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Teoria Literária:

Poetica
Material Teórico
Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo
da poesia

Responsável pelo Conteúdo:


Prof Dr. Manoel Francisco Guaranha

Revisão Textual:
Profa. Ms Silvia Augusta Albert
Figuras de linguagem e reflexões
sobre a forma e o conteúdo da poesia

• Figuras de linguagem

• Discutindo o gênero e dividindo o texto

• O uso da organização sintática e das figuras de linguagem para


criar os efeitos de sentido do discurso literário

• Ampliando o efeito de sentido da paronomásia: a função do leitor

• A linguagem literária e seu caráter absoluto

Seja bem vindo à unidade III da disciplina: Teoria Literária-


Poética. Nesta unidade, teremos dois momentos: primeiro,
estudaremos algumas das mais recorrentes figuras de linguagem
e, em seguida, vamos propor uma reflexão sobre a natureza da
linguagem literária por meio da análise de um poema.

Para você apreender de modo adequado o conteúdo da disciplina e construir novos


conhecimentos, é necessário que você realize o seguinte percurso:
1) Leitura da contextualização;
2) Leitura do material teórico (essa leitura deve ser feita várias vezes destacando-se os principais
conceitos ou as definições contidas no texto. Procure compreendê-las por meio dos exemplos);
3) Assista à apresentação narrada e à videoaula;
4) Realização da atividade de sistematização (AS);
5) Realização da atividade de aprofundamento (AP);
6) Consulta ao material complementar fornecido ou visita aos sites sugeridos;
7) Leitura da bibliografia da unidade, especialmente a que se encontra na biblioteca virtual da
universidade. Isso irá colocar você em contato com diferentes visões sobre o tema, além de fornecer
a você um repertório maior de conceitos sobre a lírica e métodos de análise de textos poéticos.
8) Contato com o professor tutor para esclarecer dúvidas ou mesmo expor suas ideias a respeito
do assunto.

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

Contextualização
As figuras de linguagem ou o uso da linguagem figurada é uma das bases do texto literário.
Não obstante utilizemos também no dia a dia a linguagem de modo conotativo, é fundamental
perceber que no texto literário essa utilização é deliberada e produz sentido. Ela é responsável
não só pela beleza da obra, mas, principalmente, pela “dilatação dos sentidos” da palavra,
como você poderá constatar na letra de música “Metáfora”, de Gilberto Gil, que estudaremos
nesta unidade.
Fizemos um breve inventário de algumas das figuras mais utilizadas, mas isso não impede
que, em unidades posteriores, tenhamos de lançar mão de outras figuras para analisar poemas.
Além disso, um fragmento de texto pode conter mais de uma figura, se observado de diferentes
perspectivas. Por isso, o importante não é decorar, mas compreender a função de cada figura
no contexto em que se insere.
Vamos começar a entender esse processo?

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1. Figuras de linguagem

Segundo Charaudeau e Maingueneau (2006), as figuras de linguagem têm sido objeto de


interesse, há tempos, para a Retórica e para a Crítica Literária. Para alguns, as figuras são
um desvio de linguagem, já que encaminham o “coenunciador” a discursos paralelos para o
estabelecimento de sentidos. Elas se distanciam mais ou menos daqueles sentidos mais comuns.

Oque é?
Coenunciador – considerando-se que o enunciador é aquele que ao se exprimir oralmente ou
por escrito, é o falante que utiliza individualmente a língua, o coenunciador é aquele que enuncia
com o enunciador, colabora com ele, aquele que participa interativamente do ato de fala.

No estudo da poética, há recorrência de determinadas figuras de linguagem. A seguir, vamos


apontar algumas delas:

1) Figuras sonoras: são aquelas que extraem efeitos de sentido


dos fonemas que compõem as palavras.

a) A
 literação: termo originário do latim alliteratio, ocorre por meio de sons semelhantes, não de
letras. Assim, a aliteração consiste na repetição de consoantes ou de sílabas - especialmente
as sílabas tônicas - no início, meio, ou fim de palavras, dentro do mesmo verso, estrofe,
ou numa frase. Vejamos o exemplo a seguir tirado de um soneto de Gregório de Mattos.
Note o efeito sonoro criado pela repetição do /s/. Forma-se a imagem de um enunciador
sussurrante. Vejamos:

Infalível será ser homicida


o bem, que sem ser mal, motiva o dano;
o mal, que sem ser bem apressa a morte.

b) Assonância: oriunda do termo castelhano asonância (acordo de sons), é a repetição de sons


vocálicos, em sílabas tônicas de palavras distintas ou na mesma frase para obter certos efeitos
de estilo. Frequentemente, a assonância possui um efeito de rima quando é usada para fazer
corresponder vogais em versos finais, como rosa e acorda. Neste caso, ela confunde-se com
a rima vocálica, que põe em paralelo, duas palavras com a mesma vogal tônica. Como as
vogais são acusticamente sons musicais a assonância funciona como complemento melódico
do verso. No exemplo a seguir, a imagem de ondulações é construída a partir da alternância
das vogais /a/ e /o/ e dos sons nasais. Vejamos:

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

a onda anda
aonde anda
...........a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
..........aonde?
aonde?
a onda a onda (Manuel Bandeira)

Trocando Ideias
Perceba, no fragmento do poema de Manuel Bandeira, que as vogais “a” e “o” apoiam-se na
consoante “n” para produzir nasalidade, de forma que temos a impressão do barulho da onda vindo
em direção à praia. Além de conferir um tom nasal a vogal, o ‘”n” sugere a ideia de continuidade e
movimento. Já quando a vogal “a” se apoia na consoante “d”, linguodental, temos a impressão de
que essas ondas quebram-se na praia ou nas pedras. A vogal “a” sugere abertura, diferente da vogal
“o”, que sugere fechamento. Desse modo, todos os finais de verso, em que o “a” se associa com o
“d” temos a sugestão da diluição da onda.
Desse modo, veja que podemos analisar não apenas a assonância, mas os efeitos de sentido
produzidos pela combinação sonora de vogais e consoantes.

c) Onomatopeia: consiste em representar o som do objeto ou ser nomeado por meio de


repetições de letras. No exemplo que se segue, o refrão representa o som do sino. Vejamos:

Sino de Belém,
Sino da Paixão...

