estabelecer as condições de
continuidade da reprodução material e simbólica deste modo de vida. A sobreposição de
territórios implica necessariamente em uma disputa de poder.

As comunidades quilombolas ao se organizarem pelo direito aos territórios


ancestrais, elas não estão apenas lutando por demarcação de terras, as quais elas têm
absoluto direito, mas, sobretudo elas estão fazendo valer seus direitos a um modo de
vida. Dessa forma, a questão de identidade assume relevância para os quilombolas, na
medida em que questionam um lugar que não seja o de dominados, oprimidos e
discriminados pela “sociedade moderna” e posicionem-se como sujeitos da história.
Nesse caso, as identidades são contestadas a partir de um novo olhar. Um olhar que não
confirme o caráter de subalternidade que a escravidão imprimiu à representação do
sujeito quilombola e à formação de sua identidade.

As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um


passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa
correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da
utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a
produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos
tornamos. Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou
“de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós
podemos nos tornar”. “como nós temos sido representados” e “como
essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós
próprios”. (HALL, 2003: p.109)

Os povos marginalizados lutam, através de suas manifestações culturais, por um


espaço e resistem à tentativa de ter a sua cultura considerada subalterna e periférica.
Como afirma Stuart Hall (2003), não importa o quanto autênticas sejam representadas
na cultura popular, continuamos a ver nessas figuras e repertórios espaços de
representação de suas experiências. A partir de sua tradição oral, de suas musicalidades
e expressividade, a cultura popular negra propõe um novo discurso, uma nova forma de
representação; e foi para os colonizados a única forma de criar locais de identificação.
Segundo Hall (idem, p. 343):

[...] na cultura popular negra, estritamente falando, em termos


etnográficos, não existem formas puras. Todas essa formas são sempre
o produto de sincronização parciais, de engajamentos que atravessam
fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural,
de negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias
subterrâneas de recodificação e transcodificação, de significação
crítica e do ato de significar a partir de materiais preexistentes.

Porém, o que ocorre na utilização da expressão “quilombola” é seu significado


ligado à comunidade negra, que pode ser tomada como o local onde se preservam as
tradições do povo negro, com suas experiências diaspóricas e seus traços culturais
específicos. Assim, todas essas significações são agrupadas no sentindo do vocábulo
“quilombola”, o que leva os sujeitos negros a viverem numa situação de oposição
(excludente); visto que, suas tradições são vistas a partir da diferença: a cultura urbana
versus a cultura do quilombo.
Enquanto comunidade tradicional e grupo formador da sociedade brasileira, os
Quilombos fazem parte da história e da cultura nacional. Estes povos dependem do
apoio de autoridades e de acadêmicos interessados em escrever o legado deles para
garantir a própria existência e a continuidade dos seus saberes. Ao refletirmos sobre o
processo de formação do sujeito quilombola, devemos levar em consideração que há
esferas pessoais e sociais interligadas, se construindo socialmente na vida dos
indivíduos. Assim a língua, a religião, a história, a cultura, o gênero, a raça e o
pertencimento a um determinado grupo social fazem parte da construção da identidade
individual de cada um.

ENQUANTO ISSO, EM CUPIRA...

Cupira, município localizado na Região Agreste de Pernambuco, preserva ainda


uma região de descendentes dos quilombos, o Quilombo Sambaquim, no Sítio que leva
o mesmo nome do quilombo, à aproximadamente quatro quilômetros da cidade. Hoje,
essa comunidade constitui um quilombo contemporâneo, que não representam mais um
espaço de fuga, estrategicamente isolado.

É necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da


definição histórica stricto sensu e das outras definições que estão
frigorificadas e funcionam como uma camisa de força, ou seja, da
definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a
legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o
problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão das
entrelinhas dos textos jurídicos. A relativização dessa força do
inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às
autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas
situações hoje designadas como quilombo. (ALMEIDA, 2002: p.63)

No passado, os negros reconstruíam no quilombo um tipo de organização


territorial de origem africana, e esse lugar funcionava como verdadeira válvula de
escape para diluir a violência da escravidão, durante os quase quatro séculos em que se
mantiveram as tensões e confrontos de classes no sistema escravista. Os escravos
fugidos buscavam, nesse lugar, proteção e segurança, bem como igualdade de condições
e liberdade de acesso a terra. A organização territorial dos antigos quilombos recebia
referências das comunidades existentes na África.

O conceito de comunidade quilombola, portanto, tem origem no


campesinato negro, povos de matriz africana que conseguiram ocupar
uma terra e obter autonomia política e econômica. Ao quilombo
contemporâneo está associada uma interpretação mais ampla, mas que
perpetua a ideia de resistência do território étnico capaz de se
organizar e reproduzir no espaço geográfico de condições adversas, ao
longo do tempo, sua forma particular de viver. (ANJOS, 2006: p.53)

De terra sagrada e comunitária, o território dos negros passou a ter outro


significado: a luta para mantê-lo, exatamente como faziam seus ancestrais. Atualmente,
essa comunidades possuem uma formação bem diversificada em questões territoriais de
diferentes usos e propriedade, entre o caráter privado e comum. É bem diversifica da
também a formação populacional com diferentes combinações étnicas, de parentesco e
sucessão, por fatores históricos, por elementos de identidade peculiar e por critérios
político-organizativos e econômicos, relevantes práticas e representações próprias. Para
maior compreensão e estudo das comunidades quilombolas hoje, é de suma importância
que se desvincule a ideia do passado e se abra para uma nova concepção de
comunidade. Não são mais terras de negros fugidos e sim de resistência, voltado mais
para uma questão de identidade e compartilhamento do território que remete a
valorização de tradições, histórias e da própria cultura e que seja principalmente
relevante para a consolidação de tal comunidade.