Sino de Belém,
Sino da Paixão...

Sino do Bonfim!...
Sino do Bonfim!...

Sino de Belém, pelos que inda vêm!


Sino de Belém bate bem-bem-bem.
(Manuel Bandeira)

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d) E
 co: é a figura que de repetição de um determinado som no final de palavras em sequência.
O eco só é considerado uma figura quando tem função estilística. No exemplo escolhido, o
poema Sapos, de Manuel Bandeira, o eco serve, justamente, para criticar a incapacidade de
inovar da poesia parnasiana:

Em ronco que aterra,


Berra o sapo-boi:
- “Meu pai foi à guerra!”
- “Não foi!” - “Foi!” - “Não foi!”.

e) P
 aronomásia: aproximação de palavras diferentes na significação, mas semelhantes no
som. Veja no exemplo a seguir, extraído de um poema de Camões o uso estilístico da figura.
A palavra pena é utilizada tanto no sentido de pluma quanto no sentido de castigo.

Perdigão que o pensamento


Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento.

Trocando Ideias
Perceba que esta figura de linguagem é sonora, porque explora o aspecto homofônico da palavra,
decorrente da aproximação gráfica delas, homografia, ou de pequena variação gráfica, heterografia,
que não compromete a semelhança sonora. Veja um exemplo de Padre Antônio Vieira, quando ele
tematiza a parábola bíblica do semeador no Sermão da Sexagésima, pregando da Capela Real
de Portugal, em que diz: “os de cá têm mais paços, os de lá têm mais passos”, querendo dizer que “os
[pregradores] de cá, [Portugal] têm mais paços [palácios, privilégios com o rei], os de lá [das colônias
ultramarinas] têm mais passos [metonímia de caminhada, sacrifício para efetuar a pregação].
É bom refletir, também, que esta figura é em grande medida sintática, pois o sentido da palavra está
ligado à posição que ela ocupa na oração.

2) Figuras semânticas
a) C
 omparação e símile: caracterização de algo por meio da relação de semelhança com
outro elemento que apresenta, obrigatoriamente, o elemento formal (a palavra) comparativo.
A diferença entre comparação e símile é que no primeiro caso, temos a relação de semelhança
entre elementos da mesma espécie e no segundo caso entre elementos de espécies diferentes:

Julieta é como uma freira. (Julieta e freira são elementos humanos)


Julieta é como o sol. (Julieta e sol pertencem a espécies diferentes

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

Trocando Ideias
Perceba que a comparação e a símile obedecem a uma gradação de menor para maior
complexidade, gradação essa que irá desaguar na metáfora, figura seguinte, que será a fusão de
dois elementos em um só: Julieta é o sol.

b) Metáfora: trata-se de uma das principais figuras, base do texto literário. O nome vem do
grego “mudança, transposição” e consiste na nomeação de um objeto ou qualidade por
meio de uma palavra ou termo que se nomeia outro objeto ou qualidade e que tem com o
primeiro uma relação de semelhança. Não deixa de ser uma espécie de símile implícita. No
exemplo do poeta Alphonsus de Guimaraens, o homem é metaforizado por meio de uma
bússola sem norte:

Cada um de nós é a bússola sem norte.


Sempre o presente pior do que o passado.
Cantem outros a vida: eu canto a morte...

c) M
 etonímia (mudança de nome): uso de uma palavra fora do seu contexto semântico
normal, por ter uma significação que tenha relação objetiva, de contiguidade, material ou
conceitual, com o conteúdo ou o referente pensado.
 esignação de uma coisa ou fato pela expressão que designa a circunstância. Como exemplo,
D
podemos citar a antonomásia, que é a designação de uma pessoa por epíteto, por uma
qualidade ou circunstância que lhe diz respeito: “A libertadora dos escravos”, por Princesa
Isabel; “O mártir da independência”, por Tiradentes; o emprego do autor pela obra: “sempre
lemos Machado com bastante atenção” (sempre lemos os livros de Machado de Assis); o
emprego do continente pelo conteúdo: “o prato estava ótimo”, querendo dizer que a comida
que estava no prato estava ótima.
São exemplos de metonímia as construções:

• Ganharás o pão com o suor do teu rosto. (Ganharás o alimento com o teu trabalho).
• Não se afaste da cruz. (Não se afaste da religião cristã. A cruz simboliza o Cristianismo).
• Cinco sóis se passaram. (Cinco dias se passaram. A causa é o Sol e o efeito é o dia.)
• João sempre foi um bom garfo. (João sempre foi uma pessoa que come muito.
O instrumento está no lugar da ação praticada.)

d) Sinédoque: tipo especial de metonímia baseada na relação quantitativa, ou seja,


designamos a parte pelo todo ou o todo pela parte. Consiste em empregar um termo
num sentido mais abrangente. Os casos mais comuns são a parte pelo todo: “cabeças
pensantes” por “homens pensantes”.