O problema que estas comunidades contemporâneas enfrentam com as


mudanças estruturais e institucionais se constitui no isolamento cultural, isto é, a
interação do indivíduo com a sociedade pressupõe sua identidade, ou seja, “o sujeito
ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as
identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2005). A não preservação dessa
cultura levará ao esquecimento e a exclusão de registros importantes da cultura afro-
brasileira e da identidade de um povo.
Educa-se, desde cedo, a ver negros e brancos de forma desigual e aprende-se a
hierarquizar e classificar estas diferenças. Essa forma de pensar, adicionada nas relações
sociais e de poder, acaba repercutindo na forma de ver o outro e ver a si próprio, visto
que, os seres humanos são frutos do meio cultural, político e social em que vivem.
Pode-se supor, então, que as relações de poder que estão na base das estruturas sociais
interferem na constituição das identidades dos indivíduos, na medida que estes
incorporam a desigualdade e a opressão como algo natural.

Não existe uma “história escrita” do Quilombo Sambaquim. Os relatos são orais
e sempre hereditários. Nos seus primórdios e depois de algumas poucas gerações, esse
quilombo se viu por décadas fechado em si mesmo, antes mesmo do surgimento do
povoado onde está inserido. Viu-se fechado inclusive a acréscimos genéticos. Acerca
das famílias que aí se desenvolveram, é interessante expressar que um número de
famílias tem casado entre si. Elas estarão todas fechadas no parentesco e, ao mesmo
tempo, traços ancestrais aparecerão em todas elas.

Tomando como referência as contribuições de Halbwachs (2004), em sua obra A


memória coletiva, Pierre Nora propõe uma nova história das políticas de memória e
uma história das memórias. A valorização de uma história das representações, do
imaginário social e da compreensão dos usos políticos do passado pelo presente
promoveu uma reavaliação das relações entre história e memória e permitiu aos
historiadores repensar as relações entre passado e presente e definir para a história do
tempo presente o estudo dos usos do passado. Vale ressaltar a importância dessa
valorização da memória para a construção de uma história no Quilombo Sambaquim.

Nora aprofunda ainda a distinção entre o relato histórico e o discurso da


memória e das recordações. A história busca produzir um conhecimento racional, uma
análise crítica através de uma exposição lógica dos acontecimentos e vidas do passado.
A memória é também uma construção do passado, mas pautada em emoções e
vivências; ela é flexível, e os eventos são lembrados à luz da experiência subsequente e
das necessidades do presente. Essa perspectiva que explora as relações entre memória e
história possibilitou uma abertura para a aceitação do valor dos testemunhos diretos, ao
neutralizar as tradicionais críticas e reconhecer que a subjetividade, as distorções dos
depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma nova
maneira, não como uma desqualificação, mas como uma fonte adicional para a
pesquisa. Nesse contexto, a formulação teórica do sociólogo Maurice Halbwachs ganha
destaque, passando a integrar o universo teórico dos historiadores. A questão central
sobre esse tema, para o autor mencionado, consiste na afirmação de que a memória
individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as
lembranças são constituídas no interior de um grupo. A origem de várias ideias,
reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas pelo
grupo. “A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias
do grupo, refere-se, portanto, a um ponto de vista sobre a memória coletiva. Olhar este,
que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior
do grupo e dos laços mantidas com outros meios”. (HALBWACHS, 2004, p. 55).

Para além da formação da memória, Halbwachs aponta que as lembranças


podem, a partir desta vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar
representações do passado assentadas na inteligibilidade de outras pessoas, no que
imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória
histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs, “é em larga medida uma
reelaboração do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de
outrora manifestou-se já bem alterada”. (Idem, p. 75-76).

Para este autor, a memória coletiva é pautada na continuidade e deve ser vista
sempre no plural (memórias coletivas). Ora, justamente porque a memória de um
indivíduo ou de um país está na base da formulação de uma identidade, que a
continuidade é vista como característica marcante. A História, por outro lado, encontra-
se pautada na síntese dos grandes acontecimentos, como a história de uma nação, o que
para Halbwachs faz das memórias coletivas apenas detalhes. Em suas próprias palavras:
O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que o
detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se
somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de
todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer
fato é tão interessante quanto o outro, e merece ser enfatizado e
transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de apreciação resulta
de que não se considera o ponto de vista de nenhum dos grupos reais e
vivos que existem, ou mesmo que existiram, para que, ao contrário,
todos os acontecimentos, todos os lugares e todos os período estão
longe de apresentar a mesma importância, uma vez que não foram por
eles afetadas da mesma maneira (Idem, p. 89-90).