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• o gênero pela espécie ou vice-versa: “nascemos no Brasil”, por “nascemos em um
lugar do Brasil”; ou da matéria pela forma em “Jesus está pendente no madeiro”, ou seja,
ele está “na cruz que é feita de madeira”.

• sinédoque de número: “Sejamos honestos”, por “seja eu honesto”; ou “o político deve


se preocupar com o homem”, por “os políticos devem se preocupar com as pessoas”, “a
maldade do homem” por “da espécie humana”.

• Sinédoque de espécie: uso da espécie pelo gênero, como em “os mortais sofrem neste
mundo” por “os homens sofrem neste mundo”; da parte pelo todo: “lançou a vela ao mar”,
por lançou o navio no mar.

Ideias Chave
Metonímia e sinédoque confundem-se, como você pode perceber. O importante, para a análise de
textos literários é identificar o efeito de sentido que essas figuras, que se interseccionam, constroem.
Se a sinédoque é um tipo especial de metonímia, podemos então considerar ambas as figuras, até
certo ponto, sinônimos.

Explore
Para que você tenha mais informações sobre a distinção entre metonímia e sinédoque e a discus-
são teórica sobre o tema, leia na Biblioteca Virtual da Universidade, em http://sites.cruzeirodosul-
virtual.com.br/biblioteca as páginas 220 a 224 da obra Forma e sentido do texto literário,
de Salvatore D’Onófrio.

e) Sinestesia - cruzamento de sensações percebidas por diversos sentidos.

Você tem um olhar quente e azedo (visão + tato + paladar).


Ela tem uma voz doce (audição + paladar).

f) Hipérbole: exagero na expressão: no exemplo a seguir, de Camões, a visão dos olhos da


mulher é algo tão lindo, que aquele que a contempla deve pagar com a própria vista esse prazer:

Quem vê, Senhora, claro e manifesto


O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder de vista só em vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

g) E
 ufemismo: abrandamento nas ideias, como no caso do soneto camoniano a seguir, em
que a morte da mulher jovem é eufemisticamente tratada como partir tão cedo desta vida:

Alma minha gentil, que te partiste


Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

h) P
 rosopopeia ou personificação: atribuir a seres inanimados características de seres
humanos. Veja o exemplo do poema de Oswald de Andrade:

A felicidade anda a pé
na Praça Antônio Prado

3) Figuras de oposição
a) A
 ntítese: é uma das mais conhecidas e usadas figuras de linguagem da língua portuguesa.
Consiste na aproximação de palavras que expressam ideias contrárias. No exemplo a seguir,
o poeta emprega dois termos no início dos versos que são antônimos. É evidente que isso
cria um efeito de oposição que salta aos olhos. Vejamos:

o bem, que sem ser mal, motiva o dano;


o mal, que sem ser bem apressa a morte. (Gregório de Mattos)

b) Oximoro: trata-se de uma intensificação da antítese, uma espécie de paradoxo, ideia


aparentemente absurda, só possível no plano da linguagem: “o fogo frio do seu olhar”,
por exemplo. Repare que a antítese seria “seu olhar ora é quente, ora é frio”, o que seria
perfeitamente aceitável considerando-se “frio” e “quente” como adjetivos que indicariam,
metaforicamente, “desprezo” e “correspondência” amorosa, respectivamente. Mas quando
o poeta diz “fogo frio” a ideia se intensifica a ponto de aglutinarem-se, simultaneamente, em
um mesmo referente, ideias contrárias, o que é um paradoxo, uma impossibilidade.
Camões, quando fala do amor, em certo momento diz:

Olhai de que esperanças me mantenho!


Vede que perigosas seguranças!

 aja vista que não existem “perigosas seguranças”, estamos diante de um pensamento
H
paradoxal que se constrói por meio do oximoro e que, por sua vez, intensifica as contradições
do próprio sentimento amoroso, que racionalmente o poeta não consegue explicar.

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c) I ronia: é a afirmação de algo diferente do que se deseja comunicar, geralmente o contrário,
na qual o emissor deixa transparecer a contrariedade por meio do contexto do discurso, ou
de alguma diferenciação editorial, ou entoativa ou gestual. O fragmento do poema “Hino
nacional”, de Carlos Drummond de Andrade, oferece ótimos exemplos de ironia, a começar
pelo título, em que se que propõe a intertextualidade com nosso hino:

Hino nacional
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas


muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.


Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

4) Figuras sintáticas
a) E
 lipse e zeugma
Elipse: supressão de um termo que pode ser facilmente subentendido pelo contexto linguístico
ou pela situação. Veja no exemplo extraído de Camões, Os Lusíadas (Canto I, estância 106),
em que o verbo haver está subentendido (no mar há tanta tormenta e há tanto dano...):

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,


Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Zeugma: um caso de elipse que consiste na supressão, em orações subsequentes, de um


termo expresso na primeira (p.ex.: cada criança escolheu um brinquedo; o menino, um carro,
a menina, uma boneca)

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

 eja o exemplo extraído de um poema de Gregório de Matos, em que o zeugma se dá por


V
meio da supressão do verbo morrer no quarto verso, que já aparecera antes:

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,


Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

b) Hipérbato: inversão da ordem natural dos elementos da oração. Considerando-se a ordem


normal sujeito, predicado e complementos, a inversão dessa sequência tem como finalidade
enfatizar a ação, a circunstância ou qualquer outro elemento:

Os bons vi sempre passar


No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

(Eu vi sempre os bons passar(em) graves tormentos no mundo


e vi sempre os maus nadar(em) em mar de contentamentos
para mais me espantar. Eu fui mau cuidando (quando cuidei)
alcançar o bem tão mal ordenado assim (da forma que os
maus fazem), mas fui castigado. Assim (concluo) que, o
mundo anda concertado só para mim.)

c) P
 leonasmo: repetição de um termo ou reforço do sentido. Pode ser vicioso, caso não tenha
função estilística, o que não é o caso do poema de Vinícius de Moraes, usado como exemplo
a seguir, em que as expressões “rir meu riso” enfatiza o entrosamento entre os amantes:

De tudo ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento


E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

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d) Polissíndeto, repetição da conjunção:
Veja o exemplo de polissíndeto na poesia do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro,
em que por meio acúmulo das aditivas (uso da conjunção “e”) o sujeito enfatiza as diferentes
realidades que, sob a ótica panteísta, compõem a figura divina.

Mas se Deus é as árvores e as flores


E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?

e) A
 ssíndeto: supressão da conjunção. Observe que a ausência de conjunções nos versos
“Bebeu/Cantou/Dançou” no poema de Manuel Bandeira, a seguir, reforçam a ausência de
sentido dos atos de João Gostoso, que culminam no suicídio.

Poema Tirado de uma Notícia de Jornal


João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da
Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.


f) Anáfora: repetição de uma palavra ou expressão no início de seguidos versos, orações ou
períodos: o exemplo a seguir é de Carlos Drummond de Andrade:

E agora, José?

Está sem mulher,


está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar...

g) Q
 uiasmo: consiste no cruzamento de grupos sintáticos paralelos, por isso pode ser
considerada uma figura sintática. Pode ser considerada, também, uma espécie de antítese e,
nesse caso, poderia ser categorizada como uma figura de oposição. Preferimos, no entanto,
deixa-la aqui como figura sintática. O nome deriva da letra grega X (qui), justamente por ser
uma estrutura em cruz:

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

É melhor merecê-los sem os ter, / Que possuí-los sem os merecer.


(Os Lusíadas, Canto IX, estância 93)

Bem apresentamos muitas figuras de linguagem, não é mesmo? A ideia não é esgotar a lista
de todas elas, mas apresentar as mais recorrentes. Lembramos, ainda, que não basta decorá-
las, mas é necessário compreendê-las em função do espaço que ocupam no texto e do efeito de
sentido que criam.
Vamos colocar esse conceito em prática:

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;


É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que se ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade


É servir a quem vence o vencedor,
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade;
Se tão contrário a si é o mesmo amor? (Camões)

No soneto de Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver”, podemos dizer que há, entre
outras, as figuras:

a) Metáfora em: “Amor é fogo que arde sem se ver”; Metáforas compostas com o auxílio de
elipses: “É ferida...”. “É um contentamento...”; “É dor...”; “É um não querer...”; “É um
andar...”; “É nunca contentar-se...”; “É um cuidar...”; “É querer...”; “É servir...”; “É ter...”
[em todos os casos temos a supressão do sujeito Amor]. Todas essas metáforas, com ou
sem a elipse, substituem “Amor é um sentimento”.

b) Anáfora na repetição do verbo de ligação nos primeiros onze versos;

c) Oximoro em “contentamento descontente”, “ferida que dói e não se sente” e “dor que
desatina sem doer”, “nunca contentar-se de contente. Perceba o sentimento paradoxal que
é o amor, trata-se de algo tão irracional que o sujeito só consegue abordá-lo por meio de
paradoxos, imagens que subvertem a lógica.

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d) Antítese em “não querer mais que bem querer”, “andar solitário entre a gente”; “cuidar
que se ganha em se perder”; “querer estar preso por vontade”; servir a quem vence o
vencedor ;“ter com quem nos mata lealdade”. Perceba que o Amor é algo contraditório,
daí a necessidade de o sujeito poético abordá-lo por meio de imagens antitéticas.

e) Hipérbato em “servir a quem vence o vencedor” por “o vencedor servir a quem [ele]
vence”; e “Mas como causar pode seu favor/ Nos corações humanos amizade;/Se tão
contrário a si é o mesmo amor?” por “, “Como o favor do Amor pode causar amizade nos
corações humanos, se o mesmo amor é tão contrário a si?”. Se o amor subverte a razão,
porque não é lógico, também subverte a lógica da expressão, a sintaxe do poema, daí a
função do hipérbato.

f) Sinédoque: “nos corações humanos a amizade” por “nos seres humanos a amizade”,
coração é a parte pelo todo. Nesse caso, o poeta usou a parte significativa do ser humano,
coração, já que este órgão tradicionalmente está associado à emoção e ao amor.

g) Personificação do Amor, não só porque está grafado em letra maiúscula, remetendo-nos à


entidade mitológica que o representa, mas também porque o favor é uma ação humana
que no texto é praticada pelo Amor.

Note que a utilização de todas essas figuras fazem com que o poeta construa uma imagem
do Amor como algo paradoxal, porque as figuras que mais aparecem são as contrastivas.
Esse paradoxo também se manifesta nas figuras de inversão sintática (inversão da lógica da
organização da oração), no final do soneto.
Além disso, a estrutura sintática usada, “Amor é...”, sugere, pelo substantivo seguido do
verbo de ligação, em que o poeta parece querer definir o Amor atribuindo-lhe um predicativo.
Esse empreendimento, apesar da obsessão com que tenta (o aspecto obsessivo, reiterativo se
expressa por meio da estrutura anafórica do poema), não consegue se concretizar, haja vista que
sentimentos não se definem, já que dependem da experiência de cada um.
No entanto, o sujeito parece captar aquilo que é universal, essencial no Amor: o aspecto
contraditório que o envolve e também o aspecto ilógico desse sentimento, em que muitas vezes
faz as pessoas acometidas por ele mais sofrerem do que têm dá prazer.
Cabe notar que nenhuma das figuras utilizadas são usadas apenas para enfeitar o texto, mas
para dar sentido ou aprofundar a expressividade do poema.

Reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia.


Os objetivos desta análise são:

1) Discutir a essência do discurso literário, que é sua capacidade de evocar muitos sentidos ou
de ampliar os sentidos por meio de utilização da linguagem metafórica, de base conotativa.

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

2) Mostrar os efeitos de sentido que podem ser extraídos da análise das categorias sintática
(organização das orações); estilística (uso de algumas figuras de linguagem); estrutural
(apresentação dos versos).

3) Sugerir um método de análise literária que utilize o instrumental teórico estudado nas
unidades precedentes para uma prática de leitura de poesia.

Explore

Antes de começarmos, acesse o link indicado abaixo e ouça a música “Metáfora”, de Gilberto Gil,
transcrita a seguir: http://letras.mus.br/gilberto-gil/487564/

Metáfora Giberto Gil (disco Um Banda Um/WEA-1982)


Uma lata existe para conter algo,
Mas quando o poeta diz lata
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo,


Mas quando o poeta diz meta
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso não se meta a exigir do poeta


Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe,
Pois o poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta,


Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora.

2. Discutindo o gênero e dividindo o texto

Este texto, apesar de pertencer ao gênero letra de música, pode ser lido como um poema e é
a partir dele que iniciaremos nossas reflexões sobre a Lírica.
Apesar de não pertencer a uma forma fixa, mas ser uma forma livre de construção poética, sua
proximidade com a música nos permite aproximá-lo do gênero canção, estudado na unidade II.

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Desse modo, a temática que aborda, o texto literário e suas possibilidades, nos remete à lírica
e à proximidade deste gênero com a música, o que dá coerência à escolha do poeta.

Trocando Ideias
É sempre bom lembrar que a Lírica está ligada à lira, instrumento musical e, portanto, à música. É
também importante perceber que, até a propagação da imprensa, século XV, a poesia era escrita
para ser cantada, como a poesia trovadoresca de Portugal na Idade Média, as cantigas. O divórcio,
material, mas não essencial, entre poesia e música, é algo recente, o que justifica o fato de podermos
analisar letras de música como poemas e aplicar os conceitos de ritmo e métrica à análise da poesia.

Oque é?
Hiperônimo: é um termo que substitui outro de forma genérica. No caso, metáfora é o nome de uma
figura de linguagem, mas no contexto, o termo metafórico pode ser usado como aquele que designa o
discurso literário, que tem como característica o uso de figuras de linguagem de modo sistemático.

A letra de Gilberto Gil evoca reflexões sobre a consciência que os grandes poetas têm do
material especial com que trabalham: a palavra. Trata-se de um texto metalinguístico, uma vez
que trata do próprio fazer poético, abordando os três elementos básicos e imprescindíveis para
o fenômeno literário: a palavra, o poeta e o leitor.
O primeiro momento do texto, que trata da palavra, compreende as duas primeiras estrofes,
e ressalta a diferença entre as relações lógicas, denotativas, e analógicas, conotativas, que há
entre o significante e o significado: o plano da expressão e o plano do conteúdo; o segundo
momento, compreende a terceira estrofe e diz respeito à função do poeta no processo, ou seja,
à criação; e o terceiro momento, a quarta estrofe, refere-se à atitude do leitor frente à obra.

3. O uso da organização sintática e das figuras de linguagem


para criar os efeitos de sentido do discurso literário
Analisando a primeira parte do texto, podemos verificar que a expressão “Uma lata existe
para conter algo”, sugere o processo conotativo. Lata é um continente, significante, que deve
abarcar um conteúdo, significado. É uma relação pautada pela lógica, pela razão. Contudo, a
partir do segundo verso, introduz-se uma ideia que se articula à primeira por meio da conjunção
adversativa, “Mas”. As conjunções são vocábulos que servem para relacionar duas orações
ou dois termos semelhantes da mesma oração. Aquelas que relacionam termos ou orações
de idêntica função gramatical têm o nome de conjunções coordenativas. Entre as conjunções
coordenativas, estão as adversativas, que se caracterizam por ligarem dois termos ou duas
orações de igual função, acrescentando uma ideia de contraste.