A oralidade não é só o espelho de uma sociedade, também pode mostrar as


contradições internas, sociais e psicológicas que se tornam perceptíveis na palavra. A
tradição oral em Sambaquim é o meio em que persiste a preservação de histórias,
lendas, usos e costumes através da fala. Essa mesma tradição oral é a que transmite a
sabedoria e as formas de viver dos antepassados. A tradição oral é definida como um
testemunho transmitido oralmente de uma geração à outra. Suas características
particulares são o verbalismo e sua maneira de transmissão, na qual difere das fontes
escritas. Devido à sua complexidade, não é fácil encontrar uma definição para tradição
oral que dê conta de todos os seus aspectos. Um documento escrito é um objeto: um
manuscrito. Mas um documento oral pode ser definido de diversas maneiras, pois um
indivíduo pode interromper seu testemunho, corrigir-se, recomeçar.

Faz-se necessário tomar Bâ (1997) e sua contribuição para a Tradição Oral


Africana. “Cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”, com esta frase, Bâ
dá a dimensão da importância da transmissão oral. Segundo o autor a tradição oral é a
grande escola da vida, sendo, ao mesmo tempo: religião, arte, ciência história,
divertimento, recreação, pois todo pormenor nos remonta à Unidade primordial. Ou
seja, para compreender a realidade não há que se separar as partes, isolando as áreas do
conhecimento, pois a compreensão de cada parte, mesmo resguardadas suas
especificidades, remonta ao todo, sem hierarquizações de conhecimentos e saberes.
Tendo por base a iniciação e a experiência, o homem que se forma na tradição oral é
conduzido à sua totalidade. Bâ (1997) questiona a primazia da escrita em relação à
oralidade quando se trata da maior confiança nos testemunhos de fatos passados.
Nas civilizações orais, a palavra compromete o homem, a palavra é o
homem. Daí o respeito profundo pelas narrativas tradicionais legadas
pelo passado, nas quais é permitido o ornamento na forma ou na
apresentação poética, mas onde a trama permanece imutável através
dos séculos, veiculada por uma memória prodigiosa que á a
característica própria dos povos de tradição oral. Na civilização
moderna, o papel substituiu a palavra. É ele que compromete o
homem. (Bâ, 1997: p. 2).

Para ele, os testemunhos humanos valem o que vale o homem, nos instigando a
rever pontos de vista, pois, segundo ele, a oralidade fez nascer a escrita e os primeiros
arquivos ou bibliotecas, foram o cérebro humano; antes da escrita, os pensamentos a
antecipam quando o escritor trava um diálogo consigo mesmo. Em Sambaquim, a
parcela de indivíduos mais idosos não sabem escrever, fato este que justifica a ausência
de uma história escrita, cabe a memória o papel de armazenar a sua história e suas
tradições culturais. Por isso foi dado ênfase na relação entre história e memória, pois a
história é transmitida oralmente e hereditariamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho propõe a discussão acerca do Quilombo Sambaquim em propósito de


compreender e valorizar a história e a identidade cultural desses indivíduos, que está
sendo levado ao esquecimento pela própria sociedade de Cupira. Na prática, a maioria
das comunidades quilombolas permanece à míngua, convivendo com a iminente
possibilidade de serem extintas lentamente. Para maior compreensão e estudo das
comunidades quilombolas hoje, é de suma importância que se desvincule a ideia do
passado e se abra para uma nova concepção de comunidade. Não são mais terras de
negros fugidos e sim de resistência, voltado mais para uma questão de identidade e
compartilhamento do território que remete a valorização de tradições, histórias e da
própria cultura e que seja principalmente relevante para a consolidação de tal
comunidade. É preciso pensar nesses grupos como possuidores de articulações
sociopolíticas e econômicas próprias e não de forma teatralizada, como se fosse possível
criar um estereótipo daquilo que se espera que sejam, como se estivessem emoldurados
em um tempo e espaço que não se modificaram desde a escravidão.

É preciso conscientizar a população, sobretudo a comunidade acadêmica


cupirense do que está sendo perdido. O patrimônio cultural imaterial é protegido e
reconhecido pelo Estado brasileiro. Porém, muito há o que se fazer para efetivar tal
direito. Sobretudo, no que diz respeito às minorias, dentre elas as comunidades
tradicionais. Enquanto comunidade tradicional e grupo formador da sociedade
brasileira, os Quilombos fazem parte da história e da cultura nacional. Estes povos
dependem do apoio de autoridades e de acadêmicos interessados em escrever o legado
deles para garantir a própria existência e a continuidade dos seus saberes.

É preciso clarear e trazer a tona o debate em torno do Quilombo Sambaquim,


para que a sociedade pressione as autoridades do município em busca de condições
legais mais favoráveis à efetivação dos direitos dos quilombolas. Isto é, cidadania,
conceito primário e indispensável da noção de democracia e pluralismo, e da
preservação da memória e história, de, quem sabe, do embrião da sociedade negra de
Cupira.

REFERÊNCIAS

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