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

Dessa estrutura sintática, depreende-se, portanto, que o sujeito poético, expressão por meio
da qual designaremos doravante o produtor do enunciado lírico, destaca, sintaticamente, por
coordenar as duas orações, uma equivalência de ideias entre o fato de a lata existir para conter
algo e de o poeta dizer lata.
Contudo, a essa equivalência sintática agrega-se um contraste por meio da adversativa: se
a lata, significante, existe logicamente para conter algo, significado, a lata do poeta, a palavra
literária, estabelece um contraste, pois ela pode conter o incontível.
A locução verbal “pode estar querendo dizer” associada ao substantivo “incontível”, que é
um neologismo, ou seja, uma nova expressão criada a partir de outras que já existem na língua,
e significa “aquilo que não se deixa conter ou que não se pode conter”, sugere as infinitas
possibilidades que o processo conotativo permite por meio da analogia. Vale dizer: o poeta
pode gerar muitos significados a partir do significante, justamente porque o poeta trabalha com
a palavra em seu sentido conotativo, metafórico.
Detendo-nos um pouco na analogia, é preciso esclarecer que esse processo nasce do
estabelecimento da relação de semelhança entre coisas ou fatos que, num primeiro momento,
apresentam-se díspares. Se considerarmos a composição da palavra, o prefixo ana, que tem o
sentido de privação ou de negação, mais logia, composto de logos, que significa razão, sugere
que a relação entre as coisas, quando se estabelece analogicamente, suprime os ditames da
razão, da objetividade, o que nos autoriza dizer que a “lata do poeta” (metáfora do discurso
literário, da palavra poética) segue os ditames da emoção, da subjetividade, por isso sugere,
não diz exatamente. Por isso contém infinitamente mais coisas do que a lata comum, o discurso
denotativo, pode conter.
A ideia de que o discurso poético sugere e não diz exatamente reforça-se, de outro modo
pela locução “pode estar querendo dizer” em que o verbo “pode” sugere possibilidade, e não
certeza. O texto poético é, desse modo, concebido como o terreno das possibilidades que a
linguagem oferece, daí o seu caráter conotativo.
Essa ideia é reforçada pelo paradoxo de o poeta dizer lata (continente, que contém algo)
querendo dizer o incontível (aquilo que não pode ser contido). O paradoxo é uma proposição
contrária à comum, que tem uma aparente falta de nexo ou lógica. Chega-se assim à ideia
de que a linguagem poética rompe a barreira lógica, rompe a arbitrariedade da relação entre
significado e significante imposta pela norma ou pela convenção, para nos apresentar novas e
infinitas possibilidades de comunicação.
Há, ainda, outro efeito de sentido que o poeta consegue no texto utilizando o recurso da
cacofonia ou cacófato, que é, geralmente, visto como um vício de linguagem nos textos não
literários, uma vez que se trata de um som feio, desagradável, impróprio ou com sentido
equívoco produzido pela união de sons de palavras vizinhas, como por exemplo, “eu vi ela”,
“meu coração por ti gela” entre outros.
No texto de Gil, contudo, a cacofonia produzida pelas palavras “diz lata”, lembra-nos o termo
“dilata”, presente do indicativo do verbo dilatar, cujo significado é ampliar, e sugere que a lata
do poeta, que é a palavra literária, portanto metafórica, dilata, amplia o sentido do significante,
em última instância é isso o que fazem o processo conotativo e a linguagem metafórica: dilatam
o sentido das palavras.

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A segunda estrofe reitera o que disse a primeira, substituindo as palavras “lata”, “algo” e
“incontível” por “meta”, “alvo” e “inatingível”. Observe aqui que a palavra meta assume
um duplo sentido no texto por meio do emprego de uma figura de linguagem que se chama
paronomásia. A paronomásia consiste em utilizar palavras iguais ou parecidas com sentidos
diferentes. Quando dizemos, “que pena que o pássaro perdeu a pena”, nos servimos da palavra
pena com duplo sentido: primeiro como dó, piedade; segundo como pluma.

Pois bem, no texto em questão, “meta” é um prefixo grego que significa, na palavra metáfora,
mudança de lugar ou de condição. Por outro lado, “meta” pode significar um fim, um objetivo.
Temos aí um paradoxo: o alvo do poeta não é algo fixo, uma “meta”, no sentido de que é
objetivo, mas é uma “meta”, no sentido grego, uma vez que muda, varia de acordo com o
contexto em que a palavra foi empregada.

Chega-se à ideia de que não há um sentido objetivo para o texto literário, mas sentidos
cambiáveis, que mudam de lugar ou condição de acordo com as motivações do poeta e talvez
do leitor, o que nos leva ao segundo momento do processo de criação exposto na terceira
estrofe: o momento da recepção.

4. Ampliando o efeito de sentido da paronomásia:


a função do leitor
Na terceira estrofe, quando se dirige ao leitor, o sujeito poético volta a servir-se da paronomásia
acrescentando outro sentido à palavra meta: a expressão “não se meta” significa agora “não se
atreva”. Por sua vez, a expressão “cabe” significa “algo que pode estar contido dentro de algo”,
no primeiro caso, “na lata do poeta tudo-nada cabe”, e também, no segundo caso, a mesma
expressão “cabe” significa dever, obrigação: “pois ao poeta cabe fazer”, ou seja “o poeta deve
fazer que na lata venha a caber o incabível”.

O paradoxo também retorna na expressão “tudo-nada”, que é aquilo que cabe na lata
do poeta. O sentido da palavra do poeta constrói-se por meio da ambiguidade, é dever dele
obscurecer a forma, dilatar o sentido das palavras, conferir múltiplas significações ao texto. Esse
jogo deve ser jogado também pelo leitor que, ao não exigir do poeta a prática das convenções
linguísticas “não se meta a exigir do poeta”, permite que ele realize livremente sua função: “fazer
com que na lata venha a caber o incabível”.

Desse modo, a leitura do poema é um processo que exige colaboração de ambas as


partes: o poeta deve dilatar o sentido da expressão e o leitor deve estar aberto a aceitar
novas possibilidades. O discurso literário exige interação entre enunciador (o sujeito poético)
e enunciatário (o leitor). A diferença entre os discursos não literário e o literário é que
este último exige uma colaboração mais ampla por parte do enunciatário (o leitor), uma
cumplicidade maior com o enunciador (o sujeito poético).

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

Aqui podemos refletir sobre o porquê de o poeta utilizar o adjetivo “incabível” no lugar de
“incontível”. Incabível é, ao mesmo tempo, aquilo não cabe e aquilo que não tem cabimento, ou
seja, algo absurdo, que nega as leis da plausibilidade, da admissibilidade: da lógica. Novamente
encontramos o conceito de discurso literário como algo que nega ou desafia a lógica tradicional,
vide o conceito de analogia que discutimos.
Na quarta estrofe do texto, o sujeito poético manda que o leitor “Deixe a meta do poeta,
não discuta” e que também “Deixe a sua meta fora da disputa”. Diante de um texto literário,
normalmente fazemos a clássica pergunta: “o que o poeta quis dizer com isso?”, ou ainda, “ele
pensou em tudo isso antes de escrever?”. Quando não, procuramos interpretá-lo de acordo
com a nossa visão do mundo. Às vezes, queremos “encaixá-lo” às situações que vivemos, como
se quiséssemos fazer nossas as palavras do poeta, ou ainda enquadrar o texto em períodos
literários, listas de características de cada época.
Tanto um procedimento como outro desviam nossa atenção do verdadeiro elemento
que importa no texto, o poder expressivo da linguagem literária, que é, muitas vezes, “uma
finalidade sem fim”.

5. A linguagem literária e seu caráter absoluto

Chegamos, então, à “lata absoluta”, metáfora da linguagem poética. Absoluta é a qualidade


daquilo que se apresenta como pleno, acabado, que não depende de ninguém ou de coisa
nenhuma. Nesse sentido, a literatura deve ser compreendida como um fenômeno que instaura
novas possibilidades por meio da linguagem. Representa, ao mesmo tempo, o desafio que nos
impõe a linguagem e as possibilidades, a maleabilidade dessa ferramenta que é, ao mesmo
tempo, instrumento de comunicação e veículo de ideologias.
Além disso, é importante lembrar que temos acesso ao mundo e que criamos o mundo por
meio da linguagem, por isso seu caráter absoluto. Entre as diferentes linguagens, nosso estudo
se atém à verbal, já que falamos em literatura.
Você deve ter percebido que fizemos uma análise do texto, considerando alguns elementos
que o compõem:
a) A estrutura sintática, quando falamos nas orações coordenadas adversativas;
b) A questão estilística, quando analisamos as figuras de linguagem: o paradoxo, a cacofonia
(que de vício passa a ter efeito estilístico), e a paronomásia.
c) A questão lexical, quando nos referimos ao sentido de analogia e de metáfora recorrendo
à estrutura da palavra, e ao neologismo.

Nesta unidade, aproveitamos para fazer duas coisas: discutir, por meio de um texto
metalinguístico, as especificidades do discurso literário e traçar um percurso de análise de um
texto literário passo a passo.

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É bom saber que não há uma receita para analisar um texto poético, mas há um método que
pode ser resumido nos seguintes passos:
a) prestar atenção aos fenômenos linguísticos que ocorrem no texto;
b) fazer um levantamento deles;
c) analisar os efeitos de sentido que produzem;
d) relacionar esses efeitos de sentido ao tema do texto para tentar compreender como eles
ampliam as ideias.

Nesse processo, frequentemente, é necessário recorrer à questão formal, rimas e métrica, mas
nem sempre. Ocorre que qualquer observação no plano da forma deve sempre ser associada a
uma observação no plano do conteúdo, pois senão a análise do poema pode se transformar em
um mero inventário de fenômenos linguísticos.
Para exemplificar o que estamos dizendo sobre a métrica, veja a estrofe a seguir:

Por isso não se meta a exigir do poeta


Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo-nada cabe,
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Temos dois versos de 12 sílabas poéticas, dois de nove sílabas e um de três sílabas poéticas.
São versos heterométricos, sendo que o último verso é muito menor do que os outros, este é
um aspecto formal do texto. Temos de pensar se é possível atribuir um sentido a esse fenômeno
ou se o sujeito que escreveu apenas não se preocupou em produzir de um poema rigidamente
metrificado.
Uma possível resposta seria que o poeta queria produzir versos rimados e por isso deixou
“fazer” e “caber” no final de cada linha, ainda que “tendo de sacrificar” a métrica.
Outra resposta mais adequada seria pensar que, ao isolar o neologismo “incabível”, o poeta
tanto destaca essa qualidade do texto metafórico quanto atende à própria natureza do que ele
significa: aquilo que é incabível não coube no verso, por isso transbordou o mesmo verso, teve
de ficar em outra linha. É uma possibilidade, não a única resposta à questão. Contudo, trata-se
de uma possibilidade autorizada pelo texto em função da temática tratada.
Desse modo, o discurso poético não diz o mundo, mas o recria por meio das palavras. Desse
modo, o poema não diz a metáfora, ele a concretiza por meio dos recursos linguísticos.
Agora, cabe a você, retomar esse conteúdo e utilizá-lo na leitura dos poemas, não é mesmo?
Como método de estudo, procure fazer uma síntese do que vimos nessa unidade, produza
um fichamento em forma de esquema e consulte-o sempre que for analisar um poema.

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

Atenção

Em seguida, você deverá fazer a atividade de sistematização da unidade. Para isso, leia a letra de
música “Flor do Cafezal”, de Luiz Carlos Paraná, interpretada pela dupla Cascatinha e Inhana, trans-
crita a seguir e ouça a música no site do Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=xNtQGfej0_o
ou http://letras.mus.br/cascatinha-e-inhana/282106/
Flor do Cafezal (Luiz Carlos Paraná)
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal
Era florada, lindo véu de branca renda
Se estendeu sobre a fazenda, igual a um manto nupcial
E de mãos dadas fomos juntos pela estrada
Toda branca e perfumada, pela flor do cafezal
Meu cafezal em flor, quanta flor do cafezal
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Ai menina, meu amor, minha flor do cafezal
Ai menina, meu amor, branca flor do cafezal
Passa-se a noite vem o sol ardente bruto
Morre a flor e nasce o fruto no lugar de cada flor
Passa-se o tempo em que a vida é todo encanto
Morre o amor e nasce o pranto, fruto amargo de uma dor
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal
Meu cafezal em flor, quanta flor meu cafezal

Como vimos no texto teórico da disciplina, a poesia e a música são irmãs. Este texto é bastante
simples do ponto de vista gramatical, mas mostra a sensibilidade aguçada e a percepção poética
do homem do campo, que é capaz de estabelecer analogia entre os elementos de que dispõe,
a lavoura de café, no caso, e a própria existência. Isto confirma a ideia de que o ritmo está
ligado às atividades humanas, mas não só ele: também a arte nasce do cotidiano e uma grande
obra pode surgir em qualquer circunstância, não apenas a partir de grandes acontecimentos ou
versando sobre temáticas “ditas” nobres.
As atividades de sistematização buscam fazer com que você entenda as relações entre forma e
conteúdo e baseiam-se, principalmente, na ideia da analogia, que é a base do texto em questão.
Por analogia entende-se, para esta atividade, o estabelecimento de relação de semelhança
entre coisas ou fatos.
Para fazer a atividade de sistematização, você deverá reler o texto “Flor do cafezal” algumas
vezes, portanto pedimos que a execute com este material aberto.

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Material Complementar

Analisando poesia I:
Para que você possa entender melhor os processos de análise de poemas, é fundamental que
você leia a 3ª parte do livro Forma e sentido do texto literário, de Salvatore D’Onófrio,
capítulo “Teoria da Lírica”, p. 180-277. Essa obra faz parte da bibliografia complementar dessa
disciplina.
Esse livro está disponível na Biblioteca Virtual da Universidade, acessível por meio do link:
http://sites.cruzeirodosulvirtual.com.br/biblioteca.
Depois de acessar o sistema com seu login, clique em “E-books da Pearson (em português)”.
Esse capítulo traz diversos exemplos de análise de textos poéticos em diferentes níveis: gráfico,
fônico, lexical, sintático e semântico. Você encontrará os conceitos de que estamos tratando nas
unidades da disciplina expostos de forma um pouco diferente, mas em perfeita sintonia com
nosso conteúdo. No entanto, se durante a leitura você tiver dúvidas, procure o tutor por meio
do fórum de dúvidas da disciplina ou da ferramenta “Mensagem”.

É importante, também, que você faça o fichamento do capítulo, pois assim você poderá reler
os principais conceitos sempre que quiser, sem ter de recorrer à leitura do capítulo todo. Além
disso, o fichamento faz com que você treine as habilidades de síntese e paráfrase de conceitos.
Você poderá encontrar dicas sobre como fazer um fichamento no endereço eletrônico do
MEC, a seguir:
h t t p : / / o b j e t o s e d u c a c i o n a i s 2 . m e c . g o v. b r / b i t s t r e a m / h a n d l e /
mec/16228/?sequence=10#bibliografia

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Unidade: Figuras de linguagem e reflexões sobre a forma e o conteúdo da poesia

Referências

GOLDSTEIN, N. S. Versos, sons, ritmos. 14. ed. São Paulo: Ática, 2007. (E-book)

MICHELETTI, G.; BOAVENTURA, A.; CURY, B. Estilística: um modo de ler... poesia. 2.


ed. São Paulo: Andross Editora, 2006.

COUTINHO, A. Notas de Teoria Literária. São Paulo: Vozes Editora, 2008.

BOSI, Alfredo (org.). Leitura de poesia. São Paulo : Ática, 2007. (E-book)

CANDIDO, A. Na sala de aula: caderno de análise literária. 8. ed. São Paulo: Ática, 2000.
(E-book)

CHARAUDEAU, P; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. Trad. Fabiana


Komesu. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.

D’ONOFRIO, S. Forma e sentido do texto literário. São Paulo: Ática, 2007. (E-book)

MAINGUENEAU, D. Discurso literário. Trad. de Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

PROENÇA FILHO, D. A linguagem literária. 8. ed. São Paulo: Ática, 2008. (E-book)

SOUZA, R. A. Q. Teoria da literatura. São Paulo: Ática, 2007. (E-book)

TRASK, R. Dicionário de Linguagem e Linguística. Trad. Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto,
2004.

TAVARES, H. Teoria literária. 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.

ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 2009.


(E-book)

26
Anotações

27
www.cruzeirodosulvirtual.com.br
Campus Liberdade
Rua Galvão Bueno, 868
CEP 01506-000
São Paulo SP Brasil
Tel: (55 11) 3385-3000

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